Poesia

A COR DA MEMÓRIA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: Composição de JAS
sobre foto/ilustração de “Sogno di Libertà”
de Milva/Theodorakis. Vídeo aqui republicado:
Milva-Theodorakis - Sogno di Libertà

JAS_MemóriaPoema_Final18_52

“Si tu quieres soñar / y te hace falta un tónico / vuelve la copa del
cielo / ¡y bébete el azul!”. 
Luís Vidales, 1900-1990 - “Paseo”, 1976.

 

NUM DIA DE CHUVA
Bateste levemente
À porta da minha
Memória.

ERA TRANSPARENTE
Essa porta.
Vi que eras tu.
Reconheci a tua boca,
O bâton púrpura
Dos teus lábios.

NÃO SEI SE
ME PRESSENTISTE,
Não sei,
Porque a porta
Era um espelho.
Através dela 
Só se via
Do lado de cá.

ENTRASTE
Cheia de cor
Que a chuva 
Humedecera,
Mas deixara
Intacta.
Apenas com mais 
Brilho.

TAMBÉM TU
ERAS TRANSPARENTE.
Olhei-te
E vi, através de ti,
Um céu 
Pintado
De azul plúmbeo.
 
NA TRANSPARÊNCIA, 
DESPONTOU O SOL
Coado em amarelo.
Havia umas nuvens 
Escuras 
A nascente,
Lá no Monte...

ÀS VEZES, O AMARELO
Ganhava tons de
Âmbar
E vestia-te o corpo 
Na minha intangível
Memória 
Fotográfica.
 
RECORDAVA,
Sereno,
Esse teu belo
Sorriso...
..................
Mas quando te quis
Tocar,
Ao de leve,
Um vidro desceu,
Vertical, 
Sobre nós.
Era frio
E húmido.
Separou-nos.
E eu chorei!
 
AS LÁGRIMAS
Escorreram
Pelo vidro.
Tentaste
Agarrá-las
Do lado de lá
E fixá-las com
Todas as cores
Que tinhas contigo.
Ficaram algumas
Gotas
No vidro,
Em amarelo,
Porque tu, 
De repente,
Te tornaste sol
E eu já não era
Mais do que um
Reflexo dos teus
Raios filtrados
Por algumas 
Nuvens... 
.......
Escuras!

DESPERTEI
Ao som
De dedos que batiam
Suavemente
À porta 
Do meu quarto.

CORRI A ABRI-LA...
.......
Ninguém!

REGRESSEI, RÁPIDO,
À minha memória,
Mas tu já não 
Estavas,
Nem sequer
Como reflexo...
..............
Deixara aberta 
A porta do tempo!

 

 

 

 

8 thoughts on “Poesia

  1. Olá, Professor,

    Lindo, também, este Poema!
    Refinado e delicado… ainda mais! Mas sofrido, na completude do genuíno Poeta…
    E a Imagem, muito bem escolhida. Como que uma memória súbita deixando à imaginação do leitor completá-la…
    Muito Obrigada!!

    Beijinho, fp

  2. Belíssimo e emotivo poema de JAS.
    O lírico contaminado pelo narrativo, traço a que o poeta já nos havia habituado em composições poéticas anteriores.
    Lírico, na medida em que nele ecoa a expressão máxima dos sentimentos, da emoção, da subjectividade do «eu» que «fala»; narrativo, porquanto nele podemos descortinar uma bela «estória» de amor, na qual a «memória» (e até alguma irrupção no fantástico) desempenha um papel fundamental.
    As «personagens»? O sujeito poético que «fala» e que se dirige a um «tu» feminino, ausente, mas que a memória se encarrega de presentificar.
    Depois, temos a remissão para um «tempo» que, pese embora seja vago, nos diz decorrer «NUM DIA DE CHUVA» (v. 1). Um tempo (mais que cronológico, importa aqui o meteorológico) certamente convidativo ao devaneio, ao sonho; que propicia a evasão no tempo e no espaço, apesar da brevíssima alusão ao espaço (cf. o referente «Lá no Monte…», v. 29). Em suma, tempo e espaço funcionam como coadjuvantes da «memória»; são agentes facilitadores desse encontro entre o «eu» e o «tu», onde as fronteiras espácio-temporais são abolidas.
    Há momentos narrativos e que permitem, não só estabelecer o «incipit» e o desfecho desta espécie de «forme(s) simple(s)» (André Jolles), mas até antever o avançar (o dinamismo) da «ação», designadamente, através do recurso às formas verbais no pretérito perfeito do indicativo ( «Vi»; «Reconheci»; «Entraste»; «Olhei-te»; «vi»; «Despontou»; «quis»; «desceu»; «Separou-nos»; «Chorei»; «Escorreram»; «Tentaste…»; «Ficaram»; «te tornaste»; «Despertei»; «Corri», «regressei») e no mais-que-perfeito («Humedecera,»;«deixara»). Atente-se, pois, desde logo, na belíssima metáfora que alude ao modo como a chegada da mulher amada se faz anunciar: «Bateste levemente/ À porta da minha/ Memória» (vv. 2-4).
    O desfecho é desolador: «despertado» na sua «memória», pelo som de um bater suave na porta (uma nota desconcertante se evola destes versos, deixando o leitor apreensivo entre o real e o irreal), a porta real, aberta, acabaria por inviabilizar o retomar da «memória» e o tempo, essa força cruel e avassaladora que tudo arrasta à sua passagem, acaba por vencer, apagando todos os traços da mulher amada, numa palavra, submergindo a «memória»: «Deixara aberta/ A porta do tempo!
    E se há momentos narrativos, também há momentos descritivos, de pausa, nomeadamente, quando nos faculta os traços do «tu»: trata-se de uma mulher delicada, que «Bate levemente»; sensual, pois o sujeito lírico fixa-se na «[s]tua boca,», n’ «O bâton púrpura/ Dos [s]teus lábios.»; de «belo sorriso» e a sua presença impõe-se com uma força tal que o poeta recorre mais uma vez à «cor» para a caracterizar. Toda ela é «cor» e «brilho»; e são cores quentes (o «púrpura do bâton», o «amarelo» e o «âmbar») que contrastam e fazem esquecer por momentos o «azul plúmbeo» do céu e as «nuvens/ escuras/ (…)/ Lá no Monte…». Aliás, a própria chuva desempenha o papel de coadjuvante no retrato da mulher amada, porquanto, ao invés de lhe retirar beleza, a «Humedecera», mas a «deixara/ Intacta./ Apenas com mais/ Brilho.». Bela nota de sensualidade nesta sensação tátil patente no verbo «humedecer», como se o sujeito poético tivesse podido sentir o efeito da chuva na pele/corpo da mulher amada.
    A presença da conjunção coordenativa adversativa «Mas» na oitava estrofe marca um corte, uma quebra, no andamento «feliz» da «memória», simbolizado no «vidro» «frio e húmido» que desce abruptamente, impedindo o toque físico entre os amantes. O paroxismo do sofrimento está patente no «choro» do sujeito poético e o fantástico prolonga-se na referência à tentativa da mulher amada de «agarrar» as «lágrimas» do «eu» «contaminando-as» com a sua cor.
    O desespero toma conta do poeta que procura a todo o custo retomar o sonho, «Mas tu já não/ Estavas,/ Nem sequer/ Como reflexo… ».
    Suplício de Tântalo neste belíssimo poema de JAS: pressente a presença da mulher amada, vê com forte nitidez os traços do seu rosto, mas está-lhe vedado chegar até ela.
    Interessante a metáfora do «espelho» no acesso ou caracterização da «memória» do «eu».
    Recordar, ainda, a isotopia da «cor« a que poeta já nos habituou nesta tríade «Eu»- «Mulher amada»- «cor».
    Maravilhoso.
    Muitos parabéns, JAS.

    • Muito, muito obrigado OLGA! Em cada seu comentário aprendo sempre para o poema seguinte. O seu trabalho analítico é fantástico e eu fico impressionado com a incursão nos meandros do poema. Mas hoje queria falar-lhe das portas, que são duas. Uma representa o princípio da realidade (a da antepenúltima estrofe) – a porta do quarto. A outra é a da memória, a do tempo, a da fantasia. O poema, inspirado também (mas isto é já uma interpretação minha, não é o poeta a falar), julgo eu, no Calderón de la Barca, “La vida es sueño”, faz uma incursão onírica nela, na vida, através da poesia. Há uma porta de entrada e de saída da memória… a porta do tempo. A ligação da vida ao sonho é feita através da porta (e) do quarto, que é o lugar deputado do sonho. É um momento único. Sai da memória para a realidade, “ninguém”, e quando volta… de novo “ninguém”! Dupla perda. Tivesse ficado na memória e não abrisse a porta do real! Todas estas transparências que atravessam o poema e quase se sobrepõem estão projectadas na imagem que ilustra o poema… se é que não é o poema que ilustra a imagem. Mas a verdade é que procurei, sim, mais uma vez, uma dialéctica entre a imagem/cor (e são cores primárias, o vermelho, o azul e o amarelo) e a palavra no registo do tempo, esse grande escultor, e da memória, talvez a sua principal (se não única) residência…
      São só algumas considerações a propósito do seu comentário que agradeço do fundo do coração.
      JAS

      • Muito obrigada por essas notas preciosíssimas na interpretação do poema.
        Sim, eu distingui perfeitamente essas duas portas: a do real e a da memória. Talvez, apressada, não tenha sido capaz de o expressar com mais clareza.
        Acabei por não incluir um apontamento que tinha feito acerca do modo como o binómio «memória – tempo» surge no poema e que me parece não ser despiciendo.
        (Não posso precisar se foi Schopenhauer quem disse que nada existe fora do espaço e do tempo e penitencio-me, desde já, pelo erro tremendo que possa estar a cometer.)
        Assim, entendi que a «memória» (apesar do dinamismo subjacente à mesma, no poema), estando «dentro» do tempo, acaba por, paradoxalmente, funcionar como uma espécie de suspensão, de intervalo, do/ no tempo real. A memória é algo de prodigioso, pois permite-nos «recuperar» o passado; presentificá-lo.
        Mas a verdade é que o tempo não para a sua marcha. E basta um pequeno acontecimento para que a «porta» que deu acesso à memória se feche e nos vejamos confrontados com a «porta» do tempo real. E neste aspeto, parece-me que perpassa no poema alguma tragicidade, a saber: apesar da vontade, do esforço, que o «eu» poético possa fazer para regressar à memória (até pelo prazer que, eventualmente, a mesma lhe estivesse a proporcionar), a verdade é que é impossível recuperá-la. Tal como quando acordamos de um sonho maravilhoso e cerramos os olhos com força, na tentativa vã de o chamarmos de volta.
        Cronos é, de facto, cruel e não há eterno retorno.
        A última estrofe é disso mesmo paradigmática. Belíssima.
        REGRESSEI, RÁPIDO,
        À minha memória,
        Mas tu já não
        Estavas,
        Nem sequer
        Como reflexo…
        …………..
        Deixara aberta
        A porta do tempo!

        Bem haja pela sua resposta à minha leitura.
        Um abraço de verdadeira estima e admiração.

  3. A memória ou a falta dela é terrivel…
    Fiquei às voltas com o filósofo alemão e estou em crer que foi Martin Heidegger.
    Peço desculpa, pela traição!

    • Não, não creio que se tenha enganado acerca do Schopenhauer. Com efeito, em “O mundo como vontade e representação” – “Die Welt als Wille und Vorstellung” – (1819), ele diz precisamente o seguinte: “Mas tempo e espaço, cada um por si, são intuitivamente representáveis, mesmo sem a matéria” (alude aqui também à teoria kantiana): mas a matéria, sem eles, não” (não pode ser representada) (cito a partir da edição italiana de 1946: Torino, Paravia, I, § 4, p. 12). Tempo e espaço são formas a priori, fundamento da realidade fenoménica. Este é um livro admirável que consulto sempre que tenho de escrever sobre arte. A conversa sobre o Heidegger é outra. Portanto, acho que esteve bem. Não há, pois, traição, OLGA! Obrigado.

      • Eu é que agradeço tão prestimoso esclarecimento.
        Para si, o meu bem haja beirão com um abraço muito amigo.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s