Artigo

TRÊS ANDAMENTOS PARA UMA PERSONAGEM

BENITO MUSSOLINI

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 07-2023

ESTE LIVRO que aqui analiso é um longo, digamos, romance histórico de Antonio SCURATI, fundado em factos reais e publicado entre 2018 e 2022, em três volumes, sobre Mussolini e o fascismo: M – Il Figlio del Secolo (Milano, Bompiani, 2018; 848 pág.s); M – L’Uomo della Provvidenza (Milano, Bompiani, 2020; 647 pág.s) e M – Gli Ultimi Giorni dell’Europa (Milano, Bompiani, 2022; 427 pág.s). No total, 1922 páginas na edição italiana (mas todos eles estão já traduzidos em português). O último volume talvez seja o menos interessante, termina no início da segunda guerra mundial, em 1940, e tem como co-protagonista, além, claro, de Mussolini e de Hitler, Galeazzo Ciano, o famoso Ministro dos Negócios Estrangeiros, o “Genro de Regime”, como, entre outros sarcásticos apelidos, o Autor o vai, seguindo a má-língua italiana da época, identificando (2022: 198).

1.

O primeiro volume, M – O Filho do Século,  é uma longa, minuciosa e atraente narrativa sobre o nascimento e a escalada do fascismo italiano, de 1919 até 1924, fundados na violência física sistemática e difusa dos “squadristi”, e sobre a forma como Benito Mussolini, por entre altos e baixos, a foi gerindo até à subida ao Quirinale e à sua indigitação e nomeação, pelo Rei Vittorio Emanuele III, como Presidente do Conselho de Ministros, em finais de 1922. O livro apresenta a esquerda socialista, no biénio “vermelho” (1919-1920), período pós-revolução russa, como inconsequente e indecisa, relativamente à tomada do poder, e fraccionada, sobretudo entre reformistas e maximalistas, o que levaria a duas importantes e irreversíveis cisões: por um lado, à formação do Partido Comunista (em 1921) e, por outro, à criação do Partido Socialista Unitário, de Giacomo Matteotti.

Os “squadristi”, no início, eram sobretudo ex-combatentes da I Guerra e tinham por lema a violência e a “Lei de Talião”, elevada à máxima potência e com grande e cruel profissionalismo, derivado da experiência de guerra. Morre um dos nossos, mato cinco dos deles – era esta a filosofia. Mas a escalada progressiva dos “squadristi” só foi possível pela complacência do poder liberal instalado e pelo apoio dos grandes agrários, estando generalizado o medo de assalto dos socialistas ao poder, até pela sua expressão eleitoral e a grande força parlamentar. Fortes no Parlamento e ousados nas ruas e nas greves, mas incapazes de se decidirem pelo assalto ao poder, como, pelo contrário, acontecera na Hungria com a curtíssima experiência de Béla Kun, os socialistas, todavia, eram vistos como os principais inimigos da monarquia constitucional liberal italiana.

Scurati traça as grandes linhas da doutrina fascista, ancorada na violência dos “squadristi” e no carisma do Duce, fino jogador na alternância táctica entre “a cenoura e o bastão”, num jogo duplo com que sabia desarmar os adversários, para os aniquilar. Pelo meio, governos liberais incapazes de lidar com o fenómeno, ou mesmo tolerando-o demasiadamente, qual indigesto remédio para salvar o poder das garras dos socialistas. Incluídos os governos do velho Giovanni Giolitti, político sobrevivente até ao fim do Parlamento, ainda que, precisamente neste período, entre Fevereiro e Outubro de 1922, o Presidente do Conselho de Ministros fosse Luigi Facta. Pelo meio, o Poeta Gabriele d’Annunzio e as suas bravatas guerreiras e poéticas, os seus vícios sexuais e a retórica gongórica, o seu ritualismo desbragado, a sua loucura e o seu activismo voluntarista, incluída a conquista e o governo de Fiume.

A cena é dominada, da primeira à última página, pelo triunfo da violência e culminará no assassinato de Giacomo Matteotti, em 1924, o que abalará momentaneamente o regime fascista.

2.

A exaltação da guerra e da violência (teorizada, de resto, por um influente intelectual e político francês, Georges Sorel, sobretudo em Réflexions sur la Violence, de 1908) conhecerá uma sua expressão cultural no futurismo de Marinetti (o Manifesto Futurista é de 1909 e o seu fundador alistou-se no movimento fascista, pretendendo fazer dele a continuação do futurismo), até certo ponto subalternizado pela intervenção da sofisticada e influente amante de Mussolini, Margherita Sarfatti, pretensa “ditadora das artes”, por delegação do Duce, e objecto de ódios culturais não muito disfarçados, mas contidos, pela sua proximidade a Mussolini. Curiosa experiência de uma personagem rude, grosseira e pouco dada às artes, como era o Duce. A Sarfatti foi, durante algum tempo, a sua montra cultural, entre outras coisas mais prosaicas.

A personagem Mussolini surge muito bem delineada ao longo do livro, desde as suas irreprimíveis pulsões sexuais, as suas inúmeras amantes, dentre as quais se distingue precisamente Margherita Sarfatti, a sua sofisticada “educadora”, até à imolação dramática pela Nação, desde um abundante uso instrumental da violência pelos seus implacáveis e imparáveis “squadristi” até à sua pública condenação para puro uso político, para consumo da opinião pública. Mas a violência, que foi a sua arma fundamental para a conquista do poder, no seu discurso oficial era tão-só um recurso de última ratio, uma mera resposta, ainda que dura e violenta, às agressões dos socialistas e dos anarco-sindicalistas. Mas não. Na verdade, essa era a sua verdadeira filosofia, a que decorria da assunção privilegiada da relação amigo-inimigo como centro da acção política, como se iria ver no futuro. “Quem não está connosco, é contra nós”, contra o fascismo, e deve ser esmagado. Grandes intelectuais italianos como Benedetto Croce, Vilfredo Pareto, Luigi Pirandello ou Toscanini estiveram com ele e ao lado do seu Ministro da Educação, o filósofo hegeliano do regime, Giovanni Gentile. A posição do rei Vittorio Emanuele III também é clara – recusa-se a proclamar, não aceitando a posição (unânime) do Conselho de Ministros, o estado de sítio, quando já eram claras as movimentações no terreno para a “Marcha sobre Roma”. O livro conta ainda o primeiro ano de governo e as contradições internas do aparelho fascista, designadamente as tensões internas entre o próprio Mussolini e a máquina “squadrista” e seus chefes.

3.

O segundo volume, M – O Homem da Providência, que vai de 1925 a 1932, conta, em 647 páginas, a consolidação do regime, a evolução para a ditadura (com pretensões totalitárias: construir o italiano fascista) e sobretudo o poder unipessoal de Mussolini, com a subordinação total do partido ao Estado fascista e ao Duce. O livro relata não só a anulação da oposição, com a prisão dos seus dirigentes e a redução do Parlamento a uma instituição exclusivamente fascista, mas também as lutas internas no poder, designadamente no Partido Nacional Fascista, a ascensão e queda dos principais dirigentes e a progressiva solidão de Benito Mussolini. Muitas páginas são também dedicadas à presença de Itália no Norte de África, às campanhas na Líbia.

4.

O terceiro volume, M – Os Últimos Dias da Europa, que vai de 1938 a 1940, no essencial conta o período que antecede imediatamente a segunda guerra mundial e o seu início, já com a invasão da França. Tudo começou com a Anschluss, a anexação da Áustria, o encenado (por Hitler, com a ajuda de Mussolini, o aparente e enganado mediador) encontro de Munique e a invasão da Checoslováquia, a pretexto da questão dos Sudetas, o Pacto Ribbentrop-Molotov, a invasão da Polónia e, finalmente, a invasão da frente ocidental, que terminaria com a ocupação da França. Na verdade, o essencial do volume é dedicado às relações entre Mussolini e Hitler, com especial destaque para o papel desempenhado pelo “Genro de Regime” ou “Genríssimo”,  conde Galeazzo Ciano, Ministro dos Negócios Estrangeiros, casado com a filha preferida de Mussolini, Edda Mussolini, a “Filha do Regime”. Pelo meio, fala-se da progressão da política anti-semita (para agradar aos alemães) até à lei radical contra os judeus, da ocupação da Albânia, da Itália como potência imperial, de Clara Petacci, a sua jovem e eterna amante (sobretudo desde 1936, com 24 anos, mas talvez já desde 1932 ou 1933), das relações fracassadas entre Edda e Galeazzo, só mantidas por Edda ser o “seguro vitalício” (2022: 245) do marido. Mussolini e a Itália saem da narrativa muito mal, mostrando o autor a pouca fiabilidade das posições de Mussolini perante um Hitler que, apesar de ter sido assinado um “Tratado de Aço” entre os dois países, só informava aquele depois das decisões de guerra tomadas e postas em andamento no terreno. Mostra também a absoluta impreparação de Itália para a guerra em termos de meios bélicos ao dispor das suas forças armadas e sobretudo o oportunismo de um Mussolini que só declarou guerra à França e ao Reino Unido depois de estar convencido de que a guerra já estaria praticamente ganha pela Alemanha. Personagem sempre presente na narrativa, até pelas funções que desempenhava, o Ministro Ciano, pretendente à sucessão do sogro, seu despudorado e ridículo, mas também algo hipócrita, imitador, é tratado causticamente pelo autor. Vejamos somente uma curta passagem muito ilustrativa, a propósito de um seu discurso no Parlamento (Montecitorio): “Galeazzo Ciano può, ora, tenere il proprio ‘grandioso discorso’ a celebrazione delle imprese del suocero dopo aver ricevuto la parola da sua padre (Presidente da Câmara dos Deputados) e sotto lo sguardo vigile di sua moglie”, aqui também retratada como  “Mussolini con l’utero” (2022: 198). Em suma, um “filho de família”. Galeazzo Ciano, de qualquer modo, foi uma personagem importante não só no xadrez da política internacional levada a cabo pela Itália, mas também na própria política italiana, a ponto de, em finais de 1939, ter sido constituído um governo que viria a ser apelidado, pela influência que ele teve na sua formação e na liderança do Partido Nacional Fascista,  “Gabinete Ciano”. O desembarque das forças aliadas na Sicília viriam, como se sabe, iniciar o rápido processo de desagregação do poder fascista e levar, já em 1943, à constituição, sob protecção alemã, da famosa Repubblica di Salò, na região centro-norte de Itália, com uma constituição feita à medida de Mussolini. Veja-se, por exemplo, o artigo 11 (Capo II: La struttura dello Stato): “Sono organi supremi della Nazione: il Popolo e il Duce della Repubblica”. Populismo puro – o povo e o seu líder.

5.

Este livro é um “romance” histórico, mas pouco romanceado (sobretudo o terceiro volume), baseado em factos, personagens e documentos reais: “non è il romanzo qui a inseguire la storia, ma la storia a farsi romanzo”, diz o autor logo na primeira página do terceiro volume. Dá a sensação que o autor lhe chamou romance para poder descrever minuciosamente com maior liberdade o real ambiente em que nasceu, cresceu, se consolidou e caminhou para o fim o regime fascista, de 1919 a 1924, de 1925 a 1932 e de 1938 a 1940, sem ter de se preocupar com as regras rígidas da historiografia, mas tão-só com a correcção dos dados utilizados. Pôde, deste modo, traçar, de forma literariamente muito sofisticada e até exuberante, do primeiro ao último volume, o ambiente que se viveu naqueles tempos do primeiro pós-guerra, tempo do pós-revolução russa até à segunda guerra mundial. Mas é no primeiro volume que melhor podemos “visualizar” o ambiente de violência exasperada que foi sendo criado pela tensão entre o extremismo de esquerda e o extremismo “squadrista”, perante a passividade e até a cumplicidade objectiva dos governos liberais e do próprio rei. O segundo volume é dedicado à progressiva fascistização do país, à supressão das liberdades, a uma violência física, real, mas já não tão intensa, até para que o regime se pudesse credibilizar, à produção de legislação que foi introduzindo a lenta sobreposição de uma lógica de polícia às movimentações aleatórias e difusas do “squadrismo”, à sua absorção nas estruturas do Estado, à divinização do todo-poderoso Duce e à criação de um tribunal especial para julgar os crimes de natureza política e de desvio ideológico. António Gramsci viria a ser julgado por este Tribunal especial, onde o procurador Michele Isgrò declarou que “devemos impedir este cérebro de funcionar durante vinte anos”. Morreu na prisão, mas o seu cérebro funcionou de forma tão brilhante (o que se vê, por exemplo, nos famosos “Quaderni del Carcere”, parte importante da sua vasta obra) que ainda hoje é um dos mais conhecidos e seguidos intelectuais italianos de sempre, muito em particular na América Latina (sobre Gramsci, veja o meu O Princípio da Hegemonia em Gramsci, Lisboa, Vega, 1986).

6.

Assistimos também às guerras fratricidas entre os dirigentes das “camicie nere”, que acabam por liquidar grande parte deles, à vistosa excepção de Roberto Farinacci (licenciado em direito com uma tese plagiada), “squadrista” temido por Mussolini e líder da facção dos intransigentes e duríssimos do fascismo, que consegue resistir a todas as investidas para o liquidar. Neste volume, o Duce acaba numa grande solidão, sobretudo após a morte do irmão e confidente Arnaldo Mussolini e a desgraça de inúmeros e fiéis seus colaboradores, vítimas directas das guerras intestinas e dos interesses instalados e resultantes da governação fascista. Até a relação com a sua sofisticada amante e inspiradora Margherita Sarfatti – objecto de atenção do autor também no terceiro volume, sendo ela judia, e a propósito das leis contra os judeus – acaba, sendo muito expressiva a cena em que a senhora aguarda na antecâmara de Palazzo Venezia, em Roma, duas horas para ser recebida por Mussolini, que está só no seu imenso gabinete e se recusa a recebê-la, sem, todavia, sequer lho dizer pessoalmente ou, pelo menos, por intermédio do seu fiel secretário Quinto Navarra.

7.

A lógica do processo de ascensão e queda dos protagonistas do regime e a posição do Duce neste processo é de manual: Mussolini distancia-se, deixa friamente que a relação de forças se consume e saia vencedor o que maior capacidade de luta revelar, independentemente das lealdades pessoais. De resto, o poder está cada vez mais no Estado e nele próprio e cada vez menos no Partido Nacional Fascista e no seu “Gran Consiglio del Fascismo”.

8.

O que o terceiro volume mostra é o começo do fim de Mussolini, ao entrar na guerra ao lado da Alemanha e sobretudo o modo como entrou, tendo em consideração a fraqueza militar em que se encontrava o regime, amplamente demonstrada no volume, e a sua ondulação oportunista nas relações internacionais e também na relação com o próprio aliado alemão, que, de resto, progressivamente foi deixando de o levar a sério, mantendo as relações somente por oportunidade política e para que a Alemanha pudesse exibir um aliado político importante. Este volume termina em 1940, não contando, portanto a evolução da posição da Itália durante a guerra. O que, entretanto, sabemos, é que, em 1943, Mussolini funda, no Centro-Norte, a Repubblica Sociale Italiana, a Repubblica di Salò, na zona ainda controlada pelos alemães. Sabemos também que, em Janeiro de 1944, Galeazzo Ciano é fuzilado em Verona, em território da RSI, para onde os alemães o tinham devolvido (da Alemanha, onde se encontrava) e que, em Abril de 1945, o corpo de Mussolini e o de Clara Petacci são exibidos, já sem vida, no Piazzale Loreto, em Milão. Tinham sido fuzilados no dia anterior, 28 de Abril, em Giulino di Mezzegra.

9.

Três longos volumes muito bem escritos, num italiano sofisticado e muito rico, por um autor da área da literatura, já com inúmeros prémios literários conquistados por outras obras.

10.

Tendo eu estudado, por motivos profissionais, designadamente quando estava a investigar, no Instituto Gramsci, em Roma, a obra de Antonio Gramsci, líder do PCI e vítima do fascismo (morre na cadeia em 1937), este período da história italiana, esta obra veio confirmar ao detalhe aquilo que eu julgava já saber – a violência difusa e progressiva como centro da acção política e assumida como princípio purificador, tal como a guerra (de resto, cantada pelos futuristas), onde a relação amigo-inimigo substitui a relação entre adversários. A Itália dos “squadristi” foi isso mesmo e levaria à conquista do poder. O que se passou em Itália não passaria despercebido a Hitler, que recolheu com sucesso a experiência de Itália para avançar num processo que todos bem conhecemos. Até ao desastre final, com a Europa completamente destruída e com o fim físico dos dois ditadores, um assassinado e o outro suicidado. O segundo volume termina precisamente em 1932, o ano em que Hitler obtém a maioria dos sufrágios em eleições legislativas e se prepara para dar o assalto decisivo ao poder. Também aqui o culto da violência, o carisma e o organicismo do regime são os elementos centrais que determinam a acção política.  No terceiro volume, já vamos encontrar a Alemanha em fase de preparação para a guerra com uma Itália impreparada para fazer aquilo que foi assumindo com Hitler ao longo dos anos de convergência política dos regimes, sendo certo que este acabaria, no plano do exercício do poder absoluto e violento, por superar o seu mestre, Benito Mussolini, no qual, de resto, acabou por não reconhecer fiabilidade, tudo terminando, afinal, com a Itália a ser um território tutelado, ocupado e defendido pelo exército alemão. Até à derrota final. #Jas@07-2023.M_MussolinijpgRec

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