A COR DA MEMÓRIA
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: Composição de JAS
sobre foto/ilustração de “Sogno di Libertà”
de Milva/Theodorakis. Vídeo aqui republicado:
Milva-Theodorakis - Sogno di Libertà
“Si tu quieres soñar / y te hace falta un tónico / vuelve la copa del cielo / ¡y bébete el azul!”. Luís Vidales, 1900-1990 - “Paseo”, 1976.
NUM DIA DE CHUVA Bateste levemente À porta da minha Memória. ERA TRANSPARENTE Essa porta. Vi que eras tu. Reconheci a tua boca, O bâton púrpura Dos teus lábios. NÃO SEI SE ME PRESSENTISTE, Não sei, Porque a porta Era um espelho. Através dela Só se via Do lado de cá. ENTRASTE Cheia de cor Que a chuva Humedecera, Mas deixara Intacta. Apenas com mais Brilho. TAMBÉM TU ERAS TRANSPARENTE. Olhei-te E vi, através de ti, Um céu Pintado De azul plúmbeo. NA TRANSPARÊNCIA, DESPONTOU O SOL Coado em amarelo. Havia umas nuvens Escuras A nascente, Lá no Monte... ÀS VEZES, O AMARELO Ganhava tons de Âmbar E vestia-te o corpo Na minha intangível Memória Fotográfica. RECORDAVA, Sereno, Esse teu belo Sorriso... .................. Mas quando te quis Tocar, Ao de leve, Um vidro desceu, Vertical, Sobre nós. Era frio E húmido. Separou-nos. E eu chorei! AS LÁGRIMAS Escorreram Pelo vidro. Tentaste Agarrá-las Do lado de lá E fixá-las com Todas as cores Que tinhas contigo. Ficaram algumas Gotas No vidro, Em amarelo, Porque tu, De repente, Te tornaste sol E eu já não era Mais do que um Reflexo dos teus Raios filtrados Por algumas Nuvens... ....... Escuras! DESPERTEI Ao som De dedos que batiam Suavemente À porta Do meu quarto. CORRI A ABRI-LA... ....... Ninguém! REGRESSEI, RÁPIDO, À minha memória, Mas tu já não Estavas, Nem sequer Como reflexo... .............. Deixara aberta A porta do tempo!
Olá, Professor,
Lindo, também, este Poema!
Refinado e delicado… ainda mais! Mas sofrido, na completude do genuíno Poeta…
E a Imagem, muito bem escolhida. Como que uma memória súbita deixando à imaginação do leitor completá-la…
Muito Obrigada!!
Beijinho, fp
Obrigado, Fernanda.
Na verdade, o poema foi construído a partir deste Rosto que eu trabalhei a partir de uma foto que ilustra a Canção de Milva/Theodorakis.
Beijinho, JAS
Belíssimo e emotivo poema de JAS.
O lírico contaminado pelo narrativo, traço a que o poeta já nos havia habituado em composições poéticas anteriores.
Lírico, na medida em que nele ecoa a expressão máxima dos sentimentos, da emoção, da subjectividade do «eu» que «fala»; narrativo, porquanto nele podemos descortinar uma bela «estória» de amor, na qual a «memória» (e até alguma irrupção no fantástico) desempenha um papel fundamental.
As «personagens»? O sujeito poético que «fala» e que se dirige a um «tu» feminino, ausente, mas que a memória se encarrega de presentificar.
Depois, temos a remissão para um «tempo» que, pese embora seja vago, nos diz decorrer «NUM DIA DE CHUVA» (v. 1). Um tempo (mais que cronológico, importa aqui o meteorológico) certamente convidativo ao devaneio, ao sonho; que propicia a evasão no tempo e no espaço, apesar da brevíssima alusão ao espaço (cf. o referente «Lá no Monte…», v. 29). Em suma, tempo e espaço funcionam como coadjuvantes da «memória»; são agentes facilitadores desse encontro entre o «eu» e o «tu», onde as fronteiras espácio-temporais são abolidas.
Há momentos narrativos e que permitem, não só estabelecer o «incipit» e o desfecho desta espécie de «forme(s) simple(s)» (André Jolles), mas até antever o avançar (o dinamismo) da «ação», designadamente, através do recurso às formas verbais no pretérito perfeito do indicativo ( «Vi»; «Reconheci»; «Entraste»; «Olhei-te»; «vi»; «Despontou»; «quis»; «desceu»; «Separou-nos»; «Chorei»; «Escorreram»; «Tentaste…»; «Ficaram»; «te tornaste»; «Despertei»; «Corri», «regressei») e no mais-que-perfeito («Humedecera,»;«deixara»). Atente-se, pois, desde logo, na belíssima metáfora que alude ao modo como a chegada da mulher amada se faz anunciar: «Bateste levemente/ À porta da minha/ Memória» (vv. 2-4).
O desfecho é desolador: «despertado» na sua «memória», pelo som de um bater suave na porta (uma nota desconcertante se evola destes versos, deixando o leitor apreensivo entre o real e o irreal), a porta real, aberta, acabaria por inviabilizar o retomar da «memória» e o tempo, essa força cruel e avassaladora que tudo arrasta à sua passagem, acaba por vencer, apagando todos os traços da mulher amada, numa palavra, submergindo a «memória»: «Deixara aberta/ A porta do tempo!
E se há momentos narrativos, também há momentos descritivos, de pausa, nomeadamente, quando nos faculta os traços do «tu»: trata-se de uma mulher delicada, que «Bate levemente»; sensual, pois o sujeito lírico fixa-se na «[s]tua boca,», n’ «O bâton púrpura/ Dos [s]teus lábios.»; de «belo sorriso» e a sua presença impõe-se com uma força tal que o poeta recorre mais uma vez à «cor» para a caracterizar. Toda ela é «cor» e «brilho»; e são cores quentes (o «púrpura do bâton», o «amarelo» e o «âmbar») que contrastam e fazem esquecer por momentos o «azul plúmbeo» do céu e as «nuvens/ escuras/ (…)/ Lá no Monte…». Aliás, a própria chuva desempenha o papel de coadjuvante no retrato da mulher amada, porquanto, ao invés de lhe retirar beleza, a «Humedecera», mas a «deixara/ Intacta./ Apenas com mais/ Brilho.». Bela nota de sensualidade nesta sensação tátil patente no verbo «humedecer», como se o sujeito poético tivesse podido sentir o efeito da chuva na pele/corpo da mulher amada.
A presença da conjunção coordenativa adversativa «Mas» na oitava estrofe marca um corte, uma quebra, no andamento «feliz» da «memória», simbolizado no «vidro» «frio e húmido» que desce abruptamente, impedindo o toque físico entre os amantes. O paroxismo do sofrimento está patente no «choro» do sujeito poético e o fantástico prolonga-se na referência à tentativa da mulher amada de «agarrar» as «lágrimas» do «eu» «contaminando-as» com a sua cor.
O desespero toma conta do poeta que procura a todo o custo retomar o sonho, «Mas tu já não/ Estavas,/ Nem sequer/ Como reflexo… ».
Suplício de Tântalo neste belíssimo poema de JAS: pressente a presença da mulher amada, vê com forte nitidez os traços do seu rosto, mas está-lhe vedado chegar até ela.
Interessante a metáfora do «espelho» no acesso ou caracterização da «memória» do «eu».
Recordar, ainda, a isotopia da «cor« a que poeta já nos habituou nesta tríade «Eu»- «Mulher amada»- «cor».
Maravilhoso.
Muitos parabéns, JAS.
Muito, muito obrigado OLGA! Em cada seu comentário aprendo sempre para o poema seguinte. O seu trabalho analítico é fantástico e eu fico impressionado com a incursão nos meandros do poema. Mas hoje queria falar-lhe das portas, que são duas. Uma representa o princípio da realidade (a da antepenúltima estrofe) – a porta do quarto. A outra é a da memória, a do tempo, a da fantasia. O poema, inspirado também (mas isto é já uma interpretação minha, não é o poeta a falar), julgo eu, no Calderón de la Barca, “La vida es sueño”, faz uma incursão onírica nela, na vida, através da poesia. Há uma porta de entrada e de saída da memória… a porta do tempo. A ligação da vida ao sonho é feita através da porta (e) do quarto, que é o lugar deputado do sonho. É um momento único. Sai da memória para a realidade, “ninguém”, e quando volta… de novo “ninguém”! Dupla perda. Tivesse ficado na memória e não abrisse a porta do real! Todas estas transparências que atravessam o poema e quase se sobrepõem estão projectadas na imagem que ilustra o poema… se é que não é o poema que ilustra a imagem. Mas a verdade é que procurei, sim, mais uma vez, uma dialéctica entre a imagem/cor (e são cores primárias, o vermelho, o azul e o amarelo) e a palavra no registo do tempo, esse grande escultor, e da memória, talvez a sua principal (se não única) residência…
São só algumas considerações a propósito do seu comentário que agradeço do fundo do coração.
JAS
Muito obrigada por essas notas preciosíssimas na interpretação do poema.
Sim, eu distingui perfeitamente essas duas portas: a do real e a da memória. Talvez, apressada, não tenha sido capaz de o expressar com mais clareza.
Acabei por não incluir um apontamento que tinha feito acerca do modo como o binómio «memória – tempo» surge no poema e que me parece não ser despiciendo.
(Não posso precisar se foi Schopenhauer quem disse que nada existe fora do espaço e do tempo e penitencio-me, desde já, pelo erro tremendo que possa estar a cometer.)
Assim, entendi que a «memória» (apesar do dinamismo subjacente à mesma, no poema), estando «dentro» do tempo, acaba por, paradoxalmente, funcionar como uma espécie de suspensão, de intervalo, do/ no tempo real. A memória é algo de prodigioso, pois permite-nos «recuperar» o passado; presentificá-lo.
Mas a verdade é que o tempo não para a sua marcha. E basta um pequeno acontecimento para que a «porta» que deu acesso à memória se feche e nos vejamos confrontados com a «porta» do tempo real. E neste aspeto, parece-me que perpassa no poema alguma tragicidade, a saber: apesar da vontade, do esforço, que o «eu» poético possa fazer para regressar à memória (até pelo prazer que, eventualmente, a mesma lhe estivesse a proporcionar), a verdade é que é impossível recuperá-la. Tal como quando acordamos de um sonho maravilhoso e cerramos os olhos com força, na tentativa vã de o chamarmos de volta.
Cronos é, de facto, cruel e não há eterno retorno.
A última estrofe é disso mesmo paradigmática. Belíssima.
REGRESSEI, RÁPIDO,
À minha memória,
Mas tu já não
Estavas,
Nem sequer
Como reflexo…
…………..
Deixara aberta
A porta do tempo!
Bem haja pela sua resposta à minha leitura.
Um abraço de verdadeira estima e admiração.
A memória ou a falta dela é terrivel…
Fiquei às voltas com o filósofo alemão e estou em crer que foi Martin Heidegger.
Peço desculpa, pela traição!
Não, não creio que se tenha enganado acerca do Schopenhauer. Com efeito, em “O mundo como vontade e representação” – “Die Welt als Wille und Vorstellung” – (1819), ele diz precisamente o seguinte: “Mas tempo e espaço, cada um por si, são intuitivamente representáveis, mesmo sem a matéria” (alude aqui também à teoria kantiana): mas a matéria, sem eles, não” (não pode ser representada) (cito a partir da edição italiana de 1946: Torino, Paravia, I, § 4, p. 12). Tempo e espaço são formas a priori, fundamento da realidade fenoménica. Este é um livro admirável que consulto sempre que tenho de escrever sobre arte. A conversa sobre o Heidegger é outra. Portanto, acho que esteve bem. Não há, pois, traição, OLGA! Obrigado.
Eu é que agradeço tão prestimoso esclarecimento.
Para si, o meu bem haja beirão com um abraço muito amigo.