Artigo

SALTAR MUROS – CARTA A UMA AMIGA

Reflexões sobre a Arte 
Cinco Fragmentos

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. Jas. 04-2021.


I.

LEMBRO-ME DO TEU CONSELHO  acerca do atrevimento de saltar muros. De sair do rotineiro e do convencional. De não acatar as normas impostas pela subjectividade social (que não a lei), vigiada pelos “chiens de garde” da moralidade dominante, agora tão diligentemente controlada pelos “nouveaux chiens de garde”, os do “política e linguisticamente correcto”, os mercenários da palavra ou os apóstolos da transparência e da brancura moral. Os da retórica angelical. Os pregadores que falam dos púlpitos do poder não electivo, seja ele qual for. E que todos os santos dias têm que apontar o dedo acusador a alguém, quando não têm tragédias para mostrar e comentar.  Os novos “Intelectuais orgânicos”,  para usar o conceito de Antonio Gramsci. Mas mais orgânicos do que intelectuais. Sim, lembro-me bem, pois tu sempre gostaste de saltar muros.

II.

A QUESTÃO reside no conceito de muro. Quem não gosta de saltar muros? Todos saltam muros, mas, na maior parte dos casos, fazem-no às escondidas, não querendo ser apanhados a saltar. Se fossem, deixariam de poder apontar o dedo aos outros, os que saltam muros sem se preocuparem muito com o que os outros pensam disso . Afinal, quem não gosta de saltar? Saltar faz bem à alma e ao corpo. É como a dança. E até serve para esconjurar os males da alma e para invocar chuva em tempos de seca espiritual ou anímica. Afinal, um muro é sempre um muro e a vida está cheia deles. Para avançar na vida é preciso saltar muitos muros. E  os muros mais altos e difíceis são os que estão dentro de nós.

III.

QUANDO ERA CRIANÇA saltava muros, na minha aldeia, para ir à fruta, comer cerejas em cima de cerejeiras que não eram nossas. Rebeldia, risco, aventura, prazer. Que bonito! Às vezes, eram as nossas próprias árvores que assaltávamos, com os nossos amiguinhos, às escondidas dos nossos pais. As uvas, oh, essas uvas “colhão de galo” que havia na principal vinha do meu Pai eram as mais apetecidas… Em setembro, lá íamos nós, os assaltantes, os salteadores de fruta proibida, comer estas uvas, às escondidas. O meu Pai desconfiava, mas não dizia nada. Limitava-se a sorrir, no meio de alguma conversa que aludisse à vinha. Até me lembro de um proprietário que foi a minha casa acusar-me de ter saltado o muro e ter ido às suas cerejeiras, o que, por acaso, até nem era verdade. Se calhar já tinha fama de assaltante de muros em forma de cerejeira. Fiquei irritado e disse para mim: “um dia destes vou lá e apanho uma barrigada de cerejas”. Saltar esse muro fazia-me bem à alma, mais até do que as cerejas.

IV.

E POR ISSO deixa-me que te diga, a ti, cara Amiga, que quem não salta muros não é livre. A começar pelos que estão aprisionados nos muros da indiferença estética, da rigidez moralista ou do culto frívolo da aparência. E, mais, saltá-los, agora falando de arte, é como respirar, é a própria condição da criação. Salta-se muros escrevendo um poema, pintando um quadro, escrevendo uma partitura ou desenhando um bailado. E eu, por isso mesmo, e em arte, saltarei todos os muros do mundo, à frente de todos, ainda que tenha de pagar um preço por isso. É como as uvas “colhão de galo”. São boas demais para resistir a um belo salto.  Às vezes, saltar muros é como arrombar portas abertas. Mas, mesmo assim, sabe bem.

A arte é liberdade. Uma liberdade não libertina, porque superior. É saltar alto, muito alto. Até às nuvens. Normalmente, até dou a arte como exemplo da liberdade que não se define pela negativa, como querem certos liberais, porque com ela se acrescenta beleza à vida. Sou livre na medida em que crio, sem amarras. Sou livre na medida em que recrio, saltando muros que a rotina nunca consegue saltar. Aqueles muros que a vida não me deixou saltar. Sim, porque a tendência dominante é confinar os comportamentos à medida da subjectividade social ou mesmo dos círculos próximos em que nos movemos, ainda que os muros sejam simbólicos. Sim, muros simbólicos, mas que apetece saltar. E quando, assim, o confinamento atinge a arte isso equivale a ditar o fim da criatividade. Pensando bem, quem mais precisa de saltar muros é quem os tem na própria cabeça. Bom, todos temos muros na nossa cabeça e por isso todos temos de os saltar. Uns mais, outros menos; muros mais altos ou mais baixos. Porque a vida é como uma maratona de obstáculos, de muros. E, também por isso, o verdadeiro desafio da arte é derrubar muros na cabeça dos que os têm e não os saltam, revelar o que está escondido atrás dos muros ou o que é proibido pela moral e pela estética comuns ou oficiais. A arte é como um drone, um veículo sem condutor que paira sobre os muros da vida revelando a beleza invisível ao olhar distraído do transeunte amuralhado. Mostra o que a sensibilidade normal ou convencional, mais ou menos confinada, não vê. Revela ou desvela, cria ou recria, livremente. Ela não é, de facto, susceptível de ser amuralhada, presidiada ou colonizada. Por quem quer que seja: família, amigos, comunidade, Estado. Se o for deixa de ser arte. Porque deixa de ser livre. E porque, assim, passa a ser cúmplice da hipocrisia, que é precisamente o contrário da arte. Não foi por acaso que Schiller propôs o conceito de Estado estético, aquele que funda a boa cidadania e a sociabilidade harmoniosa na educação estética, no culto da beleza como norma reguladora da vida em sociedade. Pode nem se acreditar, mas Kant chamou ao belo “símbolo da moralidade”, julgo que na “Crítica do Juízo”. Por isso, até poderíamos dizer que o imperativo social primário deveria ser “Comporta-te esteticamente!”, convertendo o famoso imperativo categórico em imperativo estético: age de tal modo que a máxima da tua sensibilidade possa sempre, e ao mesmo tempo, valer como princípio de beleza universal. Se assim fosse, cara Amiga, o nosso quotidiano não estaria tão sujeito a muros como está hoje (a moral torna-se exigência estética), onde a estética se tornaria exigência moral e onde a sociabilidade se fundaria, em cada um de nós, no dispositivo estético da alma, sendo, por isso, a sensibilidade o principal sensor de uma sociabilidade harmoniosa. Não se trata, como podes compreender, de uma nova moral, mas sim de uma visão do mundo alternativa, onde a opressão simbólica não tem lugar.

V.

A YOURCENAR, a das “Memórias de Adriano” ou de “A Obra ao Negro”, dizia que só se possui pela arte e que mesmo os que pecam, os que saltam os muros da vida, ainda não possuem.  Ou seja, a verdadeira posse só acontece aos que, com a arte, saltam os muros da alma. Ousaria até dizer que só possui quem salta muros. E quem salta o próprio muro do corpo para se elevar até à alma. Só aí se possui. Quem não saltar o muro do corpo nunca possuirá. A verdadeira posse é espiritual porque acontece na alma.  Como possuir em arte. É disto que falo. E o Bernardo Soares também, pagando o preço de não ser compreendido pelo António Lobo Antunes. Falo da alma. A pior censura é a que nem aceita que o amor seja cantado e que o sedutor som chegue ao outro lado do muro como melodia cativante. A pior censura é a que obriga a tapar os ouvidos para não se ouvir o canto das sereias e acabar possuído na alma. O Bernardo Soares era ainda mais radical. Via o amor através de um espelho que reflectia uma certa imagem de si próprio. Nunca ouviste dizer “quem amas não é isso que tu vês nele/a”, “é uma construção tua”, “ama-se no outro uma parte de nós mesmos”? Eu já ouvi isso muitas vezes. Era radical o Bernardo Soares. Saltava os seus próprios muros interiores, olhando de través para a vida. Como se o mundo fosse uma galeria de arte e ele um atento observador a perscrutar e a tomar notas sobre a essencialidade das obras expostas. A posse, para ele, era um exercício de alteridade sobre si, desenvolvido através da arte, a pretexto de uma mera imagem do real por si observado (de través, entenda-se). Ele evitava, assim, os muros exteriores, ocupando-se exclusivamente dos seus próprios muros interiores. E a estética tudo resolvia. Era um pouco radical, este Bernardo Soares. Por isso não se ajeitava com a poesia.

No que me diz respeito, eu, poeta ou pintor que seja, salto o muro todas as vezes que canto alguém, transcrevendo na minha pauta colorida os sons e as cores que sinto dentro de mim e que me dão força para levitar. E se a música for bela que importa que digam que o som chega ao outro lado do muro como a melodia das sereias aos ouvidos dos navegadores ou aventureiros da vida, dos que nunca tapam os ouvidos? Afinal, é isso mesmo que quero. O artista, quando salta o muro, não procura o corpo, mas a alma… ainda que possa também desejar o corpo que traz essa alma consigo. Mas, é verdade, o Bernardo Soares não o desejava. Só a sua imagem. Eu não me chamo Bernardo Soares. Verdadeiramente nem sei se sou eu ou outro que nasceu de uma estranha circunstância da vida… Mas isto também ele diria. Jas@04-2021.

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“S/Título”. Detalhe.

2 thoughts on “Artigo

  1. Transcrevo, sensibilizado, o comentário do meu Amigo e conterrâneo Tó Zé Dias de Almeida: “Li logo pela manhã antes de ir à vacina com a Guida. Ela já a apanhou. Eu amanhã às onze… Li e gostei da tua carta a uma amiga, saltando muros e onde o teu amigo Antonio Gramsci levemente irrompe. E concordo que a questão reside no conceito de muro. Sartre le dit… E também diria, digo eu, que a arte é a liberdade. Não libertina, evidentemente! Ao Santareno, topaste – o bem… E à Yourcenar também. Por aqui me quedo. Já não é cedo… Boa noite João, aí em Famalicão.”

    • Sim, Tó Zé, há companheiros que me acompanham sempre, porque as afinidades e a admiração são grandes. É claro que não me esqueci desse libertino de génio do Sarte (“Le Mur”). O Gramsci saltou o muro do seu tempo e chegou – e como! – até nós, límpido e cristalino. Um génio. E a fascinante Senhora Yourcenar é uma recorrência permanente quando escrevo sobre arte. Ela não é só imaginação criadora, é investigação animada pelas asas da fantasia. Quando recentemente apresentei um livro sobre os Rosas-Cruzes, do RuiLomelino de Freitas, fui directo ao Zenão e disse ao autor que o Cristiano Rosacruz era o Zenão da “Obra ao Negro”. Ele não tinha feito a ligação, mas concordou. Extraordinária, esta Marguerite Yourcenar. “Le temps, ce grand sculpteur” fascina-me. E regresso frequentemente a ele. Mas é isso, a vida é uma maratona com imensos muros que é preciso saltar… sem cair. Um grande abraço e obrigado.

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