Artigo

MIKHAIL GORBATCHOV

Perestroika ou o princípio do fim

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 08-2022

COM A MORTE DE MIKHAIL GORBATCHOV creio ser necessário dizer o que representou verdadeiramente a Perestroika e o seu esforço para salvar a URSS do seu declínio, em vez de julgar unicamente o seu legado à luz do que hoje sabemos e conhecemos. Uma coisa é certa: com ele, o mundo mudou radicalmente sem que tenha havido derramamento de sangue.

Mas vejamos, então, como é que, no coração do sistema dos países socialistas, a URSS procurou resolver o impasse estrutural que o sistema estava a viver, em meados dos anos oitenta, quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista político. A via é conhecida com o nome de Perestroika. Esta reflexão poderá ajudar-nos a compreender melhor a própria natureza do sistema socialista, em todas as suas variáveis, os seus limites, as razões profundas da sua origem e evolução e, finalmente, a tentativa de evitar o seu inexorável declínio.

URSS: Da Europa ao Oceano Pacífico. Cerca de 280 milhões de Habitantes. Mais de 22 milhões de KM2s. 15 Repúblicas Federais. Cerca de 200 línguas faladas. De 1917 a 1991: regime soviético.

 I.

Em meados do século XIX, o populista A. I. Herzen, numa carta a Linton, fazia uma pergunta, e dava logo a respectiva resposta, sobre a evolução histórica da Rússia. Dizia ele:

«Deve a Rússia atravessar todas as fases do desenvolvimento europeu ou a sua vida desenvolver-se-á segundo outras leis? (…) Ao povo russo não é preciso começar do princípio este pesado trabalho».

Esta foi sempre a questão que se pôs quando se discutia a natureza do regime soviético. Um universo que nunca conheceu a experiência da democracia representativa. Por isso, a questão que se punha, durante a Perestroika, era a seguinte: para que, na URSS, pudesse realizar-se uma autêntica reforma global do sistema, seria necessário introduzir ex-abrupto ou a longo prazo um sistema pluripartidário de tipo ocidental? Ou bastaria que organismos sociais verdadeiramente autónomos, quer em relação ao Estado quer em relação ao PCUS, pudessem vir a ser decisivos para (a) a constituição material e formal dos sovietes, para (b) a formação de uma opinião pública e para (c) a constituição de um poder económico de novo tipo, uma vez libertadas as instituições do Estado da sua captura decisional pelos órgãos e pelos membros do PCUS?

Provavelmente, teria sido difícil introduzir ex-abrupto, num sistema com aquelas características e com a centralidade política internacional de que dispunha no sistema dos países socialistas, uma democracia representativa de tipo ocidental; a isso nem sequer ajudava a ausência de uma tradição histórica que se fundasse na emancipação individual ou em qualquer forma de democracia formal. As  dificuldades por que passou a primeira tentativa de abertura do sistema, no período entre 1956 e 1964, e que levaria ao poder Brezhnev, desaconselhavam tal opção. De resto, não foi por acaso que, no XXVII Congresso do PCUS, a Perestroika arrancou como reforma económica, adquirindo características políticas mais inovadoras somente mais tarde.

II.

De facto, o Congresso de Fevereiro-Março de 1986 colocara a questão central da reforma económica no pressuposto de que se concluíra a fase de desenvolvimento económico extensivo ou quantitativo, isto é, virado exclusivamente para a plena satisfação e estabilidade das necessidades consideradas vitais. Exemplares a tal respeito são, segundo Otto Lazis, redactor da Revista teórica do PCUS, «Kommunist», os seguintes dados:

  1. o preço da carne e da manteiga não sofria alterações há 25 anos;
  2. o do pão há quase 40 anos;
  3. e o das rendas de casa há quase 60 anos.

Lazis, sugeria, por isso, na óptica da Perestroika, a necessidade urgente de alterar este sistema de preços, por se afastar demasiadamente dos seus custos sociais e do equilíbrio entre a procura e a oferta e, em última análise, por acabar por violar o próprio princípio da justiça social (AAVV, Il progetto Gorbaciov, Roma, 1987, p. 66) (PG). Tal reforma deveria conduzir ao impulso enérgico de uma nova fase de desenvolvimento económico intensivo ou qualitativo, baseado na modernização, no emprego maciço de tecnologia científica avançada e na eficiência, com o objectivo, como então afirmou o influente economista gorbatchoviano Aganbejian, de «substituir os métodos administrativos pelos métodos económicos», deixando a vida das empresas

«de ser determinada por ordens e índices detalhados ditados do alto, mas por encomendas, pelos preços, pelo crédito, pelos estímulos» e contribuindo, deste modo, para «liquidar a ditadura do produtor sobre o consumidor».

Zdenek Mlynar, ex-dirigente dubchekiano do PC checo, projectava, então, a reforma a uma escala mais ampla e radical:

«uma direcção que se funde em factores intensivos de desenvolvimento rege-se pelo princípio de que “o que não é proibido é permitido”, enquanto uma direcção que trava e sufoca o desenvolvimento intensivo age segundo um outro princípio: “o que não é permitido é proibido”» (PG, p. 29).

Trata-se de uma passagem fundamental uma vez que na ideologia oficial soviética, na opinião de Mlynar, «o sistema que favorece o desenvolvimento intensivo da sociedade foi [antes] definido a priori como algo que convém somente ao capitalismo» (PG, p. 30).

A urgência desta passagem tinha origem numa situação económica deteriorada, como então dizia Boris Krotkov:

«as tendências desfavoráveis que se manifestaram no desenvolvimento da economia na década de ’70 acentuaram-se no início dos anos ’80, quando caíram os ritmos da produção. Agravaram-se os índices qualitativos da gestão económica (…). As causas principais de tal situação residem no facto de, na actividade prática, não ter sido levada em conta oportunamente a modificação da situação económica, relacionada com o esgotamento das possibilidades do crescimento extensivo» (XXVII Congresso do PCUS: discussões e decisões, Moscovo, Nóvosti, 1986, p. 13).

E, de facto, na economia soviética verificou-se uma tão «grave queda dos ritmos de desenvolvimento que levou o incremento quinquenal do rendimento nacional de 41% (1966-1970) para 16,5% (1981-1985) com uma linha descendente constante» (U. Cerroni, Implicazioni e prospettive del nuovo corso soviético, intervenção num seminário do «Centro di Studi di Politica Internazionale», Roma, 1987). Tal situação não poderia, pois, deixar de, uma vez por todas, exigir uma promoção «do processo de intensificação da economia com base na aceleração do progresso técnico-científico, no aperfeiçoamento multilateral e na melhoria da forma e dos métodos da gestão económica socialista» (Krotkov, cit., p. 21).

Mas em que é que consistia um tal desenvolvimento económico intensivo ou qualitativo considerado pelo Congresso como meta fundamental da Perestroika e a que a própria reestruturação política se deveria subordinar, como afirmava Lazis (PG, pp. 62)?

Umberto Cerroni (1987) e Giuseppe Boffa (“Socialismi in movimento”, PG, pp. 83-90), dois autores profundamente conhecedores da realidade soviética, apontavam as seguintes traves-mestras do projecto reformador pretendido com a passagem da fase extensiva para a fase intensiva de desenvolvimento:

  1. planificação soft baseada na previsão científica a longo prazo (Cerroni);
  2. autofinanciamento das unidades produtivas e sua gestão com base num cálculo de rendimento (Boffa);
  3. centralidade do lucro empresarial (Cerroni);
  4. avaliação, não por índices brutos, mas por índices de mercado do produto (Cerroni);
  5. autonomia das empresas e sua relação directa com o mercado (Boffa);
  6. concorrência interempresarial filtrada por comissões de aceitação do produto (Cerroni);
  7. centralidade das tecnologias de processo e de produto (Cerroni);
  8. comércio de bens instrumentais em vez da sua dotação administrativa (Boffa);
  9. função estimuladora e selectiva dos preços, das remunerações e do crédito (Boffa);
  10. diversificação dos rendimentos segundo critérios de produtividade colectiva, além de individual (Boffa).
III.

Não será difícil intuir que uma tal passagem ao desenvolvimento intensivo exigiria uma transformação mais global e radical de todo o edifício social. Foi assim que o princípio de que «tudo o que não é proibido é permitido» se constituiu também, de algum modo, como princípio de ordem social e não só económica, não obstante ele estivesse intimamente ligado à rejeição da aplicação generalizada dos métodos administrativos na economia e à necessária liberdade económica das empresas do ponto de vista do financiamento, dos mercados, dos preços e dos estímulos, exprimindo também a possibilidade de expansão qualitativa do consumo por oposição ao império dos critérios quantitativos e administrativos aplicados directamente à esfera da produção.

Mas a verdade é que ele indicava uma tendência mais geral para a relativa inversão da lógica da relação entre o Estado-sistema e o cidadão-indivíduo. Este último era, aliás, considerado por Mlynar (“Quanto pode contar o indivíduo”, PG, pp. 42-49) como um dos pilares centrais de uma reestruturação que quisesse vingar, precisamente porque «a política  reformadora da URSS se confronta[va] e se confrontará[ria], durante muito tempo, com aquele emaranhado de contradições constituído pelas relações, mediadas pelo direito, entre poder político e indivíduo singular» (PG, p. 42). Mas esta não era uma questão pacífica nem fácil porquanto o conceito de cidadão-indivíduo, enquanto sujeito principal de direitos civis e políticos, foi sempre identificado, pela tradição socialista, com a concepção formalista dos direitos humanos, onde se reconhece somente relações de «igualdade formal abstracta» entre indivíduos que, afinal, para esta tradição doutrinária, vivem em sociedades divididas em classes reciprocamente hostis e onde às classes subalternas não são garantidos os direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais. O que não acontecia na mundividência socialista, onde o sujeito dos direitos políticos era um sujeito colectivo (o grupo social, a classe, o colectivo de trabalho, etc.), através do qual eram garantidos a cada indivíduo, antes de mais, os direitos sociais fundamentais (ao trabalho, à instrução, à assistência na saúde, etc.).

Esta concepção em relação ao cidadão-indivíduo não era, de modo nenhum, um artifício ideológico do sistema que visasse um maior enquadramento e uma maior docilidade da sociedade civil em relação ao poder constituído. Ela tinha raízes históricas mais profundas:

«antes de mais», afirma Mlynar, «encontramo-nos perante o facto de que na Rússia pré-revolucionária não existia uma sociedade civil derivada, como no Ocidente, das grandes revoluções burguesas do séc. XVIII. Além do mais, a Rússia não viveu a evolução ideal que no Ocidente precedeu a formação da sociedade civil, do Renascimento e da Reforma protestante até ao iluminismo».

Não existia, portanto, como muito bem viu Gramsci, «uma robusta estrutura da sociedade civil» que fundasse um moderno individualismo de tipo ocidental e, por consequência, a centralidade dessa figura político-jurídica do indivíduo-cidadão.

O atraso económico, social e cultural», continua Mlynar, «o analfabetismo das massas populares e sobretudo dos camponeses que viviam em situação de relações semi-feudais e em formas de colectivismo pré-capitalista (a ‘obscina’): esta era a base real sobre a qual se começou a edificar o sistema soviético em 1917”.

Inúmeras vezes, Lenine sublinhou que tudo isto influenciava decisiva e negativamente o sistema soviético. Ao mesmo tempo, e embora a Rússia ainda não tivesse conhecido a igualdade formal dos cidadãos, tão criticada por Marx (por exemplo, em Sobre a Questão Hebraica), a ideologia soviética partia precisamente

«dessa crítica marxista à sociedade burguesa do século XIX e dos inícios do século XX. Ponto fixo desta crítica era ainda a polémica com as ideias iluministas sobre os direitos humanos naturais. A este respeito, o marxismo defendia que o resultado da concepção jusnaturalista é, na realidade, somente um cidadão abstracto, formalmente livre, enquanto o homem socialmente determinado está submetido à desigualdade social e à opressão, mesmo num sistema de direitos e liberdades civis» (PG, 47-48).

Portanto, com a Perestroika tratava-se de recuperar a importância económico-social e política desse sujeito individual de direitos que via diluída a sua individualidade não só nos sujeitos colectivos em que estava integrado, mas também nos organismos do sistema institucional soviético, sem, com isso, perder de vista a importância deste sistema para assegurar esses direitos substanciais que estavam constitucionalmente garantidos (Constituição de 1977) na URSS (direito ao trabalho, a remuneração, ao repouso, à assistência na saúde, à instrução, à casa).

Mas a verdade é que esta recuperação do papel activo do cidadão-indivíduo não poderia, todavia, acontecer se não fosse acompanhada por uma reestruturação radical dessa principal fonte de distorção do sistema que eram as relações entre o partido e o Estado, as relações destes com os organismos sociais e do indivíduo com todos eles.

IV.

Já no XXVII Congresso estes aspectos eram, segundo a síntese feita por Otto Lazis (Dezembro de 1986), para além da reforma económica, também objecto de análise como objectivos estratégicos da reestruturação:

«modificação da práxis eleitoral e renovação sistemática da composição dos sovietes dos deputados do povo, alargamento das funções e dos poderes dos sovietes locais, melhoramento do controlo exercido pelos eleitos sobre o aparelho estatal com o objectivo de reduzir o burocratismo dos aparelhos, maior empenho dos sindicatos», acções tendentes a reforçar a vida democrática nas empresas, no debate público e nos métodos de votação, defesa da autogestão kolkhoziana [cooperativas; sovkozes: fazenda estatal] e crescimento do papel das diversas organizações sociais (PG, p. 63).

Aqui estavam contidas medidas que poderiam vir a transformar profundamente o sistema se fossem aplicadas radicalmente: desde a apresentação de várias candidaturas concorrentes em cada colégio eleitoral para os sovietes como condição essencial não só para o seu renovamento sistemático e a aplicação do originário e leniniano princípio rotativo, mas também para a consecução de uma real autonomia e capacidade de efectivo controlo dos actos do aparelho estatal, passando pelo reforço, crescimento e autonomia dos organismos sociais como contraponto do peso da organização partidária, até à expansão da publicidade, da transparência (Glasnost) da vida político-institucional.

Com o reforço dos sovietes visava-se repor a centralidade dos sovietes locais no complexo institucional do Estado, elevando-os a células organizativas fundamentais de todo o sistema de poder. Como, afinal, pretendia Lenine ao considerar o sistema soviético como a forma autêntica onde se funde a autogestão e o Estado.

Mas o que, entretanto, aconteceu, e aqui sigo a análise de Mlynar (“Além dos sovietes”), foi que, havendo sempre órgãos que escapavam ao controlo dos sovietes (no campo da economia, nas estruturas militares e de segurança), sobretudo após a morte de Lenine (1924), todos os campos decisivos da vida social passaram a ser dirigidos pelos aparelhos centrais que, concretamente, não estavam subordinados aos sovietes, mas sim a um PCUS cujo sistema de controlo e de direcção se desenvolveu fora do alcance daqueles. E, de facto, com a Constituição de 1936 – aquela que haveria de inspirar todas as outras Constituições dos países do sistema socialista do pós-guerra -,  os sovietes passaram a ser mais instâncias representativas de tipo parlamentar do que do tipo «Comuna de Paris», mas com uma diferença importante: o candidato a deputado era único no respectivo colégio eleitoral, acabando por ser escolhido pelo partido. Deste modo, era o partido que determinava a constituição material das instituições do Estado, desaparecendo o princípio rotativo que Lenine tinha previsto e que garantia um efectivo controlo do poder pela sociedade (PG, pp. 50-57). Princípio este que, aliado à NEP, poderia efectivamente ter constituído um poderoso pilar para o forte enrobustecimento da sociedade civil.

V.

A entrada em vigor de uma Lei sobre o trabalho privado veio, entretanto, completar a revalorização do papel dos sovietes e reforçar, de facto, a ideia, defendida por muitos, dentro e fora da URSS, de que existia uma profunda ligação da Perestroika com a Nova Política Económica (NEP)  de Lenine. Só que, ao contrário do que aconteceu nos anos ’20, era cada vez mais claro que se tornava necessário promover também uma «NEP política» para que o projecto reformador não só não sucumbisse às mãos da burocracia administrativa do partido e dos ministérios, mas pudesse, pelo contrário, consolidar-se e aprofundar-se (veja-se Adriano Guerra, In attesa di una «NEP politica», in «Rinascita», nº 47, Roma 1986). É verdade que esta lei vinha legalizar finalmente uma economia submersa privada e ilegal de grandes proporções que há muito florescia na URSS, mas também não é menos verdade que, por um lado, ela vinha pôr em crise a ideia «de que o trabalho individual, isto é, o que é efectuado fora das estruturas da economia de Estado» fosse «inconciliável com um ordenamento de tipo socialista» (Guerra) e que, por outro lado, nela se exprimia explicitamente o desejo do último Congresso de ver vigorosamente incrementado o «sector B» (artigos de consumo) em cerca de 22-25% (superior ao incremento do «sector A», meios de produção) até 1990, ou seja, um objectivo virado para o aspecto qualitativo da vida individual do cidadão soviético.

A reposição da validade social do sector privado da economia e da centralidade dos sovietes (em particular, dos sovietes locais) tornava-se fundamental para a revitalização do sistema naquilo que era sem dúvida a sua principal distorção: a sobreposição difusa dos órgãos do PCUS às instituições do Estado, tanto mais grave quanto ela se verificava num sistema monopartidário. Mas, no fundo, o problema não era tão original como isso já que ele equivalia ao que hoje se põe aos sistemas democráticos representativos ocidentais, isto é, à questão do império das elites partidocráticas e burocráticas modernas e de ilegítima confiscação do papel das instituições. Tal como nestas democracias – mas, claro, de forma mais radical, visto que não existia pluripartidarismo -, na URSS o problema de fundo consistia em separar eficazmente o Estado do partido para garantir que as decisões importantes não fossem tomadas fora e sem o controlo das instâncias electivas, fontes legitimadoras imprescindíveis para o exercício do poder. Numa palavra, a reposição do poder do único soberano legítimo: o povo.

Foi neste sentido que se moveu Gorbatchov, procurando reformar um sistema que dava sinais de profunda decadência, aproximando-o dos sistemas políticos ocidentais naquilo que eles têm de melhor, mas garantindo níveis de iniciativa e de protecção social que o legitimavam como sistema socialista.

VI.

Sabemos como terminou a Perestroika. O projecto de Gorbatchov ficou pelo caminho, com o contributo decisivo de Boris Yeltsin. A URSS deu origem à Comunidade dos Estados Independentes.  O sistema socialista ruiu, não só na União Soviética, mas em toda a Europa. Grande parte das repúblicas socialistas vive hoje em sistema de democracia representativa e está integrado na União Europeia. O projecto de construção de democracia orgânicas europeias de inspiração socialista ficou irremediavelmente comprometido. A Europa é cada vez mais um sistema único política e institucionalmente enquadrado pela moldura institucional da União Europeia. Finalmente, a experiência que estamos a viver na era Putin tem o sabor antigo de uma tentativa de reposição imperial cujo destino será exactamente o mesmo que tiveram todos os impérios e muito mais o daqueles que se procuraram afirmar fora do seu próprio tempo. #Jas@08-2022.

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A ESQUERDA NA EUROPA DO SUL

Quo Vadis?

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 09-2022

JULGO SER INTERESSANTE PROPOR, partindo das sondagens mais recentes (de Agosto e Setembro), uma reflexão sobre a esquerda na Europa do Sul, onde somente o PS mantém uma clara hegemonia política, liderando o governo do país (o PSOE governa, mas com maioria relativa e em coligação). Na Grécia, apesar da liderança de Nikos Androulakis ter, ao que parece, levantado o PASOK do estado calamitoso em que se encontrava, estando hoje, nas sondagens, em cerca de 11%, a bipolarização continua a centrar-se na Nova Democracia e no Syrisa, com valores a rondarem respectivamente os 33% e os 24%. Na França, é o que se sabe: o PSF desapareceu ou foi engolido pela esquerda de Jean-Luc Mélenchon. Em Espanha, está a acentuar-se de forma sustentada a hegemonia do PP de Núñez Feijóo, distanciado (nas últimas 10 sondagens), com cerca de 32%, a 8 pontos do PSOE, com cerca de 24%, enquanto se verifica uma consolidação do VOX, com cerca de 15.5%, e uma progressiva queda do Unidas Podemos, para cerca de 11%. Em Itália, é o Fratelli d’Italia, legítimo herdeiro do Movimento Sociale Italiano, de Giorgio Almirante, fascista, que lidera, com 25,1% (IPSOS, de 02.09) e 25,8 (SWG, de 05.09), situando-se o Partido Democrático em segundo lugar, a cerca de 3 ou 4 pontos de diferença (22% e 21,4%), mas o terceiro lugar é ocupado pela LEGA, de Salvini, (com 12,1%, SWG; mas na sondagem IPSOS passa para 4º lugar com 12,2% contra 14,1% do M5S, que sobe para 3.º lugar) também de extrema-direita, tendo o Movimento5Stelle 11,9% (SWG) e mantendo-se o Forza Italia em 8,3% (IPSOS) ou caindo para 6,7% (SWG). É de anotar que, no ranking dos líderes (IPSOS), Giorgia Meloni (FdI) já ocupa o primeiro lugar, com 34,5%, seguida de Conte (M5S), 31,5%, Salvini (Lega), 27,4%, Letta (PD), 26, 2%, e, finalmente, Berlusconi (FI), com 26%.

Sabe-se agora, depois das eleições de Domingo, 11 de Setembro, que os Democratas Suecos, partido de extrema-direita, já são o segundo partido sueco, com 20, 6%, depois do partido social-democrata, que continua a ser o primeiro partido, com 30,4%, não tendo, todavia, conseguido levar o centro-esquerda à vitória, podendo para a direita e a extrema-direita, que obteve 176 mandatos contra os 173 do centro-esquerda. O partido de Akesson, os DS, alinha no Parlamento Europeu com o partido da Senhora Meloni, o FdI. Formar-se-á, portanto um governo de direita que irá integrar os DS. Mais uma lição para o centro esquerda: o grande protagonista destas eleições é um partido cuja principal orientação é a luta contra a imigração, ficando na sombra a sua verdadeira identidade ideológica, pouco recomendável quer para vencer eleições quer para integrar um governo (mudara, entretanto, a chama para uma flor, no seu logo).

I.

A SITUAÇÃO não é brilhante para o centro-esquerda e o próprio PS, apesar da situação confortável de que dispõe, tem de ver um pouco mais além do que, no meu entendimento, está a ver. E, ao contrário do que poderia parecer, o facto de dispor de uma maioria absoluta talvez lhe dê melhores condições para, no plano do partido, proceder ao aggiornamento e aos ajustamentos que teima em não fazer. A começar logo pelo próprio partido, pela doutrina e pelo modo como entende a política, porque é aqui, a montante do processo, que se joga o essencial. Por uma simples razão: são os partidos que fornecem os mais altos dirigentes para a direcção política do país. A forma como se vê e se identifica, como se organiza, como funciona, como se prepara estrategicamente e se dota de um horizonte ideal em linha com os tempos é, pois, decisiva. Mas isso não acontece simplesmente adoptando a linguagem asséptica, o politiquês, ou politicamente correcta, aquilo que os franceses chamam langue de bois, agora aggiornata. Depois, é fundamental perceber por que razão a extrema-direita está a ter o sucesso que se vê nas sondagens e nos resultados eleitorais nesta Europa, estudando o seu discurso, tão motivador para enormes faixas do eleitorado. Como e por que razão as motiva. Em Itália, ela já corresponde a cerca de 38% do eleitorado, sem contar com o partido de Berlusconi (que vem exibindo regularmente uma média de cerca de 8%), um partido de tipo neoliberal (ou melhor, liberal em política e “liberista” em economia”). Em França, o Rassemblement National dispõe hoje de 89 deputados na Assembleia Nacional e a sua líder continua a ser a alternativa presidencial, num sistema maioritário a duas voltas. Aqui, no plano parlamentar, a alternativa é a coligação NUPES, liderada pelo senhor Jean-Luc Mélenchon e pelo seu partido “La France Insoumise”.  Em Espanha, o VOX em pouco tempo atingiu quase uma média de 16,6% no conjunto das sondagens, mas tendo nas últimas dez  recuado para cerca de 15,5%. Na Hungria, o parceiro político e ideológico da direita mais radical, o partido-Estado Fidesz do senhor Viktor Orbán, governa o País e acarinha a extrema-direita internacional, designadamente o partido de Matteo Salvini, o amigo político de Putin, com o qual, em tempos, este assinou um protocolo de colaboração entre os respectivos partidos, que teve posteriores e polémicas consequências. Na Polónia, o Lei e Justiça, partido de direita, do senhor Kaczynski, o seu poderoso líder, governa e dita lei. Em Portugal, em duas eleições, o CHEGA passa de 1 para 12 deputados no Parlamento.

II.

POR TUDO ISTO, torna-se necessário compreender por que razão estas forças políticas conseguem atrair importantes faixas do eleitorado, sendo certo que elas centram o seu combate em duas linhas fundamentais de argumentação: contra o politicamente correcto e as políticas identitárias que, errada, mas eficazmente, imputam em geral ao sistema e às forças de centro (-esquerda ou -direita) que o governam; e contra a visão liberal da sociedade, retomando a velha tradição romântica e anti-iluminista, crítica radical do legado da revolução francesa (veja-se a obra de Alain de Benoist e as declarações de Orbán sobre o liberalismo). Mas é também necessário compreender as razões de fundo que explicam a fragmentação dos sistemas de partidos, à direita e à esquerda. Uma coisa, todavia, é certa: não vamos lá com a habitual conversa da mudança dos sistemas eleitorais ou com a contratação de especialistas de comunicação. E não vamos lá porque a questão é mais profunda e atinge, por um lado, a própria ideia de política e, por outro, a nova identidade do cidadão/eleitor (veja-se o que, sobre este assunto, digo no meu “A Política, o Digital e a Democracia Deliberativa”, em Camponez, Ferreira e Díaz-Rodriguez, Estudos do Agendamento, Covilhã, Labcom-UBI, 2020, pp. 137-167). Não falo, pois, de targets eleitorais, não. Falo do cidadão em geral, daquele que hoje tem acesso ilimitado à informação através de variadíssimas plataformas, dos media tradicionais à rede, das plataformas tradicionais às novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs). Esse mesmo cidadão que tanto é eleitor como é consumidor ou produtor, que tanto pode ser progressista nos costumes como pode ser conservador na política, que tanto milita em partidos como é activista em associações de vário tipo. Falo de um cidadão que exibe várias pertenças em simultâneo e que é alvo de informação amplamente disseminada que lhe chega por diversas plataformas, tornando subalterno o velho sentimento de pertença ideológico e político e que até já possui meios que permitem circunscrever o poder instrumental dos media tradicionais (imprensa, rádio, televisão), que, todavia, continua a ser muito forte. E falo também de um cidadão que está cansado da langue de bois da política e muito mais ainda da nova ordem linguística que o activismo identitário e politicamente correcto lhe quer impor moral e juridicamente, sob pena de proscrição da justa ordem social. Uma versão laica, aggiornata e sofisticada do velho auto-da-fé, agora processado pela nova religião e pelos novos cardeais do politicamente correcto através do pelourinho electrónico ou, nos casos mais graves, da fogueira electrónica, onde pululam os seus fiéis representantes.

III.

MAS FALO TAMBÉM de uma política que não pode continuar a ser reduzida a uma espécie de conversa de conselho de administração que é quase igual em todos os programas eleitorais. Vão ler o programa da coligação de (extrema-) direita italiana e digam-me se não tenho razão. Se, portanto, quiserem ver qual é a política desta coligação não será através da leitura do seu programa eleitoral (que é puramente instrumental), mas, sim, ouvindo, por exemplo, o discurso da senhora Giorgia Meloni no comício do VOX na Andaluzia, por ocasião das recentes eleições regionais, onde o PP obteve a maioria absoluta e onde, mesmo assim, aquele partido ainda conseguiu, se não erro, mais dois mandatos do que os que tinha. Um discurso, este, que mostra a virulência com que a extrema-direita ataca as políticas identitárias, como se elas fossem já a expressão do sistema em vigor.  Em boa verdade, ela, em parte, acerta no alvo visto o irresponsável acolhimento, passivo e activo, que a política identitária e politicamente correcta tem vindo a ter no próprio sistema e nos seus principais agentes, alimentando, deste modo, o discurso da extrema-direita e engordando-a eleitoralmente. Já chega também de identificar governo com governança e de reduzir a política à gestão do statu quo, tantas vezes com a lógica e o deslumbramento do aprendiz de feiticeiro, gerindo instrumentalmente a comunicação e a informação para fins exclusivamente eleitorais. O fim não deve ser, para a esquerda, a mera conquista do poder, mas sim a conquista do poder para fazer coisas e mobilizar a cidadania, induzindo confiança e espírito de comunidade, promovendo junto dos cidadãos aquilo que o Kennedy disse de forma muito certeira: não pergunte o que é que os Estados Unidos podem fazer por si, mas sim o que é que você pode fazer pelos Estados Unidos. A esquerda deve proteger e garantir os direitos, as garantias e as liberdades, correspondendo às expectativas dos cidadãos, mas não pode esquecer os deveres e as responsabilidades, afastando essa erva daninha que é a fórmula “a culpa é do sistema”, que desresponsabiliza tudo e todos, a começar pelos próprios. Desresponsabilização que atira para o Estado, esse paternal manto protector, o dever de tudo reparar, com os recursos financeiros dos (poucos) cidadãos que pagam impostos. Para este fim, é, pois, necessário promover seriamente uma ética pública e o sentido de responsabilidade e de dever, sem deixar, claro, de abrir espaço à livre  e plural ética da convicção e de promover a centralidade dos valores e o investimento estratégico na cidadania pela formação cívica, pela ética, pelo conhecimento, pela cultura, pela arte, dimensões intangíveis hoje tão subalternizadas ou abandonadas perante o domínio absoluto da centralidade dos bens materiais de consumo ou, em geral, dos chamados “bens transaccionáveis”, na vida social. A questão é de uma simplicidade meridiana: não pode haver uma boa sociedade e uma boa política democrática sem cidadãos motivados, bem formados, autodeterminados e com uma relação com a sociedade sensível aos valores da comunidade. A conversa da produtividade a todo o custo, para onde tudo parece convergir, centrada exclusivamente no trabalho (individual), é errada sabendo nós que a produtividade hoje está essencialmente centrada na ciência, na tecnologia e, claro, na boa organização das unidades produtivas e que, este é o ponto, só promovendo uma ética do trabalho financeiramente sustentada será possível pedir aos cidadãos efectivo empenho a todos os níveis. Não se consegue promover a ética do trabalho sem condições materiais sustentáveis. Até já o fordismo (à sua maneira, claro) compreendera a relevância deste factor (veja-se Gramsci, A., Quaderni del Carcere, Torino, Einaudi, 1975, III, 2164-2169). Mas não serão somente as imprescindíveis condições materiais a gerar esta ética se não houver um esforço formativo estrutural, assente na educação, formal e informal, da cidadania ao longo da vida. E, todavia, o que se vê, em geral, ou seja, como discurso social dominante, é o das plataformas informativas a explorarem sistematicamente, em prime time, durante mais de uma hora, todos os dias, o negativo e a promoverem a imitação do que realmente não presta e é nocivo à própria auto-estima da comunidade. A hegemonia do irrelevante e do negativo parece ser a estratégia do poder mediático para promover o seu poder financeiro, funcionando à revelia da sua enorme responsabilidade social. Mas o que faz a esquerda perante esta autêntica e permanente intoxicação da opinião pública com o negativo e o irrelevante, para não dizer com estratégias de poder? Nada. Agacha-se, não vão os patrões dos canais televisivos retirar-lhe tempo de antena. O mesmo vale para o poder judicial, que se julga com legitimidade equivalente à do Parlamento e que age livremente sem qualquer tipo de controlo. O que faz a esquerda perante o estado calamitoso da justiça em Portugal? “À política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, como se a justiça não estivesse sujeita à soberania popular, através dos seus representantes. Parece terem esquecido que separação de poderes não equivale a igualdade de poderes. O poder legislativo tem legitimidade directa proveniente do soberano. O poder judicial tem a sua legitimidade assente no poder legislativo (a própria Constituição é aprovada pelo Parlamento, reunido como Assembleia Constituinte). A responsabilidade sobre o bom funcionamento do sistema social é da inteira responsabilidade do poder político, não do poder judicial.

IV.

OS PARTIDOS DE ESQUERDA, prenhes de tanto Estado, deveriam investir na sociedade civil de onde emanam e a que pertencem, “back to the basics”, assumindo-se como forças propulsoras de uma boa cidadania em vez de se servirem dela exclusivamente para fins eleitorais e como máquinas de puro acesso ao poder, de ocupação da máquina estatal, de distribuição de empregos e de lobbying sistémico. Como se se tratasse, nas eleições, de uma gigantesca OPA – a concurso para um número limitado de organizações – para a conquista de uma grande e sólida empresa de gestão de recursos humanos e de activos financeiros (Administração Pública e recursos financeiros do  Estado). Pelo contrário, a sua função deveria ser a de, representando o interesse geral, se interporem na relação entre os oligopólios (que existem, nos sectores nevrálgicos da sociedade) e a cidadania, protegendo-a do seu imenso poder, exercido em cartel, gerido silenciosamente em back office e resguardado pelas muralhas intransponíveis dos call centers. Por outro lado, no plano da doutrina, continuo a não perceber como é que certos partidos sociais-democratas ou socialistas continuam a recusar o património liberal clássico, sobretudo hoje, que a centralidade do indivíduo/cidadão/eleitor/consumidor/produtor é um dado incontestável, vista a superação moderna da composição orgânica das sociedades, a globalização de processos e da comunicação e a centralidade da ciência e da tecnologia na economia. E por que razão a ideia de partido como órgão vivo da sociedade civil, e não como academia para iniciados e pura antecipação e prefiguração do Estado, continua fora dos horizontes dos partidos? E por que razão não apostam na eficiência do Estado, na sua regeneração, pondo fim ao funcionamento da máquina estatal somente por inércia (a não ser nos impostos)? Quem trabalha nele deveria compreender que são os cidadãos que, com os seus impostos, lhe pagam o ordenado e que o seu trabalho deve estar inscrito numa saudável ética pública. É urgente romper com o círculo infernal do crescimento da máquina estatal e do crescimento progressivo dos impostos que caem exclusivamente sobre cerca de metade da população activa.

V.

TUDO ISTO É URGENTE, ao mesmo tempo que é urgente compreender por que razão o PSF desapareceu, depois de o seu líder ter acabado de desempenhar as funções de Presidente da República; compreender por que razão o PASOK colapsou, cedendo o seu lugar à extrema-esquerda na dialéctica da alternância; compreender por que razão a subida do VOX está a acontecer de forma tão rápida e tão significativa, mesmo com o PP a crescer também; compreender por que razão a extrema-direita cresceu tanto e tão rapidamente também em Itália, a ponto de se poder prever que irá formar governo a partir do mês de Setembro, sendo certo que não é a primeira vez que este país é um significativo laboratório político europeu e não pelas melhores razões; e, finalmente, compreender as razões do rápido crescimento do CHEGA em Portugal. E não falo da Academia. Essa seria outra conversa, pois também ela parece estar mais preocupada em gerir carreiras do que em produzir pensamento e saber válidos socialmente. Falo dos partidos políticos que detêm a responsabilidade política directa sobre a sociedade.

VI.

NÃO SE TRATA de fenómenos conjunturais, mas de razões de fundo que se reforçarão se não houver um esforço de compreensão das mudanças estruturais que se estão a verificar e se não houver as correspondentes mudanças de fundo nas políticas essenciais do país. Por exemplo, nas políticas fiscais, que estão a empobrecer brutalmente os poucos (cerca de metade da população activa) que pagam impostos. Ainda continua válido o princípio de “no taxation without representation”, que associa “taxation” a “representation”, agora adaptado aos novos tempos nas sociedades pós-coloniais e, por isso, invertido na ordem dos seus termos, “no representation without taxation”? E se, em homenagem a este princípio e como símbolo de reconhecimento do valor comunitário pela cidadania, por toda a cidadania pagasse impostos, embora alguns de forma meramente simbólica? Não, não se trata da “flat tax”, mas de uma forma de expressão material do dever comunitário e de efectivo empenho social, ainda que simbólico nos casos em que isso se justifique. Aquilo a que se assiste em Portugal, do ponto de vista fiscal, é verdadeiramente pornográfico. Impostos directos, indirectos, taxas e taxinhas, sempre a somar. Apetece, a propósito, usar uma certeira expressão italiana: “chi più ne ha, più ne metta”. Basta, a título de exemplo, fazer a análise do que acontece a quem tem uma viatura e a usa: impostos e taxas sobre tudo, sobre a compra (imposto sobre veículo e IVA, dois impostos sobre o mesmo produto), sobre a posse (IUC), sobre os combustíveis (ISP e IVA), sobre auto-estradas, que já são de uso comum (preço de circulação e imposto de 23% sobre o respectivo preço), sobre o estacionamento (de 23% e mesmo em superfície), sem contar com a política sniper da polícia para encher, através das multas, os bolsos do Estado. Quase se poderia dizer que se está a assistir a uma captura e mercantilização ou privatização, pelo Estado e pelos privados, do espaço público. Ter um carro e usá-lo, hoje, representa um rombo enorme nas próprias finanças, como se fosse um luxo (ainda por cima poluidor). Junta-se o princípio do utilizador-pagador, tão “hosanado” pelo antigo ministro Mexia, a níveis incomportáveis de impostos e de taxas sobre tudo o que mexe, não sendo, ambos, assumidos como relativamente  alternativos, mas como soma financeiramente virtuosa, para o Estado e arredores, claro está. Já nem sei mesmo se esta injunção excessiva do Estado (compreendidas as autarquias) não representa, de facto, uma autêntica estatização integral da vida social por via fiscal. Um ulterior alargamento do manto protector – mas também castigador (neste caso, fiscal), como acontece sempre com o paternalismo protector – do Pai-Estado. O que não parece ser muito compatível com a matriz da nossa própria civilização, aquela que continua válida e inspirada na célebre e genial Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de Agosto de 1789. Mas será que os nossos políticos do centro-esquerda (mas até do centro-direita) não têm mesmo um sobressalto e fazem alguma coisa para mudar isto, antes que a cidadania tome medidas mais drásticas, e não as melhores, para mudar as coisas?  Será que estamos mesmo condenados a correr sempre atrás do prejuízo, como está a acontecer mais uma vez com os fogos florestais?

NOTA

ESCREVI este artigo antes de conhecer as medidas do governo anunciadas na Segunda-Feira, mas, numa primeira análise, não me parece que tenham vindo a alterar qualquer dos aspectos aqui referidos. Nenhuma medida de fundo, mas apenas medidas pontuais, limitadas no tempo, sendo a medida relativa aos pensionistas uma mera antecipação de valores, compensada depois pela redução dos valores de actualização anual das pensões. Mantém-se a resistência a alterar os impostos em matérias fundamentais (por exemplo, combustíveis e gás, sendo que o da electricidade também é limitado no tempo, até final de 2023, e refere-se somente à taxa de 13% e não à de 23%). #Jas@09-2022

EuropaSulRec

“S/Título”. Detalhe

Poesia-Pintura

O PAVÃO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Azul no Parque”.
Quadro n.º 1 (2021, 92x123; 
não exposto) do 
Catálogo da Exposição
“Luz na Montanha”,
aberta ao público até 25.09,
no Centro Cultural de Cascais.
Agosto de 2022.
Azul3

“Azul no Parque”. Quadro n.º 1 (2021, 92×123; não exposto) do Catálogo da Exposição “Luz na Montanha”, aberta ao público até 25.09, no Centro Cultural de Cascais.

POEMA – “O PAVÃO”

FUI AO PARQUE
Do Marechal
Logo ao amanhecer
(Melancolia
De outono)
À procura do pavão,
Eram muitas
As saudades...
Já passara mais
De um verão.

ENCONTREI-O
Por ali,
Sozinho,
Talvez triste
Como eu,
E vi nele,
Ao caminhar,
As cores
Que sempre
Invoco
Neste incerto
Vaguear.

PORQUE É
Tão belo
O pavão?
Soberbo
Em sua pose,
Captura-me
Os sentidos
Com a vertigem
Da cor
E logo sinto
O poder
Desse grande
Sedutor.

ALTANEIRO,
O pavão
Fascina-me
O olhar
Com a beleza
Cativante
Do solene
Caminhar.

O SEU PORTE
Austero
É grave
E até quase
Marcial,
Celebra-se
Como filho
De arte 
Viva
Sempre em pose
Triunfal. 

SEGUI-O,
Nesse dia,
Parque fora,
No silêncio
Luminoso
Da manhã...
.............
Folhas caídas
No chão
Acolhiam
O nostálgico
Passeio
Do poeta
E do pavão...

NESSE JARDIM
De remota  
Evocação
A beleza
Despontava
Em seu ritmo
Natural,
Passos lentos
E medidos,
Desenhados
Em perfil,
Pose austera,
Altivez....
.............
Momentos 
De um ritual.

CAMINHEI COM ELE
Horas a fio,
Lado a lado,
Sem destino,
Revendo
As cores que
Um dia
Me emprestou
Pra levar
À tua arte
(Em jogo
De sedução)
Fragmentos
De arco-íris
Que derramei
No teu chão.

JÁ NO ALTO
De um muro,
Oráculo,
Arte pura,
Aparição,
Perguntei-lhe
Qual a cor
Da tua alma
E ele mostrou-me
Esse azul
Tão luminoso
Onde sempre
Se esfumam
Os traços
Da tua mão...
........
E logo,
E por encanto,
Eu vi
Espelhado
O teu rosto
Nas cores vivas
Do pavão.

AzulR

Artigo

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE

Por João de Almeida Santos

Jas18Espanto2021

“Espanto”. JAS. 2021. Pintura que integra a Exposição “Luz na Montanha” (n.º18 do Catálogo, 91×115), aberta ao público no Centro Cultural de Cascais até 25 de Setembro.

QUANDO PUBLIQUEI o meu livro Os Intelectuais e o Poder (Lisboa, Fenda, 1999) pus-me a questão do estatuto do filósofo. Quem se pode considerar filósofo? Licenciado em Filosofia, Professor de Filosofia ou Filósofo? Não é, de facto, a mesma coisa. Saber sobre filosofia não é a mesma coisa que filosofar. E acabava dizendo que a condição de filósofo só pode ser atribuída por outros, não pelo próprio. Não é como nos casos do economista, do médico, do sociólogo ou do jurista. É coisa mais grave porque toca algo de difícil comprovação: não através de um diploma, mas da sabedoria sobre os nexos essenciais ou constituintes da existência, da vida, da história. Numa palavra: ver para além dos particularismos ou especialismos. Mover-se numa ontologia do ser. O mesmo poderia ser aplicado ao poeta. Não basta fazer versos ou boa rima. É preciso sentir, exprimir e tocar as almas por dentro, em palavras com poder performativo. Mas talvez menos ao pintor, embora o passo que leva a esta condição só possa ser dado quando se verificar a condição referida pelo fundador da história da arte, Johann Winckelmann: um desenhador não é um pintor porque imita o belo, não o cria. Artista é o que cria beleza, não o que a copia. O mesmo vale, em geral, para a condição do artista, o que cria o belo, mesmo que seja o belo horrível.

I.

Os gregos diziam que a filosofia nascia com o espanto, que dava origem à interrogação sobre as causas primeiras do ser (em particular os chamados pré-socráticos, Parménides ou Heráclito, por exemplo). E a arte, a que não procura reproduzir o real, simplesmente descontaminando-o das imperfeições próprias da vida, mas recriá-lo a partir de uma visão interior do mundo e da vida? A música, a poesia, a pintura, o romance? Cada artista dará certamente a sua resposta, com a própria obra ou mesmo com palavras sobre ela. E já se sabe que as respostas são inúmeras, sobretudo nesta época de relativismo universal, de pós-modernismo, onde não há lugar para as grandes narrativas e para a profundidade temporal, de civilização da imagem e de triunfo do simulacro e de perda de aura da obra de arte, onde até uma banana colada com adesivo vale milhões pela sua qualidade estética ou onde o crítico, explicando o absurdo, acha que o que vale mesmo é a assinatura e nada mais. A assinatura como arte, onde o conteúdo nada importa. Uma visão notarial da obra de arte. Pois é. Se em tudo já é assim, relativo, na arte ainda é mais. Cada um parece ter a sua bússola estética com diferentes localizações para um mesmo lugar, seja ele o norte ou o sul. Um relativismo que desorienta e desresponsabiliza.

II.

Pois também eu tenho a minha ideia sobre o assunto, procurando cruzar a estética com a própria experiência de produção de arte (do romance à poesia, à pintura). E, a partir daqui, desenvolver uma reflexão que tenha um único sentido e um único valor: dar testemunho de como nasce a obra de arte (se for mesmo obra de arte, assim considerada, que não seja pelo próprio ou pelo que considera que a assinatura é tudo, seja uma banana, seja um mictório). O risco é grande, mas acho que vale a pena.

Digo muitas vezes que a poesia nasce de um estremecimento e desenvolve-se como solução para a própria vida, até pela sua altíssima performatividade, o seu valor como acção existencial com valor metalinguístico ou meta-semântico. Como acto sublime do viver. Fixei bem a ideia do Nietszche e do carácter primordial da experiência dionisíaca na criação estética. Uma espécie de libação existencial, de onde a poesia nasce quase como imperativo e como solução para resolver a “ressaca”, também ela existencial. Em palavras triviais, para concretizar melhor a ideia, diria que a poesia (ou a arte) funciona como uma espécie de remédio, um guronsan espiritual de fabrico próprio, de design sofisticado, prolongado no tempo e proposto aos outros que de algum modo também vivem em “ressaca”. Um remédio para a alma feito de palavras em composição melódica. O García Lorca dizia que a poesia não quer adeptos, mas sim amantes. Não se entra nela como se olha para uma montra ou para uma disputa desportiva. Entra-se nela como numa oficina onde se lapidam minerais. Alquimia, sim, alquimia. A arte quer envolvimento, sofrimento, dor, paixão, amor, pulsões, vibração existencial. E elevação. Não quer mãos limpas, distância, medo, relação puramente analítica com a realidade ou puro pragmatismo. A arte é um em-si (sich selbst) que prescinde do seu próprio exterior, embora nasça para ser comunicada, sim, mas de forma desinteressada. Desinteressada, sim, mas não para o próprio artista que a cria, porque algo interior lhe impôs a criação, requerendo-a mesmo como solução para a sua inquietação, o desassossego, capturando e resolvendo o estremecimento com a beleza das formas.

III.

Pediram-me, numa entrevista para a RTP, para escolher uma frase que me tenha influenciado ou que tenha sido importante na minha caminhada estética. Escolhi uma frase de Marguerite Yourcenar/Michelangelo Buonarroti, em “Le Temps, Ce Grand Sculpteur” (1983), para sublinhar o registo em que me movo no plano artístico: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. 

Esta frase sintetiza toda uma teoria estética, em que me reconheço integralmente, exposta em poucas linhas pela grande escritora. Esta frase é atribuída a Michelangelo Buonarroti, no segundo capítulo do livro, “Sistina”, e tem-me acompanhado no processo de construção da minha poesia e da minha pintura. Como confirmação de uma intuição prévia e real sobre a vida. Claro, não é a frase em si, mas o que ela indicia e que, de resto, está bem explícito, e de forma certeira, neste curto e profundíssimo texto sobre Gherardo Perini. Resumo, pois, o que a Yourcenar, através do monólogo que Michelangelo dirige ao seu amante, propõe como variáveis essenciais da arte:

  1. A arte recria em ausência. A ausência do ser amado ou do objecto de atenção estética deve acontecer enquanto a relação ainda não se desgastou (que a partida aconteça enquanto ainda for possível chorá-la). O artista sublima o que lhe sobrou do que teve.
  2. O silêncio é o seu ambiente natural e as cores são como acordes sobre este silêncio. E eu acrescentaria que também as palavras o são, talvez mesmo de forma mais intensa, quando dão corpo à poesia e vibram como as notas de uma pauta.
  3. A recriação é uma imobilização da alma do ser que se tornou objecto de atenção estética. O Stendhal chamava-lhe, em relação ao amor, “cristalização”.
  4. A visão do artista não se confunde com a dos outros que observam a mesma figura exterior porque ele extrai dela o essencial, que é invisível e que os outros não poderão conhecer. O artista “mira più alto”, como diria Galileo Galilei, referindo-se à filosofia.
  5. A recriação é, por isso, algo semelhante ao processo alquímico, que separa o subtil da matéria em bruto, só sendo acessível aos iniciados, ou seja, aos artistas. O artista vê a nudez da alma para além das roupas e do próprio corpo, que é, afinal, como os santos vêem as almas. Mas o artista é mais um alquimista do que um santo.
  6. A recriação é uma eternização do objecto estético, precisamente porque extrai dele o que não é simplesmente acessível ao olhar distraído do ser humano comum.
  7. A beleza é, por isso, algo que é grave e solitário (e único), como a dor. Não há beleza quando não há gravitas, densidade existencial.
  8. A arte é a única forma de verdadeira posse. Isto também o dizia o Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego”. Possuir (no sentido material) é perder porque, possuindo, também se é possuído. Outra coisa é sentir sem possuir e dar corpo ao sentir pela arte. Só a renúncia permite a posse total (pela arte). Se não te possuo, não te perco. “Sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero”, diria o Pessoa. A pergunta que fica é, pois, a seguinte: não tem porque não quis ou não tem porque não pôde ter? E que tipo de artista é: o que exprime o que não tem ou o que exprime o que sobrou do que teve? (Porto, Assírio e Alvim, 2015, 207-209). Pessoa é do tipo que não tem.
  9. A arte exige separação, diferença, um intervalo onde o artista se posiciona. Só ela permite a posse eterna: “só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos”. Para a Yourcenar o artista é o que exprime o que sobrou do que teve. É o que resulta da relação estética e de amor entre Michelangelo e Gherardo Perini.
IV.

Poderia quase dizer que estes são os princípios que me inspiram quer na poesia quer na pintura a partir de um momento fundacional: o estímulo sensorial sobre a sensibilidade que leva a uma inevitabilidade, a um imperativo: a sua conversão em arte.

Aqui, a pulsão do amor (de Michelangelo por Gherardo Perini) é evidentemente a que desencadeia o impulso estético, a (re)solução para a dolorosa partida, a necessidade de recriação estética do ser que ia partir como forma sublime de posse em ausência, a única possível. Posse de algo que é único porque não partilhável a não ser como contemplação já sob a forma de obra de arte.

A este momento pulsional e de partida Nietzsche chamava momento dionisíaco, libação existencial. Eu diria, então, da arte: no princípio (da arte) não é o verbo (como se diz na Bíblia: João 1:1) nem são sequer as coisas (como queria o Galileu: “prima furon le cose, e poi i nomi”), mas sim o estremecimento por via sensitiva. O que distingue o filósofo do ser humano comum é, segundo Galileo Galilei, a sua capacidade de ler o livro da natureza, de o decifrar (“il volgersi al gran libro della natura”, como diz logo no início do Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo – Torino, Einaudi, 1970, 2). E eu diria que o que distingue o poeta do ser humano comum é o seu (de “chi mira più alto”) poder de ler no livro das almas.  E que começa por ser um estremecimento com força propulsiva, que sintoniza o poeta com o universo do sentir e se constitui como mola que desencadeia a sua resposta e que instala o ambiente estético em que se desenvolverá ulteriormente a criação. Só depois vêm os nomes, as palavras, as cores e os traços e a sua colocação num intervalo entre si próprio e a realidade. Uma separação metodológica. Um espaço intermédio onde se inicia o momento apolíneo. A partir deste intervalo vem a sinestesia, a abordagem dupla, poética e plástica, em convergência para a expansão e o desenvolvimento formal que se segue ao estremecimento primordial, sensitivo. Aqui intervém a técnica e a racionalidade, a dimensão formal. O espírito apolíneo, sim. E a exigência de muito trabalho e muito estudo. E só então a obra de arte ganha vida, desprendendo-se do autor, seguindo o seu percurso, levada pelo vento para destinos imprevistos e até para junto de quem partiu e deixou um rasto intacto de si mesmo na memória sensitiva do poeta. A não ser que, como dizia Kafka, a obra seja bebida pelos fantasmas durante a viagem. Mas esses são os riscos naturais da arte viva e do voo poético.

V.

Para mim, não há arte sem estremecimento, sem abalo telúrico. O resto é somente profissão ou pura habilidade de quem não cria, mas simplesmente reproduz. É por isso que a arte é grave e é também por isso que ela é solitária. E livre. E autopoiética, obedecendo à sua própria dinâmica interna. Sim, mas sob uma remota pulsão que exige resposta e que o artista sente dever acolher como forma de relacionamento primordial com o mundo. A arte é alquímica porque extrai o subtil e o sublime da matéria bruta de que são feitas a vida e as coisas. Só assim ela pode eternizar, imobilizando e separando-se do que é simplesmente ôntico para o tornar ontológico. O resto é virtuosismo ou mera luta pela sobrevivência, não pela arte, mas pelo que de material um exercício sobre a arte pode dar. A arte é uma enorme fonte de pudor e o artista sente uma enorme timidez perante o mundo sobre o qual se pronuncia com as categorias da arte. Embora, em certos casos, pareça que não. Mas a razão de fundo, o que o trava, é a delicadeza da sua aproximação ao mundo. Enquanto depender dos frutos materiais que ela possa dar, ele não é livre e o seu exercício não atinge a essência da arte. A sobrevivência e a solução de vida pela arte não se confunde com os frutos materiais que ela pode permitir, mas sim com a realização interior que o artista consegue através dela. Tudo o resto vem por acréscimo.

Esta conversa tem mais sentido do que parece se assumirmos esse posicionamento em intervalo do artista, distante de si e do mundo e criando uma relação entre eles puramente estética, embora remota e pulsionalmente comprometida. Só a partir daqui procede o espírito apolíneo e a arte se desenvolve seguindo as suas próprias regras, a sua própria gramática.

VI.

Não pretendo, com estas considerações, fazer doutrina sobre a arte ou sequer ditar regras sobre o exercício estético, mas tão-só evidenciar uma das dimensões fundamentais do exercício artístico, referindo-me naturalmente a vultos da cultura mundial, mas sobretudo referindo-as à minha própria experiência, nos três campos em que me pus à prova: no romance, na poesia e na pintura. Não pretendo também que estas considerações tenham valor académico nem sequer qualificar outras experiências estéticas que se movam noutras direcções. E há muitas. A mim, serve-me, todavia, como conforto e consolidação do meu próprio percurso. Que tenciono prosseguir.

Jas18Espanto2021Rec

“Espanto”. Detalhe.

Poesia-Pintura

A AGUARELA

Poema de João de Almeida Santos
inspirado no poema de
Manuel Bandeira
“Tema e Variações”.
Ilustração: “O Retrato”
(n.º 24; 68x80).
Pintura que integra
a Exposição “Luz na Montanha”,
aberta ao público até 25.09,
no Centro Cultural de Cascais.
Agosto de 2022.
O Retrato2022Corte

“O Retrato”. JAS. 2022. (n. 24. 68×80). Pintura que integra a Exposição “Luz na Montanha”, aberta ao público até 25 de Setembro, no Centro Cultural de Cascais.

POEMA – “A AGUARELA”

SONHASTE, MANEL,
Que havias sonhado
Estar à janela,
Sonhando a cores
Que estavas com ela.

TAMBÉM EU SONHEI
Que tinha sonhado
E que no sonho
A tinha encontrado,
Passando por ela,
Ali, lado a lado.

MAS LOGO ACORDEI
Do primeiro sonho.
Sonhando, eu vira
O seu belo rosto
Numa aguarela
Pintada a cores
Que tinha guardado
Para uma tela.

SONHEI, OUTRA VEZ,
Que era pintor,
Mas que sempre
Pintava
Esse seu rosto
A uma só cor.

DIZIA, SONHANDO,
Que não podia ser.
De tão expressivo,
Era um arco-íris
Ao amanhecer,
Um belo sorriso
Para o mundo ver.

MAS EU SÓ O VIA
Com a minha cor.
De seda tecido,
Ele me seduzia
No sonho sonhado
Onde sempre a via
Ali, a meu lado.

NÃO QUERIA ACORDAR
Do sonho feliz
E nele fiquei
De olhos fechados
Porque nessa cor
Fiquei enleado
Com todo o meu ser...
................
Talvez por amor.

NO SONHO OLHEI
Para o meu espelho
E logo eu vi
Que essa minha cor
Era o vermelho.

NO ÚLTIMO SONHO
Voltei a sonhar
Que tinha sonhado
Que o encontrei,
Esse rosto amado,
E logo lhe disse,
Neste novo sonho,
Que a tinha sonhado.

DISSE-ME QUE NÃO,
Que nunca me vira
Sequer acordado...
E logo acordei
Desse pesadelo.
Foi assim que vi
Que tinha sonhado
E que ela
Já lá não estava
Ali, a meu lado.

QUIS ADORMECER
Para a encontrar,
Mas não consegui
Sonhar que a via,
Pôr os olhos nela,
Viver o meu sonho
Como alquimia,
Porque, acordado,
Logo descobri
Na minha parede
Aquela aguarela
Que do sonho
Passado
Eu já conhecia...
................
Era o rosto dela.

O Retrato2022CorteR

Artigo

DÓI-ME A ALMA LÁ NO ALTO DA MONTANHA

Por João de Almeida  Santos

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“A Montanha Encantada”. Jas. 2022. Pintura que integra a Exposição “Luz na Montanha” (n.º 36, 94×119), aberta ao público no Centro Cultural de Cascais até 25 de Setembro.

OUVI, quando seguia pela televisão o avanço imparável do segundo acto deste drama que atingiu a Serra da Estrela e as suas gentes, e que viria a atingir fortemente também a minha aldeia natal, as palavras atribuídas a um habitante de uma das aldeias, Fernão Joanes, se não erro: “o incêndio já não é só no território, ele já está dentro de nós. Também nós já ardemos por dentro”. Foram mais ou menos estas as palavras referidas pelo repórter. Eu senti isso mesmo quando assisti ao desenrolar da primeira fase dos incêndios, sentimento reforçado, depois, quando atravessei por duas vezes o maciço central, em particular o Vale Glaciar. Para ver o que aconteceu e para trazer para casa alguma água pura daquela generosa e belíssima fonte Paulo Luís Martins, que vaza para o Vale e alimenta o Rio Zêzere. E apesar de nem ter podido ver o que estava a acontecer na zona do Sameiro, em Vale de Amoreira ou em Verdelhos, nessa belíssima e densa mancha verde de que nos apropriamos com todos os sentidos quando viajamos para o Vale Glaciar. Parece que já só é uma recordação, uma dolorosa recordação. É lá que mora o meu Amigo, e génio da construção, Joaquim, que, triste, me confessou ter perdido 33 oliveiras do seu amado olival. Foi uma semana de aperto anímico, de sofrimento, com um persistente receio de ver os incêndios chegarem a uma fase de descontrolo total. Mas, não, tudo parecia controlado passados oito longos dias, no passado Domingo, o dia em que, mais tranquilo, regressei a Cascais. Estava em paz e até experimentei uma belíssima sensação ao reencontrar, na Praia da Poça, o meu velho amigo Rui, que já não via há umas dezenas de anos. Mas foi sol de pouca dura porque logo recebi um telefonema do Luís, o proprietário daquele belíssimo restaurante Vallecula, ali na praça do pelourinho de Valhelhas, a pedir ajuda, pois os incêndios tinham regressado em força, estando a ameaçar as nossas aldeias. Era o renovar de uma antiga experiência que vinha dos tempos em que eu podia mesmo ajudar a resolver situações de emergência. Mas agora já não podia. E, triste e desolado, o Luís por lá ficou numa aflição que não há palavras que a possam descrever.

I.

E REACENDEU-SE o incêndio dentro de mim, impotente para ajudar o meu Amigo e os meus conterrâneos e até impossibilitado de agarrar no carro e ir para lá. Já não seria possível entrar na minha aldeia ou em qualquer outra daquele vasto território nos contrafortes da Serra da Estrela. Foram isoladas e as populações evacuadas. Só já podia seguir os incêndios através das televisões, pois nem sequer conseguia comunicar com os meus amigos e conterrâneos por as comunicações terem colapsado. Foi nesse momento que as palavras desse habitante de Fernão Joanes ressoaram fundo em mim. Na verdade, já todos ardíamos por dentro. Não bastaram os primeiros incêndios, que agora regressavam com mais força destrutiva.  Como se um outro Putin incendiário nos estivesse a bombardear implacavelmente com ímpetos destrutivos e sem sentido. A noite de segunda para terça foi um inferno, sobretudo para os que lá estavam, mas também para nós, os que têm a alma ancorada naquelas terras. Felizmente, no momento em que escrevo, a situação parece estar controlada, mas alguns pontos críticos nos concelhos da Guarda e da Covilhã e o perigo dos reacendimentos continuam a preocupar-nos.

II.

A MONTANHA não só é o lugar primordial da minha própria identidade, o lugar do retorno cíclico, o chão onde afundam as minhas raízes, mas é também a minha principal fonte de inspiração, na poesia, mas sobretudo na pintura, como se vê pela pintura ilustrativa que aqui publico. Hoje de manhã vi no Facebook uma imagem publicada pelo meu Amigo Delfim que retomava a paisagem que se avista do meu terraço e do meu Jardim Encantado, e que tantas vezes pintei, de ângulos diferentes, mas agora, nesta foto, essa mesma imagem já aparecia projectada numa densa e imensa nuvem de fumo escuro. Fiquei destroçado e apeteceu-me apagá-la com o pincel, repondo a sua moldura de céu limpo e profundo. Soube depois que também a Quinta de um querido Amigo, o Tó, de que existe um quadro de grandes dimensões pintado por mim, foi atingida, tendo-se, felizmente, salvado os animais, as casas de granito e uma parte cultivada. O fogo já me atingiu por dentro, como se tivesse entrado pela pintura da Quinta, “Ketrof”, e reduzisse a cinzas aquele verdor que com tanta dedicação, carinho e empenho quis enaltecer esteticamente. E nem o facto de há muito ter promovido a criação de uma corporação de bombeiros para defesa da nossa floresta e das nossas aldeias serviu de barreira à progressão do fogo, tal foi a sua dimensão e a sua velocidade a partir da martirizada Valhelhas. Mas mesmo que tudo passe e não haja vidas perdidas a destruição deste fogo vai ficar ali à vista para alimentar o fogo que continua a arder dentro de nós.

III.

CONHEÇO BEM este fenómeno porque lidei com ele à escala nacional durante vários anos e poderia desatar aqui a criticar a ausência de prevenção e planificação estratégica que se constata quer a nível nacional quer a nível municipal. Mas não o farei, sobretudo neste momento de tragédia e de desolação. Do que mais precisamos é de retomar a normalidade das nossas vidas e proceder à recuperação do que for possível recuperar. É essa a única maneira de apagar o fogo que nos queima o peito e a alma.

IV.

SEMPRE que, nos meus cada vez mais frequentes regressos a estas terras, passava a aldeia de Vale Formoso em direcção a Valhelhas, através da agora devastada Quinta do Brejo, sistematicamente comentava, quase vaidoso, a beleza daquela exuberante mancha verde que a vista alcançava num raio de 180 graus, quase a desdizer o que o arguto Bernardo Soares disse no “Livro do Desassossego”: «os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor» (Porto, Assírio&Alvim, 2015: 55). Podem ser mais verdes, podem. Mas este verde era tão verde que cheguei a suspeitar de que nem um poeta qualificado seria capaz de acrescentar verdor àquele verdor natural, com palavras. Ou até mesmo um pintor que tivesse a ambição de ir mais além daquela mancha verde-escuro, elevando-a, em tela, ao reino do sublime. Não sei. Os caminhos da arte são insondáveis e talvez o Bernardo Soares tenha razão. O que sei é que nunca me conseguia conter perante tanto verdor e tinha, como um irresistível impulso, de verbalizar o meu espanto de prazer. Mas também já nem sei se poderei continuar a dizer do meu Vale o que sempre dizia quando chegava ao seu extremo norte, vindo da Guarda: “que beleza extraordinária e que perfeição a geometria deste Vale!”. O Vale ficou lá, o desenho continua perfeito, mas o verdor, esse, só fica para as palavras do poeta ou para o pincel do pintor. Valha-nos ao menos isso. E até acho que se o pintarmos com palavras e com cores (e com a alma, claro) ele se regenerará mais depressa, como que a desafiar a fantasia do artista. Se assim for, ponho mãos à obra rapidamente, logo que ultrapasse a estupefacção perante tão inesperada e velocíssima tragédia.

V.

AINDA CONTINUO a arder por dentro, depois de ter ardido por fora. Aguardo, pois, que me deixem entrar no  meu Vale, para o sentir assim, para sintonizar o que sinto por dentro com o que verei por fora, para que a dor, sempre a dor, me leve a torná-lo mais belo do que era, através da arte, a forma de o salvar da fealdade ardente que o capturou, de o redimir de uma culpa que não é sua, de o elevar ao topo da Montanha que sobreviveu ao incêndio, mantendo-se intacto.

Mas hei-de habituar-me e esperar que renasça. Levando tempo, demasiado tempo, fá-lo-ei renascer eu já, ainda não sei bem como. Mas, sim, hei-de voltar a pintá-lo para que o seu verde fique já mais verde que o seu perdido verdor. #JAS@08-2022

AMEncantada_JdASRec

Poesia-Pintura

ESTRANHA ENCRUZILHADA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Rua” (2022; 104x118).
Pintura que integra
a minha Exposição “Luz na Montanha”,
aberta ao público até 25.09, no
Centro Cultural de Cascais.
Agosto de 2022.

JAS_A RUA

“A Rua”. JAS. 2022. 104×118

POEMA – “ESTRANHA ENCRUZILHADA”

CRUZEI-ME CONTIGO
Numa esquina
Da vida,
Nesta rua
Onde inventei
Uma estranha
Despedida.

NÃO TE VI
Como te via
Da janela
Sobranceira
Quando passavas
Na rua
Abraçada
À beleza,
Teu perfeito
Avatar,
Quadro vivo
De ti
Que o tempo
Quis desenhar.

SE TE REVI
(Mas não sei),
Foi numa janela
Vidrada
Que me devolveu
A imagem
Reflectida
Como num espelho
De fada.

E, ASSIM, ESTREMECI.
Pressenti-te
Fugidia,
Nesse acaso
Do destino,
A meu oblíquo
Olhar
Em nova
Encruzilhada
Deste incerto
Caminhar.

DEPOIS SEGUI
Com a alma
Em alvoroço
Essa tua silhueta
Embaciada,
No meio
Da multidão...
...........
Não via bem
O perfil
Por falta
De nitidez
Do meu campo
De visão.

ANÓNIMO
Me assumi
Como essa gente
Comum
Que se cruza
No caminho
Sem jogar
O seu destino
Num encontro
Casual.

QUE ESTRANHA
Sensação,
Caminhar
Lado a lado
Com uma vaga
Silhueta,
Fixado
Num horizonte
Que se esfuma
E desfaz
Como espuma
Em areia
A marcar uma
Fronteira
Traçada
Pelas marés.

ATÉ QUE CHEGUEI
Às palavras
Escritas na água
Da praia
Remexida
Pelo vento,
Derramando
Na areia
Um murmúrio,
Um lamento,
Um poema
Simulado
Para dar voz
Ao poeta
Que sofre
Do seu pecado.

MAS GOSTEI
Do olhar
Oblíquo
Com que te vi
Na janela
De vidros baços,
Fumados,
Apenas imaginando
Que aquela silhueta
Era tua,
Regressada
Dos confins
Dessa remota
Memória
Dos felizes
Desencontros
Que tinha
Na outra rua.

E GOSTEI
Que me visses
Sem olhar,
Pressentindo-me
Apenas,
Anónimo
A seguir o teu
Caminho
Para logo
Se perder
Nas veredas
Do destino.

TUDO TÃO ONDULANTE
E tão normal,
Estranhamente
Banal,
Que até o poema
Espanta
Por cantar
O que nunca
Aconteceu
A não ser
Na fantasia
De quem com ele
Renasceu.

CRUZEI-ME CONTIGO
Ao lusco-fusco
De um estranho
Entardecer,
Numa encruzilhada
Da rua
Que um dia
Inventei
Pra desenhar
O caminho
Onde te ia
Perder.

É A VIDA
De um poeta
Que se alimenta
Da dor.
Se não a sente,
Procura,
Nem que seja
No amor.

JAS_A RUARec

“A Rua”. Detalhe

Ensaio

OS NOVOS PROGRESSISTAS

Por João de Almeida Santos

Horizonte

“Horizonte”. JAS. 08-2022

HÁ ALGUM TEMPO publiquei aqui um pequeno ensaio sobre “A Esquerda e a natureza Humana”  (https://joaodealmeidasantos.com/2021/04/). A questão era mais ou menos a mesma que hoje aqui me traz, embora o ângulo de abordagem fosse diferente porque se centrava sobretudo na esquerda clássica e nos seus desafios. Mas o que hoje me interessa, com a crise da esquerda clássica e do seu paradigma, é saber como está ela a ser representada pelos novos movimentos. A clarificação é delicada e um pouco complexa, mas oportuna e necessária, sobretudo quando nos defrontamos com uma tendência que, supostamente à esquerda, está a tentar impor a sua hegemonia no terreno da sociedade civil, estando a conseguir bons resultados até nos chamados “aparelhos de hegemonia” ou mesmo nas próprias instituições. Refiro-me ao multiculturalismo, à chamada política identitária e aos paladinos do politicamente correcto. Não há, no meu entendimento, uma linha clara de evolução da esquerda clássica para estas formas de esquerda ou progressismo de tipo civilizacional, apesar de algumas afinidades, designadamente no seu organicismo antiliberal.

Tradicionalmente, os progressistas identificavam-se com “grandes narrativas” que propunham uma visão articulada, com profundidade temporal, da história como horizonte a partir do qual era assumido o compromisso político. Estas “grandes narrativas” estavam ancoradas em classes sociais, propunham uma utopia como objectivo último da sociedade, promoviam a transformação social através da vontade política das classes sociais e das elites (através de partidos ou movimentos) e centravam em clivagens estruturais (como, por exemplo, o antagonismo entre capital e trabalho) o funcionamento da sociedade, propondo-se intervir sobre elas rumo à utopia, situada no futuro. Eram animadas por um optimismo histórico com profundidade temporal que dava alento à esperança em dias melhores, para todos. A revolução (ou a reforma, nas tendências mais moderadas) era a solução e a chave do progresso.

I.

ESTAS “GRANDES NARRATIVAS” políticas perderam a centralidade, dando lugar àquilo a que Jean-François Lyotard, em “La Condition Postmoderne” (1979), chamou a sociedade pós-moderna. A “grande narrativa” ancorada no industrialismo e em classes sociais antagonistas tornou-se residual, sendo substituída por outras formas mais ancoradas na “superestrutura” do que nas fracturas estruturais. E é aqui que nos encontramos. Num mundo sem profundidade temporal e fragmentário, mas globalizado e de alta mobilidade migratória a caminho de um melting pot global. E é neste mundo fragmentário que nasce o discurso multiculturalista, o identitarismo comunitário e o politicamente correcto, ou seja, uma linguagem asséptica para a identificação das identidades comunitárias politicamente emergentes, sejam elas de género, de raça, de orientação sexual, de cultura ou de língua. Um desvio e uma significativa mudança na natureza das novas fracturas relativamente às clássicas fracturas estruturais. Por exemplo, a identidade de género e a sua dialéctica interna não têm características que possam ser identificadas com as da dialéctica entre classes. A sociedade é vista não como um complexo integrativo de indivíduos singulares, qualquer que seja a sua identidade (a visão liberal) nem como resultado de um antagonismo estrutural entre duas classes fundamentais (o marxismo), mas como um complexo de comunidades diferenciadas, cada uma com a sua identidade e a sua densidade histórica e social, a que é preciso dar voz, emancipar, autonomizar e protagonizar, reconhecendo-a na linguagem dos novos direitos emergentes ancorados numa sociedade multicultural, sem centro nem periferia e onde o direito à diferença rivaliza com o direito à igualdade, podendo até sobrepor-se-lhe.  Mas a falta de uma “grande narrativa” deu lugar à busca de um colante que permitisse repor a hegemonia ético-política e cultural progressista. Encontraram-na numa leitura focada e extensiva das grandes cartas universais de direitos e deram início a uma tentativa em larga escala de transformar certos direitos nelas consignados não só em normas de comportamento universais obrigatórias e moralmente vinculativas, mas também em mundividências ancoradas em concretas comunidades sociais que passaram a funcionar como ordens de valor absoluto e com pregnância social formal e linguisticamente reconhecida e formalizada. Do que se trata, então, é de promover essas comunidades a eixo decisivo das sociedades modernas, considerado condição nuclear da harmonia social e do progresso civilizacional. Essas comunidades são os novos sujeitos (ainda) subalternos a que é necessário e justo dar voz. As linhas de fractura situam-se todas elas entre a sedimentação histórica resultante do processo evolutivo das sociedades desenvolvidas e o presente reconfigurado à luz dos novos direitos. Elas não só aspiram à igualdade universal de direitos como também aspiram ao direito à diferença, a uma identidade própria não subsumível na totalidade social e ao alargamento do espectro das diferenças no interior do sistema social plasmadas numa linguagem limpa das conotações negativas ou discriminatórias do legado histórico, ao reconhecimento social e formal da própria identidade e até a um poder socialmente reparador e sancionatório. O objectivo é o da igualdade de reconhecimento colectivo, mas inscrita no direito à diferença. Atingir a igualdade através do reconhecimento do direito substantivo à diferença. Estas comunidades vêem assim as suas identidades ser catapultadas a modelos a partir dos quais juízos de moralidade poderão ser pronunciados em função da medida dos novos direitos identitários. Identidades de género, de raça, de orientação sexual, de cultura e de língua tratadas historicamente, no passado, como comunidades subalternas e discriminadas a exigirem, agora, reconhecimento através de uma nova visão do mundo e da história centrada nos direitos multiculturais e às quais a linguagem comum se deve adaptar para não carrear consigo a marca e a mancha da sua génese histórica e das respectivas contingências ao longo do martirizado processo histórico. Linguagem expurgada das sedimentações históricas que se foram depositando nela e que são testemunho da iniquidade histórica.

Vejamos um pequeno exemplo de resgate da iniquidade histórica. Bia Ferreira, conhecida cantora negra, brasileira, activista da comunidade LGBT: “Eu vou”, à festa do Avante, “ para denunciar os estragos que o povo português deixou aqui no Brasil”; “O que incomoda mesmo é a denúncia que eu faço: que o seu antepassado escravizou o meu povo, aqui no Brasil, e que a gente paga essa conta até hoje” (Expresso, 26.07.2022). Os portugueses considerados como causa remota dos males que hoje atravessam a sociedade brasileira, isto dito por uma militante orgânica e qualificada de uma (ou mesmo de várias) destas comunidades. Ditadura, Bolsonaro, qual quê? Portugueses. Está tudo dito. Agigantar uma causa, ainda que remota e explicável pelo tempo histórico em que aconteceu, cobre outras causas, mais próximas, mais reais e mais activas. Trata-se de um perigoso desvio anacrónico que polariza a atenção para uma falsa explicação, encobrindo e deixando por explicar a realidade efectiva. Um exemplo concreto muito elucidativo.

II.

COMO EM TODAS AS IDEOLOGIAS a carga semântica destas identidades elevou-se a absoluto, dando vida àquilo que Max Weber um dia designou como  wertrational, racional em relação ao valor, substitutivo quer do zweckrational (próprio do capitalismo e da sociedade mercantil) quer do traditional (próprio das sociedades onde impera a tradição). O valor passou a ocupar, em linguagem weberiana, o centro do discurso identitário, alcandorando-se a politicamente correcto. Nada havendo contra a elevação do valor a critério comportamental, como é óbvio, o que não é defensável é que ele se torne absoluto e exclusivo polarizador do comportamento social, como nas religiões ou em certas grandes narrativas políticas. A identidade comunitária passou a ocupar o centro do discurso progressista, num registo totalmente diferente da ideia de comunidade defendida pela esquerda clássica, porque agora se trata de múltiplas comunidades, novas identidades ou novos sujeitos sociais multiculturais, sem centro nem periferia e não subsumíveis numa qualquer ordem ou unidade superior nem remissíveis a uma fractura socialmente estruturante. Do que se trata é de uma luta pelo reconhecimento ancorada no direito à diferença e no valor da diferença. Uma lógica que contrasta com a matriz liberal da nossa civilização, como de resto acontecia com a visão marxista, mas que se diferencia do organicismo da esquerda clássica, ancorado na centralidade de classe. As comunidades são agora os sujeitos para onde remete a vida societária. A igualdade tem agora na diferença o seu contraponto reconhecido e validado pela sociedade, no direito, na língua, na política, na economia e na cultura. Em todas estas instâncias as identidades comunitárias devem ver garantido o reconhecimento institucional e social em formas substantivas. Uma dinâmica que tem demonstrado capacidade de imposição hegemónica na sociedade civil e até nas instituições.

III.

E É AQUI QUE ESTAMOS. As tradicionais classes sociais do marxismo deram lugar ao multiculturalismo e às identidades comunitárias, que se elevaram a alfa e omega do progresso social e da linguagem societária, num processo que só poderia evoluir mediante uma filosofia organicista de novo tipo e uma crítica do universalismo iluminista e liberal. As comunidades integram a sociedade de forma orgânica. Se o centro era o indivíduo ou, então, a classe, agora não há centro porque há multiculturalismo, múltiplas identidades diferenciadas sem centro nem periferia. Tudo se esbate perante o emergir das comunidades e da diferença que aspira a tornar-se a regra número um das sociedades. É o multiculturalismo pós-nacional que resiste a um melting pot tendencial, à cultura dominante, à matriz nacional do Estado, a qualquer tipo de integração superior, que é vista sempre como ameaça. O Estado passa a ser um conglomerado de comunidades e o garante da diversidade multicultural e das identidades comunitárias. O indivíduo cede o lugar à comunidade e a classe fragmenta-se em microcomunidades. As fracturas estruturais tornam-se “superestruturais” e a dialéctica é a da luta pelo reconhecimento e pela afirmação da identidade comunitária, seja étnica, de género, de orientação sexual, de língua ou de cultura. Assim se dilui a matriz e o património liberal, emergindo mesmo o problema da unidade nacional, da universalidade da lei e do Estado e da língua como colante nacional. Esta passa a ter como função a promoção identitária das comunidades erradicando (de si própria) todos os vestígios que possam evidenciar marcas e manchas do passado, sedimentações consideradas impróprias à luz dos supremos critérios da nova visão multicultural e da novilíngua que a exprime. O revisionismo histórico e linguístico passou a ser a marca de água da nova mundividência. Nada é mais importante do que a identidade comunitária. Tudo o resto fica na sombra, de tão intensa ser a luz multicultural e identitária e de tão imperativa ser a sua moralidade. O reconhecimento comunitário e identitário passou a ser a nova palavra de ordem em nome dos novos direitos, do progresso e da moralidade social. A assepsia linguística é a garantia visível e palpável do reconhecimento e equivale ao triunfo do presente sobre a profundidade temporal e os desvarios da história e da contingência própria do tempo histórico.

Nem a esquerda clássica aqui cabe, tal como não cabe a sua leitura acerca da fractura estrutural da sociedade capitalista, nem a visão liberal, com o seu universalismo e a promoção da centralidade do indivíduo e direitos correlativos, é com esta visão compatível. Findas as grandes narrativas irrompem os movimentos por causas centradas nas identidades comunitárias. Renasce um organicismo de novo tipo agora ancorado no direito pleno à diferença em nome da afirmação da identidade das comunidades que passaram a ocupar o centro discursivo da sociedade como forma única de emancipação numa sociedade entendida como conglomerado multicultural, onde a diferença é a lei que domina. Uma inversão relativamente à conquista liberal da igualdade contra o privilégio. Mas também uma regressão nos próprios conceitos de Estado e de sociedade.

É aqui que se inscreve o politicamente correcto com pretensões de poder sancionatório e de reconfiguração “superestrutural” da sociedade, pondo na sombra, nesta luta, as questões que antes a esquerda punha no centro do combate político, a classe ou o povo oprimido, os sujeitos onde se ancorava a revolução. Mas pondo também em causa o universalismo liberal e a defesa dos direitos individuais. A comunidade orgânica, não a sociedade, é o lugar deputado onde se pode afirmar a individualidade. É através dela que o indivíduo se pode afirmar na sociedade. A lógica societária já não pode prescindir da lógica comunitária, acabando por lhe ficar subordinada. A centralidade do indivíduo passa a ser uma ficção que a nova mundividência nega e combate em nome da identidade comunitária e da sua pregnância social.

IV.

SERÁ, PORTANTO, ESTE PROGRESSISMO  aceitável na forma como se tem vindo a exprimir, ou seja, nas suas pretensões hegemónicas e na sua vocação totalizadora, para a social-democracia ou para o socialismo democrático? No meu entendimento, não. Logo a começar pela sua característica como movimento orgânico e fragmentário que ilude fracturas que são essenciais para o progresso dos povos, mas também porque é um movimento sem densidade e profundidade temporal ao querer resolver no presente toda a temporalidade histórica, chegando ao extremo de querer anular radicalmente a diferença histórica, extirpando-a da própria linguagem comum e das formas de expressão pública (da arte pública, por exemplo, ou dos livros de ensino público) do tempo histórico. Por outro lado, o organicismo é tão inimigo da democracia representativa como amigo do corporativismo. E aqui a ideia de liberdade sofre uma contracção inadmissível para quem se revê na nossa matriz civilizacional e na própria razão de ser da social-democracia. A ideia de contingência histórica é recusada por imposição dos valores do presente como valores absolutos, como fim da história,  triunfo do wertrational – a orientação menos conforme à lógica inscrita nas democracias representativas e na sua matriz liberal.  É claro que a própria social-democracia deverá reinventar-se para além das clássicas formas que foi assumindo ao longo do tempo, designadamente do Estado social e de um certo comunitarismo tradicional radicado num classismo residual que nunca foi plenamente extirpado. Mas deverá também, et pour cause, rever a sua resistência espontânea e matricial à filiação no primeiro liberalismo anti-absolutista e anti-privilégio que determinou a matriz da nossa actual civilização e das mais avançadas formas de gestão política das nossas sociedades: a democracia representativa, o Estado de direito e a racionalidade do mercado. Basta ler a Declaração dos Direitos do Homem (palavra que na novilíngua acabará substituída por ser humano ou por Direitos Humanose do Cidadão. É certo que esta tendência teria sentido e seria até desejável se absorvida por uma política progressista que fosse capaz de a reposicionar no seu devido lugar histórico, limitando a sua pretensão hegemónica em vez de a promover no interior das suas fileiras sem compreender que esta hegemonia que vai avançando assume cada vez mais a forma de uma inaceitável opressão simbólica, de vigilância policial da história, da palavra e do pensamento incompatíveis com a vida democrática e com a liberdade que lhe está na raiz. Parecendo constituir um progresso, esta mundividência, com as pretensões hegemónicas que tem vindo a revelar e com o seu organicismo, na realidade é um profundo recuo relativamente à matriz liberal da nossa civilização e um grave atentado à liberdade.

#JAS@08-2022

HorizonteRec

Poesia-Pintura

SONHEI-TE, NAQUELA NOITE

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Teus Olhos”.
Pintura em Exposição
no Centro Cultural de Cascais,
nº. 14, 66x89, 2022.
Original de minha autoria.
Agosto de 2022

Jas14TeusOlhos2022

“Teus Olhos”. JAS – 2022 – 66×89. N.º 14 em exposição no CCC.

POEMA – “SONHEI-TE, NAQUELA NOITE”

SONHEI-TE,
Naquela noite.
Atravessava o deserto,
Há muito,
Sem nada no horizonte,
Areia, só areia
No meio
Do meu caminho
E uma neblina quente,
Lá ao fundo,
Na fronteira
De quem o percorre
Sozinho.

NEM SABIA
Se na longa
Caminhada
Encontraria
Um oásis
E uma fonte
De água pura
Onde molhar
Os lábios e a alma
Já gretados
De tanta aridez
E secura.

MAS HOJE VOLTEI
A sonhar-te.
Passara essa fronteira
E encontrara
O oásis...
...............
Nas pupilas
Dos teus olhos.

SACIEI-ME EM TI,
Sereno
Como nunca
Estivera
Desde que te conheci.
Ofereci-te
A história
De papel
Onde te conto
E me conto
À exaustão,
No limiar
Do impossível
E dessa insólita
Paixão,
Com réstia
De esperança
De não ter de
Regressar
À torreira
Do deserto,
A essa cáustica
Erosão.

FALÁMOS DE ARTE
(Imagina),
Do seu poder
Curativo,
De como a vida
Se lê
E resolve
Quando é forte
O motivo.

ABANDONEI-ME
Nos teus braços
Irreais,
Perdi-me
Em misteriosos
Sinais
E em quentes
Memórias
De ternura
E caminhámos
Sobre nuvens
De cintilante
Alvura.

SONHEI-TE
Esta noite.
E, sabes?
Acordei de ti
Embriagado
De felicidade,
Uma doce
Tontura
Com sabor
A liberdade.

HABITUEI-ME
A estar contigo
Em sonho,
A dizer-te
Em poemas,
A interpelar-te
De longe,
A ouvir o teu eco
Ressoar-me
Na alma,
Melodia
Do amanhecer.

APRENDI
A ouvir
O teu silêncio,
Essa fronteira
Inultrapassável
A não ser
Pelo vento
Que passa
E te cicia os
Meus poéticos
Murmúrios.

TENHO-TE
Em mim
E já nem sei
O que seria
Encontrar-te
Fora do meu
Íntimo,
Olhar de perto
Esses teus olhos
Profundos
E cintilantes,
Embriagar-me
(Já de partida)
Com teu perfume
E naufragar
Nesse mar
Insondável
Da tua vida.

TALVEZ TE PERDESSE,
Nesse instante,
Por excesso de ti.
Mas não quero
Perder-te,
Sentir de novo
O que nesse dia
Tão cinzento
Eu já senti.

Jas14TeusOlhos2022Rec

“Teus Olhos”. Detalhe.