THE SHOW MUST GO ON
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 05-2023
NUNCA CONSIDEREI que as chamadas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) dessem um contributo positivo para o bom funcionamento da democracia representativa, hoje a conhecer grandes dificuldades no seu correcto funcionamento, até pela profunda mudança que se tem vindo a verificar nos sistemas sociais. Não é por acaso que há muito se fala de crise de representação, de democracia pós-representativa ou de democracia deliberativa. As CPI têm degradado a imagem do Parlamento e reforçado a crise de representação. É o que se está passar também com esta. Ainda insatisfeitos com o espectáculo a que temos vindo a assistir, já querem fazer outra, desta vez sobre os serviços de informações.
1.
Por um lado, elas tendem sempre a funcionar na fronteira da separação de poderes, entrando prepotentemente na esfera reservada dos dois outros poderes: o poder executivo e o poder judicial; por outro lado, tendem a deslizar frequentemente para um público “lavar de roupa suja”, dando abundante alimento ao tabloidismo informativo e contribuindo, deste modo, para que a política se transforme, ela própria, em política tablóide. As CPI são um excelente ambiente de culto destas tendências, até porque permitem à oposição não só submeter o executivo a julgamentos de praça pública, fundados na mesma lógica tablóide dos pelourinhos electrónicos que abundam por aí, mas também a ocupar ela própria o topo da agenda mediática e da agenda pública, dada a grande exposição a que normalmente são sujeitas. Daí a sua atractividade. Poder-se-ia até dizer que o excesso de CPI, mas também os seus excessos, muitas vezes fundados na própria impreparação dos deputados e na ânsia de protagonismo público, para não dizer numa inconfessada vocação inquisitorial, colaboram intensamente para mudar a própria natureza do regime, ao invadirem grosseiramente o campo dos outros poderes, contribuindo, deste modo, para uma parlamentarização excessiva do regime, alimentada pela informação tablóide e por uma política tablóide em crescimento acelerado. Perante o novo e imenso espaço público, permanentemente on line, onde pontificam media e redes sociais, o clássico mecanismo de legitimação dos mandatos, o voto, está a ceder perante um novo tipo de legitimidade, a legitimidade flutuante, que é de outra natureza, tem fundamento e temporalidade próprios e corresponde às flutuações da opinião pública, onde, afinal, os media e as redes sociais são determinantes. Conhecendo-se a orientação que os media estão a seguir e a tendência dominante das redes sociais é fácil reconhecer que estamos perante um destino pouco democrático da própria democracia.
2.
É a isto que estamos a assistir nesta CPI sobre a TAP, que, como era expectável, já está a extravasar o próprio objecto para que, inapropriadamente, foi criada: investigar a atribuição de uma indemnização de 500.000 euros a uma gestora da companhia aérea nacional. Quanto a mim, e revertida a indemnização atribuída com as consequências que, depois, se verificaram ao nível da administração da empresa, essa matéria perdeu, de vez, a pouca densidade que já possuía para justificar uma CPI. Por isso, nunca entendi a razão de o PS ter aceitado a sua constituição. E ainda entenderei menos a constituição de uma nova CPI sobre os serviços secretos a propósito de um assunto cujo conteúdo é absolutamente irrelevante, apenas servindo para, mais uma vez, desqualificar os próprios serviços de informações. É o triunfo dos “aprendizes de feiticeiro”!
3.
E, todavia, inesperadamente, esta CPI ganhou uma outra dimensão, essa sim, politicamente mais relevante. Ou seja, transformou-se no lugar de combate entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, por interposta pessoa: a do Ministro que esteve na origem do dissídio entre ambos, motivado, como se sabe, por uma questão de reserva de competências. O motivo? Uma confusão interna entre um Adjunto e outros membros do Gabinete que acabaria por gerar uma tal tempestade política que vários partidos até já estão a exigir, depois da presença do Ministro das Infraestruturas, da Chefe de Gabinete e do Adjunto, a presença do Primeiro-Ministro, dando, assim, sequência política à pública exigência do PR de demissão do referido Ministro. O PR deu o mote, os “aprendizes de feiticeiro” agitam fortemente o caldeirão até que a magia se cumpra.
4.
Quem assistiu às inquirições que já ocorreram, o que constatou foi a devassa total, ao minuto e ao pormenor mais insignificante, do executivo, através do gabinete ministerial onde se verificou o incidente. O incidente – um desentendimento gerido sem ponta de bom senso quer pelo Ministro quer pelos membros do Gabinete – não tem dimensão de assunto de Estado, ainda que tenha sido insistentemente chamada a debate a intervenção dos serviços secretos no processo, matéria agora reforçada pela eventualidade de uma nova CPI, para lhe conferir a necessária gravidade institucional e, deste modo, justificar a intervenção do Presidente e do Parlamento. Na verdade, o assunto não passa de matéria sem qualquer relevo ou significado, não se apercebendo os senhores deputados de que toda esta dramaturgia em crescendo acabará por produzir um efeito devastador sobre a imagem da política e das instituições, do governo e do próprio Parlamento. A gestão da TAP, a sua privatização, os recursos nela investidos pelo accionista Estado, a questão do aeroporto, nada disto parece ter relevância ao lado do mísero, ridículo e rocambolesco incidente. Poder-se-ia mesmo dizer, acerca do que está a acontecer, que a emenda está a ser pior, muito pior, do que o soneto. Mas a verdade é que nada mais interessa à CPI e ao establishment mediático do que o espectáculo e a dramatização da situação até ao seu limite extremo. The show must go on, numa convergência total que parece ter como único fim, para além da política espectáculo, um valor em si, a criação de um ambiente que leve, mais cedo ou mais tarde, à dissolução do Parlamento e à convocação de eleições antecipadas. É esta a suposta gota de água que fez transbordar o copo, a um ano e dois meses da tomada de posse deste governo e a um ano e quatro meses da conquista da maioria absoluta pelo PS. Sim, mas o tabloidismo mediático é disto que gosta e é disto que vive, porque é isto que lhe dá audiências e poder. Na verdade, se a legitimidade flutuante é a que mais se adequa funcionalmente ao poder dos media, ela também interessa conjunturalmente aos que anseiam chegar rapidamente ao poder. Verdadeiramente é disto que se trata. Nada mais, por mais expressivos e compungentes que se mostrem, em prime time e fora dele, os seráficos rostos dos habituais performers televisivos, a começar pelos próprios pivots, a quem se exigiria um pouco mais de contenção e de respeito pela vontade política dos eleitores. Uma democracia cada vez mais tablóide – na informação e na política – é o que infelizmente se está a impor, sem que haja o mínimo sobressalto de quem teria o dever de a impedir.
5.
Esta CPI está pois, por um lado, a interpretar, em directo, um papel que o establishment mediático depois converte em coerente e apimentada dramaturgia para consumo do público e, por outro lado, a desenvolver, pelos seus próprios meios, o discurso do Presidente acerca da substituição de um Ministro e da reposição da “dignidade das instituições”, mediante eleições antecipadas. Nunca o livrinho do Guy Debord esteve tão actual como agora: “Dans le monde réellement renversé, le vrai est un moment du faux” (La Société du Spectacle, Paris, Gallimard, 1992, pág. 19). O que sobra, realmente? Um gigantesco aviltamento da política, das instituições e da própria democracia, transformada em “Democracia Tablóide”, onde pontifica a categoria do negativo e onde a política se reduz cada vez mais a espectáculo. A sensação que fica é que nas inquirições os deputados já nem sabem bem a razão por que estão ali a fazer perguntas. Ou talvez saibam: o espectáculo vale por si.
6.
É claro que, a montante, há uma causa à qual pode ser imputada uma parte do que está a acontecer. E essa causa reside na perda de gravitas dos partidos políticos, de todos eles, na insuficiência do processo de selecção do seu pessoal político e, em geral, naquilo em que eles próprios se tornaram. Sim, os partidos políticos estão transformados em meras máquinas de conquista e apropriação do aparelho de Estado e em espaços de convergência de múltiplos interesses puramente pessoais e alheios ao interesse público, tendo perdido a característica de organizações que tinham como finalidade a promoção da política como esfera de culto activo da ética pública e do interesse geral, de uma visão estruturada sobre a sociedade e sobre as funções e a natureza do Estado, de uma ideia de progresso social e de futuro e, finalmente, da vontade de tornar hegemónicas cultural e politicamente as suas ideias acerca do bem comum. Ou seja, desapareceu a ideia de partido como escola de formação política e doutrinária para passar a ser uma agência de empregos, um mero instrumento de promoção pessoal sobretudo daqueles que nunca conheceram grande autonomia e sucesso na sua vida profissional privada. Muitos dos agentes políticos que hoje pululam nos partidos, sobretudo nos partidos da alternância, nunca exerceram uma profissão na sociedade civil, saltando directamente das juventudes partidárias ou da máquina partidária para as instâncias do poder, seja ele o poder autárquico, a administração pública ou o próprio Parlamento.
7.
A isto acresce, como já referi, a evolução do establishment mediático no sentido do tabloidismo mais radical e a enorme contaminação que existe entre ele e a política. Duas faces de uma mesma moeda a contribuírem, elas sim, para a degradação da democracia representativa e para o crescimento das formações políticas que não gostam mesmo dela. Pois com esta CPI Portugal está a dar mais um passo em frente na tabloidização integral da política e da democracia, transformando-as em apetitoso pasto para as forças mais radicais, sobretudo a extrema-direita. Faz, pois, falta uma séria reflexão sobre a política e a democracia pelas forças políticas mais responsáveis se quiserem evitar o pior e a sua própria sobrevivência política enquanto forças que pretendam continuar a assumir o governo deste país. Em vez disso, infelizmente, o que se vê é um deslize permanente na rampa inclinada da política tablóide e da degradação institucional. E, permita-se-me a ousadia, não me parece que o PR esteja fora desta rampa. Bem pelo contrário, o que nem é de estranhar visto o percurso de vida da personagem e a sua notória dependência das câmaras de televisão. Acresce ainda a recente e inopinada injunção de um antigo PR e PM no processo com uma linguagem absolutamente desbragada, ofensiva, inapropriada e inaceitável para quem desempenhou durante vinte anos tão altas funções. O que parece, de facto, é que já nada limita o clima de guerra aberta que se instalou na democracia portuguesa, a ponto de já nem ser sequer o partido que sustenta o governo a estar em causa, mas sim a decência política, o ódio e a insensibilidade relativamente à preservação do próprio regime político em que vivemos. Parece valer tudo e até mesmo “tirar olhos”. Isto diz muito da nossa classe política e de todo o establishment mediático. JAS@05-2023
“A CULPA É DO SISTEMA”
Por João de Almeida Santos

“O Sistema”. JAS. 05-2023
ESTA FRASE, “A culpa é do sistema”, era normalmente atribuída à esquerda radical, onde por “sistema” se entendia o capitalismo ou o imperialismo. Mas ela também é aplicável ao populismo, onde por “sistema” se pode entender um sistema político centrado na ideia de representação e governado pelas elites. Mas, em geral, ela também serve para atribuir à governação as culpas de todos os males da sociedade, a começar pela pobreza. A culpa, nestes casos, surge como resultado da acção da comunidade politicamente organizada e nunca referida ao indivíduo singular. Este surge sempre como vítima, nunca partilhando a responsabilidade pelo que acontece, numa autêntica inversão da famosa frase atribuída a John Kennedy: não perguntes sobre o que a América pode fazer por ti, mas sobre o que tu podes fazer pela América. Emerge sempre naquela frase o domínio total da comunidade sobre o cidadão singular, constituindo-se esta, por isso, como titular da culpa.
1.
O assunto merece uma reflexão profunda porque a tendência a elevar a fórmula a centro dos discursos políticos é também própria dos partidos de oposição (supostamente ao lado das vítimas), que atribuem a culpa de tudo o que de mau acontece nas sociedades a quem está no poder, gerando, com isso, uma correspondente predisposição nos que sofrem (no desemprego, na habitação, na saúde, na educação, etc., etc.): nunca atribuírem uma parte da culpa a si próprios. É o triunfo da tríade “liberdades, direitos e garantias” (da parte do sistema) e o obscurecimento da díade “responsabilidade e deveres” (da parte dos indivíduos singulares).
2.
A primeira posição tende a ser promovida, directa ou indirectamente, por aqueles que encontram no Estado a solução para todos os problemas; a segunda tende a ser promovida pelos que se filiam no pensamento liberal mais radical, em particular os que reconhecem que o Estado apenas deve garantir aquilo que comummente se designa por funções de soberania, excluindo outras funções, hoje sobretudo concentradas no chamado Estado Social. Uns defendem a justiça distributiva, outros defendem a justiça comutativa, ou seja, a igualdade de condições no fim ou a igualdade de condições apenas no princípio. Neste último caso, aplicar-se-ia o prosaico princípio de que “quem tem unhas toca viola”, valorizando, assim, o esforço pessoal, a inteligência e o saber no próprio percurso de vida, complemento indispensável das condições igualitárias que lhe foram oferecidas no início do seu ciclo de vida.
3.
Estas diferenças devem estar sempre presentes no espírito de quem faz política a sério porque elas marcam substantivamente opções de política muito diferentes. São ambas respeitáveis, mas são diferentes e têm consequências diferentes. E hoje, em Portugal, elas ainda fazem mais sentido se tivermos em conta a situação de crise económica e social que vivemos, favorecendo naturalmente a crítica radical ao sistema e à correspondente culpa, imputável ao governo do momento ou ao próprio sistema político. E o governo do momento, se tiver como matriz uma visão mais comunitária do que societária da vida social, tenderá a responder neste mesmo registo e a reforçar o Estado Social até níveis que aqui já apelidei de Estado-Caritas (hoje muito bem representado pelo actual Chefe de Estado). Mas a crítica será promovida não só pelos populistas, imputando a culpa às elites que nos governam e ao sistema que as alimenta, mas também pelos liberais, que consideram que há Estado a mais e que uma parte substancial da responsabilidade deve recair sobre os indivíduos singulares. Outros há (e não são assim tão poucos, dirá seguramente Luís Montenegro) que, sem se definirem muito bem, sublinham a crise na esperança de que o poder lhes caia rapidamente nas mãos, sem exigência de grandes definições. Quando à esquerda radical, também essa continuará a dizer que a culpa é mesmo do sistema.
4.
No meio de tudo isto, e por todas estas razões, o discurso absolutamente dominante em Portugal tem sido o que atribui a culpa ao sistema, tendendo a ilibar o indivíduo singular da culpa e silenciando o discurso da responsabilidade e do dever. É hoje absolutamente dominante no discurso político português a tríade das liberdades, direitos e garantias e o princípio da “caridade” institucional, que se inscreve numa visão estatizante da vida colectiva. Um discurso que, naturalmente, se acentua nos períodos de crise.
5.
Lamentavelmente, eu creio que esta é mesmo a situação que estamos a viver, com o cidadão a manter-se confortavelmente na própria comodidade ou na indiferença, só se levantando para exigir ao “sistema” a resolução dos seus problemas, mesmo quando eles são imputáveis exclusivamente a si próprio. É por isso que se tem vindo a manter uma grande estabilidade nas grandes opções políticas da cidadania, abrindo-se somente brechas lá onde o Estado se revela incapaz de dar solução aos problemas que o próprio establishment político e mediático (com o seu enorme poder de agendamento público) chama ao topo da agenda. O que quero dizer é que estamos perante uma enorme falta de clareza nas opções de fundo dos partidos, sobretudo naqueles que têm vindo a governar alternadamente o país. Clareza nas alternativas relativamente às questões de fundo. Ou seja, falta clarificação sobre a própria identidade politica, sobretudo ao nível dos partidos da alternância, para não dizer que a tendência de fundo tem sido a de assumirem, ambos, espontaneamente, a vocação totalizante do Estado, diluindo as próprias diferenças. Por exemplo, li hoje um artigo de opinião num jornal onde a articulista instava veementemente o PSD a assumir-se como social-democrata e de esquerda, seguindo a orientação referida por Francisco Pinto Balsemão e atribuída a Francisco Sá Carneiro. Tenho as maiores dúvidas de que o PSD seja social-democrata ou que deva sê-lo, uma vez que social-democrata é o PS. Verificar-se-ia assim uma autêntica sobreposição política e ideológica. O PSD de Sá Carneiro era PPD, partido popular democrático, interclassista, e isso diferenciava-o do PS, ideologicamente mais alinhado com as classes subalternas. Na verdade, no meu entendimento, e em termos doutrinários, o PSD sempre foi um partido de tendência liberal-democrática. Mas o próprio PS nunca clarificou muito bem uma questão de extrema importância: sendo um partido socialista ou social-democrata um dia terá de esclarecer a sua relação com o pensamento liberal e com o iluminismo, a filosofia que lhe corresponde. Porque é nesta clarificação que a questão com que iniciei este artigo pode ser clarificada: o papel do indivíduo singular na sociedade, para que não continue refém dessa visão dominantemente comunitária, e de inspiração marxista. O SPD fê-lo em 1959, em Bad Godesberg. O Labour fê-lo ao longo de cerca de dez anos (entre 1985, com Neil Kinnock, John Smith e Tony Blair, e 1995/96). Só esta clarificação poderá também clarificar a sua ideia de Estado, das suas funções e o âmbito que elas abrangem. Por exemplo, para referir um caso muito actual – proposta de lei do governo -, deve o Estado legislar ao pormenor sobre a venda e o consumo de tabaco na via pública, promovendo uma lógica de progressiva higienização da vida colectiva? Ou a injunção sobre o direito de propriedade em matéria de habitação em nome de um mais que vago direito à habitação, onde mais parece que “se não tenho casa própria, a culpa”, lá está, “é do sistema”. O direito de habitação limita-se a ser direito a comprar casa ou a arrendá-la. A função do Estado, neste caso, deve ser a de promover, sem ferir os direitos individuais (como, por exemplo, o direito de propriedade), o mercado de arrendamento (por exemplo, através de uma drástica redução fiscal e burocrática) e não ser ele próprio o arrendatário ou até, em última instância, o garante da posse de habitação. A habitação é um bem essencial disponível no mercado como tantos outros, incluídos os bens alimentares.
6.
É claro que o sistema tem muitas culpas, embora tenha possibilitado avanços civilizacionais e materiais enormes. Sim, é verdade. Mas o que não se pode dizer sempre é que a culpa é do sistema e o sistema, assumindo a culpa, começar a fazer injunções na sociedade civil que não lhe competem. Ou, mais ainda, indo aos bolsos dos contribuintes (3 milhões em 5,4 milhões de agregados) que alimentam o sistema para se redimir da culpa de, por dever inscrito na sua matriz, dar tudo à chamada vítima do sistema. Sabemos bem a que é que esta filosofia levou.
7.
E se isto me incomoda na área política em que me revejo (mas talvez pertença à sua ala direita), também me incomoda ouvir dizer ao actual líder do PSD que este partido não tem problemas existenciais, apesar de ter um bem grande mesmo ali ao lado, provocado por um antigo militante do seu próprio partido. Na verdade, o grande problema existencial do PSD é precisamente a sua permanente indefinição de identidade. Melhor, a manutenção de uma equívoca identidade: pretender representar a direita, mas, ao mesmo tempo, declarar-se de esquerda ou social-democrata.
Não, a culpa não é só do sistema. Também é dos cidadãos, mas sobretudo dos que, abrigados no sistema, se sentem demasiado acarinhados por ele para mudar, nem que seja apenas numa lógica simplesmente transformista. O que seria muito pouco, mas, pelo menos, melhor do que a importação de uma lógica de higienização integral da vida colectiva, desde a linguagem até à saúde. JAS@05-2023

“O Sistema”. Detalhe.
O PRESIDENTE E A FUNÇÃO PRESIDENCIAL
Um Erro de Paralaxe?
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 05-2023
ORA AQUI ESTÁ. Talvez se trate mesmo de um erro de paralaxe. O Presidente-Comentador, que tudo comenta, chama, de forma nem tanto subtil, publicamente irresponsável ao Primeiro-Ministro e dá ele próprio, sem se dar conta, exemplo do que é ser pública e politicamente irresponsável. Não se trata de um juízo moral, entenda-se, mas de um juízo relativo ao comportamento político e institucional. De tanto falar, o Presidente parece atropelar-se com as suas próprias palavras. Poder-nos-íamos perguntar pela razão que o levou a fazer esta declaração quando já tinha tornado pública, num curioso e intempestivo comunicado oficial, a sua discordância da decisão do Primeiro-Ministro. A primeira razão que me vem à mente é esta: não consegue ficar em silêncio em nenhuma circunstância, tendo de se manter permanentemente ligado à máquina mediática; a segunda razão foi a de mostrar que não “enfiou a viola no saco”, depois de o PM não ter correspondido à sua, já publicamente anunciada e enunciada, vontade; em terceiro lugar, foi a de dar seguimento institucional à vontade expressa pelo establishment mediático de querer exonerar o Ministro João Galamba, confirmando, assim, a sua remota e carinhosa filiação neste universo. Nada mais vejo que possa justificar este atropelo grosseiro à própria constituição, às relações institucionais entre poderes soberanos e à própria lógica da separação de poderes, para não dizer à ética institucional ou constitucional. Afinal, trata-se de um poder moderador, não de uma instância avaliadora da acção política governativa. A avaliação compete, isso sim, ao Parlamento, à oposição, aos partidos políticos e à cidadania. Pelo contrário, uma instância moderadora ( “último fusível de segurança”, como disse o próprio PR) não pode tornar-se parte porque, desse modo, perde a capacidade de moderar. Não por acaso, em relação à acção política da Presidência, se tem usado regularmente, e bem, a expressão “magistratura de influência”, baseada na “auctoritas”, na “virtus”, não na coacção simbólica, na reprimenda pública e na ameaça. De resto, a intervenção política do Presidente está bem expressa na Constituição: dissolução do Parlamento, promulgação dos diplomas legais, mensagens ao Parlamento, pronúncia sobre emergências graves (além dos actos formais de nomeação, demissão e exoneração do PM e dos membros do governo, estes sob proposta do PM).
1.
O direito de propor a exoneração de um membro do governo não pertence constitucionalmente ao PR e, assim sendo, este deveria, mesmo discordando, ter respeitado a decisão de quem tem esse poder, o PM, abstendo-se de a qualificar publicamente e deixando a tarefa crítica para quem tem essa competência política: a oposição partidária e parlamentar e a própria cidadania.
As palavras publicamente usadas para comentar a decisão são absolutamente inaceitáveis. E, pior, ao condenar publicamente, por duas vezes e solenemente, a decisão do PM, o Presidente está a substituir-se ao Parlamento e à oposição política, entrando até, e mais uma vez, no campo das ameaças, agora mais claramente expressas. O Presidente tornou-se, assim, o líder da oposição e a projecção institucional do establishment mediático. Assim sendo, não resta à maioria e ao PS outro caminho que não seja o de responder politicamente a esta novíssima figura institucional do Presidente. Pelo contrário, o PM e o governo devem, ao contrário do Presidente, manter a compostura institucional e o respeito pela função presidencial, ao mesmo tempo que devem redobrar esforços para governar o melhor possível. O problema, dirão alguns, é que, vendo realisticamente as coisas, Marcelo Rebelo de Sousa tem todo o establishment mediático e (quase) toda a oposição com ele e, por isso, tornou-se um problema muito sério para o governo e para a maioria que o sustenta. Sem dúvida. Mas a verdade é que, com esta intervenção, o PR demonstrou ter uma visão enviesada da função presidencial e da separação dos poderes, pelo que, no mínimo, o PS deverá lutar pela reposição da função presidencial no devido lugar para que não acabe por acontecer uma autêntica subordinação do poder executivo à vontade e ao arbítrio do Presidente, subalternizando o poder executivo e subvertendo a própria constituição da República. De ministro em ministro, as remodelações governamentais passariam a ficar nas mãos do Presidente e, já agora, do establishment mediático. A correcção deste enviesamento constitucional da função deveria, por isso, constituir o primeiro passo para a necessária correcção de trajecto.
2.
Em boa verdade, este já é o segundo nível em que Marcelo Rebelo de Sousa contribui para a degradação da função presidencial. O primeiro consistiu na confusão da função presidencial com a de comentador permanente de tudo o que acontece no país (incluída a acção governativa), do mais irrelevante ao mais relevante, num activismo opinativo verdadeiramente alucinante; o segundo consistiu em transformar a função presidencial em oposição política declarada ao governo e à maioria parlamentar. O que, na realidade, parece é que o Presidente tem vindo a transpor para a função presidencial as suas idiossincrasias e até os seus humores pessoais, não se atendo às funções que a Constituição da República lhe confere.
3.
E qual é, então, a resposta política perante este aviltamento da função presidencial? Simples: combate político, pois do que se trata é de um adversário político confesso. Uma luta dura, mas que tem de ser travada, para que o gesto de António Costa tenha consequências políticas substantivas e a honorabilidade política do PS seja preservada. Se não for travada, o PS pagará caro, caríssimo, o preço deste embate. A democracia é amiga das diferenças políticas, do debate argumentativo e, naturalmente, do combate político, desde que tudo ocorra no respeito pelas regras, o que, notoriamente, neste caso, não aconteceu. Assim sendo, e porque o PR se colocou voluntária e publicamente nessa posição, o PS deve retirar daí as consequências e lutar politicamente para que se remeta rapidamente à sua condição, à sua função constitucional e política, deixando que o Parlamento, a oposição política partidária e a cidadania controlem, critiquem ou até apoiem, se for caso disso, a acção do governo. Se não for travado este combate será a democracia representativa a sair fragilizada de todo este processo. A verdade é que o governo e o parlamento não podem estar permanentemente reféns da vontade do Presidente sob o cutelo ameaçador da dissolução da AR.
4.
Sendo um acto eminentemente político e devendo assim ser considerado, mesmo assim, na Constituição só dois artigos poderiam conferir razoabilidade a esta intervenção política do PR . O primeiro é o art. 133, alínea d): “dirigir mensagens à Assembleia da República”; o outro é o art. 134, alínea e): “pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República”.
O primeiro não foi accionado e talvez fosse o único aceitável como modo de devolver à AR a função de controlo e de crítica dos actos do governo, protagonizando a iniciativa de uma pronúncia em sede parlamentar sobre o facto. O segundo não parece, de facto, configurar-se como “emergência grave para a vida da República”.
O que acabo de dizer torna ainda mais delicada a intervenção directa do PR junto dos portugueses (através das televisões), subalternizando o papel da Assembleia da República e da própria oposição. O que mais parece é que o PR quis cavalgar a onda mediática em curso, reforçando deste modo um consenso de tipo tablóide em torno da sua pessoa e dos seus actos, algo disruptivos. Ou seja, com esta intervenção o PR contribuiu ele próprio para descredibilizar as instituições (presidencial e governativa), cometendo ele próprio o pecado de que acusa outros, na verdade pecado bem pior do que o da situação rocambolesca da demissão de um simples adjunto de gabinete ministerial. E bem pior porque não só afecta gravemente as relações entre a Presidência e o governo, alterando o próprio modelo constitucional, mas também porque se configura como um grave atentado à imagem do PM e do governo praticado pelo mais alto magistrado da Nação. A hipocrisia política tem sido um dos factores que tem contribuído para a crise de representação que persiste e se avoluma, mas tanta e inorportuna exposição institucional do PR (e, por essa via, do governo) também pode produzir o mesmo resultado. Pois bem, aqui está o momento para dizer e fazer o que a política exige: clareza política nas regras e nas posições, frontalidade e determinação. Foi disto que gostei na decisão e na posição de António Costa: mostrar ao Presidente que as funções e competências de cada um devem ser respeitadas.
5.
O mal está feito e como o próprio Presidente disse, não se apagará “dizendo que já passou. Não passou. Nunca passa”. Reaparecerá “todos os dias, todos os meses, todos os anos. Porque tem de existir para que os Portugueses se não convençam de que ninguém responde por nada, nem manda em nada”. Trata-se, sim, de uma atitude que não tem retorno e o PS deve tirar daí todas as consequências políticas, não concentrando as atenções sobre o Ministro Galamba, como alguns ilustres socialistas já estão lamentavelmente a fazer, mas manifestando sem tibiezas o seu entendimento sobre as regras e sobre a atitude do presidente, demarcando-se desta interpretação absolutamente enviesada do que são os poderes presidenciais, ao mesmo tempo que deve declarar que não permitirá que sejam os media a governar o país, mas sim os que, mediante eleições livres, representam a cidadania. Na verdade, mais do que a questão do Ministro, o que verdadeiramente esteve em causa foi a usurpação de funções e competências. E, por isso, é a própria democracia representativa – regime onde as regras ocupam o centro do sistema – que exige clareza, mas também o necessário afastamento de qualquer tendência que promova o tabloidismo político, filho directo e dilecto do tabloidismo mediático, há muito em curso no nosso panorama editorial e cujo representante máximo parece ser cada vez mais o Presidente da República. Só assim o PS reconquistará a gravitas que tem vindo paulatinamente a perder e promoverá a sua posição virtuosa de força política ao mesmo tempo moderada, respeitadora das regras da democracia e progressista nos seus ideais. Neste caso, muito em particular, como em tantos outros, o PS não se deve remeter à condição de mero ventríloquo sem alma do governo ou de cúmplice do enviesamento da função presidencial. Bem pelo contrário, deve ter voz própria e lutar activamente pelo respeito das regras da democracia e pela dignidade da política.
POR QUE RAZÃO ANDRÉ VENTURA É TÃO DISRUPTIVO?
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 05-2023
QUANDO OUÇO André Ventura dizer aquelas coisas tão fora da caixa, tão politicamente incorrectas ou até mesmo tão pouco aceitáveis numa lógica de simples sensatez, interrogo-me sempre, para além das óbvias razões ideológicas de fundo, sobre o sentido oculto ou a estratégia oculta que existe no seu discurso. Ou seja, não tomo em consideração directamente o valor semântico do seu discurso, o seu conteúdo ideológico, mas sim os seus efeitos sobre a mecânica da opinião pública. Melhor ainda: não me preocupo em avaliar política, moral ou cognitivamente o seu discurso, por ser demasiado óbvia a sua matriz e a sua semântica, mas sim os seus efeitos sobre a dialéctica da atenção social e, em primeiro lugar, a que é polarizada pelo establishment mediático. É assim que me vêm sempre à mente quer a teoria do “agenda-setting” (McCombs e Shaw) quer a teoria do “agendamento” (Niklas Luhmann).
1.
O que dizem, no essencial, estas teorias? Dizem, acerca dos efeitos cognitivos e sociais dos mass media (que reportam o que o sujeito do discurso diz), que o essencial é a polarização da atenção social sobre o discurso e o agente do discurso. A entrada em agenda dos temas e dos agentes do discurso e o grau e a intensidade com que entram. Não é, pois, tanto o valor semântico do que é dito, mas o seu poder de se impor no processo de agendamento mediático, político e público (por esta ordem) e, consequentemente, na dinâmica da atenção social. É uma prática usada há muito. Berlusconi usou-a abundantemente, quando conquistou (em 1994) e exerceu o poder como primeiro-ministro. Donald Trump também. Comunicar coisas disruptivas, insensatas, brutais, insólitas, negativas, corresponde àquela que hoje é a prática dominante dos media na comunicação pública, ou seja, corresponde ao domínio da categoria do negativo, transversalmente, em todos os géneros discursivos (política, desporto, sociedade, etc., etc.), no discurso público. Alguém dizia que notícia, notícia, não é o cão morder o homem, mas o homem morder o cão. Ou, então: “good news, no news”. É algo muito experimentado na comunicação pública, ao lado das famosas campanhas negras. Esta técnica, que não é nova, tem dado bons resultados: o importante é que falem de ti, não importa se bem ou mal. A semântica terá sempre, nesta lógica, uma importância secundária. O importante é entrar na agenda pública, se possível chegar mesmo ao topo.
2.
Mesmo que, do ponto de vista ideológico, haja diferenças muito grandes e que cada partido ou movimento as afirme de forma mais ou menos intensa, como é natural, o essencial não está, todavia, na posição ideológica do discurso, mas sim na capacidade que ele tiver de atrair e polarizar a atenção social, independentemente do valor semântico da mensagem, dos seus conteúdos políticos, programáticos e ideológicos, que sempre implicam um nível mais exigente de descodificação. Só assim se compreende a razão de certos discursos ou de certas atitudes aparentemente sem sentido. Por exemplo, eu enquadro, entre tantas outras suas posições discursivas e disruptivas, as manifestações do CHEGA durante a visita oficial do Presidente da República Federativa do Brasil, Lula da Silva, a Portugal, nesta estratégia. É evidente que este partido passou das marcas minimamente aceitáveis (pelo menos, as da educação), mas a verdade é que o que subjaz a estas acções discursivas é o desejo absoluto, a qualquer custo, de polarizar a atenção social, ocupando as agendas mediática, política e pública e aumentando, deste modo, a notoriedade e, consequentemente, o impacto eleitoral. O disruptivo e o negativo como categorias comunicacionais supremas. Ou o triunfo esmagador do tabloidismo comunicacional e político, que se alimenta destas categorias. Quem vir os telejornais das oito, de todos os canais, facilmente compreenderá o que estou a dizer. M. McCombs e D. Shaw diziam, em 1972, em “A função de agenda-setting dos mass media”, acerca da agenda-setting, citando Bernard Cohen: “a imprensa ‘pode, na maior parte dos casos, não ser capaz de sugerir às pessoas o que pensar, mas ela tem um poder surpreendente de sugeriraos leitores sobre o que pensar’ ” (itálico meu). Conquistar a agenda mediática e a agenda pública significa ganhar notoriedade política. O importante não é, pois, o conteúdo específico da comunicação (a sua descodificação exige, como disse, sempre um esforço suplementar), mas sim o lugar que a acção discursiva virá a ocupar na hierarquia das notícias e do debate público. A posição que se alcançar neste plano condicionará o impacto político, o reconhecimento implícito do poder de agenda da força política promotora e, naturalmente, a sua posição na relação de forças política. Esta influência implicará seguramente significativos dividendos eleitorais.
3.
É esta a principal razão dos discursos políticos altamente disruptivos e fortemente negativos. Trata-se de uma opção consciente. E de qualquer modo as forças radicais ou populistas encaixam-se melhor do que as outras forças políticas naquela que é a estratégia discursiva dominante dos mass media, onde o tabloidismo já ocupou o centro da estratégia de conquista das audiências. Berlusconi conseguiu, na pré-campanha e na campanha de 1994, fazer de si próprio o centro de todo o debate nacional no processo que conduziu às eleições que ocorreram em Março: em nove meses criou um partido de raiz e venceu as eleições. Matteo Salvini, a partir do Ministério do Interior, pôs no centro do discurso a questão da imigração e os seus perigos para a sociedade italiana, dominando totalmente a agenda mediática, política e pública, com os efeitos que se conhece nas eleições europeias de 2019 (cerca de 34%). O discurso de Trump era, todo ele, permanentemente disruptivo, negativo e “unusual”. O mesmo vale para o BREXIT em relação à imigração.
4.
Estas forças, porque são radicais, populistas, anti-sistema e promotoras de um discurso negativo e de rejeição, adoptam este tipo de elocução com maior naturalidade, conseguindo, deste modo, aproveitar melhor a dinâmica do discurso mediático e, deste modo, polarizar a atenção social, aumentando a notoriedade, com significativos ganhos eleitorais. Sobretudo num momento em que as forças da alternância e do establishment estão em fase de progressivo desgaste, motivando distância e até irritação por parte dos cidadãos. Papel não despiciendo neste desgaste tem sido desempenhado, não só pela atmosfera de crise que se tem vivido, mas também pela onda de politicamente correcto que se tem abatido sobre o centro-direita e o centro-esquerda e que tem sido habilmente aproveitada pelo populismo de direita, atribuindo-a, em geral, e já com alguma razão, ao establishment. O que se tem vindo a traduzir na fragmentação dos sistemas de partidos e no fim do clássico bipolarismo partidário que se fora afirmando progressivamente desde o fim da segunda guerra mundial até aos anos noventa.
5.
Mas isto não parece estar a ser compreendido pelas forças políticas moderadas e mais identificadas com a matriz do sistema político e institucional, acabando por acarinhar a sua estratégia ao transformarem estes radicais em objecto central do seu discurso, contribuindo, deste modo, para os colocar permanentemente no centro da agenda pública. Que os media lhes dêem protagonismo, isso parece resultar naturalmente da sua própria estratégia discursiva tablóide, mas que os partidos da alternância e os da própria extrema-esquerda caiam com tanta facilidade na teia discursiva destas forças é que não se compreende lá muito bem. Os resultados estão à vista. JAS@05-2023
NOTA
JÁ TINHA ESCRITO O ARTIGO quando se deu, ontem, aquele extraordinário episódio que vai ficar nos anais da política em Portugal. Quando se assistia a uma intensa e total convergência de todo o establishment mediático e da própria Presidência da República que parecia conduzir inevitavelmente à demissão do Ministro das Infraestruturas, tendo tido, inclusivamente, como resultado uma carta de demissão do próprio, pudemos assistir, durante cerca de meia hora, em directo, a uma comunicação ao país do Primeiro-Ministro em que recusava liminarmente a demissão do Ministro, explicando minuciosamente a razão da sua decisão e atribuindo-a a um imperativo de consciência. Ainda estava o PM em directo e já a Presidência emitia uma comunicação em que dava conta da discordância do Presidente em relação à decisão do PM. Esta nota foi como que o selo institucional da Presidência aposto sobre a narrativa mediática que antecedera a corajosa decisão do PM. Também aqui já não interessam as razões concretas, mas sim o facto de o PM ter decidido rapidamente e em contraciclo, não só em relação ao establishment mediático, mas também àquele que cada vez mais parece ser o seu mais alto representante, o próprio Presidente. Uma dramaturgia onde o PM fez, inesperadamente, e de forma brilhante, um pirandelliano jogo das partes, elevando-se na cena como actor principal e ditando inesperadamente o próprio desfecho deste acto da complexa e delicada dramaturgia em curso. The show must go on…
“25 DE ABRIL DE 2023 NA GUARDA”
UMA NOTÍCIA E UMA REFLEXÃO
Por João de Almeida Santos

O Quadro oferecido à Freguesia da Guarda. JAS. 25-04-2023
I.
PASSEI o meu dia 25 de Abril na Cidade da Guarda, onde, durante a manhã, na Sala da Assembleia Municipal, recebi, das mãos do Senhor Presidente da Assembleia Municipal, Dr. José Relva, e na presença do Senhor Presidente da Câmara e do Senhor Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, a “Medalha de Honra do Município – Grau Ouro” e o “Título de Cidadão Honorário da Guarda”.

O momento em que recebi a Medalha de Ouro do Município e o Título de Cidadão Honorário da Guarda.
Uma enorme honra. Foi nesta Cidade que fiz os estudos secundários, no Liceu Nacional da Guarda, sendo natural de Famalicão da Serra, uma freguesia deste Concelho. E foi nesta Cidade que, durante oito anos (2005/2013), desempenhei as funções de Presidente da Assembleia Municipal da Guarda e, decorrendo da minha condição de deputado municipal, desempenhei, durante sete anos (2006/2013), as funções de Presidente eleito da Assembleia da Comunidade Intermunicipal “COMURBEIRAS”.
Depois, pelas 16:30, foi inaugurado, na Sala de Actos da Junta de Freguesia da Guarda, um quadro alusivo à Cidade da Guarda, de minha autoria, que tive o gosto de oferecer à Freguesia da Guarda no ano em que comemora o seu décimo aniversário. Ainda por cima ficará num edifício – a Sede da Junta – onde nos meus tempos de liceu me treinava diariamente, com o meu amigo Henrique Martins, para os campeonatos distritais de ping pong, em que ainda cheguei a participar. A esta minha oferta não é alheio o papel que desempenhei no processo de agregação das freguesias do Concelho da Guarda (de 55 passámos para 43 freguesias) e, por isso, na decisão de criar uma só freguesia urbana, enquanto Presidente da Comissão que levou por diante o processo, num clima de grande consenso.

Na Sala de Actos da Junta de Freguesia da Guarda, no momento da inauguração do Quadro
Um dia cheio, para mim, este, o do 49.º aniversário do 25 de Abril, esse momento mágico em que Portugal recuperou a sua liberdade, depois de 48 anos de ditadura.
Fico grato ao Município e à Freguesia da Guarda por terem tornado possível ficar deste modo simbólico associado àquela que é a minha Cidade de origem.
II.
O 25 de Abril de 1974 representou uma ruptura no nosso tempo histórico. Passámos de um regime autoritário e retrógrado, que subsistiu 48 anos (1926-1974), a uma democracia representativa aberta ao futuro e livre. Estávamos em guerra há cerca de treze anos, o interior do país desertificava-se, com a emigração clandestina (“a salto”), não havia liberdade nem desenvolvimento e sofríamos um pesado isolamento internacional. O 25 de Abril abriu o país ao futuro e ao mundo. Mas, passados 49 anos, as promessas estão a ser cumpridas? No essencial, sim. Basta comparar os dois mundos, mesmo subtraindo o natural desenvolvimento que o tempo, só por si, gera. A diferença vê-se bem se olharmos, no arco de umas dezenas de anos, para as aldeias do interior. E, todavia, a aceleração do tempo histórico está a exigir respostas que parece que o país não está a conhecer, mesmo subtraindo também os problemas internacionais que não pudemos controlar, a crise de 2008, a pandemia e, agora, esta guerra estúpida que o senhor Putin lançou contra um país independente, a Ucrânia. Sim, é necessário fazer algo para acompanharmos o ritmo acelerado da história, em todas as suas frentes, incluída a da política. E creio que o primeiro passo, talvez mesmo o mais importante, deva ser o de reconhecer humildemente o que somos e a nossa própria dimensão, sem nos enganarmos, como vai acontecendo, com um discurso sobranceiro, como se ocupássemos no mundo um lugar que de facto não ocupamos. Recomeçar a partir daquele que é o nosso lugar talvez seja verdadeiramente o que de fundamental há a fazer para conquistarmos um futuro mais sólido e avançado. A “consciência de si” é sempre o primeiro e devido passo que devemos dar para com segurança prosseguirmos na nossa própria construção. Se isto é válido para cada um de nós, também o é para os países. E, nele, verdadeiramente importante é a política, não aquela que se limita a conquistar o poder e a usá-lo para se perpetuar, mas aquela que se põe ao serviço da colectividade, com sensibilidade, determinação, saber e movida exclusivamente pela ética pública. E, por isso, a pergunta sobre as promessas cumpridas ou não cumpridas da nossa democracia, deverá ser dirigida aos seus intérpretes, estejam eles no governo ou na oposição. E, seguramente, este dia 25 de Abril será sempre o momento ideal não só para formular esta pergunta, mas também para lhe responder cabalmente sem preocupações de agradar, ou não, à opinião pública e ao eleitorado, tratando-se, como se trata, de uma questão crucial para o futuro do país. É que a “consciência de si” prescinde totalmente da retórica do convencimento e do consenso, porque se trata de um confronto directo com a verdade. E, sem verdade, a política não serve.

Detalhe do meu Quadro “Liberdade”.
CINQUENTA ANOS – E AGORA, PS?
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 04-2023
O PS FAZ HOJE CINQUENTA ANOS, se não considerarmos como início da sua vida a iniciativa política de Antero de Quental, de Azedo Gneco e de José Fontana, entre outros, em 1875. Fixemo-nos, pois, em Abril de 1973, para concluirmos que ninguém poderá esquecer o papel que o PS teve na construção da democracia representativa que hoje temos e o rosto que o protagonizou, Mário Soares. Mais, os avanços significativos da nossa democracia tiveram sempre o PS como seu protagonista essencial. O seu espaço político foi e é um espaço virtuoso porque procura combinar de forma harmoniosa a liberdade e a igualdade, o papel fundamental do Estado com a vitalidade da sociedade civil, a convivência das forças mais conservadoras com as forças mais radicais, desde que se inscrevam nos nossos valores constitucionais, ou seja, desde que pratiquem aquilo que um dia Habermas designou, falando da União Europeia, como “patriotismo constitucional” (Habermas, “Cittadinanza e Identità Nazionale”, In Micromega, 5/91, 123-146). O passado deste partido é algo de que os portugueses se devem orgulhar. Os erros também acontecem, mas o legado é altamente positivo, durante os cerca de 25 anos em que o PS governou este País.
E AGORA, PS?
E, hoje, perguntarão? Respondo, neste dia de aniversário, não com considerações sobre o passado, mas sim, numa lógica prospectiva, olhando mais para o futuro do que para o passado. Se o diagnóstico é sobre o que temos, o objectivo, todavia, é a resposta aos desafios que temos pela frente e a mudança para melhor, como forma de honrar esse passado de prestígio.
E a primeira observação que me parece dever avançar é a que resulta do reconhecimento das profundas mudanças que estão a acontecer nas sociedades contemporâneas e, consequentemente, da pergunta que se impõe: está o PS a mover-se tendo realmente em conta estas mudanças? Temo que a minha resposta não possa ser inteiramente positiva. Não me parece que o PS esteja hoje a responder com criatividade, eficácia e empenho prospectivo aos desafios que estão aí à nossa frente. E se não o fizer enquanto partido, dificilmente o poderá fazer enquanto governo, por razões que são fáceis de compreender. Enquanto partido, sofre, em geral, as dificuldades que todos os partidos socialistas e sociais-democratas estão a sentir e que já se estão a traduzir em resultados eleitorais (refiro-me às recentes sondagens disponíveis) pouco entusiasmantes, na Espanha, na França, na Alemanha, na Itália ou na Grécia. Mais, sofre, em geral, as dificuldades que os partidos do chamado establishment, os da alternância democrática, os do centro-esquerda e do centro-direita, estão a sofrer e que se estão a traduzir na progressiva fragmentação dos sistemas de partidos. Esta fragmentação já está em curso também em Portugal. Ou seja, sofre os efeitos da progressiva redução da política à sua dimensão de puro “management”, à identificação de governo com governança (“governance”), a uma prática política sem alma e à perda de uma vocação hegemónica que possa conduzi-lo à formação de um bloco histórico (Gramsci), envolvendo as forças sociais com maior capacidade de propulsão histórica, capaz de conduzir o país para um futuro sólido, em vez de promover cada vez mais um discurso de comiseração ao mesmo tempo que mantém taxas de sobrecarga fiscal sobre a classe média absolutamente incomportáveis. Ou seja, o PS está a praticar uma política de movimento por inércia, fundada num pragmatismo táctico que não prenuncia tempos de esperança, como devia ser sua vocação enquanto partido de esquerda. Internamente, o PS mantém uma estrutura orgânica pouco dinâmica ou mesmo inadequada aos tempos que vivemos: totalmente dependente do Estado; paralisado nas suas estruturas orgânicas (por exemplo, no gabinete de estudos, na fundação, no “jornal” de partido, nas revistas de pensamento político); presença diminuta e apagada no universo sindical e, em geral, nas organizações da sociedade civil (veja-se o que tem acontecido na área do socorro de emergência, nos bombeiros), designadamente nos novos movimentos por causas, na comunicação social, nas universidades; alheamento em relação ao papel das grandes plataformas digitais e ao seu papel na mobilização da cidadania; posição incerta sobre o futuro da União Europeia (a opção seria ou pela constitucionalização da União ou pela lógica simplesmente intergovernamental ou funcionalista). O PS parece estar a mover-se exclusivamente concebendo a política como pura comunicação instrumental para o consenso, em linha com a sua visão de puro pragmatismo governamental e com a sua dependência do aparelho de Estado, incapaz de metabolizar as profundas mudanças que estão a acontecer no plano da sociedade civil, designadamente graças à rede, à inteligência artificial e à globalização, sobretudo a globalização financeira, migratória e das grandes plataformas digitais.
A POLÍTICA DEMOCRÁTICA E A QUESTÃO DAS FONTES DO PODER
Num ensaio que aqui publiquei na passada Quarta-Feira, “A Política na Era do Algoritmo”(https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/11/ensaio-29/), falava de três “constituencies” que hoje estão na origem constitutiva do poder, mesmo no plano do Estado-Nação: a do cidadão contribuinte (a original), a dos credores financeiros internacionais que financiam, através do mercado financeiro internacional, as dívidas soberanas e a das grandes plataformas digitais que contratualizam informalmente com a cidadania prestação de serviços e acesso à informação e à produção de conteúdos, numa dimensão que é profunda, individualizada e simplesmente gigantesca, com fortes efeitos sobre o comportamento político da cidadania, como se sabe.
Esta composição das fontes do poder e da soberania deverá ser objecto de cuidada ponderação pelas forças de governo e pela União Europeia de forma a evitar a erosão definitiva da “constituency” originária, a única sujeita a “accountability” pela cidadania, e, com isso, evitar a destruição da própria democracia representativa.
A não assunção crítica destes factores implicará um esvaziamento da política democrática e da deliberação pública, grave sobretudo ao nível de partidos que têm o particular dever, enquanto se reivindicam de esquerda, de garantir a sustentabilidade e a promoção da política democrática e representativa, ou seja, de garantir que a soberania do cidadão não é definitivamente confiscada por poderes não sujeitos a “accountability” política. Bem pelo contrário, é seu dever promoverem a evolução para uma democracia deliberativa, a única que, mantendo a representação, pode resolver o problema da cisão entre representantes e representados (veja o meu texto sobre a democracia deliberativa em Camponês, Ferreira e Rodríguez-Díaz, Estudos do Agendamento, Covilhã, Labcom, 2020, pp. 137-167 – https://labcomca.ubi.pt/estudos-do-agendamento-teoria-desenvolvimentos-e-desafios-50-anos-depois/).
A INFILTRAÇÃO IDEOLÓGICA E A IDENTIDADE DO PS
Acresce a tudo isto que a este desvio para um excessivo pragmatismo (eleitoral) de governo, sem alma nem clareza ideológica, sem uma cartografia cognitiva exigente ou sem o suporte de uma grande narrativa ou de uma utopia mobilizadora (recentemente, em artigo em “El País”, o presidente de Más País, e um dos fundadores de Podemos, Iñigo Errejón, falava da necessidade de regressar a uma “política que volte a ser ingénua e utópica”, 14.04.23, pág. 11), que até pode ser a de uma democracia deliberativa (Santos, 2020), que confira mais poder ao cidadão no interior do sistema representativo, se veio a juntar a importação de perigosos produtos ideologicamente tóxicos, assumidos como se neles pudesse acontecer a redenção ideológica de um partido que deixou de cuidar das questões doutrinárias e da sua própria identidade político-ideal. Refiro-me à ideologia woke, ao politicamente correcto, à conversa enjoativa da linguagem inclusiva e neutra, ao radicalismo da ideologia de género, que vê a relação homem-mulher como uma mera relação de poder, e ao revisionismo histórico (veja a minha crítica a estas ideologias em: https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/04/manifesto/ ). A forma como estas ideologias têm vindo a evoluir, designadamente galgando os espaços partidários dos partidos do establishment e os espaços institucionais, assumindo cada vez mais dimensão normativa nas instituições nacionais e internacionais e impondo-se na opinião pública e na sociedade através de estereótipos com força de coação moral, em muito tem contribuído para alimentar a ideologia iliberal da extrema-direita que as identifica, embora errada e instrumentalmente, com a própria mundividência liberal, sua inimiga jurada, desde os tempos do romantismo do século XIX. A intrusão daquelas ideologias – que de liberais, afinal, nada têm, sendo, pelo contrário, suas adversárias – na mundividência dos partidos socialistas e sociais-democratas, que, pelo contrário, radicam e se filiam no iluminismo, é facilitada por uma ideologia de tipo orgânico que, por um lado, rejeita o próprio património liberal (que está na matriz da nossa própria civilização – veja-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789) e, por outro, se afastou da tradição marxista, sem se preocupar em encontrar uma consistente mundividência alternativa em linha com os novos tempos. Eu próprio tentei uma redefinição da doutrina em Política e Democracia na Era Digital (Lisboa, Parsifal, 2020, pp. 15-47 e 133-153), desenvolvendo, neste livro, a que já apresentara na Universidade de Verão do PS, em Santarém, em 2015. Os trabalhistas ingleses tentaram esse aggiornamento nos anos cinquenta, com Hugh Gaitskell, mas somente em 1985, com Neil Kinnock, e, depois, com John Smith e Tony Blair, viria a ser desenvolvido na forma de New Labour ou de Terceira Via, tão execrada pelos sociais-democratas tradicionais e, mais tarde, até pelo próprio Labour de Jeremy Corbyn, com os magníficos resultados que se conhece (e que aqui critiquei várias vezes, durante o período da liderança de JC). O recomeço do Labour a partir de 1997 (data em que, após a consolidação interna do New Labour, Blair iniciou a sua caminhada governativa), assumido explicitamente pela liderança de Keir Starmer, está a projectar o Labour de tal modo que poderá vir a ser vencedor absoluto nas próximas eleições (549 mandatos em 650, previstos por uma recente sondagem). Por sua vez, o SPD fez esta operação de libertação da tradição marxista em 1959 e de regresso ao iluminismo, no famoso Congresso de Bad Godesberg. Um e o outro, na sequência destas mudanças, viriam a conquistar o poder e exercê-lo durante bastante tempo. Na verdade, tratou-se do abandono da sua identidade como partidos-igreja para assumirem mais a forma de catch all parties, na sequência do crescimento da “middle class” e da necessidade de lhe corresponder politicamente. O PS de Abril manteve, todavia, na sua Declaração de Princípios de 1974, uma posição, certamente por força da conjuntura que então se vivia, muito alinhada com as teses e os princípios marxistas (“sociedade sem classes” e colectivização dos meios de produção e de distribuição”, 1.2.), só mais tarde evoluindo paulatinamente para posições mais moderadas, mas sem grandes rupturas de fundo, designadamente em dois aspectos essenciais: na manutenção da sua rejeição do património liberal clássico (e apesar de o iluminismo ser a filosofia em que necessariamente se inscreve), que sempre considerou como sendo de direita (apesar de existir um filão chamado socialismo liberal, que vai de Stuart Mill a Hobhouse, Hobson, Capitini e Calogero, Rosselli, Dewey, Bobbio e o Partito d’Azione italiano – veja-se o meu livro Paradoxos da Democracia, Lisboa, Fenda, 1998, pp. 65-68), e na assunção orgânica do predomínio da ideia de comunidade sobre a ideia de sociedade, um velho resquício sobrevivente do marxismo, e não tanto da teoria de Toennies ou de Weber. Na verdade, o PS, ocupado regularmente nas tarefas da governação durante cerca de 25 anos nos 49 da nossa democracia (em rigor, mais 47 do que 49), nunca chegou a efectuar um verdadeiro aggiornamento de fundo da sua doutrina no sentido de um esclarecimento ideológico equivalente ao que o Labour ou o SPD fizeram, sobretudo nestes dois aspectos que referi, o da compatibilidade da tradição liberal com a sua própria tradição e identidade (o que tem implicações muito relevantes sobre o modo como são vistos os direitos individuais) e o da remoção desse resquício comunitário (com o equivalente sentimento de pertença, que neste partido ainda é quase exclusivo), que persiste. Falta clareza sobre os limites da intervenção do Estado, o papel dos partidos políticos na sociedade, a dinâmica da relação entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade (não se sabendo, hoje, bem qual destes dois princípios tem a primazia, embora o discurso acentue cada vez mais o da igualdade), a chamada classe “gardée” ou referência social dominante no discurso do PS, a questão do peso fiscal sobre a cidadania (que está ligada à questão do papel e funções do Estado, que, sendo Estado Social, não é seguramente um “Estado-Caritas”, amigo caritativo dos “pobrezinhos”), a questão da hegemonia, a relação com os movimentos sociais por causas, a estratégia para a projecção no futuro do país e da própria União, entre tantas outras coisas.
O PS VISTO MAIS DE PERTO
A recente tentativa feita por um centro de investigação do ISCTE, encomendada pelo PS, sobre o partido e o poder local não veio alterar no essencial as coisas, nem, de resto, parece ter tido grande sucesso ou sequer divulgação interna como documento fundamental. Por outro lado, a tentativa de criar uma (bela, de resto) revista semestral de pensamento político, Portugal Socialista – Revista Política, bilingue (português-inglês), na altura dirigida pelo actual presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo, Luís Pita Ameixa, parece ter ficado pelo caminho, creio que pelo seu número dois. A própria Revista Finisterra (que era propriedade da Fundação José Fontana e que agora é propriedade da Fundação Res Publica), que há muito parece estar um pouco abandonada, mas agora dirigida por Fernando Pereira Marques, em dez anos limitou-se a publicar onze números, acabando por ter somente uma periodicidade anual e não desempenhando, designadamente com iniciativas de mobilização, uma função orgânica e propulsora para a revitalização do universo intelectual e doutrinário em que se inscreve o PS. O Acção Socialista, que tive a honra de dirigir durante três anos e de informatizar, e que, há anos, é sido dirigido pela deputada Edite Estrela, pouco ou nada contribuiu, nesses anos, para promover o aggiornamento doutrinário do PS, limitando-se a ser um repositório de artigos de pura política interna e de propaganda, sem ambições doutrinárias e ideológicas, até pura e simplesmente desaparecer, ao ser convertido em mero espaço noticioso do site do PS, embora com a designação de Acção Socialista Digital. Na verdade, Edite Estrela, ao tornar o Acção Socialista um “jornal” diário ou uma Newsletter semanal, o que fez foi acabar mesmo com ele. Se já era pouco, agora é mesmo nada. O PS deixou de ter um jornal próprio. Restam o nome e a Directora. Dois nomes, somente, porque a coisa já não existe. A própria Fundação Res Publica, dirigida por Pedro Silva Pereira, que absorveu a Fundação José Fontana e a Fundação Antero de Quental, pouco ou nada tem feito, estando certamente o seu presidente mais ocupado com o Parlamento Europeu, de que é Vice-Presidente, do que com a gestão e a programação da Fundação. Mas ainda houve tempo para criar, entretanto, em Abril de 2021, uma Revista, Res Publica – Revista de Ensaios Políticos, dirigida por si, que publicou, até ao momento, três números. A Fundação Res Publica tem, pois, neste momento, duas Revistas de pensamento político (Finisterra e Res Publica), ambas, na realidade, de periodicidade anual. Uma abundância que, na prática, se converte em nula função orgânica, quando a revitalização ideológica e doutrinária é aquilo de que o PS mais precisa. Em tempos, e é um mero exemplo, a Fundação Antero de Quental, dirigida por Jorge Lacão, foi um importante centro de estudos e de actividade dirigidos ao poder local. Mas, hoje, o que me parece realmente é que o PS, nesta área, anda ao sabor das idiossincracias ou dos humores pessoais de certos seus dirigentes, numa vaga que não se entende.
AFINAL, O QUE É A POLÍTICA?
Tudo isto, que não é pouco, porque se trata de instrumentos preciosos para o robustecimento cultural, ideológico e doutrinário do PS e para a promoção da literacia política dos seus militantes, deverá ser objecto de uma profunda reflexão, pelo menos por aqueles que se preparam para avançar para a liderança no pós-António Costa, preparando um futuro que não seja simplesmente o de fazer cálculos tácticos e eleitorais para a conquista do poder político institucional e para a ocupação do aparelho de Estado, deixando como mero adereço o trabalho no campo estritamente político, ideológico, doutrinário e cultural. Isso é o que se tem verificado, estando o PS transformado num mero partido-veículo (para conduzir ao Estado) e tornando residual a sua relação com a sociedade civil, a não ser numa lógica exclusivamente eleitoral e de redução da política à sua dimensão puramente táctica. O que acontece é que a política é algo mais vasto e mais denso do que a mera competição eleitoral e, seguramente, também é muito mais do que uma mera “arte do equilíbrio”, como a definiu, na passada Segunda-Feira, Fernando Medina, até porque é ela que deve ser a base sobre a qual devem ser construídos os projectos políticos, as próprias competições eleitorais e as soluções de governo. Mas essa função só pode ser desempenhada por um partido que seja já um pequeno universo onde se desenvolve uma vida autónoma e plural capaz de vir a alimentar as forças necessárias para a conquista da hegemonia ético-política e cultural, para a construção de um sólido bloco histórico e para a formação de governos competentes, densos e movidos exclusivamente pela ética pública. A política não é, de facto, uma arte para equilibristas talentosos, mas muito mais. E não é desvitalizando e tornando anémico o partido que depois se pode esperar sucesso na relação com a sociedade civil, nas políticas a desenvolver e nos agentes que têm por missão executá-las e promovê-las.
QUE DOUTRINA PARA O FUTURO DA UNIÃO EUROPEIA?
O mesmo vale para a política internacional e, sobretudo, para a política europeia, onde não se vê preocupação em posicionar o PS sobre as grandes questões que se põem à União Europeia no plano da sua evolução institucional como entidade política e como protagonista à escala mundial, vendo-se, isso sim, designadamente no Facebook, uns ou umas eurodeputadas a fazerem alegremente turismo pelo mundo fora. Nem se vê também preocupação da Foundation for European Progressive Studies, sediada em Bruxelas e dirigida por uma portuguesa, Maria João Rodrigues, produzir doutrina de fundo sobre o futuro da Europa, nem que seja para ajudar a que o PS tenha uma posição clara (que não tem) sobre o futuro da União e, em geral, para responder com novas ideias e propostas à crise por que estão a passar os partidos socialistas ou sociais-democratas da União Europeia. O que é grave, conhecendo nós a matriz europeísta do próprio partido, para a qual muito contribuiu o seu fundador Mário Soares.
Estamos, pois, numa situação que mereceria, agora que o PS tem meio século, uma atenção particular, fazendo um aggiornamento profundo que toque em todos estes aspectos e superando essa ideia que começa a singrar na opinião pública de que este partido já mais não é do que uma enorme federação de interesses pessoais em busca de colo na gigantesca máquina do Estado e uma boa plataforma para descolar em direcção a Bruxelas e a Estrasburgo. Mas não é essa a vocação do PS, nem o seu passado é compatível com essa condição.
OS MEUS PARABÉNS
É este o meu voto, crítico, mas auspicioso, no dia em que o PS faz 50 anos. Os meus parabéns pelo seu honroso passado e o meu desejo de que saiba sair desta situação anémica ou pantanosa em que se encontra para que o seu passado seja honrado com um futuro digno também de boa memória.
A POLÍTICA NA ERA DO ALGORITMO
As Três Fontes do Poder
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 04-2023
I. VEM AÍ A PÓS-DEMOCRACIA?
COMEÇO POR DIZER que quando usamos conceitos como pós-democracia ou pós-representação a referência é sempre a democracia representativa. Os teóricos têm de estar sempre a inovar, mesmo que isso represente alguma violência ao real. Mas a criatividade teórica, para ser eficaz, precisa de conceitos estimulantes e desafiadores. Ora estes dois conceitos parece indicarem que a democracia representativa está velha, se consumou, se gastou. O que não é verdade, porque ela é muito jovem, se a medida for o tempo histórico, a longa duração. E até poderemos afirmar, sem risco de errar, que a democracia representativa até pode ser considerada uma utopia difícil ou mesmo impossível de alcançar.
Sufrágio Universal e Democracia
Seja como for, a democracia representativa, que só existe desde que haja sufrágio universal, é, de facto, bastante jovem, pois ela não se identifica stricto sensu com sistema representativo, que é bem anterior, não sendo compatível com regimes censitários. O que tínhamos, pois, até ao sufrágio universal era simplesmente um sistema representativo em regime censitário. A sua história anda de braço dado com a assunção do sufrágio universal e, claro, com o sistema representativo. E é bastante jovem porque, neste sentido, a sua plena concretização histórica só se verificou verdadeiramente, passados três turbulentos e dramáticos decénios (1914-1945), na segunda metade do século XX, uma vez que, como disse, só da combinação do sistema representativo com o sufrágio universal poderá resultar a democracia representativa, sendo também certo que a pedra-de-toque que a distingue de todas as outras formas de democracia é o mandato não-imperativo. Ou seja, o mandato não revogável (sobre o conceito de representação veja-se o excelente texto de Diogo Pires Aurélio – Aurélio, 2009).
A Democracia como Utopia
DEPOIS, em boa verdade, ela configura-se como uma utopia se considerarmos que o voto, neste regime, tem poder constituinte, é individual, é secreto, é universal e convoca aquilo a que Kant chamou imperativo categórico, ou seja, que cada voto seja determinado pela ideia de que dele possa resultar uma legislação universal com poder impositivo. O que significa que este voto singular, exprimindo uma profunda convicção (fundamentada e argumentada), traz com ele uma responsabilidade absoluta, como se o mundo viesse a ser regulado por ele. Um acto singular com pretensões de validade universal e, consequentemente, associado ao princípio da responsabilidade. É neste princípio, difícil de atingir na sua plenitude, que se funda a democracia e que lhe dá um valor que nenhum outro regime consegue exibir. Um princípio que exige plena maturidade da cidadania. Através do princípio do mandato não imperativo o representante assume uma dimensão universal porque passa a ser titular do principal órgão de soberania, o Parlamento, esse mesmo que legisla segundo o mesmo princípio de universalidade, ou seja, de acordo com o interesse geral (da nação) e não de acordo com o interesse particular, seu, de classe ou regional. E nem sequer de acordo com o círculo eleitoral que o elege (1).
O Espaço Intermédio
Mas a verdade é que tudo está a mudar e, mantendo-se a matriz representativa originária, para a qual ainda ninguém conseguiu encontrar substituto válido, algo mudou no sistema representativo. E o que mudou reside, para além do sufrágio universal, na relação entre os representantes e os representados, aquilo a que alguém chamou “espaço intermédio” (Tagliagambe, 2009), aquele espaço que se situa entre a cidadania e o poder, entre a rua e o palácio, entre o acto do voto e o exercício do poder que resulta daquela relação e que se processa precisamente neste espaço. (2). Hoje tudo se sabe (a verdade e a mentira) e até é possível fazer política e comunicar para além daqueles que são os canais tradicionais de intermediação da política e da comunicação, partidos e media. Antes, não. E até era proibido (logo no século XVIII) informar acerca do que se passava no Parlamento. Ou seja, a participação política deixou de se reduzir ao (já tão reduzido, nos regimes censitários) acto de votar para designar a representação e legitimar o mandato. A ideia de participação cresce à medida que este “espaço intermédio” também cresce, ou melhor, à medida que ele vai sendo ocupado pelas plataformas de comunicação (social).
Desintermediação e Democracia Deliberativa
Isto aconteceu sobretudo com o aparecimento da televisão e, nos nossos dias, viria a aprofundar-se com a emergência da rede, das TICs e das redes sociais, ou seja, com a possibilidade de aceder ao espaço público deliberativo sem interferência dos chamados gatekeepers, dos mediadores, seja da comunicação seja da política. E foi por isso que o discurso sobre a pós-democracia (representativa) ganhou uma forte acuidade, lá onde o processo de construção do consenso e o processo de formação da decisão passaram a correr também noutros canais que não os tradicionais. Numa palavra, a política e a comunicação já estão desintermediadas, tendo terminado o monopólio da intermediação pelos tradicionais meios, media e partidos (Biancalana, 2020). Por isso, alguns consideram que estamos perante uma pós-democracia (representativa) porque a representação deixou de ser a fórmula exclusiva para o exercício do poder; outros, como eu, consideram que esta nova fase pode ser favorável, não à pós-democracia ou à pós-representação, mas ao relançamento da democracia representativa se ela evoluir para uma democracia deliberativa, uma forma superior de democracia representativa que, em parte, vem resolver o problema do decisionismo e da fractura entre representantes e representados. Ou seja, uma forma de inclusão da cidadania na política e na democracia através de uma qualificação do consenso e do processo decisional, da metabolização política, informal e formal (não simplesmente instrumental), pelos representantes, dos fluxos que correm na esfera pública deliberativa, onde hoje a cidadania pode intervir directamente sem mediações e gatekeeping. Numa democracia deliberativa a representação política mantém-se com as características de sempre, mas incorpora esse “espaço intermédio” que nos primeiros tempos do sistema representativo estava completamente vazio (após o voto, de resto, censitário, não era permitido conhecer o que se passava no palácio do poder, sendo crime a sua divulgação). Diria mais. Se, de facto, a política convencional desconhecer esta mudança radical estará condenada porque surgirão (como já acontece) forças que ocuparão este “espaço intermédio” contra a própria democracia representativa. O que já aconteceu, como se sabe: a intervenção da Cambridge Analytica no Brexit e nas Presidenciais de 2016 nos USA. A partidocracia e a mediocracia, ambas endogâmicas, representam esta cegueira relativamente ao que mudou radicalmente desde a criação do sistema representativo: da ocultação, legalmente sancionada, do exercício do poder (no século XVIII) passou-se à transparência total quer do exercício do poder quer dos seus próprios bastidores, devido à evolução dos meios de comunicação, ao sufrágio universal, ao progresso constitucional e, agora, ao novo espaço público deliberativo, com a network society e suas componentes orgânicas, ou à novíssima algorithmic society.
Participação e Representação
Vem este discurso a propósito de um pequeno ensaio de Michele Sorice, director do Centro de Investigação da Universidade Luiss (“Centre for Conflict and Participation Studies), de Roma, publicado como introdução ao volume da revista Culture e Studi del Sociale sobre “Conflito e partecipazione democratica nella società digitale” (Sorice, 2020). O ensaio tem precisamente como título “A participação política no tempo da pós-democracia” e o autor utiliza uma linguagem conceptual muito eficaz para abordar estas novas tendências em curso.
Michele Sorice vai ao tema directamente e chama a atenção para o esvaziamento da ideia de conflito na competição política, para a diferença entre representação e participação, a redução da política a “governance”, a excessiva fragmentação da intervenção política na era digital (hiperfragmentação) e a consequente despolitização que tem vindo a ser associada à “network society”, o “imperialismo das plataformas”, reforçado pelo desenvolvimento do chamado “capitalismo digital”, designado como “capitalismo das plataformas”, e ainda para o conflito entre “os velhos espaços públicos da sociedade de massas” e a “hiperfragmentação” induzida pela “network society”. Sorice cita Colin Crouch, em Post-Democracy After the Crises (Crouch, 2020), numa passagem em que este autor afirma que se tornou necessário rever as relações das redes sociais com a democracia e a pós-democracia, visto o uso que as grandes plataformas fazem dos perfis de milhões e milhões de utilizadores para fins de construção de um novo poder global precisamente pós-democrático e alternativo às elites tradicionais. E associa-lhes também as hiperlideranças, os populismos, os processos de despolitização e a chamada pós-esfera pública, induzida pela “platformization”. E chama ainda a atenção para a deslocação do poder das oligarquias ideológicas da política tradicional para as elites tecnocráticas, plenamente funcionais às dinâmicas de comercialização da cidadania, a sua valorização mais como valor de troca do que como valor de uso. O que diz tudo. O autor liga o processo de plataformização à pós-democracia e à chamada pós-esfera pública. E é neste quadro, que, segundo ele, se coloca a crise de legitimidade dos partidos, a transformação dos movimentos sociais, a emergência de novas formas de agregação, como, por exemplo, os movimentos urbanos, o desenvolvimento da cidadania activa e a afirmação de novas formas de acção social directa. Crise dos partidos e emergência das plataformas de mobilização – é nesta encruzilhada que irrompem estes fluxos sociais que podem mudar o panorama da democracia representativa. E é aqui que bate o ponto, segundo o autor, ou seja, na necessidade de mobilização da ideia de conflito (por oposição ao processo de anestesia política em curso) para uma revitalização da participação e da política. Esta ideia permite superar, por um lado, a simples ideia de representação, mas também o simples direito generalizado a tomar a palavra como paradoxal anestesiante político de massas, ou seja, a participação de todos como redução do poder da cidadania, enquanto ela pode induzir a ilusão de um autogoverno que, afinal, não decorre automaticamente deste tipo de participação. Uma ilusão, sim, porque esta participação é “hiperfragmentada” e não se encontra ancorada em novas formas culturais alternativas, em conflito com as formas hegemónicas, e não está inscrita, diria, com Gramsci, num “bloco histórico” capaz de se constituir como alternativa hegemónica. Mesmo assim, considero que este “poder diluído” (mas não hiperdiluído) da cidadania é superior ao exclusivo poder de delegação (regular e cíclico), em eleições, na representação, que tende a remeter a participação política para uma esfera residual, considerada até como potencialmente subversiva, e no establishment mediático, enquanto detentor do poder de representação social. Além disso, Sorice vê na relação do neoliberalismo com esta hiperfragmentação da cidadania uma tendência fatal porque se trata de uma participação ilusória e politicamente inócua, ou seja, não conflitual nem alternativa.
O Capitalismo da Vigilância
Sem dúvida que não é possível ignorar as “dinâmicas de poder presentes no ecossistema mediático nem as lógicas económicas e os mecanismos proprietários que regulam a actividade dos próprios social media”, como diz Sorice. E para ilustrar este último aspecto bastaria ao autor referir o livro da Shoshana Zuboff, “The Age of Surveillance Capitalism” (Zuboff, 2019), uma análise impiedosa do poder das grandes plataformas e da forma como o obtêm, evidenciando assim a desigualdade estrutural entre plataforma e utente, traduzida no uso abusivo de dados pessoais para efeitos de tratamento dos big data e de previsão dos comportamentos para fins comerciais e de poder financeiro, sim, mas também políticos. O autor sintetiza, e muito bem, esta questão, traduzida no capitalismo e no imperialismo digital desenvolvido no processo de plataformização das sociedades, entendendo por isso o domínio das grandes plataformas, como, por exemplo, a Google ou o Facebook, sobre as sociedades.
Conceitos
Esta linha crítica já tinha sido avançada pelo autor no livro que coordenei sobre “Política e democracia na era digital” (Santos, 2020), no capítulo de sua autoria e de Emiliana de Blasio (“O partido-plataforma entre despolitização e novas formas de participação: que possibilidades para a esquerda na Europa?”, pp. 71-101). E aqui, neste ensaio, insiste em chamar a atenção para reais tendências que estão a ocorrer na sociedade em rede e para os seus perigos, desvirtuando aquelas que eram, no início, reconhecidas como virtudes da novas tecnologias da libertação. Mas usa também um corpo conceptual que importa integrar na análise política dos actuais fenómenos políticos, sendo certo que a academia teima em não sair do velho sistema conceptual. Com efeito, Sorice dá palco a conceitos como “eco-sistemas comunicativos digitais”, “hiperliderança”, hiperfragmentação”, diferença entre participação e representação e entre “governance” e “e-government”, “platformization”, capitalismo e imperialismo digital, pós-democracia, pós-representação, “capitalismo das plataformas”, “network society”, participação sem conflito, participação conflitual, “comercialização da cidadania”, “pós-esfera pública”. Conceitos interessantes e fundamentais para aceder à política e à comunicação tal como hoje se configuram. E é claro que acompanho o autor nesta análise crítica.
Diria, todavia, que falta agora ver o lado positivo da emergência da rede, das TIC e das redes sociais (social media) seja do ponto de vista da comunicação seja do ponto de vista da política.
Quem ler o livro da Shoshana Zuboff, já referido, ficará muito bem elucidado sobre o processo de acumulação do novo capitalismo digital, ou “capitalismo da vigilância”, e também sobre o seu poder, sobre a passagem das tecnologias da liberdade a instrumentos de acumulação capitalística. Processo a que o autor também alude. E também é verdade que o acesso universal ao espaço público, a participação de todos, a integração política virtual podem tender a anular o conflito e a anestesiar a verdadeira participação política, fragmentando excessivamente uma intervenção sem novas formas culturais alternativas, sem uma cartografia cognitiva e com a ilusão de participação pelo simples direito de acesso à nova esfera pública. E ainda a favorecer hiperlideranças de inspiração populista ancoradas na relação directa e carismática com o povo da rede. Sim, tudo isto pode acontecer e, em parte, já está a acontecer, até porque a política clássica tem vindo a evoluir cada vez mais para uma lógica endogâmica que a afasta da cidadania e da realidade.
O Novo Mundo Digital
Mas também é verdade que a rede, em geral, as TIC e as redes sociais abriram canais de acesso e de participação absolutamente novos e praticamente livres de gatekeeping, essa forma de controlo do acesso ao espaço público. Acesso em dois sentidos: a) para obter informação em múltiplos suportes e em diversificadas fontes; b) e para intervir livremente no processo comunicacional e no processo político acedendo sem mediadores ao espaço público deliberativo. Estes canais de acesso valorizaram extremamente o espaço público deliberativo e deram origem a formas de organização autónomas do poder partidário, as plataformas digitais temáticas, como, por exemplo, moveon.org ou meetup, em condições de dar voz ao conflito e de mobilizar a cidadania. O exemplo da plataforma moveon.org nos USA é muito significativo. Por exemplo, apoiando Bernie Sanders, Barack Obama ou o Obamacare.
O que quero significar é que aos media tradicionais se veio juntar uma nova e poderosa realidade, a que chamo “espaço intermédio”, que permite um mais aberto e livre acesso ao espaço público na dupla dimensão da recepção de conteúdos e da produção de conteúdos, dando origem a um novo tipo de cidadania: a do prosumer. Este facto veio reforçar a importância do “espaço intermédio” enquanto espaço público deliberativo – por onde corre a relação entre representados e representantes – e tornar possível designadamente um revigoramento da democracia representativa e uma maior accountability quer do poder político quer do poder mediático, seu irmão gémeo. Na verdade, a mudança é profunda porquanto não só representa o alargamento do espaço público e o fim do gatekeeping, mas também porque representa uma mudança qualitativa na relação comunicacional com a evolução da “mass communication” para “mass self-communication” e com a transformação do cidadão em prosumer, em receptor e produtor de comunicação e política, dando assim efectividade política ao conceito criado por Alvin Tofler, em The Third Wave, em 1980 (Tofler, 1980; e Castells, 2007).
Não vejo, todavia, esta expansão gigantesca do acesso ao espaço público deliberativo nos dois sentidos acima referidos sem um enquadramento, uma cartografia cognitiva, uma bússola que conduza a cidadania num certo sentido. Neste caso, mais do que falar em novas formas de mediação, falaria em hegemonia, em conquista ético-política da esfera reticular e em capacidade de polarização da cidadania por novas formas culturais alternativas. Na verdade, do que se trata, com o novo espaço público deliberativo e com o novo tipo de acesso, é simplesmente da sua enorme expansão e de uma lógica de funcionamento totalmente distinta da que era dominada pelos senhores do gatekeeping comunicacional, mas também político. Nada mais. Mas que já é muito, lá isso é. E é por isso que concordo com Michele Sorice na ideia de que são necessárias novas formas culturais, que podem ser interpretadas e accionadas pelos partidos políticos desde que sejam capazes de responder, não transformisticamente, aos novos desafios. O fim dos monopólios que sirva, ao menos, para isso. E não creio que o chamado “capitalismo da vigilância” consiga controlar totalmente este novo mundo, tal como nem os chineses o conseguem controlar, apesar de, esses sim, procurarem hegemonizá-lo através das ideologias do nacionalismo e do consumismo, sem deixarem, todavia, de usar todos os instrumentos de controlo disponíveis, que são muitos e diversificados (Santos, 2017).
Não creio, pois, que seja boa ou viável a proposta pós-democrática ou pós-representativa porque, na verdade, os fundamentos e as funcionalidades da representação se mantêm. Pelo contrário, a democracia deliberativa, mantendo intacta a representação, reabre os canais de acesso à informação e à política e rompe com o monopólio e o exclusivismo da representação porque dão à cidadania a possibilidade de entrar em cena no palco da deliberação pública, influenciando não só a o processo de construção do consenso, mas também a própria produção da decisão. A política deliberativa enriquece a democracia representativa, mas não a substitui nem a diminui. Por um lado, ampliando o leque de possibilidades de empoderamento político da cidadania e, por outro, revigorando a própria representação e os partidos políticos, enquanto portadores de visões do mundo capazes de agregar a cidadania de acordo com as pertenças de cada um e com cartografias cognitivas que lhe sirvam de bússola. As plataformas temáticas têm o poder de se constituir como canais complementares de acesso ao espaço público deliberativo e deste modo influenciar decisivamente a política e a representação. A rede é um “espaço intermédio” incontornável e as redes sociais não são mais do que derivados orgânicos desta realidade. E por isso não é possível falar delas como se fala de media, tendo estrutura e lógica diferentes dos media convencionais. E também por isso não creio que seja útil abordá-las com a dicotomia tornada famosa por Umberto Eco: a dos apocalípticos e dos integrados.
II. O DOCUMENTÁRIO DA NETFLIX SOBRE “O DILEMA DAS REDES SOCIAIS”
Muito ilustrativo, mas unilateral, a respeito do que estou a dizer é o documentário da NETFLIX “O Dilema das Redes Sociais”, uma impiedosa análise crítica deste novo mundo a que me refiro. Unilateral sobretudo porque todo o enfoque consiste numa crítica apocalíptica, devastadora, não mostrando o que de positivo as redes sociais (a rede em geral) trouxeram à cidadania. E fez-me lembrar, de facto, os debates sobre apocalípticos e integrados a propósito da comunicação de massas e das indústrias culturais. E, naturalmente, o próprio livro de Umberto Eco, “Apocalittici e Integrati” (Eco, 1999), saído em 1964. A crítica devastadora à nascente cultura de massas, sobretudo à televisão, pelos apocalípticos, em geral identificados com as elites da alta cultura e maioritariamente de esquerda. E também me fez lembrar, claro, o grito contra o fim da sociabilidade com a irrupção deste tertium que passou a polarizar toda a atenção das salas, públicas ou privadas, ignorando a dimensão física do convívio a favor da dimensão simulacral. O mesmo que agora o documentário discute com dramatismo a propósito do domínio viciante das plataformas móveis sobre os adolescentes e sobre nós próprios, quando substituímos a conviviabilidade pelo fecho no universo digital próprio, de cada um. A força magnética das plataformas móveis, mais poderosa e individualizada do que o magnetismo da televisão. Já publiquei, em duas edições, um livro sobre esta questão, a propósito da televisão: “Homo Zappiens. O feitiço da televisão” (Santos, 2019). As críticas, muitas delas, eram e são justas. A sua diabolização, pelo contrário, é errada e irrealista. Afinal, a televisão continuou e permitiu o acesso à informação e ao entretenimento a milhões de pessoas e assumiu uma dimensão universal. Aponta-se o início dos anos noventa do século passado, com a Guerra do Golfo, como o início da era da televisão universal, com a CNN. Agora, depois do seu aparecimento como meio de comunicação já radicado socialmente, nos anos cinquenta, a televisão continua, com os seus defeitos e as suas virtudes, mas está a passar por um processo onde a sua dominância está a ser posta em causa pela emergência recente das redes sociais, com todo o cortejo de apocalípticos a voltar de novo à boca de cena, a gritar o caos e o fim do mundo.
Prosumer
Ao ver o Documentário (precisamente na NETFLIX, no meu IMac, não na televisão nem no cinema) fiquei até com a sensação de que este alinha claramente no combate radical que o poder convencional (mediático e político) está a promover contra as redes sociais e a rede em geral (um dos personagens diz que estava viciado em e-mails). E não me chega que no fim venham dar conselhos de bom comportamento na relação com a rede, até porque logo são acompanhados de conselhos militantes em defesa do abandono radical das redes sociais. Insinua-se a ideia errada de que a rede tem por detrás uma intencionalidade malévola, quando, afinal, ela é mais um espaço livre onde cada um pode, ao contrário da televisão, intervir em duas direcções: como receptor e como emissor, ou seja, como prosumer. O nível de controlo é aqui muito baixo e algumas vezes até é desejável, como no combate à desinformação (que já aconteceu, por exemplo, nas eleições para o Parlamento Europeu, em 2019, através de um protocolo assinado entre as grandes plataformas, Google, Facebook, Twitter, Youtube e a Comissão Europeia, e com resultados assinaláveis).
Crítica ou Apocalipse?
Bem sei que há nelas um potencial viciante, que é um imenso mundo onde tudo acontece, um gigantesco “espaço intermédio”, que são uma revolução na comunicação e que se torna necessário metabolizar racionalmente o seu uso, que os administradores dispõem de um potencial de vigilância enorme e que o poderão usar de forma abusiva (como já aconteceu com a Cambridge Analytica). Sei tudo isto. E sei ainda mais, agora que me apercebo do impacto mundial do fenómeno (viciante) do Tik Tok. E que estes elementos críticos são para levar a sério pelos poderes nacionais e supranacionais e por cada um, individualmente. E também sei que esta é uma revolução civilizacional como talvez nunca tenha existido na história da humanidade, pela sua rapidez e, sobretudo, por atingir a dimensão da inteligência e da comunicação com uma profundidade nunca vista. Sei isto e, neste aspecto, o documentário é útil porque alerta para os perigos. Mas é excessivo na crítica. Diria mesmo excessivamente militante e demolidor, com os operadores destas redes (que participaram no documentário) alcandorados à posição de filósofos do caos e do apocalipse, mais até do que da distopia a que se referem. Apetece-me dizer: a dependência nasceu com as redes sociais? Antes só conhecíamos a virtude?
Antes das Redes Sociais
Muitas coisas devem ser esclarecidas porque contrariam a posição de fundo do documentário, a começar pela militância dos intervenientes e do estratega do documentário. No fim, até se passou das redes sociais e das fake news para os perigos da inteligência artificial, em geral. Que são reais, como se compreende, mas algo desviantes, neste contexto. Falou-se excessivamente de dinheiro e de negócio, como se estes não fossem legítimos e estas multinacionais fossem as primeiras a existir no mundo globalizado. Leiam o excelente livro da Naomi Klein, No Logo, e logo verão o que já existia (e existe) antes das redes sociais e das grandes plataformas digitais. E falou-se também da educação dos próprios filhos, ensinados a estar longe das redes sociais, por eles, que, pelos vistos, as criaram e administraram. Não, não gostei porque mais me pareceram defensores militantes do poder convencional, assustados com o poder que as redes sociais podem dar e já estão a dar à cidadania. Depois, o tabloidismo desbragado da violência nas ruas, imputada implicitamente às redes sociais, como se não tivesse havido antes destas, e em pleno século XX, no arco de 30 anos, duas guerras mundiais que mataram dezenas de milhões de pessoas.
Os Filósofos do Apocalipse
Estes ex-funcionários das redes sociais surgem aqui como filósofos, psicólogos, políticos, sociólogos mais do que como técnicos, operadores, engenheiros e gestores das redes sociais a explicar-nos que vem aí o caos e o apocalipse. Só faltou mesmo dizer que boa era a ordem exclusiva do poder mediático e do poder das organizações mediadoras da política. Temo que o artigo alucinado de Miguel Sousa Tavares (“Desculpem-me se volto ao mesmo”), publicado no “Expresso” de 03.10.2020, sobre as redes sociais tenha sido agravado pelo visionamento deste documentário. Documentário por documentário, achei muito mais interessante o da jornalista do “The Observer”, Carole Cadwalladr, sobre “O papel do Facebook no Brexit e a ameaça à democracia” (2019) e a Cambridge Analytica, a que correspondera um ensaio seu e de Emma Graham-Harrison sobre a mesma matéria publicado pelo “The Guardian” (17.03.2018).
Mas vamos mais directamente ao assunto. Até há quem lhes chame tecnologias da liberdade. Isto lê-se nos livros de Castells, o grande sociólogo catalão (que foi Ministro do Governo de Pedro Sánchez), que tem desenvolvido abundante investigação sobre esta matéria. E lê-se no excelente ensaio de Jack Linchuan Qiu, investigador da Annenberg School for Communication, da Universidade da Califórnia do Sul e cofundador do “Grupo Electrónico de Investigação em Internet na China”, sobre “Internet na China: Tecnologias de liberdade numa sociedade estatista”, incluído no livro de Castells (Ed.) sobre “La Sociedad Red: Una Visión Global” (Castells, 2011: 137-167). A ele me refiro abundantemente no Ensaio que publiquei no número 17/2017 da Revista ResPublica (“A Emergência da Rede na Política. Os Casos Italiano e Chinês” – Santos, 2017: 51-78). O documentário não vê esta parte, a da liberdade, a que está confiada à cidadania, o processo de desintermediação da comunicação e da política, o livre acesso ao espaço público, o fim da exclusividade editorial e programática dos agentes orgânicos do poder mediático e do poder político, o fim do seu monopólio de “gatekeeping” sobre o espaço público. E depois não vê que o cidadão pode, também ele, protagonizar-se na Net, intervir no espaço público sem pedir licença aos “gatekeepers” de sempre (conhecemo-los bem, os “Donos de Toda esta Informação”), a maior parte das vezes descaradamente política, económica e ideologicamente alinhados. Sim, os nossos hábitos de acesso à rede são registados e analisados pelo algoritmo que depois torna possível vender-nos como consumidores de certos produtos, simbólicos ou não simbólicos. Sim, são os nossos hábitos, mas, no fim, só compramos se quisermos. E, pergunto, não somos também vendidos como consumidores enquanto espectadores das televisões? Bem sei que agora a comunicação de massas tem outra característica diferente porque se tornou “mass self-communication”, “comunicação individualizada de massas”, sendo possível devolver propostas de consumo em linha com as nossas preferências pessoais dominantes. É verdade, mas mantém-se a possibilidade de recusa em amplo espectro. O marketing 4.0 deve ser banido, por lei? Aliás, todo o marketing deverá ser banido, por nos instrumentalizar? Antes das redes sociais o mundo era perfeito? Segundo Miguel Sousa Tavares parece que sim.
Contra o Novo “Capitalismo da Vigilância”
Parece que este Documentário foi feito para combater o chamado “Capitalismo da Vigilância”, protagonizado pelos gigantes das plataformas digitais, Google, Facebook, Instagram, Twitter, Youtube, etc., mais do que para entender o que realmente é a rede e o que são as redes sociais. Na verdade, do que se trata, com a rede, é de um mundo digital onde se vive, se comunica e se produz. Mas este mundo não é alternativo ao mundo real. É complementar e dá oportunidades de que os cidadãos antes não dispunham. Quando a televisão apareceu e se impôs na política muitos diziam que, assim, a política não passaria de espectáculo enganador. É verdade, o palco televisivo permite encenações e representações que equivalem ao teatro e ao cinema. Mas também é verdade que levou a política a milhões, que permite ao mais humilde e pouco cultivado cidadão escolher o representante com base nos mesmos mecanismos cognitivos de escolha que usa na sua vida quotidiana (“olhando para o seu rosto, a este político eu não compraria um carro em segunda mão”), democratizou a informação e personalizou a política. E é aqui que o assunto bate com mais força: a rede, inaugurando um processo de desintermediação, permite uma vasta democratização dos processos comunicacionais e políticos. Sim, na rede não há uma certificação da comunicação como existe no mundo mediático, existindo apenas protocolos (assinados entre as plataformas e organismos nacionais ou supranacionais, como, por exemplo, a Comissão Europeia) que permitem aos gestores eliminar desinformação e conteúdos intoleráveis à luz das grandes cartas universais de direitos, sendo necessário promover a educação e uma vasta literacia digital, a começar logo na escola, que permitam uma efectiva auto-regulação, normas de uso inteligente da rede, cidadania digital. Mas, digam-me lá, o tabloidismo desbragado que todos os dias passa, em prime time, nas televisões de canal aberto é uma boa alternativa à rede? O “Correio da Manhã”, Jornal e Televisão, é uma boa alternativa à rede? E que dizer da Fox News? Os códigos éticos do jornalismo são praticados pelos próprios que os assinaram? Não, não são. E esta, ao contrário da rede, é informação que se pretende certificada, apesar de contrariar gravemente os próprios códigos éticos que criou e adoptou (e que, de resto, deve adoptar).
Uma Campanha Radical
A campanha dos poderosos contra as redes sociais existe. E continua. Nela entram as elites que estão nos interfaces da comunicação e que até há pouco detinham o poder exclusivo de acesso ao espaço público e ao espaço público deliberativo. O poder de “gatekeeping”. E entram os grandes meios de comunicação, argumentando que só eles podem dar informação certificada e em linha com as normas dos respectivos códigos éticos. E entra a política convencional porque também o seu poder exclusivo de intermediação começa a ser posto em causa. Há grandes plataformas digitais, como, por exemplo, a MoveOn.org, que já mobilizam mais a cidadania do que os partidos tradicionais. E já se fala de (e já existem) partidos-plataforma que partem da rede para a política e não da política para a rede. E este novo mundo já tem um novo conceito de cidadão: prosumer, simultaneamente consumidor e produtor de informação e de política. E, como disse, também a comunicação de massas está a ser substituída pela “comunicação individual de massas” de matriz digital. É uma revolução que o Documentário não regista, mas que torna possível uma enorme viragem civilizacional, cultural, na informação e na política, assim saibamos usar estes poderosos meios. O que, de resto, só acontecerá se os poderes maiores o permitirem, a começar pelo poder político. Mas até aqui a cidadania poderá obrigá-los a proceder em conformidade, usando a rede.
Este documentário inscreve-se na doutrina dos apocalípticos, que, neste caso, e paradoxalmente, são mais integrados do que os outros, os que estão a metabolizar a mudança reconhecendo que esta está inscrita na normal evolução das sociedades, sendo necessário metabolizá-la. E creio mesmo que, tal como aconteceu com a televisão, esta revolução será devidamente metabolizada pela História e conhecerá o destino que formos capazes de construir, agora que a cidadania tem meios para o fazer como nunca teve no passado.
III. ALGORITMOCRACIA
Este mundo é objecto de um interessante livro de Giovanni Gregorio, investigador na Universidade de Oxford, sobre Digital Constitutionalism in Europe. Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society (Gregorio, 2022). Sociedade algorítmica, um nível acima da chamada digital and network society. O assunto é sério, urgente e interessante. E responde, em parte, às questões que têm sido levantadas, precisamente por Shoshana Zuboff, no seu A Era do Capitalismo da Vigilância (Zuboff, 2020), de resto, citado no livro ou pelo referido documentário da NETFLIX sobre as redes sociais. Vejamos, então, do que se trata.
Novos Conceitos
O autor usa interessantes conceitos para analisar a sociedade algorítmica. Vale a pena referir alguns: “algorithmic society”, “algocracy”, “automated decision-making processes”, “digital environment”, “extraction of value from information”, “online platforms vertically order”, “digital capitalism”, “digital liberalism”, “modulated democracy”, “constitutionalisation of online spaces”, “functional sovereignity” (que substitui a “territorial sovereignity”). Nos conceitos usados adivinha-se toda uma doutrina avançada sobre esta nova realidade, que muitos teimam em não reconhecer e assumir como algo a considerar muito seriamente, sobretudo nos domínios da política, da comunicação e do direito. “Sociedade algorítmica” – parece ser o conceito que vem substituir o de “sociedade digital e em rede” para indicar uma evolução das TICS e uma maior intervenção social da Inteligência Artificial (IA), o crescimento dos “automated decision-making processes”, subtraídos aos normais processos de “accountability”, a montante e a jusante. Tanto que até pode dar origem a uma Algocracy, a um sedutor regime do algoritmo, sucedâneo da Democracy. Bastaria para tal dar forma política à “sociedade algorítmica” e à correspondente automatização generalizada dos processos sociais. Uma utopia que parece ao nosso alcance e a breve prazo. Outro conceito a registar poderá ser o de soberania funcional, uma soberania pós-territorial, global, a das grandes plataformas digitais. Uma soberania diferente, que não reside na nação, no povo ou até nos grandes credores financeiros internacionais, mas nas grandes plataformas digitais privadas. Ou, ainda, a extracção da mais-valia, agora não já do trabalho, como em Marx, pelo prolongamento não remunerado da jornada de trabalho (a famosa mais-valia absoluta), mas pela informação acerca dos perfis dos seus utilizadores/consumidores para futura venda de preditivos comportamentais aos seus novos clientes. Poderia continuar, mas creio que já ficou claro o caminho traçado.
Soberania Funcional
Estamos, pois, a pisar terreno inovador, muito complexo, polémico e vital. O centro do problema reside na relação entre as grandes plataformas digitais, a cidadania e a autoridade pública, estando cada vez mais as grandes plataformas digitais privadas e globais a interpor-se entre a autoridade pública e a cidadania, gerando o que julgo ser já um problema de “constituency”, de uma nova “constituency”, vista a natureza e o alcance destes poderes privados globais. O conceito de soberania funcional é isso mesmo que indicia. Sim, um problema de “constituency” exactamente como acontece no caso das grandes plataformas financeiras, como veremos. Diferente, mas equivalente. Se estas actuam perante os Estados endividados como credores protegidos por contratos que intervêm no processo de gestão financeira dos Estados e até nos seus programas de governo (veja-se, como exemplo, o documento assinado – um autêntico programa de governo – entre o governo português e a troika que nos financiou), reivindicando o direito a verem satisfeitos os termos dos contratos de financiamento público, estas plataformas intervêm directamente sobre a cidadania consumidora de produtos digitais, gerindo um vastíssimo espaço social não regulado ou, então, ainda pouco e mal regulado, podendo mesmo, vista a matéria sobre a qual trabalha, condicionar a génese e a constituição do próprio poder político e, por essa via, condicionar decisivamente os processos de “decision-making” e os programas, a um nível que nunca o velho poder mediático atingiu. A passagem do conceito de mass communication (media) a mass self-communication (rede) dá-nos bem ideia da mudança. Esse terreno foi, por exemplo, e como já referido, explorado e usado para condicionar a eleição de Donald Trump e para favorecer o BREXIT. Ou seja, foi usado politicamente para instalar no poder determinadas soluções políticas. Uma nova “constituency”, portanto, a das plataformas.
As grandes plataformas movem-se num espaço global, interpelam biliões de consumidores, estabelecem códigos não contratualizados com eles e substituem-se aos Estados nacionais numa parte relevante da vida social, assumindo até funções que antes estavam exclusivamente confiadas aos poderes públicos, e têm orçamentos maiores do que muitos Estados nacionais. E, muito importante, intervêm directamente sobre os comportamentos, analisando-os e explorando-os comercial e politicamente. Há como que uma dualidade na relação dos poderes públicos e privados com a cidadania, podendo classificar-se como verdadeira partilha. Só que se uns respondem perante a cidadania, outros exercem directamente uma soberania funcional sem necessidade de prestarem contas, não estando o seu poder dependente de processos electivos. A rede é uma camada que está cada vez mais a sobrepor-se à realidade social e é governada segundo regras que não constam de uma constituição, não estando sujeitas a “accountability”, dispondo de informações sobre os cidadãos considerados individualmente numa dimensão tão profunda que nem os Estados nacionais se lhes podem comparar. Na verdade, esta transferência de funções e poderes para as plataformas digitais não conhece, pois, nenhum tipo de “accountability”, nenhum tipo de controlo, precisamente porque não estão sob a alçada de um constitucionalismo digital e funcional. O constitucionalismo digital constituir-se-ia, assim, como uma reacção aos novos poderes digitais. Reacção que nem é muito difícil de compreender e de aceitar – veja-se, por exemplo, o poder dos vários oligopólios instalados na sociedade portuguesa (operadoras de telecomunicações, redes de distribuição, marcas de combustíveis) e a impotência do cidadão singular perante os ditames destes oligopólios. No caso das plataformas digitais esta dimensão agiganta-se e não só em extensão, mas também em intensidade e em qualidade. Sim, estamos perante algo que precisa de ser regulado para que os seus efeitos positivos não desapareçam dando lugar a uma nova “constituency”, onde os cidadãos se transformam em súbditos e matéria-prima financeiramente explorada.
Da Sociedade Digital e em Rede à Sociedade Algorítmica
Na verdade, se, no início, as grandes plataformas representavam um incomensurável alargamento de direitos, de liberdade de comunicação e de participação nos processos de decision-making da cidadania, centrando-se a relação entre as plataformas e a cidadania exclusivamente neste plano, disputando poder ao establishment mediático para o devolver à cidadania (na figura dos users), depois haveria de se verificar um desvio de função, passando as plataformas a considerar como clientes, não os users, mas as empresas interessadas na determinação da previsão comportamental, tendo aqueles sido transformados em matéria-prima a ser trabalhada para extracção de mais-valia processada a partir da informação acumulada nos servidores e gerida pelas plataformas digitais junto dos seus novos clientes, que tanto podem ser empresas como forças políticas interessadas em sucesso eleitoral.
Como diz o autor: “Este é um livro sobre direitos e poderes na era digital. É uma tentativa de reformular o papel das democracias constitucionais na sociedade da informação ou em rede, que, nos últimos vinte anos, se transmudou em sociedade algorítmica como atual base societal que apresenta grandes plataformas sociais multinacionais ‘situadas entre os Estados-Nação tradicionais e os indivíduos comuns e o uso de algoritmos e de agentes de inteligência artificial para governar populações’” (Gregorio, 2022: 1). Portanto, forças intermédias dotadas de potentes e sofisticados meios de IA para gestão de processos sociais, económicos e comportamentais.
Estamos, pois, perante uma transição da “sociedade digital e em rede” para a “sociedade algorítmica”, a sociedade governada pelo algoritmo, pela inteligência artificial, através de “automated decision-making processes” que vêm a afectar “os valores constitucionais que sustentam o contrato social”, que superam a lógica de Vestefália, substituindo a soberania territorial por uma nova soberania funcional desterritorializada e global. É assim que funcionam as grandes plataformas digitais. Como diz, no prefácio Oreste Polliccino, “Giovanni explora a transformação de plataformas online de simples atores económicos em poderes privados capazes de competir com autoridades públicas” (Gregorio, 2022: xiii). A geometria do poder já não se resume a uma relação vertical, mas acontece cada vez mais na relação horizontal que “conecta indivíduos com poderes digitais privados que competem com, e muitas vezes prevalecem sobre, poderes públicos na sociedade algorítmica” (Gregorio, 2022: xiv). Assim sendo, “atores não estatais, corporações privadas e instituições supranacionais de governança contribuem para definir as suas regras e códigos de conduta cujo alcance global se sobrepõe à expressão tradicional do poder soberano nacional” (Gregorio, 2022: 311):
“Google, Facebook, Amazon or Apple are paradigmatic examples of digital forces competing with public authorities in the exercise of powers online. Within this framework, constitutional democracies are increasingly marginalised in the algorithmic society”.
Glosando o Michel Foucault de Surveiller et Punir, o autor afirma que “the paradigmatic idea of a public panopticon can be considered one of the primary concerns in the algorithmic society” (2022: 8; 15). É assim que:
“Digital firms are no longer market participants, since they ‘aspire to displace more government roles over time, replacing the logic of territorial sovereignty with functional sovereignty”. “These actors have been already named ‘gatekeepers’ to underline their high degree of control in online spaces. As Mark Zuckerberg stressed, ‘[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company’” (2022: 17; itálicos meus).
Substancialmente, o que acontece é um verdadeiro processo de livre constitucionalização dos espaços online, mas feito por instrumentos de ordenamento privado que moldam o alcance dos direitos e liberdades fundamentais de biliões de pessoas, adotando uma rígida abordagem top-down, sem exigências de accountability. E a pergunta poderia ser a mesma que faz Daniel Innerarity num artigo em “El País” (13.05.2022): não dispondo nós ainda de um dispositivo conceptual que nos instrua sobre a natureza do novo espaço digital e o seu significado democrático, teremos de começar por perguntar quem, neste novo universo digital, “é o soberano: o algoritmo, o consumidor ou o Estado?”.
Do Poder Económico ao Poder Político
Já temos que chegue. Está, de facto, a emergir uma terceira constituency, depois da dos contribuintes e da dos credores internacionais, que financiam a dívida pública (Streeck, 2013): a das grandes plataformas digitais que paulatinamente vão criando o seu universo societário de acordo com as suas próprias normas, superando o nível económico e atingindo já a dimensão da própria soberania (territorial): a soberania funcional. Basta pensar, como disse, na sua intervenção na eleição de Trump ou no Brexit. Se antes se podiam considerar verdadeiramente tecnologias da libertação relativamente aos poderes públicos instalados e aos poderes que os acompanhavam e reflectiam (o establishment mediático), agora, com a determinação preditiva de comportamentos em larga escala, elas dão lugar a uma intervenção que já supera a mera dimensão económica: “[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company”. Se antes o poder do establishment mediático já era enorme, colocando-se mesmo em directa competição com o poder político (3), agora, as plataformas digitais online representam um enorme upgrade, um poder muito mais forte que deve ser constitucionalmente regulado para que “dentro deste modelo, os indivíduos” não se encontrem eles próprios “in a situation which resembles that of a new digital status subjectionis”. Um novo estado de sujeição, súbditos, em vez de cidadãos. Bem pelo contrário, diz, seguindo Vestager, podendo ter as plataformas um enorme impacto no modo como vemos o mundo à nossa volta e tornando-se, por isso, um sério desafio à nossa democracia “so we can’t just leave decisions which affect the future of our democracy to be made in the secrecy of a few corporate boardrooms” (2022: 287). Existindo uma regulação constitucional feita pelos poderes públicos através de correctos procedimentos políticos e institucionais seria possível recuperar o primeiro impulso destas tecnologias, valorizando-as como tecnologias de libertação, sem as impedir de desenvolverem o seu processo de acumulação, mas respeitando os direitos e as garantias individuais, sendo certo que elas fornecem à cidadania, aos utilizadores, fantásticos instrumentos de comunicação, de automobilização, de participação e de conhecimento a custo zero e numa escala de liberdade que nunca os media conseguiram atingir. O que naturalmente tem um custo. Que tem, todavia, de corresponder a um “preço justo”. O autor sublinha bem este aspecto positivo das grandes plataformas, mas considera que se torna necessário reconduzir todo o processo à “constituency” originária, aquela que verdadeiramente é a legítima e com dimensão ontológica porque o segundo fôlego das plataformas as levou por um caminho que pode atingir o coração da democracia e daquilo que ela tem de mais sagrado: a ideia de soberania popular ou de soberania da nação, centradas na autodeterminação individual. O que não é possível é os poderes públicos continuarem a proceder como se esta realidade não existisse, emitindo deliberações que são totalmente desprovidas de valor perante estas novas realidades. Por exemplo, se a ERC para reconhecer uma publicação “on line” lhe aplicar os critérios que, no essencial, são aplicáveis às publicações “on paper”, então, a entidade reguladora revelará (mais uma vez) a sua perfeita inutilidade. Mas este é um simples e minúsculo exemplo. De resto, nem me parece que a ERC esteja muito preocupada em compreender este gigantesco universo com o qual nos estamos já a confrontar em larga escala.
É claro que esta transição para a sociedade algorítmica permite reforçar os argumentos contra as plataformas por parte daqueles que antes tinham o monopólio do acesso ao espaço público e o monopólio da opinião socializada. Por outro lado, de repente, os radicais descobriram um novo imperialismo, a que chamaram capitalismo da vigilância, evidenciando somente o enorme poder das plataformas on line e imputando-lhes o roubo de direitos e de titularidades aos cidadãos. Precisamente aquilo que aqui está em causa e que merece um novo e necessário constitucionalismo digital que possa regular as relações destes poderes quer com os Estados nacionais ou a União Europeia (sobretudo com esta) quer com a cidadania, não se limitando a simples códigos de conduta, como o que já foi (e bem) assinado, a códigos próprios assumidos de forma discricionária ou a disposições legais de aplicação meramente comercial. Como diz Gregorio, só assim será possível usufruir do melhor que as grandes plataformas digitais podem dar, evitando que deslizem para a produção de lucro puro e duro sem regras nem fronteiras ou de poder de natureza política. O que não se deve é ver nelas apenas poder, totalitarismo, capitalismo globalitário e imperialismo digital. História com barbas – o radicalismo reinventa-se sempre para sobreviver, mantendo acesa a velha chama. Como se para ele nada significasse esta enorme possibilidade que o cidadão passou a ter de acesso ao espaço público deliberativo, de se informar sem limites a partir de casa, de se automobilizar sem intermediações, de retirar o monopólio do acesso ao espaço público ao establishment mediático e às respectivas elites (o poder de gatekeeping), de se protagonizar singularmente e de se organizar autonomamente através de plataformas livres que possibilitam uma eficaz conectividade democrática bottom-up, em condições de promover uma autêntica democracia deliberativa. Sim, tudo isto. Mas, sim, também à necessidade de se construir um novo constitucionalismo digital à escala europeia (a que melhor pode dialogar com as poderosas plataformas digitais) que, interpelando com seriedade estas plataformas para promover uma resposta integrada às ameaças e aos riscos, dê maior protagonismo digital aos Estados nacionais e à União, inovando politicamente para melhor consolidar e aprofundar a ainda jovem democracia representativa, hoje seriamente ameaçada por forças que, à esquerda e à direita, vêem na sua matriz liberal originária o inimigo a abater. “The rise of European digital constitutionalism”, diz Gregorio, “can also be read as a reaction against the power of online platforms to set their values on a global scale on a discretionary basis” (2022: 287). Mas reacção como uma “terceira via” entre humanismo digital e capitalismo digital (2022: 284) – uma Europa consciente do papel que a IA pode representar para o progresso e o próprio empoderamento da cidadania, mas também dos riscos de concentração de poder sem controlo, não só do ponto de vista da caça ao lucro desmesurado e desumano, mas também de um poder capaz de condicionar decisivamente o curso da democracia e até mesmo de a destruir. A famosa transição digital tem de contemplar não só os progressos da IA, assumindo um protagonismo que lhe tem faltado e promovendo um fortíssimo investimento nesta área, designadamente na infraestruturação das redes digitais, na construção de próprios motores de busca e na literacia digital, mas terá também de integrar esta revolução num novo paradigma constitucional que a reconduza aos parâmetros e às exigências de uma autêntica democracia deliberativa. A ideia de um constitucionalismo digital europeu é fundamental sobretudo porque estamos a falar de poderes muito fortes e muito sensíveis e num terreno onde tem faltado não só regulação, mas também sensibilidade constitucional para a desenvolver.
IV. GLOBALIZAÇÃO, CAPITALISMO E DEMOCRACIA
No momento conturbado como o que vivemos à escala global com a pandemia e, agora, com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, com um ameaçador alarme comunicacional mundial, numa crise que representa um sério risco, por um lado, de perigosa escalada de uma guerra convencional, e por outro, de uma guerra económica e financeira global, atingindo todos, faz todo o sentido reflectir sobre a ideia de globalização e os seus efeitos sobre a democracia, ao dar origem àquilo que já designei por segunda constituency, entre a do cidadão que paga impostos (a primeira: “no taxation without representation) e a das plataformas (a terceira, a que já me referi).
Posto isto, começo por dizer que a ideia de globalização corresponde a um processo e só depois, consequentemente, se torna também um posicionamento cognitivo. É por isso que continua a ser muito importante clarificar o conceito de globalização, para melhor compreender os seus efeitos. Segundo alguns, o conceito estará a cair em desuso e com isso talvez a perder clareza conceptual, em parte certamente por ter caído na esfera da linguagem comum, da trivialidade discursiva. O que é verdade. Mas também por algum afunilamento que sofreu ao deslizar progressivamente para a esfera da economia, mais concretamente, confundindo-se com esses mesmos mercados financeiros globais que têm vindo a capturar irremediavelmente a política e a confiscar soberania ao cidadão. No plano financeiro, esta tendência até já conheceu uma sofisticada teorização por parte de um reputado académico alemão, Wolfgang Streeck, em Gekaufte Zeit. Die vertragte Krise des democratischen Kapitalismus (Streeck, 2013), quando fala da emergência de uma segunda constituency ao lado da constituency da cidadania. Ou seja, da “constituency” dos credores. Credores que na maior parte dos casos são, de facto, players globais. Não partilho da visão de Streeck, um regresso à moeda nacional, mas reconheço pertinência e originalidade à sua sugestiva análise. Sobretudo porque ela ajuda a explicar a evolução para a terceira constituency, protagonizada pelas grandes plataformas digitais.
Mas antes de entrar directamente no mérito da questão permitam-me que faça um pequeno excursus e chame a atenção para a obra de Naomi Klein, No Logo, a bíblia dos movimentos anti-globalização, publicada em 1999. E começo, citando, a este propósito, Ulrich Beck, na sua obra sobre “O que é a Globalização”:
«poder-se-ia dizer que aquilo que, para o movimento dos trabalhadores do século XIX, foi a questão de classe, no limiar do século XXI é, para as empresas que agem numa dimensão transnacional, a questão da globalização. Com a diferença essencial, todavia, de que o movimento dos trabalhadores agia como um contra-poder, enquanto as empresas globais até agora agem sem um contra-poder (transnacional)» (Beck, 1999: 13-14; itálico meu).
Estamos a falar de um mundo novo e de uma realidade que configurou o mercado de trabalho à escala mundial. Mais: um mundo que deslocalizou o processo produtivo de tal modo que também deslocalizou o emprego, fazendo recair o ónus, por um lado, sobre os trabalhadores do chamado primeiro mundo e, por outro, sobre os trabalhadores que vivem a sua situação laboral em regime de tipo militar. Estou a falar das famosas EPZ, referidas abundantemente por Naomi Klein. Ou seja: as pessoas que trabalham nas cerca de 1000 EPZ (Export Processing Zones) são (ou eram, há mais de vinte anos) 27 milhões, em todo o mundo e em cerca de setenta países. Indonésia, China, Sri Lanka, México, Filipinas, Nigéria, Coreia do Sul (conhecida nos anos oitenta como a «capital mundial dos ténis para ginástica»), Hong Kong, Guatemala, etc., etc., para outras tantas marcas multinacionais, Nike, Reebok, Burger King, Disney, Levi’s, Wall-Mart, Champion, General Motors, Shell, McDonald’s, Coca-Cola, Starbucks, Pepsi-Cola, Microsoft. De resto, algumas destas multinacionais têm PIBs superiores aos de muitos Estados. Entre os cem melhores sistemas económicos do mundo 49 são países e 51 são empresas multinacionais (Klein, 2001).
Globalização
Vejamos, então, este conceito-chave. Na verdade, a globalização não é propriamente uma doutrina ou uma teoria a partir da qual possamos compreender o mundo, como se se tratasse de uma alavanca cognitiva arquimediana. A globalização é, sim, antes de mais, um processo que está aí e perante o qual temos de nos posicionar, agindo material e intelectualmente. A globalização é, antes de mais, a coisa anterior à teoria. Assunto diferente é o que diz respeito à lógica globalitária ou à mundividência globalitária, ou seja, por um lado, à dinâmica que está inscrita nela, por outro, ao modo como, a partir dela, olhamos para a realidade. Estas, sim, surgem como visões que tendem a impor comportamentos e chaves de leitura do mundo contemporâneo. Mas, no essencial, a ideia de globalização tem sido associada sobretudo à dimensão financeira. Esta dimensão, sendo global, está de tal modo no interior dos territórios nacionais que, como disse, já se fala de uma nova constituency (precisamente a nível nacional), a dos credores, ao lado da cidadania. Todos sabem do que falo, sobretudo se a explicitar referindo-me aos famosos mercados financeiros internacionais, essa estranha relação que se transformou num fetiche parecido com aquele que Marx identificava no primeiro livro de Das Kapital com a mercadoria, ou seja, um estranho sujeito relacional, mas também sensitivo, com qualidades e sensações humanas, ou, então, referindo-me aos globalitários fundos de pensões ou às famosas agências de rating, sobretudo às três (Moody’s, Standard&Poors e Fitch) que detêm 96% do mercado de notação financeira e que em 2011 exibiram um volume de negócios de cerca de 46 mil milhões de dólares, sendo detidas sobretudo por especuladores financeiros. Falando de globalização, também todos sabem do que falo se me referir à rede, às lógicas e aos processos universais induzidos por ela (para o bem e para o mal), sendo certo que, no plano comunicacional, antes do boom das redes sociais já existia uma televisão global, sobretudo a partir da primeira guerra do Golfo, a CNN, havendo até – imaginem – quem considere que foram os portugueses a promover a primeira globalização, no século XV, na época dos descobrimentos. Se bem me recordo era o que dizia Holland Cotter, do NYT, a propósito da exposição Encompassing the Globe, promovida por Portugal nos Estados Unidos, em 2007: “A little-known fact: A version of the Internet was invented in Portugal 500 years ago by a bunch of sailors with names like Pedro, Vasco and Bartolomeu” (NYT, 29.06.2007). Ou, então, se me referir aos processos migratórios que, sobretudo a partir da presidência de George W. Bush, alastraram como mancha de óleo sobre os territórios nacionais, designadamente da União Europeia, por via marítima, aérea ou terrestre. Ou ainda se me referir, como já fiz, às famosas EPZ, Export Processing Zones, tão bem retratadas por Naomi Klein, em No Logo.
Uma globalização com estes ingredientes suscita certos requisitos críticos. Ou seja, trata-se, sim, de uma certa globalização. A mesma a que nos referimos quando falamos das lógicas neoliberais. E, já agora, também pode ser uma globalização que num certo momento parecia conhecer um único player com força para se impor hegemonicamente no mundo, o Império, de que falavam Michael Hardt e Antonio Negri, os Estados Unidos da América, sobretudo logo após a fracassada tentativa de Gorbatchov de reformar o sistema soviético e o fim do bipolarismo estratégico, político, económico e ideológico. Mas sendo certo que bem depressa se viu que o jogo internacional se estava a tornar bem mais complexo e que a lógica da guerra convencional já estava ultrapassada em grande medida por outras lógicas, sobretudo pela lógica financeira e pela lógica comunicacional. Como, de resto, já se está a verificar nesta crise, onde a dimensão global, do ponto de vista estratégico, comunicacional e económico-financeiro está a sobrepor-se ao real conflito armado convencional e localizado, na Ucrânia.
Cosmopolitismo
NA VERDADE, embora a globalização tenha vindo a conhecer uma lógica sobretudo de tipo globalitário, ela também tem desenvolvimentos num sentido bem mais interessante e progressivo, ou seja, em sentido cosmopolítico. E a polémica em torno da globalização não pode também deixar de reconhecer este sentido preciso. O que se passou, verdadeiramente, foi o seguinte: 1. na modernidade, a lógica comunitária fragmentou-se e deu lugar à lógica societária; 2. esta, por sua vez, expandiu-se e deu lugar a uma lógica cosmopolítica. Ou seja, da comunidade, à sociedade, à cosmopolis. O que, entretanto, aconteceu por via da afirmação e do triunfo do neoliberalismo foi que a lógica cosmopolítica de inspiração iluminista acabou por dar lugar a uma lógica globalitária centrada na financiarização da economia e num mercado financeiro mundial.
Esta expansão – e com estas características – provocou implosões internas e produziu, à maneira hegeliana, um efeito de superação, fragmentando e integrando numa unidade superior. O que aconteceu foi que a extrema expansão do sistema o levou a afastar-se do seu núcleo duro, a lógica comunitária, tornando-se extremamente volátil. Isso implicou que o velho núcleo comunitário se tivesse fragmentado cada vez mais em microcomunidades e que a sua função aglutinadora originária fosse substituída por uma nova função de tipo mais superestrutural e volátil. Na nova cosmopolis, de forma reactiva, tendem, pois, a formar-se microcomunidades resistentes às novas funções globalitárias e superestruturais que acabaram por se impor. Foi esta evolução da cosmopolis que motivou os movimentos antiglobalização de vários matizes e expressões.
O que, com isto, pretendo dizer é que a nova cosmopolis global é favorável ao desenvolvimento de microcomunidades sectoriais, de natureza localista, mas também de natureza ético-política (os movimentos por causas), tendencialmente resistentes às novas funções globalitárias. É que elas pretendem exprimir a estrutura enquanto a nova função é essencialmente de tipo superestrutural. Uma função que inclui, como disse, uma dimensão essencialmente económica, mas sobretudo financeira (globalização), e uma dimensão essencialmente comunicacional cosmopolita ou globalitária, quando ancorada nos colossos – grupos de media e plataformas digitais – da informação mundial.
A função globalitária possui, pois, duas dimensões: a primeira é identificada com a expansão universal de um concentrado poder económico-financeiro; a segunda, com a lógica da comunicação global. A primeira é dominantemente intensiva (as concentrações mundiais de natureza económico-financeira, incluídas as do sector mediático); a segunda é dominantemente extensiva (a expansão universal e capilar da comunicação). Esta função tende a homogeneizar os conteúdos e a tudo transformar em mercadoria. Incluída a própria informação. E para isso contribuem decisivamente as grandes concentrações de poder. A globalização, induzida pela lógica globalitária, nasce assim a partir dos vértices dos poderes económico-financeiro e mediático. Para se afirmar democraticamente, ela deveria, pelo contrário, partir das exigências concretas de vida, da base dos sistemas sociais, como parece já estar a acontecer, em parte, com a expansão da rede, ao serviço do indivíduo singular. De qualquer modo, a rede possui uma virtualidade insurgente que não se verifica nos media tradicionais. Assim não sendo, há que a considerar potencialmente perigosa para as próprias democracias nacionais. Só assim se explica a polémica em torno da globalização. Mesmo no plano da rede e das chamadas tecnologias da libertação aquilo a que também estamos a assistir é a uma excepcional concentração de poder por parte das grandes plataformas, dando lugar àquilo que Shoshana Zuboff chama capitalismo da vigilância e ao seu poder preditivo do comportamento humano vertido, depois, em manipulação comercial e política da cidadania mundial.
Esta tendência está a gerar contestações porque surge como uma imposição unilateral, sem base de legitimação e sem eficazes e legítimos controlos políticos, porque sem referentes políticos equivalentes. O conceito de função globalitária serve assim, apropriadamente, para designar a unificação forçada daquilo que se mantém substancialmente diferente. Outra coisa é a cosmopolis, legítima herdeira do iluminismo progressista. A construção progressiva de uma democracia europeia representa esta herança, já que se funda num movimento ascensional que evolui para uma concreta forma de cosmopolitismo, bem radicado em exigências internas dos próprios Estados nacionais. Ela constitui, assim, exemplo virtuoso de um cosmopolitismo politicamente sustentado, bem diferente, pois, da globalização económico-financeira. O verdadeiro cosmopolitismo é incompatível com o «colonialismo» tendencial das funções globalitárias. Mas, felizmente, parece que começa a emergir um novo cosmopolitismo de natureza reticular muito resistente à natureza impositiva da lógica globalitária, porque orgânico ou funcional a uma dinâmica ascendente da livre expressão das expectativas individuais. Isto, apesar de também ele trazer consigo uma correspondente função globalitária, precisamente a das grandes plataformas e da gestão da informação acerca dos perfis dos utilizadores para efeitos de desenvolvimento de estratégias preditivas do comportamento humano com objectivos comerciais e políticos, oportunamente denunciados pela Zuboff e pela NETFLIX no seu documentário sobre as redes sociais. Duas dimensões presentes na rede, mas onde a componente libertária tem um papel que pode ser decisivo para esse novo cosmopolitismo antiglobalitário e que, por isso, aguarda, também ele, desenvolvimentos virtuosos que contrariem a evolução negativa do controlo mundial da informação pelas plataformas. E aqui cabe, como já vimos, o constitucionalismo digital, regulador e que reconduz o poder das plataformas ao fundamento legitimador da cidadania.
A Crise Adiada do Capitalismo Democrático
A crise que teve início em 2008 é uma típica crise da globalização: das finanças à economia real, às dívidas soberanas, ao euro, à União Europeia. Insegurança, incerteza, volatilidade, retracção no investimento, desemprego, recessão, instabilidade social e política. Estas palavras traduzem-na bem. A solução passou por uma forte intervenção dos Estados com injecção de dinheiro nas economias, gerando aumentos insustentáveis da dívida pública em muitos países, com as agências de rating a sublinharem a incerteza acerca da capacidade de os países pagarem as suas dívidas. E com o consequente serviço da dívida a atingir níveis incomportáveis pelas brutais subidas de juros que se seguiram às notações das agências, criando-se um problema verdadeiramente novo nos processos críticos.
E é precisamente por estas razões que esta minha incursão no tema da globalização presta atenção às reflexões de Wolfgang Streeck sobre esse modelo que ele designa por “Estado democrático endividado”, (2013: 127-143), ou seja, daquele Estado que se seguiu ao “Estado democrático fiscal” e que passou a apresentar uma dupla e nova constituency: a dos cidadãos e a dos credores, que já enunciei antes. Entro, por isso, agora, directamente neste tema, ou seja, na questão da dívida soberana e suas incidências na estrutura nuclear da democracia representativa e no modelo que, nas últimas décadas, lhe está associado, o modelo social europeu, que, como sabemos, se viria a tornar crucial na crise pandémica e na crise bélica que estamos a viver. Com este modelo, o do Estado endividado, sem dúvida muito sugestivo e, no meu entendimento, muito eficaz, na medida em que gera automaticamente um link entre economia e política, será possível compreender as principais variáveis envolvidas na crise que classifico como crise da globalização (4). Como diz Streeck, na obra já referida:
“Há muitos motivos para considerar que o surgimento do capital financeiro como um segundo povo – um povo do mercado, que rivaliza com o povo do Estado – constitui uma nova fase da relação entre o capitalismo e a democracia na qual o capital deixou de influenciar a política apenas indiretamente – através do investimento ou não em economias nacionais -, e passou a influenciá-la diretamente – através do financiamento ou não do próprio Estado” (2013: 134; itálico meu).
Quem tem prioridade, nesta equação, o povo do mercado ou o povo do Estado? Os credores internacionais ou os cidadãos? Deve-se evitar a “inquietação” dos mercados ou a dos pensionistas e dos cidadãos/clientes do Estado Social/contribuintes fiscais (2013: 137-138)? É por isso que, para responder com eficácia a este dilema, Streeck afirma que “o melhor Estado endividado é um Estado com uma grande coligação, pelo menos na política financeira e fiscal” (2013: 138-139). É que, deste modo, é possível garantir a confiança dos mercados, na medida em que desaparece a alternativa às políticas restritivas e de austeridade, ficando os eleitores impossibilitados de provocar mudanças políticas. Compreendem? Estão a ver bem por que razão muitos queriam o bloco central, em Portugal ou na Espanha? A verdade é que esta solução amputaria a democracia de um instrumento essencial: a possibilidade de escolha em alternativa. Confiscaria poder aos cidadãos. Por outro lado, como diz Streeck, “o facto de a governance internacional ter sido encarregada da supervisão e regulação orçamental de governos nacionais ameaça fazer com que o conflito entre o capitalismo e a democracia seja decidido durante muito tempo, se não para sempre, a favor do primeiro, dada a expropriação dos meios políticos de produção dos Estados” (2013: 144). A posição de Streeck é muito clara: o neoliberalismo tem vindo a impor, sobretudo a partir dos fins dos anos ’70, o triunfo da justiça de mercado sobre a justiça social (5), através da confiscação do poder da cidadania pelo poder dos mercados. O modelo de Streeck centra-se em três momentos essenciais na evolução do Estado: o Estado democrático fiscal, que alimentava o orçamento do Estado através dos impostos, deu origem ao Estado democrático endividado, através da dívida pública, que alimentava os orçamentos sobretudo através do endividamento externo, do recurso aos mercados financeiros internacionais (e não tanto do mercado interno); depois, segundo Streeck, passou-se à fase do Estado de Consolidação, que é o ponto em que nos encontramos. O modelo é assim formulado por Streeck:
“O Estado democrático governado pelos seus cidadãos e, enquanto Estado fiscal, alimentado pelos mesmos, transforma-se no Estado democrático endividado mal a sua subsistência deixa de depender exclusivamente das contribuições dos seus cidadãos para passar a depender, em grande parte, também da confiança dos credores. Ao contrário do povo do Estado fiscal, o povo do mercado do Estado endividado está integrado a nível transnacional. A única ligação que existe entre os membros do povo do mercado e os Estados nacionais é a dos contratos: estão ligados como investidores e não como cidadãos. Os seus direitos perante o Estado não são públicos, mas sim privados: não se baseiam numa constituição, mas no direito civil. Em vez de direitos civis difusos, passíveis de ser alargados do ponto de vista político, os membros do povo do mercado possuem direitos perante o Estado cuja aplicação pode ser exigida em tribunais cíveis e terminar através do cumprimento do contrato. Enquanto credores, não podem eleger outro governo em vez daquele que não lhes agrada; mas podem vender os seus títulos de dívida ou não participar nos leilões de novos títulos de dívida. O juro pago por estes títulos, que reflete o risco estimado pelos investidores de não recuperação total ou parcial dos seus investimentos, constitui a ‘opinião pública’ do povo do mercado – e uma vez que esta é expressa de forma quantificada, é muito mais precisa e legível do que a do povo do Estado. O Estado endividado pode esperar lealdade do seu povo, enquanto dever cívico, enquanto no que diz respeito ao povo do mercado tem de procurar conquistar a sua ‘confiança’, pagando devidamente as suas dívidas e provando que poderá e quererá fazê-lo também no futuro” (2013: 130-131).
Este modelo explica a crise através de uma mudança nas relações entre administração fiscal, cidadão, credor, eleições, mercado e Estado. É um modelo sugestivo e parece ter sido extraído directamente da crise de 2008, designadamente inspirando-se nos casos dos países intervencionados: Grécia, Irlanda e Portugal. É um modelo muito sugestivo, mas continua subsidiário do subsistema económico-financeiro. Nisto não se desvia dos modelos tradicionais de explicação da crise, sendo certo que a sua própria solução, a de Streeck, acaba por afunilar na proposta de reposição das moedas nacionais e na reintrodução do mecanismo da desvalorização. Neste sentido, não me revejo nele.
Com efeito, a perspectiva de Streeck, que vê na União monetária e na União política uma tentativa de coroamento do percurso neoliberal iniciado nos anos setenta, além de errada e, diria mesmo, injusta, resume-se, afinal, ao fim do euro (ou à sua conversão em simples moeda-referência) e à reposição das moedas nacionais para que possa ser repristinado o mecanismo de desvalorização, enquanto único meio que, a seu ver, poderá repor a liberdade e a autonomia nacionais, evitando a confiscação da democracia pelo sistema financeiro internacional, ou seja, pelo capitalismo, em face da tentativa totalizante (ou mesmo totalitária) de construção de um mercado mundial autorregulado e autorregulador, uma espécie de “mão invisível” mundial, para fazer jus aos diletos discípulos de Smith e de Hayek. Como diz o próprio:
“Nas circunstâncias actuais, uma estratégia que aposta numa democracia pós-nacional, na sequência funcionalista do progresso capitalista, não serve senão os interesses dos engenheiros sociais de um capitalismo de mercado global e autorregulador; a crise de 2008 constituiu uma antevisão daquilo que este mercado pode provocar” (Streeck, 2013: 274).
Mas Streeck acaba por citar (favoravelmente) uma interessante resposta de Juergen Habermas relativa ao actual panorama crítico da União no sentido de uma abertura no plano do mercado, mas também de uma evolução política com um nível mais elevado e alargado de integração social: uma “dinâmica capitalista (…) que pode ser descrita como uma interação entre uma abertura forçada em termos funcionais e um fecho integrador do ponto de vista social a um nível cada vez mais alto”. É claro que quem conhece a obra de Habermas sabe que se trata de fazer interagir de forma mais intensa a integração sistémica, no plano económico-financeiro, com a integração social, mas agora num plano pós-nacional (de cidadania e institucional), desencadeando um novo e mais alargado processo de relegitimação e integração social. Esta perspectiva é, no meu entendimento, a única que poderá responder à actual crise europeia. E, na verdade, Habermas, num ensaio publicado em Maio de 2013, na Revista alemã “Blätter für Deutsche und Internationale Politik” (Habermas, 2013), critica exaustivamente a posição de Streeck, acusando-o de querer, contraditoriamente, responder com soluções nacionais a uma crise que está centrada em mercados irreversivelmente globalizados: “não é o reforço democrático de uma união europeia até agora construída só a metade a dever recolocar num equilíbrio democrático a relação tresloucada entre política e mercado” – diz Habermas, criticamente, referindo-se à posição de Streeck. “Wolfgang Streek não se propõe completar a construção europeia, mas sim desmontá-la” – continua; “quer regressar às fortalezas nacionais dos anos sessenta e setenta, com o objectivo de ‘defender e reparar tanto quanto possível os restos daquelas instituições políticas graças às quais talvez se pudesse modificar e substituir a justiça do mercado com a justiça social’. Esta opção de nostálgico fechamento em concha na soberana impotência de nações já arrasadas é surpreendente se considerarmos as transformações epocais dos Estados nacionais que antes tinham os mercados territoriais ainda sob controlo e que, hoje, pelo contrário, estão reduzidos ao papel de autores enfraquecidos e inseridos, por sua vez, nos mercados globalizados” (Habermas, 2013).
A posição de Habermas é conhecida. E aqui parece haver um grande consenso: é preciso encontrar soluções políticas supranacionais para problemas globais. Romper com o desfasamento entre problemas globais e soluções nacionais. Esta é também a posição do neoconservador Fareed Zakaria, no seu famoso “Capitalist Manifesto: Greed is Good”. E a do francês e ex-colaborador de Pierre Mauroy, Jean Peyrelevade: “a política de que temos necessidade para regular a mundialização deve ser, ela própria, mundializada” – (2008: 104; a obra é de 2005, muito anterior à crise de 2008). A posição de Habermas, no plano europeu, aponta, de facto, para um reforço da União política europeia, chegando a propor, por um lado, (a) “uma moldura institucional para uma política europeia fiscal, económica e social comum que pudesse criar as condições necessárias para a possível superação dos limites estruturais de uma união monetária imperfeita”; e, por outro, (b) uma “participação paritária do Parlamento e do Conselho na legislação e uma Comissão que responda a ambas as instituições” (Habermas, 2013).
Os cidadãos, neste processo, desempenhariam um importante papel quer enquanto membros dos Estados nacionais quer enquanto membros da União Europeia. Esta posição, está bem de ver, não confina nem a explicação nem a solução da crise em mecanismos meramente sistémicos (de controlo) ou, mais especificamente, a puros mecanismos de carácter financeiro, ainda por cima centrados numa solução política e financeira nacional, como propõe Streeck. Ela não prescinde da política e da integração social, ou seja, na resolução da crise é imprescindível a intervenção da componente subjectiva das sociedades, seja no plano da cidadania seja no plano institucional. Teoricamente, Habermas considera que o conceito de crise engloba necessariamente uma componente subjectiva (6). De resto, sabemos que a crise de ’29 e a subsequente Grande Depressão não foram corrigidas somente com mecanismos sistémicos e financeiros, mas sim com um relançamento da capacidade política de intervenção do Estado, designadamente com o New Deal. Embora saibamos também que, pelo menos na interpretação de Peyrelevade, “os Estados Unidos chegaram mais cedo que nós a um capitalismo amplamente desintermediado”, graças precisamente à crise de 1929: “O desmoronar da Bolsa causou a falência de centenas de bancos que tinham considerado boa ideia investir nela as poupanças que lhes estavam confiadas e, depois, por ricochete, a ruína de milhões de depositantes”. As estruturas de intermediação falharam e, por isso, acabaram por antecipar o nascimento nos Estados Unidos do capitalismo directo, a entrada em cena no mercado financeiro dos detentores individuais de capital, que está na origem do actual modelo financeiro mundial (2008: 36-37).
De qualquer modo – e não obstante a solução proposta por Streeck, aqui criticada, por errada -, temos, portanto, um primeiro modelo explicativo da crise, o do Estado fiscal que se torna Estado endividado e que, assim, altera profundamente a estrutura de suporte do edifício democrático, transferindo soberania do cidadão para o credor e transformando, deste modo, os mandatos de natureza política em mandatos de natureza financeira. Sabemos bem o que é isso por via da entrada da Troika no nosso País, onde o programa de governo pós-eleições, em Junho de 2011, ficou consignado em memorando de natureza financeira negociado com os credores. Houve eleições, sim, para os representantes, mas o programa de governo dos partidos candidatos ao executivo (PS e PSD) até poderia ter sido exactamente o mesmo memorando, porque seria esse a ser realmente executado.
Este modelo de análise tem a virtude de conjugar conceptualmente política e economia na óptica da tendência de confiscação daquela por esta, lá onde, como muito bem demonstra Peyrelevade (2008), a emergência dos mercados financeiros globalizados leva à confiscação da soberania de um cidadão doravante politicamente impotente perante a força sistémica dos mercados globais, pelo menos enquanto não dispuser de equivalentes alavancas políticas supranacionais com suficiente força para substituir, num plano mais elevado, aquela que foi a tradicional regulação centrada no poder dos velhos Estados nacionais territoriais. Peyrelevade expõe o problema de forma muito interessante e convincente:
“Assim, o cidadão, cuja existência está ligada ao território nacional, é vítima da sua própria esquizofrenia, dado que as suas escolhas, na qualidade de consumidor ou, se for esse o caso, de acionista, alimentam e reforçam um capitalismo mundializado que implica a diminuição da sua própria soberania. (…) Exemplo puro de dissociação individual, o desejo de enriquecimento que têm leva-os a repudiar a sua própria cidadania” (2008: 118; itálico meu).
O que Peyrelevade diz poderia ser transposto para o caso do poder das plataformas digitais e para a relação que se estabeleceu entre elas e os users. Sem tirar nem pôr. E também aqui a solução parece ter de residir na criação de um modelo supranacional de regulação que impeça que os cidadãos se transformem em obedientes, voluntários e dissociados súbditos que abdicam da própria cidadania em troca do acesso ao maravilhoso e libertário mundo das redes sociais.
Greed Is Good
FAREED ZAKARIA tem da crise uma visão optimista. Apesar de tudo, ainda iremos querer, no futuro, mais capitalismo. Mas não centrado no Estado-Nação. Porque a crise não se resolve regressando a uma soberania nacional que já acabou de fazer todo aquele percurso que iniciou com a construção dos Estados nacionais, no início da Modernidade. Na verdade, esta crise é também resultado de uma globalização que não conhece ainda meios (políticos e institucionais) de autorregulação e de governo, tal como ele defende no seu ensaio “A Capitalist Manifesto: Greed is Good” (2009). Diz-nos Zakaria:
“More, the fundamental crisis we face is of globalization itself. We have globalized the economies of nations. Trade, travel and tourism are bringing people together. Technology has created worldwide supply chains, companies and costumers. But our politics remains resolutely national. This tension is at the heart of the many crashes of this era – a mismatch between interconnected economies that are producing global problems but no matching political process that can effect global solutions”.
E esta ideia colhe uma das principais questões que se pode pôr hoje a propósito da própria ideia de crise. O desfasamento entre a dimensão do problema e a dimensão da solução. Ou o desfasamento entre o patamar da crise e o patamar da solução. Em primeiro lugar, é importante perceber como uma crise que surgiu, tal como já foi referido, nos EUA, em 2008, acabou por ser uma crise que afectou ou implicou o mundo inteiro; em segundo lugar, é muito importante aquilo que Zakaria diz quanto ao facto de, apesar de ser uma crise global, apesar das “empresas e dos clientes” serem do mundo inteiro, a resolução política se ter mantido a um nível nacional ou local; ou, então, como, paradoxalmente, o próprio Streeck acaba por propor como solução aquilo que, na realidade, se configura como o problema. Na verdade, parece ser difícil resolver um problema global, e criado por todos, sem ser de uma forma igualmente forte e institucionalmente concertada, mas sobretudo sem ser através de mecanismos adequados, que só podem ser supranacionais. Um problema global exige uma solução global. Mas Zakaria avança mais na sua reflexão sobre esta crise de 2008 no seu todo e toca em pontos fundamentais: a instabilidade como condição inerente ao capitalismo e/ou à evolução, logo, como condição inerente à crise; e a moralidade, ou a falta dela, como possível razão de escolhas que agravam a própria crise. Este último aspecto, mas também aquela dimensão subjectiva da crise, de que fala Habermas no livro Spaetkapitalismus, ficou bem patente na crise de ’29, tanto do lado dos economistas e dos jornalistas (muitos), como do lado dos políticos (que quiseram lavar as mãos deste processo, como se vê claramente na descrição milimétrica que nos oferece Galbraith na obra de 1954 sobre a crise de 1929) ou do lado dos banqueiros, financeiros e especuladores. Zakaria acaba mesmo o seu ensaio com uma frase elucidativa em contexto de crise, ao dizer que “há muitas coisas para resolver, no sistema internacional, nos governos nacionais e nas próprias empresas, mas a maior mudança tem de ser em cada um de nós”.
Em boa verdade, e sem colocar a questão na ótica de uma ruptura radical do sistema, “do que se trata, de facto, é de uma profunda mudança de paradigma em todas as esferas da sociedade” (Santos, 2013). Ou seja, a crise de 2008 só é compreensível no quadro de uma mudança de paradigmas. Incluído o civilizacional e o cultural. E não só o político, o jurídico, o económico, o tecnológico ou o comunicacional. Uma compreensão de fundo capaz de nos ajudar a fazer face à crise, já que ela está inscrita no nosso próprio processo evolutivo. Capaz, pois, de nos ajudar a sobreviver no interior dela, não a olhando de forma negativa. Bem pelo contrário, olhando para ela de forma positiva. Na verdade, quando se fala em “crise de crescimento” ou em “resultados do sucesso”, como faz Fareed Zakaria no seu ensaio, é disso mesmo que se fala: da crise que nos faz crescer. Outra coisa é a ruptura radical, para a qual aponta a teoria marxista da crise e de que são exemplo a ruptura com o Ancien Regime e, em parte, a Revolução Soviética, a famosa “revolução contra o capital” (de Marx), na expressão de Antonio Gramsci. Só que esta acabaria por ser reabsorvida setenta anos depois, em 1989.
Diz ele, Zakaria (7) (mas sobre o assunto também Galbraith reflecte no seu livro “ The Culture of Contentment”), que os bons tempos levam sempre a uma espécie de auto-satisfação que privilegia o bem-estar e o lucro imediatos. E também que, de facto, se estava num período em que se verificara um enorme crescimento: num longo período de estabilidade política, a economia global cresceu exponencialmente, duplicando entre 1999 e 2008 e tendo, entre 2006 e 2007, 124 países crescido ao ritmo de 4% ao ano, ou mais; a inflação baixou para níveis jamais vistos; as recessões passaram a ser controladas muito mais rapidamente do que outrora; milhões de pessoas foram retiradas da pobreza; deu-se a revolução da informação e da Internet; emergiram novas potências económicas, como a China, gerando novas interdependências financeiras com fortes consequências no crédito ao consumo (designadamente nos USA; veja-se os índices apontados por Peyrelevade, 2008: 74-75). Uma visão optimista da crise, a de Zakaria, ainda que a exigir uma resposta capaz de a pilotar no sentido do progresso, em particular através da criação de mecanismos globais que respondam a problemas que já são também eles globais.
V. CONCLUSÃO
Na verdade, tudo isto viria a gerar efeitos em cadeia para os quais não havia mecanismos de gestão e de controlo. Zakaria usa a metáfora do carro sofisticado que já ninguém sabe conduzir. Daqui, o desastre ou, melhor, a crise. Daqui também que ainda não se tenham verificado respostas eficazes para uma crise que acabou por se revelar como, certamente, crise financeira, mas também da democracia, da globalização e mesmo da ética. Auto-satisfação, como resultado do crescimento, que produziu lassidão, sofreguidão e processos especulativos em escala alargada? Certamente. Mas o que está em jogo é provavelmente muito mais do que isto. O que está em jogo são os vários paradigmas que enquadram o nosso funcionamento societário e que, em grande parte, são subsidiários da revolução moderna que se iniciou no século XVIII ou mesmo com o próprio Renascimento e as revoluções científicas que se lhe seguiram. A questão que se põe a propósito deste ensaio de Zakaria é a de saber se será verdade que “daqui por alguns anos, por estranho que isso possa parecer, nós podemos todos achar que estamos ávidos de (mais) capitalismo, não de menos”. Zakaria está certamente a pensar que, tal como a democracia, o capitalismo é o pior dos sistemas, à excepção de todos os outros. Não acontecerá, pois, na sua óptica, uma derrocada do capitalismo como fora profetizado pela teoria marxista. Como sabemos, o que viria a acontecer seria precisamente o contrário, a derrocada do socialismo de Estado e a sua reabsorção histórica. Mas de que capitalismo estamos a falar, do capitalismo total, financeiro, accionista, daquele que se separou da economia real, passando, depois, a dirigi-la de acordo com as suas próprias performances em matéria de lucro? Daquele “capitalismo sem projecto” (Patrick Artus) que se identifica exclusivamente com o lucro e, se possível, com o lucro imediato, constante e progressivo (Peyrelevade, 2008: 90)? Do capitalismo da vigilância, de que fala a Soshana Zuboff, que gera essa terceira “constituency” e que transforma o cidadão em súbdito voluntário mediante a troca entre acesso ao espaço digital e a cedência de dados biográficos para a determinação de modelos preditivos de comportamento de natureza económica, mas também de natureza política, com a consequência de, com isso, se dissociar, abdicar da sua soberania individual, necessária à legitimação do poder político?
Se, com a globalização, for este o capitalismo que acabará por se impor, então, o que acontecerá será a sua libertação dos vínculos da política, do Estado, do trabalho e, finalmente, da própria cidadania, que acabará substituída pela soberania dos accionistas e dos credores, das grandes plataformas financeiras e digitais, numa palavra por uma soberania dominantemente funcional,. que prescinde da velha soberania territorial. O que parece que hoje já temos é uma convivência ainda um pouco indefinida entre três “constituencies”: a do cidadão, a dos credores e a das plataformas digitais. Esta situação nebulosa não poderá manter-se, devendo ser clarificada, pelo menos, por um lado, através do reforço da resposta financeira própria às exigências das dívidas soberanas e, por outro, através da criação de um constitucionalismo digital que regule o novo mundo digital. Mas isto só pode ser feito através de uma política que não esteja capturada por aqueles poderes, mas esteja centrada na própria cidadania.
NOTAS
1.Veja-se sobre a natureza do mandato o Art. 7, Secção III, Cap. I, Título III, da Constituição francesa de 1791.
2. Sobre o “espaço intermédio” veja também “A Política, o Digital e a Democracia Deliberativa”, capítulo de minha autoria, em Camponez, Ferreira e Rodríguez-Diaz, Estudos do Agendamento, Covillhã, Labcom, 2020, pp. 137-167.
3. Veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 259-264).
4. Isto não significa que partilhe da perspectiva de Streeck, que assume, nesta obra, uma posição completamente diferente da que advogo, ou seja, a necessidade de um aprofundamento político da estrutura institucional da União Europeia e de uma constituição para a União.
5. Veja-se, a este propósito, a posição do Prémio Nobel Friedrich von Hayek, e pai dos neoliberais, sobre a desvalorização do próprio conceito de justiça social (Hayek, 1978), que ele próprio afirma nem saber o que é.
6. Sobre o conceito de crise. Olhemos para a origem da palavra crise. A palavra crise vem do grego: krísis (-eôs): 1. separação, discórdia, disputa; 2. Escolha; 3. decisão, êxito, sucesso; decisão: a) decisão judiciária; pôr um processo a alguém, juízo, condenação; b) tribunal, direito, castigo; c) crítica estética. São estes os significados que encontramos num bom dicionário de grego antigo. A palavra (um substantivo) vem do verbo krínô e tem a ver com: separar, dividir, decidir, julgar, condenar. Poder-se-ia dizer que, no sentido etimológico, há uma ideia de rotura, de separação, de decisão com reais efeitos, mas também de intervenção da vontade, da razão e da consciência (podendo implicar juízos de valor, como veremos). E é na decisão que separa, com intervenção da razão, da consciência e da vontade, ou seja, na intervenção do elemento subjectivo, que assentará a ideia de Crise, muito ligada à ideia de revolução. Num importante livro de 1973, Legitimationsprobleme im Spaetkapitalismus (Habermas, 1973), Juergen Habermas analisa o conceito de crise nas suas várias dimensões, desde a dimensão simplesmente médica, onde a crise é provocada por algo que é exterior ao paciente, algo objectivo sobre o qual ele não pode influir, por agentes externos. E, todavia, essa crise não é separável da visão interna de quem a ela está sujeito. Ou seja: com as crises, nós ligamos a ideia de uma potência objectiva que subtrai a um sujeito uma parte da soberania que lhe é normalmente garantida. E, todavia, no seu entendimento, a ideia de crise só é compreensível se incluir a percepção dela por parte dos agentes a ela sujeitos, mesmo que não tenham poder para interferir nela enquanto provocada por agentes externos. Com efeito, segundo Habermas, a ideia de crise na dramaturgia clássica – de Aristóteles a Hegel – já implica a presença de sujeitos, de protagonistas. A crise, na verdade, só se configura como tal quando, de algum modo, os que a ela estão sujeitos têm dela consciência, mesmo que a sofram sem terem capacidade para nela interferir. Esta variável subjectiva torna-se ainda mais decisiva no plano histórico-social. Trata-se aqui da relação entre consciência-vontade e estados de facto. Pode não haver ligação, mas estes elementos têm de estar presentes na Crise e na própria ideia de Crise. Habermas: “Die Krise ist nicht von der Innenansicht dessen zu loesen, der ihr ausgeliefert ist” (Habermas, 1973: 9). “Mit Krisen verbinden wir die Vorstellung einer objektiven Gewalt, die einem Subjekt ein Stueck Souveraenitaet entzieht, die ihm normalerweise zusteht” (1973: 10).
7. Sigo aqui a interpretação de Santos (2013: 43-45).
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A LAVANDARIA SEMIÓTICA
E Outras Coisas Do Mesmo Jaez
MANIFESTO
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 04-2023
I. POLITICAMENTE CORRECTO
COMEÇA A SER PREOCUPANTE esta higienização da língua, da arte e da história que grassa por aí. Agora são os livros da Agatha Christie, os de Roald Dahl ou os de Ian Fleming sobre o famoso James Bond, o Agente 007, a sofrerem a purga linguística; há também a correcção de títulos de documentos históricos, bem datados; ou a professora que, numa escola dos Estados Unidos, teve de se demitir por ter mostrado aos alunos fotos do David de Michelangelo; a cobertura dos genitais em obras de arte de grandes e historicamente consagrados artistas por ofenderem a moral pública – pornografia da pura, corruptora dos grandiosos princípios da moral; o derrube de monumentos de arte pública, num denodado esforço de punição do passado que sobreviveu sob forma de obra de arte; a Universidade de Manchester que, em nome de uma linguagem inclusiva e neutra, criou um guia de boas práticas linguísticas, um “guide outlines how to use inclusive language to avoid biases”, para seu uso e consumo. Ou seja, uma enorme galeria de gestos purificadores, procurando trazer o passado e o presente aos princípios destes apóstolos da virtude, desta santidade ideológica que não admite que o real tal como ele foi ou tal como é seja sequer nomeado. Uma autêntica revolução semiótica em busca de hegemonia universal. Vamos, pois, a isso, que se faz tarde.
1.
Nem mais nem menos – é mesmo assim. Agora até as palavras pai e mãe, irmão e irmã, homem e mulher e marido e mulher saem do culto glossário manchesteriano para serem substituídas preferencialmente (rather than, é a fórmula usada) por parent ou guardian, por sibling, por person ou por partner, respectivamente. Tudo deve ser asséptico. Isto numa Universidade de um país que se preza de conservar e dignificar as suas tradições. Não numa creche (e ainda bem). Eu, que tenho dois filhos, se algum deles me tratar por guardian não vou mesmo gostar. Sou pai e esta palavra traz consigo um imenso afecto que não pode ser reduzido à categoria de guardião, de tutor ou do que lhe quiserem chamar os arautos do linguajar puro e cristalino.
2.
Esta visão clínica, ou mesmo cínica, da linguagem, esta limpeza linguística, esta lavandaria semiótica ao serviço de uma visão do mundo politicamente correcta e woke, devidamente esterilizada e pasteurizada, já está mais institucionalizada do que parece e acompanha, naturalmente, aquela outra desse revisionismo histórico que já está a chegar também à literatura, passando pelos monumentos e pela pintura. O revisionismo em todo o seu esplendor. Uma cruzada em pleno desenvolvimento pronta a bater-se pela novilíngua universal contra os infiéis, os apóstatas sem vergonha perante as malfeitorias dos seus antepassados. Uma nova santa inquisição que espreita à esquina, com manuais de boa conduta à mão, e que promove blitzkriege contra os símbolos da opressão línguística, artística e histórica. Eles, os apóstolos da nova inquisição, já andam a catar a gramática e a semântica, já andam pelos museus e pela arte pública a punir os desmandos do passado e seus testemunhos. Ainda os havemos de ver a chicotearem estátuas no pelourinho electrónico, tal a fúria castigadora destes arautos da novilíngua. A minha linguagem, dirão, é pura, foi devidamente descontaminada das abomináveis componentes tóxicas da história, desinfectada, esterilizada e pasteurizada, podendo ser tomada em grandes doses sem perigo de infecção e de contágio.
É preciso começar por algum lado, acham eles. Pois então comece-se pela língua, pela arte e pela história. A língua espelha a história de um país e, se condenarmos o seu passado, como condenamos, pelas suas práticas incorrectas e imorais, ao longo de séculos ou mesmo de milénios, desde o tempo dos homens das cavernas, em nome dos valores que hoje consideramos absolutamente correctos, então temos de efectuar uma limpeza, não só da língua e dos rastos e restos que a iniquidade histórica deixou nela, higienizando-a, esterilizando-a, pasteurizando-a e purificando-a das impurezas e das bactérias que historicamente se foram sedimentando até nas suas próprias estruturas formais (exemplo, o domínio do género masculino na gramática e os sinais de diferença sexual ou mesmo de classe no próprio direito, também com inadmissíveis marcas masculinas ou burguesas), mas também das obras de arte onde possam ser encontrados resquícios ou marcas de um passado construído com os valores que hoje execramos (na arquitectura, na escultura, na literatura, na pintura, na música). Marcas que nem para a sucata hão-de servir, não vão os sucateiros reciclar tão deletérios produtos. Produtos-símbolo da exploração, mas também do sexismo unilateral e dsavergonhado que lhes estava associado.
3.
O que é curioso é que isto está a acontecer nos países que mais progressos civilizacionais fizeram e que coexistem com outros países onde o básico nem sequer está garantido à generalidade das populações. Um gigantesco salto em frente – esperando-se que não seja para o precipício -, em vez de uma viagem aos passados que coexistem connosco e que estão aqui ao nosso lado, bem à vista, merecendo uma preocupação absolutamente prioritária relativamente às marcas visíveis do passado na gramática, na semântica ou na arte. Estes passados estão a chegar à União Europeia pelo Mediterrâneo, querendo tornar-se presente. Sim, mas o passado ficou lá nas suas terras, nas suas casas. E é lá que reside o problema principal.
Mas é por aqui, pela limpeza semiótica, que esta luta civilizacional está a avançar com enormes vitórias nas próprias instituições internacionais, com sinais que são verdadeiramente preocupantes porque nos arriscamos a que esta se torne uma visão hegemónica, com expressão jurídico-normativa, e que acabe por assumir uma natureza inquisitorial, um policiamento das consciências, através da língua, da arte e da história e que nos amarre ao universo da narrativa e das palavras autorizadas. Numa sintomática revisitação de Orwell. Uma matriz claramente antiliberal e uma palavra de ordem que é o oposto do que ficou consignado no documento que representa a matriz da nossa modernidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – Art. 5: “Tout ce qui n’est pas défendu par la loi ne peut être empêché, et nul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne pas”. Pelo contrário, é proibido tudo aquilo que não é permitido. Não só proíbem determinadas palavras, como também impõem o uso de outras. Começa-se logo pelo dicionário, pelo uso de certas palavras, o que lembra os tempos da ditadura. Por exemplo, não é permitido (ou, pelo menos, não é aconselhável) o uso das palavras mãe ou pai. O problema é que esta é a zona onde a liberdade vive de mãos dadas com o afecto, ficando o seu exercício seriamente diminuído, precisamente num tempo em que os mesmos gritam pela defesa da privacidade e pela liberdade individual. Se nem numa Universidade inglesa, onde a liberdade deve ser o primeiro princípio a estar garantido, já se podem usar as palavras homem-mulher, pai-mãe, marido-mulher, irmão-irmã que acontecerá noutras áreas de grande intensidade social?
4.
Do que se trata verdadeiramente é de uma luta pela hegemonia, uma luta que não tem verdadeiramente o sabor de um confronto cultural, mas sim o de uma batalha administrativa pelo controlo formal da língua e da narrativa acerca da história, da arte, da moral e da sociabilidade. E de onde é que lhes vem tanta força, aos revisionistas da língua e da história e arautos de uma nova moralidade? A força vem do facto de se considerarem os verdadeiros intérpretes das declarações universais de direitos. Numa lógica de kamikaze. É daqui que lhes vem a força e a legitimidade. Só que o que eles verdadeiramente fazem é uma luta pela imposição administrativa e directa, sem mediações, destes direitos, princípios e valores, num discurso de pensamento único que absolutiza valores que são tão históricos como os outros o foram, no seu tempo. O que eles postulam verdadeiramente é o fim da história. Um momento omega que seja a medida de todas as coisas e do próprio tempo. O Fukuyama deve estar a rir-se. Na verdade, o que praticam é um absolutismo axiológico que querem ver imposto administrativamente naquelas que são as sociedades mais avançadas do planeta, numa vertiginosa fuga para a frente relativamente a sociedades que ainda não viram satisfeitas sequer as condições básicas da existência. E, claro, esta fuga administrativa para a frente deixa-os insensíveis à necessidade da sua presença lá onde eles seriam mais precisos, ou seja, nas sociedades que precisam de conhecer um mínimo de desenvolvimento, de direitos e de bem-estar. Mas isso daria imenso trabalho, seria desconfortável e muito arriscado, preferindo, pois, fazer a sua luta nos lugares onde já há liberdade, segurança e bem-estar. O tempo de revolucionários como Che Guevara já passou. A revolução faz-se em casa, eventualmente à frente de um computador e com ar condicionado. Sem riscos ou até mesmo como oportunidade para singrar comodamente na vida. Ousaria até dizer: como um novo nicho de mercado.
5.
Mas o problema é que os progressos civilizacionais e culturais não se podem impor administrativamente. A sua conquista levou séculos, lutas, sacrifícios, morte. Não se obtiveram ao virar da esquina, com a redacção de um manual, pela simples razão de que a vida e a história não cabem em dois ou três breviários. Bem sei que eles têm pressa, muita pressa, eventualmente o tempo que a sua construção psicológica lhes impõe, porque têm noção de que o tempo de hoje é um tempo tão acelerado que já nem parece ser tempo histórico. Sim, é isso mesmo: o problema parece ser o do reconhecimento da temporalidade histórica. Mas a verdade é que os progressos requerem investimento projectado num tempo com profundidade, para o passado e para o futuro, trabalho complexo, longo e livre de formação, de educação, de cultura, de ciência. Um processo que não pode começar pelo confinamento da língua, da história ou da arte, ou seja, pelo confinamento dos espaços onde a liberdade deve ditar lei, mas sim pelo investimento público na educação, na cultura, na arte e na dotação pública das respectivas infraestruturas como condição essencial do crescimento e da autonomia individual para um futuro exercício consciente e plenamente responsável da cidadania, sem necessidade de guiões morais que pré-determinem o comportamento. Tomo como referência as visões do alemão Friedrich Schiller, nas Cartas sobre a Educação Estética do Homem (de 1792), e do poeta americano Walt Whitman, em Democratic Vistas (de 1871), e as suas propostas sobre a arte como motor de uma sociabilidade humana harmoniosa e sensível. No caso do poeta de Leaves of Grass, o lugar destinado à essencialidade histórica da poesia. Uma arte que nunca poderá ser encapsulada em códigos ou manuais de bom comportamento linguístico. Ou seja, o desenvolvimento é algo bem diferente das cartilhas que nos querem impor como padrão que impede comportamentos moral e civilizacionalmente desviantes e até puníveis por lei ou por regulamentos administrativos. Um admirável mundo novo com sacerdotes que aspiram a guiar as nossas vidas.
6.
Como se sabe, o famoso acordo ortográfico, a forma como se escreve as palavras, não conhecerá paz enquanto o poder político não fizer uma reflexão profunda sobre a língua portuguesa, maltratada por alguns académicos pouco sensíveis à delicadeza da cultura e da ciência, e enquanto várias gerações se mantiverem em vida. Trata-se simplesmente da forma de escrever algumas palavras. Imaginemos, então, acordos semióticos na língua portuguesa em chave inclusiva e neutra (um extraordinário incentivo ao culto da poesia, diga-se) e a dureza da batalha que os seus fautores terão de enfrentar antes mesmo que isso se converta numa ainda mais dura batalha política, quando os nacionalistas se aperceberem de que essa é a batalha das suas vidas, a batalha que mais lhes interessa porque é aí que melhor poderão afirmar as suas razões, contra os novíssimos “chiens de garde” do politicamente correcto e da ideologia woke.
A verdade é que esta higienização da língua, esta limpeza linguística e cultural imposta por via administrativa, mas que aspira a transformar-se em hegemonia ético-polítca e cultural nas sociedades mais avançadas, enquanto crescem e se impõem ditaduras, regimes de cariz populista e regimes de miséria um pouco por todo o lado, não deixa de ser preocupante até por abrir um vasto flanco à entrada em cena de todos aqueles que são pouco amigos da democracia, da igualdade e da liberdade. Parece-me até que os mais acérrimos defensores da limpeza semiótica, da arte e da história mascaram de progressismo a sua indigência cultural e científica ou mesmo a sua indisfarçável e prepotente ignorância. Afinal, empenham-se nestas batalhas porque não têm outras bem mais importantes e urgentes para propor.
Não tarda, estarão a propor uma alteração do nome da Declaração de 1789.
II. WOKE
Afinal, o que é a ideologia woke? É uma ideologia? Sim, é, e tem todas as características de uma ideologia: uma visão parcial da realidade que aspira a tornar-se norma de comportamento universal, invertendo a ordem das coisas. Etimologicamente, deriva de wake, woken (acordar, acordado). E há duas referências que importa assinalar: o famoso artigo de William Melvin Kelley, no New York Times, em Maio de 1962, “You’re woke, dig it” e o activismo do movimento Black Lives Matter. Segundo Juan Meseguer, este movimento “combate a injustiça social, mas também tudo aquilo que considera fonte de opressão: a heteronormatividade, o ‘privilégio cisgénero’, o modelo da família nuclear, o capitalismo, etc.” (Meseguer, 2022).
A ideologia woke refere-se, pois, à injustiça racial e social, podendo-se mesmo entendê-la como uma vasta moldura que integra a política identitária, o politicamente correcto, a famosa teoria crítica da raça e, em geral, a luta contra a discriminação de género, racial e de orientação sexual. A ideologia woke é protagonizada por uma certa esquerda de elite e de um bom nível económico. Não representa necessariamente, do ponto de vista sociológico, os grupos sociais a que se aplica. É uma ideologia de vanguarda e tem todas as características de uma ideologia: apresenta-se como uma mundividência com valor universal, apesar de ela própria combater o universalismo. Sim, a ideologia woke, a que nos diz para estarmos acordados, atentos, congrega a política identitária, a ideologia de género, o anti-racismo radical, o revisionismo histórico, o politicamente correcto, a cultura do cancelamento, o triunfalismo e o orgulho LGBT, o maximalismo da velha teoria da diferença sexual (tão em voga em Itália nos anos oitenta), o multiculturalismo radical. É forte no mundo universitário e já penetrou em importantes instituições nacionais e internacionais. Identifica-se como nova esquerda e, mais uma vez, o seu adversário histórico é o liberalismo. O mesmo que, curiosamente, é também o adversário histórico da direita radical. A história repete-se mais do que parece, como veremos.
1.
Com certeza que devemos estar atentos às injustiças raciais, sociais e de género, mas também devemos estar atentos às próprias formas de combate, seja à esquerda seja à direita. Sim, atentos desde que estar atento não signifique partilhar formas absolutas de intolerância que ponham em causa o universalismo que integra a matriz da nossa civilização, fonte de tantos e reconhecidos progressos civilizacionais, provavelmente os maiores que o mundo alcançou até hoje, e que promovam uma lógica de antagonismo radical, sucedânea da luta de classes, como lei fundamental da sociedade. Porque é disso que se trata. Na verdade, a matriz da nossa civilização acolhe a diferença e procura integrá-la, exprimindo-a em cartas universais de princípios que são já património mundial: a Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000-2009. E esta matriz não é mesmo compatível com formas de policiamento da linguagem e do pensamento, com a intolerância moral e histórica, com a dialéctica negativa amigo-inimigo como lei fundamental da realidade societária, com o cancelamento da temporalidade histórica e a absolutização do presente como norma selectiva do passado, com a fragmentação identitária da sociedade ou com o neocorporativismo orgânico, disfarçado de religião da igualdade.
2.
O combate woke ao universalismo de matriz liberal é uma discriminante fundamental que precisa de ser clarificada. Pelas razões que Juan Meseguer evidencia:
“Nos anos oitenta, um grupo de juristas jovens retomaram a preocupação de Derrick Bell (…) para demonstrar como o Direito servia para mascarar o ‘racismo sistémico’ ou ‘institucional’. (…) Inspirando-se na teoria crítica da Escola de Frankfurt, de orientação neomarxista, estes juristas propõem o estudo crítico do Direito e tentam demonstrar como a moldura jurídica da democracia liberal joga a favor da ‘hegemonia branca’ através de ideias como o Estado de direito, a objectividade da lei, a neutralidade do Estado ou o mérito” (Meseguer, 2022).
Ora aqui está uma boa formulação do problema: um claro desafio aos fundamentos da ordem liberal. A mesma que está na matriz da nossa ordem civilizacional. Mas esta visão não é nova. Já os românticos os combateram, ao combaterem o iluminismo, o liberalismo e o legado da Revolução Francesa. Sobre a convergência do pensamento conservador com o pensamento marxista fala Karl Mannheim num belo ensaio sobre “O Pensamento Conservador” (veja Santos, 1999: 71-87), não só na marcação de um inimigo comum, o Iluminismo, mas também naquele elemento comum a que Mannheim chama “quiliástico”. Estas visões tiveram, naturalmente, os seus intérpretes e a sua representação política ao longo da história, como se sabe. Por exemplo, num plano mais radical, o nacional-socialismo construiu a sua visão do mundo a partir de Arthur de Gobineau (1816-1882) e da sua teoria da raça, no Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de 1855, ou seja, tentou reconstruir a unidade humana a partir de uma sua parte, a raça ariana. O socialismo real fê-lo a partir da ideia de classe. Hipóstases que – tal como nos movimentos identitários – elevam artificialmente à universalidade uma parte do real, de onde, depois, toda a realidade passa a ser derivada, deduzida de forma apodíctica. O mesmo mecanismo de construção e de funcionamento da ideologia (veja Santos, 2019, pp. 67-85). O filósofo italiano Galvano della Volpe e a sua escola desenvolveram uma sofisticadíssima rede conceptual de desmontagem deste processo. Sintetizando: as categorias ideológicas funcionam como abstracções indeterminadas (della Volpe) ou como significantes vazios (E. Laclau) que se elevam acima das concretas determinações do real para que, depois, as possam sobredeterminar (Althusser) – por exemplo, a classe ou a raça que, por um passe de magia ideológica, se convertem em povo, de onde, depois, derivam todas as consequências políticas. A obra de Hegel assenta na tentativa de fundação da universalidade do Estado e do direito ao desenvolver a dialéctica do conceito não a partir da ideia de interesse (como acontecia com os contratualistas, contaminando, deste modo, a ideia de Estado), mas, sim, a partir de uma exigência lógica (a da relação entre a unidade e a multiplicidade, o uno e o múltiplo). Por exemplo, a igualdade de todos (multiplicidade) concebida a partir da lei (unidade), que é geral e abstracta. O que não é o caso, por exemplo, do chamado direito soviético, o direito de classe, ou o caso onde as discriminações (na lei) ditas positivas têm a pretensão, em nome de critérios sociológicos, de ser a regra no universo do direito ou, ainda, onde se considera que o secular património jurídico ocidental está ferido irremediavelmente pela diferença de género (a favor do género masculino). A questão real é a da universalidade do Estado e da lei perante a contingência e a particularidade do real, da sociedade civil. Este processo é muito diferente do processo ideológico, sendo mais sólido. E, todavia, estas escolas que acabo de referir reduzem-no a pura ideologia.
Vejamos o caso da crítica do conservador e precursor do romantismo Joseph de Maîstre. Ficou famosa a sua afirmação, nas Considerações sobre França, de 1797, sobre este legado: “A constituição de 1795, como em todas as suas predecessoras, é feita para o homem. Ora não existe homem no mundo. Vi na minha vida Franceses, Italianos, Russos, etc.; até sei, graças a Montesquieu, que é possível ser persa; mas, quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei na minha vida; a não ser que exista sem que eu saiba” (De Maistre, 1829: 94). De que falam, afinal, estas constituições? Precisamente de direitos do homem. Em comentário a esta posição, Karl Mannheim, no seu excelente Conservative Thought, junta-lhe, depois, uma afirmação vinda da esquerda, de Marx, na Introdução à Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito: “Mas o homem não é um ser abstracto, aninhado fora do mundo” (“Aber der Mensch, das ist kein abstraktes, ausser der Welt hockendes Wesen”, Marx, 1981, I, 378). Há nesta posição uma evidente identidade entre os conservadores e a esquerda marxista, de resto já assinalada por Mannheim: a recusa do homem abstracto, político, artificial, alegórico, sob forma de cidadão, por exemplo, em Zur Judenfrage (Marx, 1981,I, 369-370). Com efeito, Marx, nesta obra e na Kritik des Hegelschen Staatsrechts , desenvolve uma crítica estrutural quer do Estado representativo, como formulado por Hegel nos Princípios de Filosofia do Direito (Hegel, 1976), quer dessa universalidade abstracta e irreal do cidadão. No fundo, o que ele diz é que esta universalidade irreal (unwirkliche Allgemeinheit) e abstracta aprofunda a separação, o fosso entre o cidadão (Staatsbuerger) e o homem concreto e privado (Lebendigen Individuum), permitindo que as desigualdades efectivas se intensifiquem e reproduzam na sociedade civil, no lugar próprio do homem privado e egoísta, legitimando e preservando, deste modo, a ordem instalada (veja Santos, 1986: 117-148). Esta universalidade abstracta fora teorizada pelos contratualistas e, depois, embora de forma diferente, precisamente por Hegel, naquela obra. Ora é precisamente por aqui que, consciente ou inconscientemente (com ou sem Harvard a legitimá-los cientificamente), navegam os identitários, embora alargando a esfera das identidades ou dos sujeitos históricos para além do indivíduo concreto ou da classe social, por exemplo, à mulher ou à raça, enquanto comunidades. Mas há mais. Em relação à universalidade do direito, desenvolveu-se mesmo uma doutrina marxista do direito (o chamado direito soviético) que reconduz o ordenamento normativo à classe dominante. Falo de Pashukanis, de Stuchka e de Vishynsky, entre outros, este último o famoso procurador-geral de Stalin. O que diziam eles? Que o direito é de classe, não universal. Ou burguês ou operário e socialista. Mas de classe. Um identitarismo de classe, aqui não de raça ou de género, mas mais geral e abstracto, no qual assentaria a redenção futura do ser humano, através da reapropriação da sua identidade, através da reabsorção daquele cidadão abstracto no ser humano concreto e emancipado, enquanto tal (na sociedade sem classes), promovida por este sujeito histórico axialmente centrado na verdadeira linha evolutiva da história, a classe operária. Esta posição está muito bem exposta no famoso livro de Lukács, História e Consciência de Classe, de 1923. Todos os teóricos do direito soviético consideram que a universalidade do direito é uma ficção para mascarar o efectivo domínio de classe (independentemente das discussões que houve sobre saber se o direito era, ou não, um ordenamento normativo). Posição que viria a ser totalmente refutada nos anos cinquenta por Hans Kelsen no célebre livro sobre A Teoria Comunista do Direito (Kelsen, 1981). O que daqui resultou foi que o sujeito da história era uma classe, uma concreta identidade, que se afirmaria por supressão de outra identidade (a burguesia), no interior de uma dialéctica negativa (a da luta de classes). A recusa do universalismo é a isto que conduz.
3.
Por que razão falo disto? Porque a política identitária também nega esta universalidade, considerando-a fictícia, enganosa e instrumental, em nome da verdade que se exprime nas diversas identidades que compõem o corpo social, sejam elas de género, étnicas ou de orientação sexual. O facto é que, segundo Kelsen ou Bobbio, o direito (e para além do conteúdo concreto das normas) tanto pode ser válido numa formação social capitalista como socialista, precisamente porque não é de classe nem pode ser identificado com um sujeito histórico em particular. Mas a sociedade, contrapõem os identitários, como já o tinham feito os marxistas, não se resolve na abstracção normativa, que cobre o real domínio de uma raça sobre outra ou de um género sobre outro, tornando-se necessário promover uma viragem que ponha no centro do discurso as identidades sufocadas por essa ficção da universalidade abstracta da lei ao serviço do domínio dos mesmos de sempre (brancos e homens). Ou seja, eles apontam ao universalismo (formal) do direito e do Estado a mesma crítica que a teoria crítica da ideologia aponta à ficção ideológica, que acima expliquei. Neste sentido, a linguagem torna-se decisiva, sendo imperativo e urgente proceder à sua revisão institucional para a corrigir, a tornar politicamente correcta e resolver os desvios e as marcas de classe, de género ou de raça que ela transporta consigo como linguagem de dominação, através da sua inscrição no direito e no Estado. O mesmo vale para a história, que conta a longa dominação de uns pelos outros, tornando-se necessário proceder também à sua revisão institucional e ao cancelamento dos seus símbolos mais odiosos, aos seus testemunhos de rua, de praça ou de museu, nas cidades, por esse mundo fora (revisionismo histórico). É, pois, também urgente e necessário reconhecer as sociedades como realidades multiculturais integradas por identidades ou sujeitos irredutíveis ao velho universalismo abstracto, irreal e artificial. Esta ideologia woke é animada por um revanchismo histórico que põe no centro do discurso as diversas identidades, anulando a sua pertença a uma dimensão integradora e comum, logo, universal. O Estado e o direito têm essa dimensão e, por isso, falam esta linguagem. O direito, por exemplo: a lei é geral e abstracta. É essa a regra e não a excepção, ao contrário do que dizem os identitários e os apóstolos da ideologia woke. Precisamente porque quer o Estado quer o direito são universais e constituem a unidade da diversidade, o uno do múltiplo, o comum do diferente, tornando assim possível a promoção da intercambialidade entre aquilo que é diferente, entre as diferentes identidades, partilhando e participando no que é comum. E é comum enquanto forma reguladora das relações sociais (independentemente do conteúdo concreto da norma). Pelo contrário, elevar a diferença a norma significa torná-la irredutível, convertendo, deste modo, a lei social em dialéctica do conflito por falta de terreno comum para a partilha e a composição de interesses e valores. Alguém disse, e com razão, que as identidades não são negociáveis e por isso a sua lei é a do conflito permanente (Fernandes, 2022). A narrativa contratualista sobre o Estado e sobre o direito (centrada na ideia de interesse) ou a sua conceptualização hegeliana (centrada numa exigência lógica) tinham precisamente este objectivo: resolver superiormente a guerra de todos contra todos, dando unidade à diversidade caótica da sociedade civil. É precisamente esta unidade que torna possível a afirmação livre e pacífica de todas as diferenças, a sua intercambiabilidade, o compromisso e a composição de interesses. Um terreno comum de negociação, portanto. E hoje este terreno comum até tem uma tradução constitucional, que se funda precisamente no património universal dos princípios constantes das cartas universais. Juergen Habermas, falando da União Europeia e das identidades nacionais que a integram, propôs um “Verfassungspatriotismus”, um “patriotismo constitucional” referido a um universo comum (a constituição) que torne possível a livre expressão de todas as identidades, nacionais, étnicas, regionais, de sexo, de língua, etc., etc. (Habermas, 1991: 132). Pelo contrário, a política identitária não tem chão comum, precisamente porque nega esta universalidade e afirma a primazia das identidades sobre a lógica e a unidade societárias, ao identificá-las como pura máscara do domínio do homem branco e masculino sobre a raça negra e sobre a mulher ou sobre outras identidades. Como se só uma viragem, que antes se chamava revolução, pudesse acabar com esta evolução por inércia (ou por defeito, como diria uma deputada do PS, como veremos) do domínio histórico de um sobre todos (homem e branco), através do artifício da pretensa universalidade. As identidades, sendo irredutíveis, inegociáveis e não intercambiáveis, por falta de um espaço comum, desencadeiam uma lógica que só pode ser a da dialéctica amigo-inimigo, uma dialéctica negativa e uma lógica de conflito radical que visa a aniquilação do outro, precisamente como se verificava com a luta de classes: a eliminação da burguesia. O universalismo, dizem, encobre o domínio de uns sobre os outros e é nele que se centra a representação política, a passagem do particular para o universal, do indivíduo para o cidadão, da sociedade civil para o Estado e para o ordenamento jurídico. Acabar com um significará, pois, acabar com a outra, repondo a centralidade das múltiplas identidades como expressão orgânica ou corporativa de interesses e valores próprios. Entramos, assim numa lógica puramente corporativa que anula a representação e a individualidade singular e repõe a centralidade e a exclusividade da pertença comunitária. Não se vê, deste modo, como poderá falar-se de interesse geral e de vontade geral, uma vez que estes conceitos implicam um plano que só pode ser o de uma universalidade integrativa, que tem na constituição a sua carta expressiva, a única que, aliás, pode permitir uma pacífica dialéctica de identidades, com os seus interesses e valores, desde que no interior de um efectivo “patriotismo constitucional”.
4.
O que aqui temos, na ideologia woke, é, de facto, uma alteração substancial do sistema representativo ou mesmo a sua supressão: não há “representação política” do indivíduo singular, mas a projecção institucional da comunidade em que se integra (somente através dela a singularidade pode ser reconhecida), numa lógica corporativa ou de comissariado; não há “mandato não imperativo”, porque este resulta de uma separação ou corte entre a génese do mandato e o mandato propriamente dito, como acontece no sistema representativo clássico; o mandato deixa de se referir à nação ou ao povo, mas sim à identidade, ao sujeito identitário, ou seja, não é universal, como o “mandato não imperativo”. Mesmo assim, coisa bem diferente era a classe como identidade ou sujeito, pois ela coincidia com a totalidade, ou seja, ocupava o eixo histórico evolutivo da história, como teorizado por Lukács na obra acima referida, não correspondendo a concretas determinações, como a de raça ou a de género, por exemplo, porque a classe podia integrar em si todas as determinações que hoje são diferenciadas como identidades ou sujeitos sociais comunitários (por exemplo, no chamado “Estado de todo o povo” soviético, gerido pela classe). E só por isso a teoria podia postular que, no fim, as diferenças de classe iriam desaparecer, na “sociedade sem classes”. A classe operária teria em si o gérmen da sua própria anulação/superação. A fase do “Estado de todo o povo” é já uma fase de transição para a de uma sociedade sem classes. O que é de todo inconcebível com as identidades – por exemplo, a extinção dos géneros ou das raças.
Estas são as consequências desta teoria elevada a modelo de sistema social, não contendo sequer alguns dos pressupostos que a teoria marxista podia apresentar, ao elevar a classe a sujeito histórico apontado ao futuro. Mas estas são características das chamadas teorias críticas, que mais não são do que puras ideologias de combate. E, por isso mesmo, elas devem ser também combatidas com as armas da crítica, sim, mas também com as da democracia representativa.
5.
Esta conversa, como se vê, tem barbas e nada tem de original. E até possui menos coerência do que as suas antecessoras. O que foi (ou foram) e onde levou (ou levaram) todos sabemos. E onde levará, se a cavalgada da ideologia woke continuar, também todos sabemos. Os únicos que parece não saberem são os tradicionais partidos da alternância que já se deixaram infiltrar, à grande, por este falso progressismo pós-moderno que hoje se tornou o principal alimento do combate da direita radical, com os sucessos que todos lhe conhecemos. Se quisermos encontrar entre nós esta presença da linguagem “woke” basta ler alguns projectos de revisão constitucional que estão em debate parlamentar. Com uma agravante: a direita radical atribui esta mundividência a forças políticas que na sua matriz nada têm a ver com a ideologia woke ou a política identitária, mas que se deixaram seduzir por elas quando lhes faltou o conteúdo ideal que não souberam renovar ou que trocaram por um pragmatismo de governo axiologicamente asséptico e em molho “algebrótico”, como diria um psicanalista meu amigo, ao resumir, com uma só palavra, o linguajar exclusivo dos números e das estatísticas que a maior parte dos políticos exibe a propósito e a despropósito. As linhas de força deste universo problemático estão aí bem visíveis e se as forças moderadas que se reconhecem na matriz moderna do nosso quadro civilizacional não puserem cobro a esta cavalgada será a direita radical a promover o seu combate e a ganhar com isso fortes consensos eleitorais que continuarão a levá-la ao poder, como tem vindo a acontecer.
III. OS NOVOS PROGRESSISTAS
Há algum tempo publiquei um pequeno ensaio sobre “A Esquerda e a Natureza Humana” (Santos, 2021). A questão era mais ou menos a mesma que aqui estou a analisar, embora o ângulo de abordagem fosse diferente porque se centrava sobretudo na esquerda clássica e nos seus desafios. Mas o que hoje me interessa, com a crise da esquerda clássica e do seu paradigma, é saber como está ela a ser representada pelos novos movimentos. A clarificação é delicada e um pouco complexa, mas oportuna e necessária, sobretudo quando nos defrontamos com uma tendência que, supostamente à esquerda, está a tentar impor a sua hegemonia no terreno da sociedade civil, estando a conseguir bons resultados até nos chamados “aparelhos de hegemonia” ou mesmo nas próprias instituições internacionais. Refiro-me ao multiculturalismo, à chamada política identitária à ideologia woke, aos paladinos do politicamente correcto. Não há, no meu entendimento, uma linha clara de evolução da esquerda clássica para estas formas de esquerda ou progressismo de tipo civilizacional, apesar de algumas afinidades, designadamente no seu organicismo antiliberal.
Tradicionalmente, os progressistas identificavam-se com “grandes narrativas” que propunham uma visão articulada, com profundidade temporal, da história como horizonte a partir do qual era assumido o compromisso político. Estas “grandes narrativas” estavam ancoradas em classes sociais, propunham uma utopia como objectivo último da sociedade, promoviam a transformação social através da vontade política das classes sociais e das elites (através de partidos ou movimentos) e centravam em clivagens estruturais (como, por exemplo, o antagonismo entre capital e trabalho) o funcionamento da sociedade, propondo-se intervir sobre elas rumo à utopia, situada no futuro. Eram animadas por um optimismo histórico com profundidade temporal que dava alento à esperança em dias melhores, para todos. A revolução (ou a reforma, nas tendências mais moderadas) era a solução e a chave do progresso.
1.
Estas “grandes narrativas” políticas perderam a centralidade, dando lugar ao que Jean-François Lyotard, em “La Condition Postmoderne” (Lyotard, 1979), chamou sociedade pós-moderna. A “grande narrativa” ancorada no industrialismo e em classes sociais antagonistas tornou-se residual, sendo substituída por outras formas mais ancoradas na “superestrutura” do que nas fracturas estruturais. E é aqui que nos encontramos. Num mundo sem profundidade temporal e fragmentário, mas globalizado e de alta mobilidade migratória a caminho de um melting pot global. E é neste mundo fragmentário que nasce o discurso multiculturalista, o identitarismo comunitário e o politicamente correcto, ou seja, uma linguagem asséptica para a identificação das identidades comunitárias politicamente emergentes, sejam elas de género, de raça, de orientação sexual, de cultura ou de língua. Um desvio e uma significativa mudança na natureza das novas fracturas relativamente às clássicas fracturas estruturais. Por exemplo, a identidade de género e a sua dialéctica interna não tem características que possam ser identificadas com as da dialéctica entre classes. A sociedade é vista não como um complexo integrativo de indivíduos singulares, qualquer que seja a sua identidade (a visão liberal), nem como resultado de um antagonismo estrutural entre duas classes fundamentais (o marxismo), mas como um complexo de comunidades diferenciadas, cada uma com a sua identidade e a sua densidade histórica e social, a que é preciso dar voz, emancipar, autonomizar e protagonizar, reconhecendo-a na linguagem dos novos direitos emergentes ancorados numa sociedade multicultural, sem centro nem periferia e onde o direito à diferença rivaliza com o direito à igualdade, podendo até sobrepor-se-lhe. Mas a falta de uma “grande narrativa” deu lugar à busca de um colante que permitisse repor a hegemonia ético-política e cultural progressista. Encontraram-na numa leitura focada e extensiva das grandes cartas universais de direitos e deram início a uma tentativa em larga escala de transformar certos direitos nelas consignados não só em normas de comportamento universais obrigatórias e moralmente vinculativas, mas também em mundividências ancoradas em concretas comunidades sociais que passaram a funcionar como ordens de valor absoluto e com pregnância social formal e linguisticamente reconhecida e formalizada. Do que se trata, então, é de promover essas comunidades a eixo decisivo das sociedades modernas, considerado condição nuclear da harmonia social e do progresso civilizacional. Essas comunidades são os novos sujeitos (ainda) subalternos a que é necessário e justo dar voz. As linhas de fractura situam-se todas elas entre a sedimentação histórica resultante do processo evolutivo das sociedades desenvolvidas e o presente, reconfigurado à luz dos novos direitos. Elas não só aspiram à igualdade universal de direitos como também aspiram ao direito à diferença, a uma identidade própria não subsumível na totalidade social e ao alargamento do espectro das diferenças no interior do sistema social, plasmadas numa linguagem limpa das conotações negativas ou discriminatórias do legado histórico, ao reconhecimento social e formal da própria identidade e até a um poder socialmente reparador e sancionatório. O objectivo é o da igualdade de reconhecimento colectivo, mas inscrita no direito à diferença. Atingir a igualdade através do reconhecimento do direito substantivo à diferença. Estas comunidades vêem assim as suas identidades ser catapultadas a modelos a partir dos quais juízos de moralidade poderão ser pronunciados em função da medida dos novos direitos identitários. Identidades de género, de raça, de orientação sexual, de cultura e de língua, tratadas historicamente, no passado, como comunidades subalternas e discriminadas, a exigirem, agora, reconhecimento através de uma nova visão do mundo e da história centrada nos direitos multiculturais e às quais a linguagem comum se deve adaptar para não carrear consigo a marca e a mancha da sua génese histórica e das respectivas contingências ao longo do martirizado processo histórico. Linguagem expurgada das sedimentações históricas que se foram depositando nela e que são testemunho da iniquidade histórica.
2.
Vejamos um pequeno exemplo de resgate da iniquidade histórica. Bia Ferreira, conhecida cantora negra, brasileira, activista da comunidade LGBT: “eu vou”, à festa do Avante, “para denunciar os estragos que o povo português deixou aqui no Brasil”; “o que incomoda mesmo é a denúncia que eu faço: que o seu antepassado escravizou o meu povo, aqui no Brasil, e que a gente paga essa conta até hoje” (Expresso, 26.07.2022). Os portugueses considerados como causa remota dos males que hoje atravessam a sociedade brasileira, isto dito por uma militante orgânica e qualificada de uma (ou mesmo de várias) destas comunidades. Ditadura, Bolsonaro, qual quê? Portugueses. Está tudo dito. Agigantar uma causa, ainda que remota e explicável pelo tempo histórico em que aconteceu, cobre outras causas, mais próximas, mais reais e mais activas. Trata-se de um perigoso desvio anacrónico que polariza a atenção para uma falsa explicação, encobrindo e deixando por explicar a realidade efectiva. Um exemplo concreto muito elucidativo.
Do que se trata verdadeiramente é de um processo de conquista da hegemonia que já vai bastante avançado porque está a ser assumido acriticamente pelas instituições nacionais e internacionais como uma forma de progressismo civilizacional, construído à revelia da matriz iluminista e liberal.
Outros exemplos: em plena União Europeia classifica-se uma Unidade de Investigação e Desenvolvimento (UI&D) com base na ideia de simetria de género (transpondo para a ciência um critério especificamente social); exige-se o uso generalizado de linguagem neutra e inclusiva (através de uma limpeza ética do património histórico de uma língua ou do próprio património histórico em geral); ou, como no caso ridículo da empresa EMEL, do Município de Lisboa, fazem-se inquéritos a cisgéneros masculinos e femininos, a transgéneros masculinos e femininos e, mais interessante ainda, a outros (sexos), talvez géneros neutros. Isto para não falar da credibilidade mundial que vem sendo dada às inacreditáveis iniciativas do movimento #Me Too, algo que me faz pensar a um processo de streeptease emocional em diferido (vista a distância temporal entre o acto e a sua denúncia judicial e moral). Ou seja, está a propagar-se uma tendência ideológica multiforme que já capturou as instituições nacionais e internacionais e que está a assumir a forma de controlo administrativo e moral da linguagem e dos comportamentos inscritos nessa linguagem, não explicitamente enquanto directo controlo estatal dos comportamentos (com graves incidências sobre o Estado), mas enquanto controlo social sancionatório dos comportamentos e da linguagem que os exprime. A isto chama-se hegemonia, no seu sentido mais amplo, que não o estritamente político. Uma hegemonia, contudo, que, mais do que ético-política e cultural (no sentido gramsciano), é imposição administrativa, moral e institucionalmente coerciva, de tipo policial (polícia dos costumes).
3.
Como em todas as ideologias a carga semântica destas identidades elevou-se a absoluto, dando vida àquilo que Max Weber um dia designou como wertrational, racional em relação ao valor, substitutivo quer do zweckrational (próprio do capitalismo e da sociedade mercantil) quer do traditional (próprio das sociedades onde impera a tradição). O valor passou a ocupar, em linguagem weberiana, o centro do discurso identitário, alcandorando-se a politicamente correcto. Nada havendo contra a elevação do valor a critério comportamental, como é óbvio, o que não é defensável é que ele se torne absoluto e exclusivo polarizador do comportamento social, como nas religiões (nas teocracias) ou nas grandes narrativas políticas. A identidade comunitária passou a ocupar o centro do discurso progressista, num registo totalmente diferente da ideia de comunidade defendida pela esquerda clássica, porque agora se trata de múltiplas comunidades, novas identidades ou novos sujeitos sociais multiculturais, sem centro nem periferia e não subsumíveis numa qualquer ordem ou unidade superior nem remissíveis a uma fractura socialmente estruturante. Do que se trata é de uma luta pelo reconhecimento ancorada no direito à diferença e no valor da diferença. Uma lógica que contrasta com a matriz liberal da nossa civilização, como, de resto, acontecia com a visão marxista, mas que se diferencia do organicismo da esquerda clássica, ancorado na centralidade da classe. As comunidades são agora os sujeitos para onde remete a vida societária. A igualdade tem agora na diferença o seu contraponto reconhecido e validado pela sociedade, no direito, na língua, na política, na economia e na cultura. Em todas estas instâncias as identidades comunitárias devem ver garantido o reconhecimento institucional e social em formas substantivas. Uma dinâmica que tem demonstrado capacidade de imposição hegemónica na sociedade civil e até nas instituições.
4.
E é aqui que estamos. As tradicionais classes sociais do marxismo deram lugar ao multiculturalismo e às identidades comunitárias, que se elevaram a alfa e omega do progresso social e da linguagem societária, num processo que só poderia evoluir mediante uma filosofia organicista de novo tipo e uma crítica do universalismo iluminista e liberal. As comunidades integram a sociedade de forma orgânica. Se o centro era o indivíduo ou, então, a classe, agora não há centro porque há multiculturalismo, múltiplas identidades diferenciadas sem centro nem periferia. Tudo se esbate perante o emergir das comunidades e da diferença que aspira a tornar-se a regra número um das sociedades. É o multiculturalismo pós-nacional que resiste à cultura dominante, à matriz nacional do Estado, a qualquer tipo de integração superior, que é vista sempre como ameaça de domínio ilegítimo. O Estado passa a ser um conglomerado de comunidades e o garante da diversidade multicultural e das identidades comunitárias. O indivíduo cede o lugar à comunidade e a classe fragmenta-se em microcomunidades. As fracturas estruturais tornam-se “superestruturais” e a dialéctica é a da luta pelo reconhecimento e pela afirmação da identidade comunitária, seja étnica, de género, de orientação sexual, de língua ou de cultura. Assim se dilui a matriz e o património liberal, emergindo mesmo o problema da unidade nacional, da universalidade da lei e do Estado e da língua como colante nacional. Esta passa a ter como função a promoção identitária das comunidades, erradicando (de si própria) todos os vestígios que possam evidenciar marcas e manchas do passado histórico, sedimentações consideradas impróprias à luz dos supremos critérios da nova visão multicultural e da novilíngua que a exprime. O revisionismo histórico e linguístico passou a ser a marca de água da nova mundividência. Nada é mais importante do que a identidade comunitária. Tudo o resto fica na sombra, de tão intensa ser a luz multicultural e identitária e de tão imperativa ser a sua moralidade. O reconhecimento comunitário e identitário passou a ser a nova palavra de ordem em nome dos novos direitos, do progresso e da moralidade social. A assepsia linguística é a garantia visível e palpável do reconhecimento e equivale ao triunfo do presente sobre a profundidade temporal e os desvarios da história e da contingência própria do tempo histórico.
Nem a esquerda clássica aqui cabe, tal como não cabe a sua leitura acerca da fractura estrutural da sociedade capitalista, nem a visão liberal, com o seu universalismo e a promoção da centralidade do indivíduo e direitos correlativos, é compatível com esta doutrina. Findas as grandes narrativas irrompem os movimentos por causas centrados nas identidades comunitárias. Renasce um organicismo de novo tipo, agora ancorado no direito pleno à diferença em nome da afirmação da identidade das comunidades que passaram a ocupar o centro discursivo da sociedade como forma única de emancipação numa sociedade entendida como conglomerado multicultural, onde a diferença é a lei que domina. Uma inversão relativamente à conquista liberal da igualdade contra o privilégio. Mas também uma regressão nos próprios conceitos de Estado e de sociedade.
É aqui que se inscreve o politicamente correcto com pretensões de poder sancionatório e de reconfiguração “superestrutural” da sociedade, pondo na sombra, nesta luta, as questões que antes a esquerda punha no centro do combate político, a classe ou o povo oprimido, os sujeitos onde se ancorava a revolução. Mas pondo também em causa o universalismo liberal e a defesa dos direitos individuais. A comunidade orgânica, não a sociedade, é o lugar deputado onde se pode afirmar a individualidade. É através dela que o indivíduo se pode afirmar na sociedade. A lógica societária já não pode prescindir da lógica comunitária, acabando por lhe ficar subordinada. A centralidade do indivíduo passa a ser uma ficção que a nova mundividência nega e combate em nome da identidade comunitária e da sua pregnância social. Um certo retorno ao pré-mopderno.
5.
Será, portanto, este progressismo aceitável na forma como se tem vindo a exprimir, ou seja, nas suas pretensões hegemónicas e na sua vocação totalizadora, para a social-democracia ou para o socialismo democrático? No meu entendimento, não. Logo a começar pela sua caracterização como movimento orgânico e fragmentário que ilude fracturas que são essenciais para o progresso dos povos, mas também porque é um movimento sem densidade e profundidade temporal ao querer resolver no presente toda a temporalidade histórica, chegando ao extremo de querer anular radicalmente a diferença histórica, extirpando-a da própria linguagem comum e das formas de expressão pública (da arte pública, por exemplo, ou dos livros de ensino público) do tempo histórico. Por outro lado, o organicismo é tão inimigo da democracia representativa como amigo do corporativismo. E aqui a ideia de liberdade sofre uma contracção inadmissível para quem se revê na nossa matriz civilizacional e na própria razão de ser da social-democracia. A ideia de contingência histórica é recusada por imposição dos valores do presente como valores absolutos, como fim da história, como triunfo do wertrational – a orientação menos conforme à lógica inscrita nas democracias representativas e na sua matriz liberal. É claro que a própria social-democracia deverá reinventar-se para além das clássicas formas que foi assumindo ao longo do tempo, designadamente do Estado Social e de um certo comunitarismo tradicional radicado num classismo residual que nunca foi plenamente extirpado. Mas deverá também, et pour cause, rever a sua resistência espontânea e matricial à filiação no primeiro liberalismo anti-absolutista e anti-privilégio que determinou a matriz da nossa actual civilização e das mais avançadas formas de gestão política das nossas sociedades: o sistema representativo, a democracia representativa, o Estado de direito e a racionalidade do mercado. Basta ler a Declaração dos Direitos do Homem (palavra que na novilíngua acabará substituída por Ser Humano ou por Direitos Humanos) e do Cidadão. É certo que esta tendência teria sentido e seria até desejável se absorvida por uma política progressista que fosse capaz de a reposicionar no seu devido lugar histórico, limitando a sua pretensão hegemónica em vez de a promover no interior das suas fileiras, sem compreender que esta tendência hegemónica que vai avançando assume cada vez mais a forma de uma inaceitável opressão simbólica, de vigilância policial da história, da palavra e do pensamento, incompatíveis com a vida democrática e com a liberdade que lhe está na raiz. Parecendo constituir um progresso, esta mundividência, com as pretensões hegemónicas que tem vindo a revelar e com o seu organicismo, na realidade é um profundo recuo relativamente à matriz liberal da nossa civilização e um grave atentado à liberdade.
IV. IGUALDADE DE GÉNERO E LUTA DE CLASSES
Não é raro encontrar tomadas de posição, pelas defensoras de uma política para a igualdade de género, que, de tão radicais, mais pareça transporem para a luta política a lógica da luta de classes. Uma luta pelo poder entre quem o tem e quem o não tem. Assim, sem mais. Ou seja, a mesma filosofia e a mesma lógica que viam a classe operária como classe explorada pelo poder derivado da revolução industrial. Marx explicou bem a razão desta posição. As duas classes centrais na sociedade e na história eram a classe dos proprietários dos meios de produção e a classe dos produtores. Uma detinha todo o poder, a outra sofria-o. Hoje, nesta visão aggiornata, as mulheres representariam o grupo social dominado e explorado pela própria dinâmica interna de um sistema construído segundo a lógica do poder masculino. Um sistema, afinal, muito mais antigo do que a própria revolução industrial. No discurso feminista radical esta foi, é e continua a ser a contradição principal, apesar da igualdade perante a lei e das conquistas que foram alcançadas, sobretudo ao longo do século XX. E convenhamos que, apesar dos enormes progressos alcançados relativamente ao que se verificou durante séculos e séculos, a generalidade das sociedades desenvolvidas ainda não conseguiu atingir a igualdade substantiva, que não a legal, entre homens e mulheres. Até porque a lei não está concebida para tratar das identidades de forma diferenciada, porque, por definição, é geral e abstracta, sendo o seu referente a cidadania, e não as identidades. Não há, na matriz liberal do direito, nem um direito de classe, como queriam os teóricos do chamado direito soviético, nem de género ou de raça. E isto faz a diferença.
1.
Poderia fazer aqui uma exaustiva análise das etapas de evolução da relação homem-mulher, desde o conceito romano de filiae loco (e não de uxor) até Kant, onde à mulher não é reconhecida “personalidade civil”, sendo a sua “existência de qualquer modo somente inerência”, “porque a conservação da sua existência” não depende do próprio impulso, mas do comando de outrem (“Metafísica dos Costumes”, II, §46). Por isso, não lhe é reconhecido, pelos liberais, em geral, o direito de voto. Ou, depois, a situação nos USA até à XIX Emenda da Constituição, de 1920, onde finalmente acabaria por lhe ser reconhecido o direito de voto. Ou ainda toda a legislação que determinou uma sua dependência formal do marido. E por aí em diante, numa clara discriminação histórica de metade da humanidade. Bastaria ver a evolução do sufrágio universal para se ficar logo com uma visão dos termos e da iniquidade política desta relação ao longo da história.
Na verdade, se as desigualdades subsistem – e não é só, ou particularmente, entre homens e mulheres, mas entre homens e homens e entre mulheres e mulheres -, o objectivo deverá ser o da promoção progressiva de condições gerais que tornem possível a qualquer cidadão dispor das mesmas oportunidades. O Tocqueville chamava-lhe “igualdade de condições”. O Estado e a lei devem distribuir os bens públicos necessários a essa igualdade geral de condições e de oportunidades. Mas isso não significará automaticamente que todos aproveitem essas condições de base para atingirem os mesmos resultados, por várias e complexas razões. Justiça distributiva e justiça comutativa são os dois conceitos que distinguem, neste aspecto, a visão liberal da visão social-democrata e socialista. No caso da relação homem-mulher a questão é mais clara e pode ser isolada, removendo, finalmente, todos os obstáculos a que uma mulher, seja de que condição for, possa atingir com sucesso os mesmos resultados que os homens. E a primeira dessas condições deve ser, claro, a igualdade perante a lei, devendo-se, depois, proteger as diferenças específicas de género de modo a que não sejam impeditivas de obter resultados equivalentes. Por exemplo, a condição de mãe e todas as variáveis que decorrem dessa condição.
Políticas progressivas na relação homem-mulher tal como nas relações de cidadania são necessárias. Até mesmo recorrendo a medidas de discriminação positiva que ajudem a promover a igualdade de condições e de oportunidades, na relação homem-mulher ou, por exemplo, nas relações entre um interior deprimido e um litoral desenvolvido, desde que isso não se transforme em regra, castigando a universalidade e o carácter abstracto da lei.
2.
Mas o que não me parece aceitável é identificar a relação homem-mulher simplesmente como uma relação de poder, centrando nela toda a atenção e transformando-a na clivagem central das sociedades desenvolvidas. Até porque nestas sociedades o que legalmente é possível fazer já foi feito ou está a ser feito. E se é verdade que a relação homem-mulher é central na sociedade, ela não o é porque se trate fundamentalmente de uma relação de poder de um sobre o outro. É central porque é uma relação ontológica que garante a reprodução da espécie. Sendo uma relação social, ela é também uma relação natural. E é, e também por isso, uma relação com uma dialéctica de afectos que vai para além da própria relação de espécie, elevando-se à dimensão universal de género, sem perder a sua dimensão natural. Sobre isto Marx tem uma página muito interessante nos “Manuscritos de 1844”, no 3.º Manuscrito. Cito duas frases (MEW, 1981: I, 535): “A relação imediata, natural, necessária do ser humano com o ser humano (Menschen) é a relação do homem (Mannes) com a mulher (Weibe). (…). A relação do homem (Mannes) com a mulher (Weib) é a mais natural relação do ser humano com o ser humano (Menschen zum Menschen)”. Sublinho: relação natural do ser humano com o ser humano. Ou seja, nesta relação a natureza humaniza-se e o ser humano exprime-se como ser natural. Melhor ainda, com Umberto Cerroni: a relação homem-mulher “torna-se a medida de toda a civilização no específico sentido de que ela é a primeira relação natural do género humano e a primeira relação humana da sensibilidade natural” (Cerroni, 1976: 59). Mas ela é também constitutiva dessa comunidade de base que é a família com toda a série de vínculos inerentes, a começar nas relações de parentalidade e nas responsabilidades inerentes a essa condição. Esta relação é, pois, muito mais complexa do que uma relação de poder. Identificá-la, como faz, por exemplo, a deputada socialista Isabel Moreira (num artigo no “Expresso”, de 07.05.2021), como relação de poder é amputá-la das outras dimensões ou talvez seja mesmo amputá-la da sua dimensão essencial. Uma sociedade que veja desse modo esta relação – como relação de poder – tornar-se-á uma sociedade onde não se poderá viver porque atravessada por uma tensão permanente que destruirá a própria essencialidade, complexidade, riqueza e extrema delicadeza desta relação. Ela é uma relação ontológica que traduz não só o grau civilizacional de uma sociedade, mas também a sua moralidade, a sua cultura, a sua relação com o afecto, com a sensibilidade, com a beleza e com o futuro. Numa palavra: ela é mais, muito mais do que uma relação de poder. Identificá-la assim significa diminuí-la e reduzi-la a uma mera relação política, esquecendo que ela é uma relação ontológica primordial, como muito bem viu Marx, em 1843.
3.
Confesso que fiquei impressionado com este artigo da deputada, pelo seu radicalismo. Se este artigo fosse um poema, até teria gostado. Mas não, este é um grito de uma mulher que se sente assediada pelo mundo masculino mesmo na sua posição de poder, como deputada da Nação, titular de soberania no poder legislativo, mas também no poder comunicacional, onde também ocupa uma posição regular. Dir-se-á: é o grito de uma representante. Só que ela não representa as mulheres, representa a Nação. Não pode, pois, pôr o Parlamento, a que pertence, a gritar contra a outra parte da Nação.
Cito o início do seu artigo, que é todo um programa de combate:
“Todas as mulheres sabem que lhes falta poder. Aquele poder. O poder que o sistema atribui por defeito aos homens. O mundo avança, mas o mundo ainda é (em tudo) ‘masculino por defeito’ (…) e qualquer comportamento nosso é filtrado, e por isso enviesado, por essa distorção”.
O poder masculino não é, pois, conquistado pelos homens, mas funcionalmente atribuído pelo sistema, “por defeito”, ou seja, automaticamente. O sistema tem sexo e é masculino. Consequência? Mudar o sistema. Pela revolução?
Outra citação:
“As múltiplas convenções internacionais (…) deviam fazer pensar que a nossa morte acontece porque há um sistema de poder machista que passa por tudo, sim, por tudo, desde a linguagem que nos omite à organização do poder político”.
É mesmo uma questão de sistema. Faça-se o que se fizer, o sistema estará sempre lá para atribuir o poder aos homens e silenciar as mulheres. Consequência? Mudar o sistema. Pela revolução?
Finalmente:
“Todas as mulheres sabem o que é não ter poder, o mesmo é dizer que todas as mulheres sabem o que é ser mulher”.
Todas as mulheres sabem o que é não ter poder. Todas? É um problema de poder dito por uma mulher de poder a milhões de homens sem poder algum. O outro lado do poder é a mulher, na sua visão. Definir o poder pela negativa, por aquilo que não é, só é possível pela definição do que é ser mulher, o seu contrário. A contradição principal que se deduz de toda esta narrativa é a que se verifica entre poder (masculino) e mulher. No mínimo, é um modo um pouco estranho de encarar o poder e as desigualdades sociais. Muda-se o sistema para resolver esta contradição e, ipso facto, resolve-se todas as outras? Marx dizia que esta era uma relação natural já com dimensão social e que era a primeira relação social com dimensão natural. Dimensões que superam de longe a relação de poder entre ambos (uma relação social), porque se trata, afinal, de uma relação constituinte, enquanto relação de espécie e relação social primigénia, onde a dimensão cooperativa é, sem dúvida, determinante.
4.
A mim parece-me exagerada esta maneira de ver o mundo, sobretudo nos países desenvolvidos, onde a igualdade perante a lei, a igualdade de condições e a igualdade de oportunidades atingiram níveis de concretização muito assinaláveis. É um olhar zangado sobre o mundo. Depois, é uma visão anti-sistema, vinda de alguém que ocupa um importante lugar no sistema, pertencendo a um partido que não é, julgo eu, anti-sistema. Vendo bem, a culpa nem é da masculinidade em si, mas do sistema que a adoptou, uma espécie de “mão invisível” que tudo controla e domina. Um sistema com sexo pré-determinado no seu ADN. Sexualidade sistémica, diria. Masculina, por defeito. Depois, a consequência: a ruptura com o sistema e com o poder que dele resulta. E a pergunta natural: para populismo anti-sistema não chega já o CHEGA ou é preciso que os deputados eleitos nas listas do PS também passem a interpretar este papel?
Resumindo, poderia dizer que na relação homem-mulher converge o essencial da ideia de vida (Lebenswelt) e, por isso, não é me parece aceitável reduzi-la a uma mera relação de poder.
V. OS REVISIONISTAS E OS SEUS AMIGOS
É por estas e por outras que as agendas pública e política andam estranhas, com enchentes diárias de notícias alarmistas e de desperdício informativo nos telejornais, no prime time, que não há algeroz que as escoe. Sim, mas também com as notícias que referi no início deste Manifesto. O imenso lamaçal do revisionismo histórico, levado às costas sobretudo pelos talibãs do politicamente correcto e pelos profissionais de causas fracturantes, que aparecem sempre de mãos dadas com os cruzados radicais da ideologia de género, os que substituíram a luta de classes pela luta de género, num mortal combate corpo-a-corpo entre homens e mulheres, produzirá resultados políticos catastróficos se não fizermos, nós, a cidadania, um combate frontal, num tempo em que a gravidade do presente está a dificultar o olhar sobre o futuro. Na verdade, o novo progressismo dá cada vez mais o melhor de si, propondo uma limpeza ético-política da nossa história, que nem em D. Afonso Henriques acabará. Viu-se já um debate inflamado sobre heróis da guerra colonial, falando de uns (fracturantes) e esquecendo outros (não fracturantes), trazendo ao topo da agenda o tema do ódio racial – mate-se o homem branco colonialista, assassino e racista que existe em cada um de nós, desde tempos imemoriais -, num país que convivia tranquilo com o bom e o mau da sua história passada e que já estava a confiar os juízos sobre o passado aos historiadores, em espelho mais ou menos fiel e desapaixonado, onde cada um de nós serenamente poderia sempre rever, com a objectividade possível, o nosso passado colectivo. Vê-se pretensos académicos a catarem o racismo nas obras-primas da literatura portuguesa (onde se vislumbra “uma descomunal admiração pela brancura” ou crises “de melancolia negra”) e outros que, inadvertidamente (por enquanto), mas por imperativo de coerência lógica, acabarão por mandar derrubar esse pecaminoso (mas não por causa do Canto IX) cântico aos descobrimentos que tem por nome “Os Lusíadas”, esses colonialistas. Vê-se gente a considerar o colonialismo mais mortífero do que o antissemitismo germânico, numa lúgubre contagem de milhões de mortos com a lente da doutrina pós-colonial, quando a querer fazer contagens bem podia mais facilmente somar as vítimas das duas grandes guerras e constatar que nelas houve (na Europa, do Atlântico aos Urais) dezenas e dezenas de milhões de mortos, pondo, assim, o holocausto no devido lugar, em vez de, desta forma, o branquear, ainda por cima invocando vizinhança académica com a Vice-Presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Vê-se gente que quanto mais fala de colonialismo menos informação nos dá sobre a actual cartografia política, económica e social da África descolonizada ou da América Latina de hoje. Vê-se gente a questionar se os portugueses foram vítimas ou cúmplices da polícia política do regime do Estado Novo, sem cuidar de não generalizar, logo no título, o que indicia uma imensa ignorância e simplismo – desrespeitando os tantos que activamente ou em silêncio sofrido execraram este regime e, em geral, a generalidade dos portugueses. Vê-se gente – que ainda por cima representa, ou representava, a Nação – a clamar por um sofisticado corte epistemológico, com sangue e mortos, que, diz, não teria acontecido, mas que, na verdade, aconteceu, e da melhor maneira possível, ao passarmos, sem violência digna de registo histórico, de uma ditadura para um regime livre e democrático e para o fim da guerra colonial. Vê-se gente a clamar pela destruição de monumentos históricos em nome da sua visão clínica da história e da sua epistemologia caseira, até que numa progressão lógica do seu avançado pensamento acabe por abjurar “Os Lusiadas”, qual cântico ao pecado original que estaria na origem do colonialismo. Vê-se gente a usar o ofício de jornalista para promover e publicar aterradoras agendas doutrinárias inquisitoriais mais próprias de um procurador-geral ao estilo de Vichinsky e de uma visão policial da linguagem publicamente expressa do que de um jornalismo são, imparcial, objectivo e neutral, que deixa que seja o cidadão a avaliar a informação e não a encharcá-lo com idiossincrasias e agendas militantes pouco jornalísticas, fazendo da profissão um autêntico púlpito militante de causas idiossincráticas. Sim, infelizmente, vê-se isto e muito mais.
VI. FALAR NEUTRO E INCLUSIVO - Um exercício de divagação em torno da novilíngua, para desanuviar
EU ESCREVO MUITO, como se vê. Se calhar até escrevo demais. E ainda por cima em português, não em inglês, o que seria mais aceitável. Por isso, já comecei os treinos de escrita – embora timidamente, porque ainda pouco convencido da justeza da causa – em neutro e inclusivo. Nada fácil. Sobretudo escrever em neutro, porque gosto sempre de tomar posição. Não necessariamente pelo masculino ou pelo feminino. Pode até ser pelo neutro. Mas confesso que depois de tantos anos a escrever – e em várias línguas – tenho tido muitas dificuldades em escrever nesta novilíngua, apesar de estar habituado ao grego, ao latim ou ao alemão. Todas estas línguas têm o neutro. Por exemplo, der, die, das, em alemão, onde, inexplicavelmente, até a palavra cavalo é neutra: das Pferd. Mas em português, em italiano, em espanhol ou em francês não há neutro, julgo eu, embora haja sobrevivências latinas. Por exemplo, curriculum, em português. É neutro, em latim, mas não inclusivo (felizmente): o meu (não o teu) curriculum. Em português passou a ser masculino. Mesmo para mulheres. No inglês é mais fácil: o artigo é só um, nem masculino nem feminino nem neutro (nem plural): “the”. Que distância (e não só temporal) vai entre o inglês e o grego antigo! Três a um… para o grego. Mas se, mesmo com curriculum neutro (convertido, agora, em masculino), falar e escrever em neutro é difícil, já em inclusivo é mais fácil, apesar de tantas vezes termos de praticar e de exibir o exclusivo. Por exemplo, em textos originais, sobretudo em dissertações e em teses (o que é cada vez mais raro). Mesmo assim, a dificuldade é menor. Agora, o neutro é quase impossível. À primeira, escrever em neutro significa não tomar posição. Nem os jornalistas o praticam, apesar de a neutralidade (e a imparcialidade) estar inscrita como princípio em quase todos os códigos éticos. Escrever sobre um assunto é também refutar certas posições que se considera erradas, ou não? Não se deve ser neutro, na minha humilde opinião. Mesmo onde ainda sobrevive, na língua, o neutro. Andar de bissetriz em bissetriz é que não. Isso é o que fazem os temperadinhos do Camilo Castelo Branco. Eu creio que escrever e falar neutro equivale a não escolher e, logo, a nada fazer. Tenho, por isso, tido muitas dificuldades em escrever correcto, pela primeira vez na minha vida, depois de passar décadas a escrever como profissional. Até dificuldades de natureza psicológica. Logo eu, que gosto tanto de fazer coisas e, sim, de tomar posição. Mesmo em textos simples e formais. Um toque pessoal fica sempre bem, não é? Mas agora imaginem o que é escrever um poema ou pintar um quadro… em neutro e inclusivo. E nem sei o que pensará disto um compositor, mesmo que já tenha sido inventada uma notação musical neutra e inclusiva. Aqui fica-se mesmo literalmente perdido. Sem palavras. E sem cores. E sem notas. Fica-se neutro, parado. Nem inclusivo nem exclusivo. E, chegado aqui, é assim que, paradoxalmente, me sinto: neutro. Para começar, o que já não é mau.
1.
Não sei quem inventou esta novilíngua, não, mas a verdade é que os manuais já proliferam por aí. Manuais de bom comportamento linguístico. E até leis (por exemplo, a lei 4/2018, de 09.02, art. 4). A escola primária (e até o liceu ou mesmo a universidade) já não chega. Agora é aprendizagem ao longo da vida. E têm razão, tal como Sócrates, o grego, a tinha: só sabia que nada sabia. Neutralidade primordial. Por isso, declaro que hei-de estudar todos os manuais (num gesto inclusivo), por exemplo, o Manual de Linguagem Inclusiva do Conselho Económico Económico e Social ou o Guia da CCIG, para ver se aprendo a escrever sem erros semiológicos. Bem li e estudei o da Universidade de Manchester, mas soube-me a pouco. E confesso que até me assustou. O problema é que – e tenho bem consciência disso -, falando e escrevendo assim, para além da dificuldade (e até da canseira) de estar sempre a ser neutro e inclusivo, gastando toda a minha criatividade e todo o latim, o grego ou o alemão nisso, o risco é nunca tomar qualquer decisão, porque decidir é escolher e escolher é excluir, ou seja, é não ser neutro nem inclusivo. Mas a verdade é que as musas são nove, correndo-se sempre o risco de excluir alguma delas. Eu temo sempre esquecer-me de Terpsicore ou de Melpomene em algum dos meus poemas, excluindo-as, como Musas, e arriscando-me a ser atingido por um raio lançado a partir do Monte Parnaso ou do Olimpo. Se já é tão difícil escrever um poema, mais difícil será escreve-los na novilíngua. Uma nova tendência poética ainda pouco conhecida. Ouvir dizer “a poética do JAS é neutra e inclusiva” talvez fosse lindo. Mas temo que isso não venha a acontecer. Porque se já era difícil escrever, por exemplo, poemas meta-semânticos, esta nova escola é, por certo, muito mais difícil e complexa. Digamos, é meta difícil de alcançar, vista a escassez de recursos que se prenuncia. Naquela, pelo menos, sempre há um Fosco Maraini, com quem aprender. O “Lonfo” tanto pode ser neutro e inclusivo, como parcial e exclusivo. Será aquilo que um poeta quiser. Até porque “Il lonfo non vaterca né gluisce e molto raramente barigatta”. Não há, pois, na poesia meta-semântica problemas de maior com o neutro e o inclusivo. O “Lonfo” só aparentemente é masculino. Na verdade, ele “non vaterca né gluisce”. Mas, agora, com esta nova tendência, aprendo com quem? Só se for com a senhora deputada do PS Isabel Moreira. Se calhar, uma língua meta-semântica poderia ser a solução. Depois, pintar também de forma neutra e inclusiva é tremendo. Digo eu, que pinto. As cores, ah, as cores, como faço a ser neutro e inclusivo? Pintando sempre com todas as cores, sejam elas apropriadas ou não? E, depois, quem me compra os quadros? Os que gostam de azul, mas não de verde nem de vermelho (e são imensos)? Os que gostam de cores quentes, mas não suportam cores frias, nem sequer em Agosto? A preto e branco ainda vá que não vá: fifty/fifty. Mas, sendo neutro, não será inclusivo porque deixa de fora todas as (outras) cores. Bom, sempre poderei ficar conhecido como o pintor do preto e branco, ou do branco e preto (não sei se aqui a ordem dos factores será arbitrária), embora não saiba se estas duas palavras são eticamente aceitáveis na estética e na semiótica da novilíngua. Creio que não e, então, desabafando, perguntar-me-ei: “Ora bolas, como faço?”.
2.
O PROBLEMA já nem será conseguir escolher, num mais restrito léxico, as palavras (ou as cores) e com elas montar um belo texto (ou um belo quadro) e dizer alguma coisa que valha a pena. Não, a tarefa principal será escolher e usar (dicionário, pincel e manual à mão) palavras (e cores) neutras e inclusivas. Isto é que interessa. E, já agora, dizer e pintar o menos possível, porque quanto mais dizes e pintas mais escolhes e, logo, excluis. Que diabo, não se pode estar sempre a incluir. Até porque cansa. Incluir, cansa mesmo, apesar de o velho Marx dos “Grundrisse” ter dito, acerca da realidade, que o concreto é a síntese de múltiplas determinações (não confundir, todavia, com múltiplas e com terminações). Ou seja, o concreto até parece, pois, ser, pelo menos tendencialmente, inclusivo, na visão do grande intelectual da luta de classes. Oxímoro? Talvez. Mas disse. E o concreto também é neutro? Suponho que não, porque, caso contrário, não haveria línguas com o masculino, o feminino e o neutro, como o alemão. Mas, mesmo assim, vem-me a dúvida. E o pior é que nem lhe, ao Marx, posso perguntar, porque já se finou há muito tempo. E que pensar do velho Jean-Paul Sarte, que dizia, na peça “Huis Clos”: “l’enfer c’est les autres”? Inclusivo, ele, o pai do existencialismo? Não, claro que não… e muito menos neutro. Bom, se calhar era a influência de uma guerra que matou dezenas de milhões de pessoas. Ali, ou matavas ou morrias. Ali, o inferno eram mesmo os outros, os que estavam do outro lado das trincheiras. A inclusividade e a neutralidade não eram possíveis. Mas eram outros tempos. Agora, o que é preciso é ser neutro e inclusivo, precisamente para não haver guerras, a não ser, claro, contra os que não são neutros e inclusivos. Oh, é mesmo isso. Uma nova teoria da paz. Vou perguntar ao Johan Galtung se esta teoria é possível e desejável. Uma teoria da paz neutra e inclusiva, mas que não dê tréguas aos que não são neutros nem inclusivos? Hum…
3.
Seja como for, se com esse monumento à simplicidade e à estupidez, diga-se em abono da verdade, que é o acordo ortográfico, nunca se consegue escrever um texto sem misturar a velha ortografia com a nova (e é por isso que eu nem tento, e aqui não sou militante neutro nem inclusivo, sou mesmo contra), mesmo andando com manuais de neo-ortografia no bolso, imagine-se o que será construir um texto com algum nexo e sentido totalmente neutro e inclusivo. Porque ou me preocupo em ser neutro e inclusivo ou me preocupo em dizer e fazer alguma coisa de jeito, sem pôr travões às quatro rodas na linguagem. As duas coisas ao mesmo tempo é difícil, a não ser para os profissionais do semioticamente correcto. Mas, mesmo esses, duvido que consigam. E até duvido que consigam vender um livro que seja. Artigos, vá que não vá, sempre podem publicá-los no “Expresso”. Mas é difícil, talvez porque se trate de coisas contraditórias (conjugar liberdade com manuais). Não sei, porque ainda não consegui entrar nos meandros desta novilíngua, na sua deontologia, na sua semântica, mas sobretudo na sua especialidade estética. Até porque, certamente, será preciso muito estudo, muito treino e sobretudo longas investigações sobre obras exclusivas e parciais (se é que este é o verdadeiro antónimo de neutro) para sabermos como não deveremos falar e escrever. Talvez estudando, por exemplo, o Eça de Queiroz (já comecei com “Os Maias”). O certo é que a literatura terá de recomeçar, voltar a ter fraldas para chegar a um vestuário neutro e inclusivo. Sobretudo no inverno, que faz frio. Bom, mas confesso que, infelizmente, talvez já não tenha idade para recomeçar tudo de novo. Tentarei, mas, se não conseguir, que é o mais provável (a idade não perdoa), continuarei com o fato e as gravatas que tenho vestido até aqui, sem receio de ser execrado pelos sacerdotes e sacerdotisas do semioticamente correcto, ficando de consciência tranquila porque, ao menos, e embora cheio de dúvidas, comprei e estudei todos os manuais da novilíngua (num generoso gesto inclusivo, como disse). Tudo bem, mas talvez seja também uma questão de liberdade e não só de dificuldade. Poder-se ser não-neutro, apesar de se tentar ser o máximo inclusivo. E se calhar é mesmo por isso que não me entendo com esta novilíngua. Aqui sou mesmo muito sensível. A verdade é que, durante o “Estado Novo”, me treinei a resistir aos manuais do politicamente integrado, inclusivo e neutro e a lutar por uma linguagem livre, tendo sido apanhado, pelo menos duas vezes, por não ter usado linguagem neutra, que era o que os do regime queriam. E assim continuarei – acabo de decidir, quase já no fim do Manifesto -, seguindo o conselho da Anne Rosencher em “L’Express” (1-7.04.2021, p. 8), que referia uma espécie de “espiral do silêncio” (E. Noelle-Neumann) que já está a tomar conta dos franceses, tendendo estes cada vez mais a silenciar-se com receio de se verem socialmente execrados por um uso menos politicamente correcto da linguagem. E o caso acontece logo com o francês, uma língua bué difícil, sofisticada e até um pouco exclusiva e “chic”, confessemos (as senhoras, antigamente, eram consideradas prendadas quando “parlaient français e jouaient le piano”). Mas, citando Marcel Gauchet, ia mesmo mais longe: falava de uma espécie de denegação linguística dos franceses. O seu conselho foi, pois, o de que “il faut se donner un peu de courage”, antes que a “espiral do silêncio” se instale e a novilíngua tome conta definitivamente de nós, nos entre pela boca adentro e acabe por nos sufocar a alma e o verbo. Que assim não seja. Amen.
REFERÊNCIAS
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WHITMAN, W. (2009) Democratic Vistas. Iowa: University of Iowa Press. JAS@04-2023
A DOR E O SUBLIME
Ensaios sobre a Arte
João de Almeida Santos

Pintura da Capa: “Perfil de Mulher”. 94×114, em papel de algodão Hahnemuehle. JAS, 2022. Colecção Particular.
EM BREVE SERÁ PUBLICADO este livro de Ensaios sobre a Arte, de minha autoria. Esta obra sairá, primeiro, em versão digital, de acesso livre, aqui e no site da Associação Cultural Azarujinha-ACA, e, depois, on paper, em edição limitada, mediante encomenda prévia. Por estar para muito breve a sua publicação digital, antecipo aqui não só a capa do livro, mas também a Introdução.
João de Almeida Santos
A DOR E O SUBLIME Ensaios sobre a Arte S. João do Estoril
ACA Edições, 2023
INTRODUÇÃO
ESTE LIVRO reúne Ensaios sobre a Arte, escritos sobretudo com o objectivo de confrontar a minha própria experiência estética, enquanto produtor de arte (romance, poesia, pintura), com o que grandes poetas produziram, mas também, ou sobretudo, com o que escreveram sobre a poesia. Verificar se neles se encontram as clivagens essenciais com que me confronto na minha experiência poética. Dominam, por isso, as reflexões sobre a poesia, que, afinal, constituem o núcleo essencial deste livro. Escolhi, pois, os meus interlocutores pela sua dupla condição de poetas e pensadores ou críticos (como Eliot, Poe ou Baudelaire, por exemplo), levando muito a sério essa afirmação do Edgar Allan Poe, em “Carta a B”, que sugere que as melhores críticas de poesia são as que são feitas precisamente por poetas:
“Tem-se dito que uma boa crítica a um poema pode ser escrita por alguém que não seja ele próprio poeta. Sinto que isto é falso, de acordo com a sua e a minha ideia de poesia – quanto menos poético for o crítico, menos justa será a crítica e vice-versa (Poe, 2016: 5; Poe, 1903)”.
Estas palavras valem o que valem, que não é pouco, ditas por quem as diz, mas são sugestivas e correspondem, no essencial, ao que eu próprio sinto e penso. Ou seja, tratando-se de uma arte muito especial, normalmente activada por intensas exigências interiores, talvez mesmo por imperativos existenciais, em virtude de um forte sentimento de dor, por melancolia, por perda ou por intensa nostalgia, ela solicita, na tentativa de compreensão e interpretação, algo que se assemelha a empatia, ao que os alemães designam por Einfühlung ou, então, no significado grego original de pathein ou pathos, palavras gregas que significam sentir/sentimento, doer/dor, comover/comoção. Só quem experimentou o estado de comoção (poética) está em condições de compreender em profundidade a poesia, ou seja, os poetas, por mais que eles procurem traduzir em linguagem universal o que, de certo modo, é inefável, a sua própria experiência interior. Eles convertem, como diz Bernardo Soares, os seus “sentimentos num sentimento humano típico” (Pessoa, 2015: 230) para que possam ser compreendidos, suscitando estética partilha. O inefável pode ser poeticamente convertido através desta operação, mas, mesmo assim, são os poetas aqueles que melhor podem aceder, nem que seja por processo analógico, ao que o poeta sente na sua experiência interior. Eles experimentam a Einfühlung em profundidade e por isso podem aceder a essa experiência originária, seminal. Uma experiência de delicado e incompleto acesso, portanto. Não basta, todavia, aos que procuram aceder ao discurso poético que experimentem eles próprios comoção ou dor, é preciso estar em condições de as metabolizar poeticamente e como imperativo, como exigência. É esta a condição do ser-poeta. Porque “dizer-se é sobreviver”, como dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego (2015: 55). Mas esta é também, em parte, a condição dos amantes de poesia. Sim, dos amantes, para retomar a célebre frase de García Lorca: “la poesía no quiere adeptos, quiere amantes”. Ser “adepto” não garante, pois, autêntico acesso à experiência poética. É preciso amá-la e sofrê-la. Senti-la por dentro, transportando-se para o interior das estrofes, experimentar o sentido e sentir a vibração da toada que se desenrola verso após verso. Esta é a sua diferença, talvez mesmo uma diferença ontológica, a que a coloca num patamar muito especial entre as artes e a distingue da mera experiência do sentir. Há um “quid” na experiência poética que não se compadece com uma aproximação meramente ornamental e exclusivamente física. A poesia não tem exterior, evolui de dentro para dentro sem concessões ao artifício ou à pura fisicidade. Para o poeta, mas também para o amante de poesia.
*
SÓ NO CASO DE HEMANN HESSE me ative exclusivamente à sua poesia, embora tivesse sempre presente no meu espírito a famosa viagem existencial de Siddharta. Na verdade, a exigência radical do discurso poético levou-me a revisitar poetas de topo mundial, sim, mas aqueles que foram também, ao mesmo tempo, críticos literários de igual e relevantíssima dimensão. Basta pensar em Eliot ou em Baudelaire para se compreender o que pretendo significar. De certo modo, a minha própria experiência serviu-me de suporte e de guia no diálogo interessado, ou mesmo interesseiro, com os grandes poetas. Esta atitude não é, pois, uma atitude de natureza metodológica ou simplesmente teórica. Ela também corresponde àquilo que eu próprio, na minha prática, encontro como génese da arte – um imperativo, uma exigência existencial que leva o artista a criar. Não um “amusement”, um sofisticado jogo de palavras ou um exercício académico, mas uma necessidade incontornável, como a de respirar. Porque “dizer-se é sobreviver”, repito, com o Bernardo Soares. Por isso, talvez surja mesmo como uma solução para a própria vida, um acto sublime de sobrevivência. E, se for assim, no despertar poético é como descobrir que se foi tocado pela graça, sem predestinação, mas como dom recebido na sequência de um acontecimento que devastou a alma do poeta e o pôs em levitação, através da palavra e da sua melodia. Privação sofrida, levitação desejada, disse o Italo Calvino nas suas Lezioni Americane. Tristeza, melancolia, perda ou privação, algo que o toca muito profundamente e o leva a criar, para se salvar, para se redimir. Uma dádiva de sofrimento concedida pelos deuses. Com uma prova de fogo: não se deixar abater nem dominar pela dor, mas assumi-la, transfigurá-la e metabolizá-la poeticamente para se elevar ao sublime. A felicidade mundana parece não constar dos anais da poesia, poderia mesmo dizer com um pouco de necessária radicalidade. Uma salvação que é mais transfiguração do que fuga, ou seja, uma sofisticada metabolização que incorpora sentimentos já transfigurados – uma feliz melancolia, por exemplo.
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A MAIOR PARTE DOS CAPÍTULOS é dedicada à poesia, estando a pintura, a música ou a dança em segundo plano. Também aqui não foi uma escolha puramente intelectual, mas um imperativo que decorreu da minha própria experiência de oito anos consecutivos de intensa produção poética. E não só, mas também pela importância que reconheço nela, na poesia, relativamente ao conjunto das artes. No livro dou conta desta posição e explico as razões da centralidade que lhe atribuo, em particular na sua relação com a música. Essa posição intermédia entre a dimensão conceptual e o sentimento, equivalente à que o sentimento ocupa na relação entre a dimensão fisiológica e corpórea do ser humano e a sua consciência, muito bem esclarecida por António Damásio no livro Sentir & Saber. A Caminho da Consciência (Damásio, 2020). O poder performativo da poesia e, por isso redentor, substitutivo, salvífico, resulta desta sua posição como ponto de contacto, como ponte entre o sentimento e a consciência, construída por uma materialidade sonora que acentua e reforça a sua dimensão sensível, sensorial. Uma arte que, todavia, não se eleva em fuga para o território irreal da pureza conceptual, para a pura esfera ideal ou para a crença, a fé incondicionada, mas que permanece no terreno do sentimento, da emoção, da melancolia, da nostalgia, da perda, da ausência sofrida, do amor, do desespero, submetidos a um processo de transfiguração e de metabolização para os elevar ao território do sublime. “Cristallisation”, dizia Stendhal a propósito do amor, no mesmo sentido. Sublimação. A poesia permanece no terreno do sensível, do sensorial, ajudada pela sonoridade rimática, pelo poder envolvente da música que a integra como sua componente interna. É a sonoridade poética que atinge de forma imediata a sensibilidade do próprio poeta ou de quem frui um poema. A poesia funciona como se se tratasse de uma ponte de ligação entre as palavras, com a sua carga semântica e a sua sonoridade melódica, a sensibilidade e o real. O primeiro visado pelo poema é sempre o próprio poeta. Se assim não fosse a redenção poética nunca aconteceria.
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ENCONTRARÁ AQUI inúmeras páginas sobre grandes vultos da literatura mundial, como T.S. Eliot, Emil Cioran, Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Hermann Hesse, Fernando Pessoa, Pierre Jean Jouve, Italo Calvino. Mas encontrará também reflexões mais amplas sobre a arte ou sobre a cultura, por exemplo, sobre Friedrich Nietzsche (sobretudo sobre “A Origem da Tragédia” ou “Ecce Homo”) ou sobre Theodor Adorno e o seu escrito sobre as indústrias culturais, incluído na Dialéctica do Iluminismo, mas também sobre Pina Bausch e o Tanztheater, com um enquadramento global e histórico sobre a dança, desde os seus primórdios.
Trata-se de um livro sobre a arte guiado por uma posição de fundo que encontrará confirmada nos diálogos com os autores-referência escolhidos. E essa posição de fundo assume a arte como dimensão ontológica, não como mero exercício profissional, como técnica de “amusement”, como virtuosismo cultural ou como especialidade académica. É nesta posição que julgo encontrar a diferença fundamental entre a grande arte, a grande literatura, a grande poesia e as produções que mais não visam do que o consumo imediato em posição de “distracção”, como diria o Adorno, referindo-se às indústrias culturais. Não, do que aqui se trata é de arte entendida como imperativo existencial, como procura do humano lá nas profundezas da alma com os sofisticados instrumentos de que ela dispõe e, no essencial, com as categorias que o Italo Calvino propõe para o milénio que já começou. A poesia marca uma espécie de diferença ontológica relativamente à experiência do sentir, ao sentimento.
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ESTE LIVRO, também desenvolve e prolonga a reflexão que propus na Introdução ao meu livro de poesia (“Sobre a Obra de Arte”), bem como as respostas aos meus leitores digitais (”Reflexões em torno dos Poemas”), ambas nele incluídas (Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, pp. 13-39 e 351-420). A Dor e o Sublime é como que a outra face, em prosa, das minhas concretas propostas de poesia, de pintura e de romance (em Via dei Portoghesi, Lisboa, Parsifal, 2019). Um livro que poderá, pois, ser melhor compreendido por quem visitar o que há anos venho propondo publicamente, em joaodealmeidasantos.com, seja poesia ou pintura, ou mesmo no referido romance, como resultado da minha própria, sofrida e levitada, relação estética com a vida.
NOTA
QUERO aqui deixar um agradecimento à ACA Edições pela honra que me deu em ser eu a iniciar a sua actividade editorial com este livro. Outros se seguirão, em breve.
REFERÊNCIAS
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POE, E. A. (2016). Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
SANTOS, J. A. (2021). Poesia. Lisboa: Buy The Book.
O ESTADO-CARITAS
Por João de Almeida Santos

“SELO”. JAS. 03-2023
ESTÁ A TORNAR-SE DIFÍCIL manter serenidade reflexiva neste país, com tantas e tantas estranhezas que nos assaltam cada dia que passa. E não é só a política informativa desses guerrilheiros desbragados do tablóide electrónico à conquista do pior que os espectadores possam desejar, à conquista das pulsões negativas, em todos os coloridos géneros televisivos, que os colem ao monitor, se for preciso, durante um “breve intervalo” de 16 minutos e de exposição a 53 anúncios publicitários, para, depois, ouvirem, durante 28 minutos, umas piadas num exaltante monólogo humorístico. A oferta do negativo domina esmagadoramente, ainda que isso possa contribuir para aumentar a não já pequena depressão colectiva alimentada pela crise e pela especulação. Todos os dias, entre as 20:00 e as 22:00, nos canais generalistas, com aquelas caras estafadas dos “pivots” a ritualizarem, por entre carradas de publicidade, as imagens polimórficas da desgraça. Leia jornais (bons), não veja os telejornais, é o que apetece dizer.
I.
MAS TAMBÉM A POLÍTICA não pára de surpreender. Mesmos os que se ocupam dela há muito. De repente, damo-nos conta de que já não temos em Portugal um Estado Social, mas sim um Estado-Caritas, um Estado que distribui constantemente esmolas aos pobrezinhos, alimentado financeiramente, como se sabe, por pouco mais de metade dos agregados (cujo total é de cerca de 5.4 milhões), a que paga impostos. Por exemplo, cerca de 45% destes agregados não pagaram impostos, em 2020. O triunfo da compaixão e do esbulho fiscal ao serviço de um arremedo de política pública. Com os mesmos sempre a pagar. O verso e o reverso: o Estado fiscal a financiar o Estado-Caritas, que se substituiu definitivamente à responsabilidade individual pelas opções que cada um deve tomar na sua vida. Uma espiral de virtude colectiva. Um excelente exemplo para os jovens: “não se preocupem, está cá um Estado-Papá rico para, com o dinheiro dos vizinhos e pobres contribuintes, esse maná inesgotável, vos ajudar sempre que precisem”. Podem continuar a ir aos concertos, todo o ano e em todo o lado, que não há problema. Haverá sempre um excedente orçamental para vos aquecer a alma e o corpo ao ritmo excitante dos impostos directos e indirectos.
II.
DEPOIS O ESTADO-REMAX, uma versão especializada do Estado-Caritas, para resolver o problema da habitação, tomando conta da propriedade privada, não a dos meios de produção, mas, mais prosaicamente, a das habitações, ainda que o n.º 2 do art. 62 da Constituição da República Portuguesa (CRP) seja muito claro ao referir-se exclusivamente a expropriação e a requisição, casos excepcionais que nunca poderiam alimentar uma regular política pública. Mas não importa, dá-se um jeito, em nome da pública compaixão e dos ideais de Abril. Mesmo que o outro artigo da CRP, o 65, só defina as linhas gerais de promoção da oferta de habitação, ou seja, diga que o direito à habitação equivale ao direito de aceder a um mercado habitacional que o Estado tem obrigação de promover com políticas públicas, competindo, depois, ao cidadão aceder ao que este mercado lhe oferece (propriedade ou arrendamento), com os seus próprios recursos. Mas não importa, abalança-te a comprar e a endividar-te para toda a vida que se, depois, não tiveres dinheiro para pagar a conta cá estaremos nós para te ajudar de forma consistente (e por cinco anos, se for preciso), em nome da pública compaixão. Compres ou arrendes, cá estaremos para te proteger. Não tens culpa de não haver mercado de arrendamento em Portugal e, por isso, ser preferível comprar do que arrendar a preços exorbitantes. Ao menos assim a casa fica tua, que é um modo de dizer. Por isso não te preocupes, o Estado é eterno e está sempre em dívida para contigo. Orgulhamo-nos-nos de sermos um país campeão da solidariedade. Só que há uma bela diferença entre meios de produção e propriedade individual para directo usufruto (e não como meio de produção), dirão os descrentes, os desapiedados. Há, sim, mas para o caso não interessa nada. Temos o dever da solidariedade e é isso que importa. É uma história com barbas? Pois é, e bem sabemos que ela já vem do Jean-Jacques Rousseau, do Discours sur l’origine les fondements de l’inegalité parmi les hommes, que passou por Proudhon (“la proprieté c’est le vol”) e vai direitinha a acabar na Constituição Soviética de 1936, com a apropriação pública dos meios de produção. E, ao que parece, ainda está bem viva por aí, e também por aqui. Há uns bons anos, o senhor Daniel Bensaid, filósofo e dirigente da LCR, não esteve com meias medidas e declarou para quem o quisesse ouvir: “La propriété c’est un vol très concret et quotidien”. (Libération, Maio de 1999). Proudhon revisitado. Não é, pois, coisa assim tão nova como parece. Os culpados dessa anormalidade do direito à propriedade privada, tão combatido logo no início da modernidade, foram os liberais, os burgueses, que tiveram o arrojo de pôr na carta fundacional da nossa modernidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC), de 1789, o direito à propriedade privada como direito natural e imprescritível. Querem ver? “Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté, et la résistance à l’oppression”. Direitos naturais e imprescritíveis do ser humano, anteriores ao Estado, reparem bem, tendo este, aliás, como fim a sua conservação, não a sua anulação. Não são uns exagerados estes liberais? Ainda por cima, não está lá o direito à habitação. Mas devia estar, para pôr na ordem o n.º 2 do artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 1948, perdão, Direitos Humanos: “Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”. Bem sabemos que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) diz, no n.º 1 do art. 17, que “todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil”. Sim, bem sabemos, mas também sabemos que, no fim, o artigo diz que “a utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral”. Aqui está a base europeia para obrigarmos por lei, através dos nossos autarcas, os privados a arrendarem as casas devolutas. Só é preciso regulamentar este comando, o que faremos sem hesitação em nome da pública compaixão. Mesmo que haja dúvidas sobre se não se trata, nesta frase, também da figura da expropriação e da respectiva regulamentação sobre o uso do objecto expropriado. Mas isso interessa pouco ou nada ao lado da solidariedade e da compaixão. Da pública compaixão.
III.
LIBERAIS, DIZEMOS NÓS! Pois que fiquem a saber esses liberais empedernidos e pouco solidários que o direito à habitação vale tanto como o direito à propriedade privada. Isto disse, e bem, a futura líder do Bloco de Esquerda e, depois, a frase foi acarinhada pelo Senhor Primeiro-Ministro. Disse ela: “O direito à propriedade não pode ser um direito que se coloca acima de outro, que é o direito à habitação. Obviamente que as pessoas têm a sua propriedade, mas têm o dever de colocar o imóvel no mercado“ (CNN, 01.02.2023). Pelo menos, salva-se o direito à propriedade privada, o que já não é de todo despiciendo. Sim, senhor, embora o direito à habitação não esteja formulado em nenhuma das três Cartas de Direitos Fundamentais (DDHC, DUDH e CDFUE), nem a Constituição o constitua como um direito linear, mas sim somente através de uma instrução constitucional ao poder político para criar condições de acessibilidade à habitação. O que é coisa bem diferente de um direito linear como o direito à propriedade privada. Aquele direito até coincide com este se for exercido através precisamente do exercício do direito à propriedade privada e nas mesmas condições – por aquisição com recursos próprios. Não por doação do Estado ou com choruda bonificação. E, dizem eles, os impiedosos, se na CDFUE é feita referência a uma “ajuda à habitação”, isso acontece somente por motivos de exclusão social e de pobreza (n.º 3 do art. 34). Sim, mas nós vamos fazer isso e não só para os pobrezinhos, porque todos merecem e, graças aos impostos em que nunca tocaremos, até temos folga para mais, até para superavit. Isto, sim, é justiça social. E só não é justiça total porque infelizmente o Estado ainda não conseguiu oferecer uma casa a todos, a propriedade de uma casa. Mas lá há-de chegar, se a justiça social não for palavra vã e se o direito à habitação não for letra morta constitucional. Rendimento de cidadania, casa, saúde, educação e férias. Este, sim, é um Estado Social em todas as variantes justas e desejáveis. E estamos a falar do Estado-Infraestrutura, porque ainda temos o Estado-Superestrutura que, cada vez mais, impõe normativamente padrões linguísticos e comportamentais detalhados para que a justiça social, a justiça histórica, a igualdade e a compaixão estejam também aí garantidas. É uma onda em crescendo, ou seja, uma progressiva normativização da sociedade que, embora interfira gravemente com o princípio da liberdade, fazendo mesmo lembrar as sociedades que cultivavam obstinadamente as públicas virtudes juntamente com os vícios privados, se revela necessária para que tudo seja justo, equitativo, não discriminatório e solidário. Entre o Estado de Direito e o Estado Social na sua forma inovadora de Estado-Caritas nós optamos por este.
IV.
POIS É, DIGO EU, já um pouco perplexo. Mas, mesmo assim, do que estamos a precisar é de quem escreva, como a seu tempo fez o Wilhelm von Humboldt, um livro sobre os limites da acção do Estado. Bem sei que esse era um empedernido liberal, talvez mesmo o mais empedernido dos liberais, a crer no que dele disse o Hayek. Mas que só durou até chegar o Bismarck, com o Estado Social, que depois continuou com a República de Weimar, com o Relatório de Beveridge e com o modelo social europeu e nunca mais parou, sobretudo aqui em Portugal, com a aceleração que o governo de António Costa lhe está a imprimir. Dizem para aí que aquilo que aconteceu em 2015 afinal era mais profundo do que parecia. O PS iniciou a metabolização profunda das pulsões da extrema-esquerda e foi por aí em diante numa cavalgada impressionante. Será mesmo verdade? O horror ao liberalismo nunca foi extirpado das fileiras do PS, mesmo depois de Bad Godesberg (1959) e da Terceira Via, isso é verdade, mas agora a marcha acelerou brutalmente, sobretudo depois da experiência da COVID 19.
V.
PARECE-ME, todavia, que o PS está mesmo a precisar de clarificar as ideias acerca dos limites da acção do Estado, para não dizer da própria natureza e funções do Estado, antes que comece por aí a pôr selos de “preço justo” em todos os produtos que circulem no mercado, a começar nas cebolas, nas batatas, nas maçãs e a acabar sabe-se lá onde. O anúncio já teve altas honras institucionais por parte da mesma personalidade que anunciou a grande oportunidade económica que iria resultar do surto de Covid 19 na China. Talvez também selos nos fatos, nos carros, nas casas. Selar tudo. Em nome da justiça mercantil. Criando um Ministério do Selo que garanta “preços justos” em tudo o que comercialmente mexa. Já não se falará de economia de mercado nem de economia social de mercado, mas de justiça social de preço e de mercado. Ao Estado já não interessa somente saber se o que acontece na sociedade está em conformidade com as leis, se é ou não legal. O Estado agora substitui as leis do mercado pela moral, inspirando-se certamente na teoria smithiana dos sentimentos morais, um regresso ao Smith filósofo contra o Smith economista, o da “Riqueza das Nações”. Também aqui estamos a precisar de facto de um novo Adam Smith e de um novo John Maynard Keynes que ponham os pontos nos is. Que expliquem a nova política do selo e da habitação. Entretanto, sem que a justiça social de mercado se aperceba, vão-se consolidando os oligopólios na energia, nas telecomunicações, na banca, na distribuição. Parece que as grandes superfícies até já estão a criar lojas de bairro de modo a que o mercado da distribuição fique todo nas suas mãos. Com selo ou sem selo, numa generosa atitude de proximidade ao cliente. Assim, a produção, a montante, escusa de se preocupar em calcular preços – serão os três ou quatro oligopólios a indicar os preços na produção. Eles só terão de se preocupar com a produção, não com os preços. Isto, sim, é verdadeira democracia económica. O que interessa é o consumidor final, nada do que está a montante… Que o digam as empresas fornecedoras das grandes superfícies.
VI.
MAS ISSO NÃO INTERESSA NADA se esta oligocracia económica vier beneficiar o cliente, apesar de, tanto a montante como a jusante, os preços serem determinados pelos oligocratas, na cara das leis do mercado, do próprio Estado, que os deixou adquirir essas posições de domínio absoluto, e até do próprio consumidor final. Mas, avante. O que interessa, isso sim, é a metafísica da indemnização à senhora Alexandra Reis. Esse folhetim, esse “culebrón” que nunca mais termina. Esse, sim, é assunto de Estado que vale a astronómica soma de 500 mil euros e uma CPI para animar o pagode. O resto, ou seja, o destino da TAP e dos 3,5 mil milhões investidos nela, a localização do Aeroporto de Lisboa, a ligação a Madrid e à Europa por TGV pouco importam. Importa, sim, é o foguetório do escândalo moral.
VII.
A MORAL parece que tomou conta das nossas vidas – no Estado, onde o Estado Ético já substituiu o Estado Democrático de Direito; na moral, que se sobrepôs à lei; na economia, onde a lei moral se sobrepõe à lei da oferta e da procura em regime de concorrência; nos preços e na língua, no preço justo e na palavra justa. Sim, na palavra justa e politicamente correcta. O comentário dita lei em Portugal e até já temos um comentador-mor institucional que tudo comenta e tudo classifica, o relevante e o irrelevante, o central e o periférico. Tudo. Até as iniciativas legislativas do governo: a da habitação é uma “Lei-Cartaz”, não é para aplicar, mas somente para mostrar; ou o próprio governo: “requentado”, diz ele. Só que já ninguém liga ao que diz, de tanto dizer, e, por isso, a inflação parece já ter chegado de forma galopante ao preço da (sua) palavra. Dizem que já ultrapassou os 100 por cento. Podem subir as taxas de juro que esta inflação não parará. Por isso, também a sua palavra, mais dia, menos dia, carecerá de um selo de “valor justo”, dada a espiral inflacionista que a tem vindo a atingir e a desvalorizar. “Valor justo”, de montante a jusante. De Belém a Vilar de Perdizes. Que se espera? No mundo onde a moral é o valor social supremo também a palavra, et pour cause, o é, mesmo que tenha de correr o risco de sofrer, como já acontece, o grave efeito de uma inflação galopante que nos põe a todos numa autêntica crise de nervos e de discurso. Basta abrir um canal televisivo para constatar isso mesmo: uma floresta de papagaios a debitar palavras de nenhum valor, sequer facial. Uma espiral inflacionista que já também atingiu a palavra. Também aqui, no “valor-palavra”, seria necessário um selo de “palavra justa”. Mas não importa. Com selo ou sem selo, somos magnânimos, fervorosos adeptos da compaixão e cultores de TIRs de lixo publicitário em nome de duas ou três gargalhadas. Amen. JAS@03-2023
O BELO COMO PROMESSA DE FELICIDADE
Baudelaire e a Poesia
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 03-2023
FALAR DE EDGAR ALLAN POE e de Thomas S. Eliot sem falar de Charles Baudelaire (1821-1867) seria certamente uma grave falha, dada a sua ligação a Poe, o reconhecimento de Eliot, a importância do poeta e a influência que ele exerceu sobre a melhor poesia francesa e europeia, sobretudo através dessa magnífica obra “Les Fleurs du Mal”. Por isso lhe dedico hoje este pequeno ensaio.
1.
EM “L’ART ROMANTIQUE” (Baudelaire, 1925) Baudelaire cita a frase de Stendhal que serve de título a este artigo: “Le Beau n’est que la promesse du bonheur” (1925: 53). Ideia que ele concretiza mais à frente, à sua maneira, do seguinte modo:
“Assim, o princípio da poesia é, estrita e simplesmente, a aspiração humana a uma Beleza superior, e a manifestação deste princípio reside num entusiasmo, num rapto (enlèvement) da alma” (1925: 162; itálico meu).
O belo como felicidade: elevação, levitação da alma nas regiões sobrenaturais da poesia. Sim, de novo a poesia como acolhimento e redenção. Rapto da alma para o mundo inspirado da criação.
Ou, melhor, ainda:
“É um dos privilégios prodigiosos da arte que o horrível, esteticamente expresso, se torne beleza, que a dor ritmada e cadenciada encha o espírito de uma alegria calma” (1925: 172).
Dor ritmada e cadenciada pela poesia: alegria calma, diz Baudelaire, quando a arte, accionando e dando forma à “sensibilidade da imaginação”, subtrai o ser humano ao horrível e à dor. Uma espécie de poder terapêutico da poesia, de poder salvífico, redentor. Não propriamente de salvação, por fuga do real, tão criticada por Cioran: “O erro de todas as doutrinas da salvação é suprimir a poesia, atmosfera do inacabado. O poeta trair-se-ia se aspirasse a salvar-se: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito” (2022: 40). Não, do que se trata, na verdade, é de uma metabolização poética dos sentimentos que o ser humano experimenta, da Erlebnis. Transfiguração poética da Erlebnis. O poeta não foge do real, incorpora-o, transfigurando-o e metabolizando-o. Só assim pode “neutralizar” a dor, transformá-la em “alegria clama”. Voilà.
É este um dos princípios e também uma das consequências da arte, daquela que, não tendo um fim exterior a si (“la poésie… n’a pas d’autre but qu’elle même”; ou “tout art doit se suffire a lui-même”, 1925: 157 e 129), se propõe como a mais alta e sublime aspiração humana – a contemplação do belo como “promessa de felicidade”, como elevação, levitação. Uma felicidade tranquila, calma. Leveza anímica, prazer espiritual. Sim, essa mesma que incorpora e transfigura pulsões e sentimentos numa metabolização espiritual profunda com alto poder performativo e com poder redentor. O contrário do que resulta do “humor demonstrativo”, da ciência, por exemplo, que procura a verdade, mas que afasta “os diamantes e as flores da Musa” (1925: 158) e que, por isso, é absolutamente o contrário do humor poético. A própria indústria e o progresso que lhe está associado também se revelam ser “inimigos despóticos de toda a poesia”. Ou seja, quando o conforto físico e a instalação material tendem a enfraquecer os sentidos e a desvalorizar a procura do conforto interior, através da contemplação. A trepidação ruidosa das massas urbanas (a Paris de Baudelaire) que engole o silêncio e a contemplação. O progresso industrial acelera o tempo e a velocidade e tende a “cegar” os sentidos. E, por isso, a quem diz que “nada do que é humano me é estranho” Baudelaire responde que “je me suis imposé de hauts devoirs, que quidquid humani a me alienum puto. Ma fonction est extra-humaine!”; ou, então, “é, pois, para evitar o espectáculo desolador da vossa demência e da vossa crueldade que o meu olhar permanece obstinadamente virado para a Musa imaculada” (1925: 179-180). A procura interior que eu persigo, diz, sintoniza com os “puros Desejos”, as “graciosas Melancolias” e os “nobres Desesperos” que habitam “as regiões sobrenaturais da Poesia” (1925: 160). Desejo, melancolia, desespero – os sentimentos que, ritmados e cadenciados, habitam o universo purificado da poesia baudelairiana.
2.
MAS VEJAMOS a afirmação de que o princípio da poesia reside no entusiasmo, num rapto da alma. Podendo parecer banal, a ideia de entusiasmo tem raízes profundas na história da poesia. Até pela sua etimologia: enthousiasmós, palavra grega que deriva de enthousiázdô, que significa estar inspirado e cuja raiz está na palavra grega éntheos, que alude a inspiração divina (theos), a estro. O filósofo italiano Benedetto Croce, em Storia dell’estetica per saggi, no capítulo sobre Racine, refere os quatro elementos que o poeta francês encontra na composição poética: a versificação, a imitação, a ficção/fingimento e o entusiasmo. Sendo certo que, além da versificação e da ficção/fingimento, a ideia de imitação já vem da antiguidade como ideia central, ou seja, a poesia imita em palavras e sonoridade, numa autêntica “sorcellerie évocatoire”, os sentimentos humanos, o entusiasmo, que também afunda as suas raízes na história da poesia, é, todavia, dos quatro, aquele que Racine mais valoriza (Croce, 1967: 92-93). Vejamos o que o próprio diz sobre o entusiasmo:
“le caractère qui n’est propre que a elle et qui la distingue essentiellement de la prose”; (…) “aussi les vers qui sont le fruit de cet enthousiasme ont une beauté don’t celle de la prose n’approche jamais”; (…) “voilà ce que Platon et Ciceron ont appelé fureur e inspiration divine, et que nous appelons enthousiasme e verve” (Racine, 1808: 177-78; itálicos meus).
Estamos, pois, a falar, também em Baudelaire, de uma dimensão essencial da poesia, a do entusiasmo, que mobiliza a “sensibilidade da imaginação” e que permite distinguir o que é do foro poético e o que não lhe pertence. “Há na palavra, no verbo”, diz Baudelaire, referindo-se naturalmente à poesia, “algo de sagrado que nos proíbe de fazer um jogo de azar. Manejar habilmente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória” (1925: 165; itálico meu). Feitiçaria evocatória, a única que pode aceder ao mistério da vida. Sobretudo a da poesia. É do foro poético o que diz respeito ao “mistério da vida”. É o que ele reconhece na poesia de Victor Hugo: Baudelaire diz que ele vê o mistério em todo o lado e que daí deriva o sentimento de “effroi”, de medo, de pavor. Esse mistério que Baudelaire também reconhece na pintura do grande Delacroix, sobre o qual escreve textos admiráveis: “c’est l’invisible, c’est l’impalpable, c’est le rêve, c’est les nerfs, c’est l’âme” (1925: 5). Numa palavra, o mundo do sonho e da fantasia. O mundo da levitação pela arte. Dimensões fundamentais inscritas na ideia de belo, que, para Baudelaire, contém, sim, um elemento eterno, mas também um elemento relativo, que não se deve suprimir para não cair na beleza abstracta e indefinível. Numa palavra, uma composição equivalente à própria dualidade do ser humano (1925: 52-53; 66-67), corpo e alma. O próprio Paul Valéry, no célebre texto Situation de Baudelaire, reconhece que, nos melhores versos de Baudelaire, há “une combinaison de chaire et d’esprit, un mélange de solennité, de chaleur e d’amertume, d’éternité e d’intimité, une aliance rarissime de la volonté avec l’harmonie” (1924: 26). Sim, uma combinação feliz de elementos pulsionais e sentimentais com elementos espirituais, essa dualidade: carne e espírito; solenidade, calor e amargura; eternidade e intimidade; vontade e harmonia. É na composição destas características contingentes e universais que se revela a poesia, dando vida, segundo Valéry, a um ser mais puro, mais poderoso, mais profundo, mais intenso, mais elegante e mais feliz do que qualquer ser humano concreto. Tudo numa linha melódica admiravelmente pura e uma sonoridade sustentada que distinguem a voz poética de todas as vozes prosaicas (1924: 28).
3.
VALÉRY RECONHECE o que todos reconhecem como factores determinantes na poesia de Baudelaire: 1) a influência decisiva de Edgar Allan Poe, através da assunção consciente e interior daquele que é conhecido como o princípio poético de Poe, a sua teoria da composição, a fusão entre mística e exactidão matemática, que conduziu a uma poesia no seu estado puro. A obra Les Fleurs du Mal, para Paul Valéry, terá sido construída em conformidade plena com os “ préceptes de Poe” – “tout y est charme, musique, sensualité puissante et abstraite” (1924: 24); Por exemplo, no poema “Le Balcon” (transcrevo somente os primeiros dez versos):
“Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses,
Ô toi, tous mes plaisirs ! ô toi, tous mes devoirs !
Tu te rappelleras la beauté des caresses,
La douceur du foyer et le charme des soirs, Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses !”
Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon,
Et les soirs au balcon, voilés de vapeurs roses.
Que ton sein m’était doux ! que ton cœur m’était bon ! Nous avons dit souvent d’impérissables choses
Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon”
(Baudelaire, 2003: XXXVI; pág. 57).
Poe foi reconhecidamente a maior influência que Baudelaire conheceu enquanto poeta e este retribuiu-lhe propondo o seu pensamento ao futuro (1924: 20); 2) a diferenciação estética relativamente aos poetas seus contemporâneos e já consagrados, Lamartine, Hugo, Musset, Vigny, a todos aqueles que partilharam entre si “les provinces les plus fleuries du domaine poétique” – “je ferai donc AUTRE CHOSE”, afirmou Baudelaire. “Sa raison d’état”, diria Valéry (1924: 9). Estavam, assim, lançadas as bases para uma nova poética que haveria de dar importantes frutos, enquanto tal, mas também no plano dos seus efeitos no mundo dos grandes artífices de poesia: Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé, Arthur Rimbaud, Gabriele d’Annunzio.
4.
É ESTE O TERRENO DA POESIA, não o da submissão ao conforto físico ou aos sentimentos demolidores da alma, os que a impedem de se manifestar como levitação espiritual, dominando-a e impedindo-se de se exprimir no território do sublime. Por exemplo, a violência da paixão, essa “bebedeira do coração”. Isso não, pois se é verdade que é no coração que reside a paixão, “só a imaginação contém a poesia” (1925: 160-161). É na imaginação que ela reside. Existe no belo uma parte relativa, contingente, certamente, tal como na própria estrutura do ser humano. Sim, existe, mas Baudelaire reconhece que a sensibilidade que resulta da turbulência do coração “não é absolutamente favorável ao trabalho poético, podendo mesmo prejudicá-lo”. Pelo contrário, “a sensibilidade da imaginação sabe escolher, julgar, comparar, fruir isto, procurar aquilo, rapidamente, espontaneamente. É desta sensibilidade, a que se chama geralmente Gosto, que nós retiramos o poder de evitar o mal e procurar o bem em matéria poética” (1925: 162-63).
Há aqui uma importante distinção que se torna necessário esclarecer, pois pode parecer que a poesia é estranha aos sentimentos. Estes cegá-la-iam, impedindo-a de se exprimir superiormente. Certamente, quando acontece uma turbulência passional ela pode inibir aquela distância, aquele intervalo a partir do qual a alma se eleva, levita nesse território “sobrenatural” onde vive a poesia. É como se se tratasse do domínio avassalador de uma pulsão que cega e esmaga a própria sensibilidade, tornando impossível a sua conversão em linguagem poética, que requer distância, não um turbilhão de ondas emocionais que tudo leva à frente e esmaga. A poesia alimenta-se, não desta turbulência incontrolável, mas do sentimento de perda, de ausência, de relação interrompida com o real, de fracasso, de impossibilidade ou, para o dizer com Baudelaire, de desejo, de melancolia, de desespero. Ou, ainda, de nostalgia. Como diz Eliot, referindo-se precisamente a Baudelaire, ele explorava a sua própria fraqueza com fins especulativos, coincidindo nisto com Nietzsche: os poetas são impudentes em relação às suas próprias experiências: eles exploram-nas. A um “éclair” segue-se “la nuit” e a essa o belo poema “A une passante”. O clarão que o ilumina, o estremece e o cativa transforma-se, passado o “choc” e a escuridão da perda, em canto sublime (como veremos mais à frente). Verifica-se, pois, primeiro, o estremecimento provocado pelo clarão, e, depois, a noite, a ausência, a melancolia, uma distância sofrida, sim, entre o poeta e a realidade com que se confronta (já) remotamente, possibilitando essa colocação em intervalo que lhe permite observar-se na sua relação vivida com o mundo, a Erlebnis, e, depois, o canto redentor. Regresso sempre a essa fórmula fantástica do Calvino: privação sofrida, levitação desejada. Certeira, também em Baudelaire. Portanto, é necessário que seja possível levitar e não ficar esmagado pelo peso insustentável de uma pulsão destruidora e inibidora de distância. Já aqui falei, a propósito de Pessoa e de Hermann Hesse da recusa. Recusa consciente como condição da levitação por desejo. Levitação para essas “régions surnaturelles de la poésie” (1925: 160), onde acontecem os puros Desejos, as graciosas Melancolias e os nobres Desesperos. É para aí que Baudelaire voa, com a imaginação poética.
5.
FALANDO DE VICTOR HUGO, Baudelaire, que o admirava, afirma que “a contemplação sugestiva do céu ocupa um lugar imenso e dominante nas últimas obras do poeta”. Contemplação do céu nessa caminhada sugestiva da poesia.
“La contemplation suggestive du ciel occupe une place immense et dominante dans les derniers ouvrages du poëte. Quel que soit le sujet traité, le ciel le domine et le sur- plombe comme une coupole immuable d’où plane le mystère avec la lumière, où le mystère scintille, où le mystère invite la rêverie curieuse, d’où le mystère repousse la pensée découragée” (1925: 3123).
Uma imensidão misteriosa e sedutora esse céu que Baudelaire refere, falando de Victor Hugo: o céu como cúpula imutável que domina e pende sobre o discurso poético e da qual emerge o mistério com luz, onde o mistério brilha, convida ao sonho e recusa o pensamento do desalento. E por isso é legítimo que o poeta “se abandone a todos os sonhos sugeridos pelo espectáculo infinito da vida sobre a terra e nos céus. Assim, ele traduz numa linguagem magnífica as conjecturas eternas da curiosidade humana” (1925: 314). É este o universo da poesia que ele, inspirado pelo poeta Victor Hugo, também assume, embora numa poética que, como reconhece Valéry (“Baudelaire a recherché ce que Hugo n’avait pas fait”, 1924: 12), se diferencia da poesia daquele e da dos seus outros contemporâneos. Valéry chega, timidamente, a sugerir a ideia de complemento, referindo-se à poesia de Baudelaire relativamente à de Victor Hugo. O universo do mistério, da luz e do sonho, ancorados na abóbada celeste da catedral poética, é, de qualquer modo, uma fascinante formulação que cabe bem em qualquer poética. E, naturalmente, na sua.
6.
MAS NEM SÓ de céu ou de puros desejos vive a poesia de Baudelaire (nem a sua complicada vida pessoal e familiar tornaria isso possível). Ele dialoga com Paris e alimenta a sua poesia também da grande cidade e da multidão ruidosa que a povoa. Vejamos, pois, o que, a este propósito, diz Walter Benjamin no seus escritos sobre Baudelaire:
“O engenho de Baudelaire, alimentado de melancolia, é um engenho alegórico. Pela primeira vez, em Baudelaire, Paris torna-se objecto de poesia lírica. Esta poesia não é arte local ou de género; o olhar do alegórico, que atinge a cidade, é o olhar de um estranho. É o olhar do flâneur, cujo modo de viver envolve ainda de uma aura conciliadora aquele futuro desconsolado do habitante da grande cidade. O flâneur está ainda nos limiares, seja da grande cidade seja da burguesia. Uma e a outra ainda não o esmagaram. Ele não se sente à vontade em nenhuma das duas; e procura um refúgio na multidão. (…) A multidão é o véu através do qual a cidade bem conhecida aparece ao flâneur como fantasmagoria” (Benjamin, 1962: 155).
Aqui, Baudelaire recolhe a influência de Edgar Allan Poe, do qual traduzira um conto intitulado O Homem da Multidão. Benjamin não concorda com o paralelismo que possa existir entre este homem londrino e o flâneur parisiense, bem diferentes, de tão diferentes serem as duas cidades, mas não deixa de demonstrar a centralidade invisível da multidão num famoso soneto de Les Fleurs du Mal, “A Une Passante” (1962: 103), e a influência que ela tem na sua poesia:
La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair… puis la nuit ! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?
Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard ! jamais peut-être ! Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !
(Baudelaire, 2003: XCIII, pág. 131)
A multidão ensurdecedora da cidade que logo parece engolir inapelavelmente tudo aquilo que emerge fugazmente da sua vasta e confusa superfície ondulante é a fantasmagoria que o alimenta e o leva ao estado melancólico, depois do desespero pelo desejo puro incumprido, o dessa mulher que só encontrará na eternidade, a do canto sublime, aqui, neste poema.
Num texto que há algum tempo aqui publiquei falava do “estremecimento” como energia-choque propulsora do voo poético. Aqui, Walter Benjamin fala de “choc” neste encontro do olhar envolvente, e até comprometido, do sujeito poético com a figura de uma mulher que passa na multidão ruidosa e subitamente desaparece, frustando um eventual amor (“Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais”). A multidão engolira essa mulher “agile et noble”, essa “fugitive beauté” que o fizera renascer talvez mesmo para o amor. O “choc”: “un éclair… puis la nuit”. “Um amor não tanto ao primeiro, quanto ao último olhar”, como diz certeiramente Benjamin. Último porque foi esse que ficou e deu lugar ao lamento poético. Uma “catástrofe”. Uma perda. Ausência inexplicável perante tal estremecimento. Um estremecimento convulsivo do seu corpo e da sua alma perante um “clarão” que quase o encandeia e, de repente, a “noite”, o fim, a ausência que viria dar lugar ao poema do desejo, da melancolia ou até mesmo do desespero. Quem nunca experimentou o fulgor cativante de um olhar tão fugaz e tão intenso como este? Sim, mas, porque o clarão aqui dará lugar ao canto, torna-se libertador, redentor este voo para as “regiões sobrenaturais da poesia”, onde habitam esses sentimentos já depurados do duro embate com a rugosidade e a aspereza implacável do real. Talvez se trate mesmo de um processo de metabolização poética do fracassado encontro e, por isso, de uma superior forma de resolução dessa “experiência vivida” a partir de um intenso e comprometido olhar.
A força da poesia de Baudelaire vê-se bem na difusão que ela teve e nos ilustres discípulos que interiorizaram a sua poética, mas vê-se também na leveza e na musicalidade com que assume essas linhas essenciais de fractura que separam a grande poesia de toda a outra. Apetece-me terminar com uma inocente provocação, usando o que ele próprio disse, em “L’Art Romantique”: “Ceux qui ne sont pas poètes ne comprennent pas ces choses” (1925:304). Será mesmo assim?
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Ch. (1925). L’Art Romantique. Paris: Louis Conard, Libraire-Editeur.
BAUDELAIRE, CH. (2003). Les Fleurs du Mal. In http://elg0001.free.fr/pub/pdf/baudelaire_les_fleurs_du_mal.pdf
BENJAMIN, W. (1962). Angelus Novus. Torino: Einaudi
CIORAN, E. (2022). Breviário de Decomposição. Lisboa: Edições 70
CROCE, B. (1967). Storia dell’estetica per saggi. Bari: Laterza.
ELIOT, T. S. (2019). Esaios Escolhidos. Lisboa: Relógio d’Água.
RACINE, L. (1808). Oeuvres. Paris: Lenormant.
VALÉRY, P. (1924). Situation de Baudelaire. Monaco: Imprimerie de Monaco.
JAS@03-2023
ELOGIO DA RENÚNCIA
Hermann Hesse e a Poesia
Por João de Almeida Santos

“Timidez”. JAS. 2021
VISITO regularmente um pequeno e encantador livrinho de Hermann Hesse, na sua edição bilingue, alemão-italiano, “Poesie del Pellegrinaggio” (Milano, TEA, 1995), uma selecção feita a partir da edição alemã da sua obra poética: Gesammelte Dichtungen (Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, 1952).
1.
A RAZÃO desta regular revisitação é sempre a mesma: também Hermann Hesse joga toda a sua arte entre a incerteza do mundo e a solidez subjectiva do humano. Na relação assimétrica entre o mundo objectivo e o mundo interior. Diz Hesse no poema “Buecher” (aqui não incluído):
“Ali está tudo aquilo de que necessitas,/ Sol, estrelas e lua, Pois a luz que tu desejas Habita em ti próprio” (Dort ist alles, was du brauchst,/ Sonne Stern und Mond, Denn das Licht, wonach du frugst,/ In dir selber wohnt).
Aquilo por que perguntas, aquilo que desejas, reside em ti – sol, estrelas, lua, os elementos luminosos da sensibilidade e da fantasia. Ousaria dizer, usando linguagem filosófica, que a sua poesia se move no interior da assimetria que encontramos na relação entre a dimensão ôntica da vida e a sua dimensão ontológica, a que nos é confiada pela arte. Mas uma dimensão, esta, onde há uma certeza: a de que só caminhando incessantemente estaremos na via justa.
2.
Andou pelo oriente, Hesse, mas não identificou a espiritualidade oriental com os lugares físicos do oriente. A paisagem pode ser habitada pelo sublime, mas não é ela própria o sublime, porque ele está do lado do olhar. De resto, Hesse nunca valorizou a rigidez espacial perante essa inevitabilidade da viagem e da transitoriedade: “só quem está pronto para a viagem e para a partida pode subtrair-se à paralisia do hábito” (Stufen – Hesse, 1995: 92). Nomadismo existencial, portanto. Quem não viaja não vive, vegeta. Fica colocado numa impossibilidade. Mas a viagem no espaço é tão-só o prelúdio de uma viagem mais profunda, a da alma. Viajar é essencialmente isso. Viajar no espaço para melhor viajar no tempo com a alma, através da fantasia. Como se lê num verso que ficou famoso, do poema “Gegenueber von Afrika”, porque diz tudo em poucas palavras: “eu posso sempre ser somente forasteiro (Gast) e nunca cidadão (Buerger)” (1995: 42). Vejamos os quatro últimos versos do poema onde este está integrado:
“Para mim é melhor procurar e nunca encontrar / Em vez de estabelecer vizinhanças quentes e íntimas,/ Pois na terra e também na felicidade eu posso / Ser somente um forasteiro e nunca um cidadão.” (“Mir ist besser, zu suchen und nie zu finden,/ Statt mich eng und warm an das Nahe zu binden,/ Den nach im Gluecke kann ich auf erden / Doch nur ein Gast und niemals ein Buerger werden.”)
A tarefa deve ser a da busca constante sem ter a ambição de possuir o que se procura. Porque, como diria Pessoa,”possuir é perder” (2014: 238). É melhor não encontrar o que se procura, pois, assim, a busca é o processo, a vida é movimento constante. Forasteiro e nunca cidadão – é isso mesmo. Nunca dar por adquirido o que quer que seja para que nos possamos manter em movimento. Transeunte, passageiro existencial. Nunca adquirir autorização de residência na vida vivida, ficar instalado no mundo, com regras bem definidas e até com carta de condução para vaguear com segurança nas ruas estreitas e bem sinalizadas da vida. Não! Instalar-se equivale à paralisia própria do hábito.
3.
MAS HESSE é ainda mais claro no poema “Media in vita”:
“ (...) ueberall bist du nur Gast,/ Gast bei der Lust, beim Leid, Gast auch im Grab” (1995: 78).
“Em todo o lado és somente forasteiro, / Forasteiro no prazer, na dor, forasteiro também no túmulo“. Um estranho transeunte que nunca se fixa num prazer, numa dor. Forasteiro até na morada final. Trata-se, como é evidente de uma posição que reconhece grande fungibilidade à vida vivida. Um universo de contingência que só pode ser revisitado a partir de algo que é mais estável e denso: a vida interior, o eu interior. O ponto onde se apoia a alavanca de Arquimedes. A vida interior como a única certeza a partir da qual eu poderei revisitar o mundo. No poema “Lamento” (“Klage”) Hesse volta a reafirmar que “sempre somos forasteiros” (1995: 90), mas acrescenta algo que também encontramos no famoso verso de Antonio Machado: “Stets sind wir unterwegs”, estamos sempre a caminhar. Recordo o que disse Machado: “Caminante no hay camino, se hace camino al andar”. Não é estranha esta coincidência – eram contemporâneos e ambos grandes escritores. Ambos evidenciam o processo, a necessidade de se construir e consolidar em movimento. O movimento é tudo e a rigidez existencial mata e anula. Paralisa-te, como o hábito, sim. No caso de Hesse, ele dava um especial valor ao viajar, uma espécie de metafísica do existir, de revolução da percepção que temos da vida. Um movimento que, afinal, também é de fora para dentro, um movimento para si próprio (sich selbst). Verdadeiramente, a viagem espacial é transitória, porque o seu destino é sobretudo espiritual. O exterior acaba sempre por funcionar como estímulo para um movimento interior mais profundo. Um movimento que, a certo ponto, se torna inexorável e radical, como se pode ver no poema (aqui não incluído) “Im Nebel”:
“Estranho andar na neblina! Viver é estar só. Nenhum homem conhece o outro, Todos estamos sós.” (Seltsam, Im Nebel zu wandern! Leben ist Einsamsein. Kein Mensch kennt den andern, Jeder ist allein.)
A vida é como a neblina, é algo espectral que nos tolda a visão. O que resta, portanto, é o regresso a si, por falta de visão nítida do mundo exterior. Não o conhecemos, a neblina existencial é espessa, mas, vendo-o, ainda continuaremos a não passar de transeuntes, de passageiros no autocarro do tempo. Neblina e perpétuo movimento. Cegueira espectral – é disso que se trata. É aqui que temos de nos movimentar.
4.
MAS VEJAMOS o primeiro poema, “Glueck”:
"Enquanto perseguires a felicidade Não estás maduro para seres feliz,/ Mesmo que fosse teu tudo aquilo que mais amas, Enquanto chorares o que se perdeu / E tiveres objectivos e fores incansável,/ Não saberás ainda o que é a paz. Só quando renunciares a todas as ambições, / Já não tiveres objectivos nem desejos, / Nem deres nomes à felicidade, Só então o fluxo dos eventos deixará / de chegar ao coração, e a tua alma repousará" (1995: 39) *.
Vejo neste poema, a seguir à neblina e à transitoriedade do mundo e do viver, um apelo à renúncia, algo que encontramos também em Fernando Pessoa, esse “pregador” da “renúncia”, no “Livro do Desassossego”:
“A vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total”. “Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído”. “Sou a ponte entre o que não tenho e o que não quero” (Pessoa, 2014: 208-209; itálicos meus).
A ponte entre o que não tenho e o que não quero. A vida como negação, numa dialéctica entre opostos de onde resulta um tertium que incorpora e supera os seus termos ( a vida e o seu oposto lógico). A poesia corresponderia, assim, à Aufhebung (hegeliana). Só a renúncia – como oposto lógico da vida – é produtiva. Na renúncia coloco-me em posição de superar, através da poesia, a vida que se me oferece como contingência, elevando-me a um plano superior. No “Livro do Desassossego” Pessoa fala da colocação do artista precisamente numa posição de intervalo entre si próprio e o mundo. Só assim, nesta diferença, ele se poderá assumir como tertium, como superação, como artista. Renúncia: condição de paz interior, a única que nos pode levar ao belo. Para Hesse como para Pessoa. O reconhecimento da impossibilidade de nos instalarmos confortavelmente na vida, na sociedade, no real deveria levar-nos a renunciar, a dizer não, a não ceder ao transitório e ao contingente. Não procurar a felicidade, não chorar fisicamente o que se perdeu, não ter objectivos nem desejos – só assim se conhecerá a paz. Só neste estado de paz é possível recomeçar como artista, como poeta. Portanto, a renúncia é o gesto mais conforme à personalidade do poeta. Só assim se reconhecerá porque não se perderá à procura do que não deve e não pode obter. Porque uma imensa neblina cobre o real, a vida, tornando-a espectral. Vive sob o signo do que não teve, do que não quis ou, no máximo, do que sobrou do que teve ou não teve. “Eu canto o que se perdeu e temo o que se ganhou”, diria Yeats no poema “What was lost” (Yeats, 2012: 140). Na mouche, Yeats. Quando se ganha não há espaço para a redenção, porque a redenção é a própria vitória, embora esta se esgote em si, seja somente, e tão-só, um momento da dialéctica do confronto. E nada mais.
5.
A INSTABILIDADE no mundo exterior é permanente. Por isso, a condição da paz interior consiste em não estabelecer metas exteriores a nós próprios, à realidade que só nós controlamos. Na vida, no mundo somos meros transeuntes, a neblina é espessa, o mundo é espectral, somos meros passageiros, meros viajantes, meros forasteiros sem direitos consolidados ao que quer que seja.
Que resposta, então, para tanta relatividade na relação com a vida?
Talvez o poema “Media in Vita” (1995: 74-81; poema de 1921) dê a resposta: a arte, “die stille Zauberin”, a feiticeira tranquila, no seu círculo de feliz magia, quando o espírito tende para o jogo sublime. Mas este é processo que só pode acontecer interiormente. A arte como solução para a própria vida. Ela coloca-nos nessa zona íntima que escapa à transitoriedade e a partir da qual podemos dar expressão ao livre arbítrio da fantasia, à dialéctica entre a alma e a fantasia. Ela cobre com véus coloridos a morte e a dor, converte o tormento em prazer e o caos em harmonia, eleva-te ao nível das estrelas, faz de ti centro do mundo e põe o universo em coro à tua volta. O poema “Media in Vita” é um hino à arte e às proezas que ela consegue, lá onde “nenhuma fronteira separa sonho e acção” (1995: 74-81). Eu vejo aqui uma enorme proximidade entre o Fernando Pessoa do “Livro do Desassossego” e este Hermann Hesse, quando ambos, desvalorizando o contingente como terreno onde o humano se deva espraiar, valorizam, pelo contrário, esse universo interior onde a escrita reconstrói a vida, bela e livre. Diz Pessoa: “A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos (…) podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte (…); com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte” (2014: 207; itálicos meus). A arte persegue o sonho da liberdade, fazendo coincidir o exercício da vontade, não com a vida, mas com a fantasia. Só assim é possível superar a fronteira entre o sonho e a vida… e voar.
6.
TEMOS, pois, aqui algumas ideias que gostaria de resumir para centrar o que pretendo com esta viagem, a pretexto deste livrinho de Hermann Hesse. As ideias de: a) transitoriedade da vida – somos forasteiros na vida; b) renúncia, enquanto princípio fundacional para a longa viagem interior; c) vida como um permanente caminhar; d) neblina mundana e existencial que, ao mesmo tempo, qual espectro, nos induz a virarmo-nos para o nosso eu interior; e) a arte como solução para atingir a liberdade e a beleza. Nestas posições, como vimos, Hermann Hesse não está só. E a companhia não se limita a Antonio Machado ou a Fernando Pessoa, seus contemporâneos. Ele está acompanhado pela história da literatura, por esse movimento que tende a resolver o dissídio, desejado ou imposto, com a vida (Pessoa achava-se um dissidente da vida – 2014: 120), o fracasso no confronto com a aspereza e a irredutibilidade da vida, a dialéctica entre o registo sensível da alma e o culto apolíneo do espírito – a arte como feiticeira e fonte de magia que nos liberta das fronteiras entre o sonho e a vida. Liberdade e redenção. Tudo isto, onde a arte surge como resolução superior da dialéctica entre a alma e a vida. Não por acaso a Hermann Hesse foi atribuído, em 1946, o Prémio Nobel, pela qualidade da sua obra. Pois essa qualidade, independentemente da sofisticação técnica ou da beleza da escrita, centra-se, também nele, como em todos os grandes, em ter olhado o mundo de frente, em ter compreendido as tensões estruturais que atravessam o humano na sua relação com o mundo, consigo próprio e com os deuses e na possibilidade de uma sua resolução superior através da arte.
* NOTA
POEMA “GLUECK”
“Solang du nach dem Gluecke jagst Bist du nicht reif zum Glucklichsein, Und waere alles Liebstedein. Solang du um Verlornes klagst Und Ziele hast und rastlos bist, Weisst du noch nicht, was Friede ist. Erst wenn du jedem Wunsch entsagst, Nicht Ziel mehr noch Begehren kennst, Das Glueck nicht mehr mi Namen nennst, Dann reicht dir des Geschehens Flut / Nicht mehr ans Herz, und deine Seele ruht.” (1995: 38)
REFERÊNCIAS
HESSE, H. (1995). Poesie del pellegrinaggio. Milano: TEA.
MACHADO, A. (1989). Poesías Completas. Madrid: Espasa-Calpe/Fundación Antonio Machado.
PESSOA, F. (2014). Livro do Desassossego. Porto: Assírio e Alvim, 7.ª Edição.
YEATS, W. B. (2012). Os Pássaros Brancos e Outros Poemas. Lisboa: Relógio d’Água.
JAS@03-2023
O POETA E OS FANTASMAS
Conversando com T. S. Eliot
Por João de Almeida Santos

“Fantasmas”. JAS. 03-2023
“TENNYSON e Browning são poetas, e pensam; mas não sentem o pensamento tão imediatamente como o perfume de uma rosa” (Eliot, 2019: 30). Na sua aparente simplicidade, esta frase de Thomas Stearns Eliot (1888-1965) encerra em si toda uma concepção acerca da poesia: a que se define pela relação assimétrica entre a sensibilidade e o pensamento. Uma questão antiga, mas central.
I.
A SENSIBILIDADE do poeta regista de imediato, nessa zona indefinida e vasta que é a alma, os dados sensíveis, ao estabelecer uma relação sensorial com o mundo, enquanto o pensamento os representa e os compõe idealmente. A primeira situa-se no plano da génese e o segundo procede à recomposição simbólica dos dados registados pela sensibilidade. Uma inscreve-se na alma e o outro no espírito. A arte resulta da composição de ambos ou, para o dizer com Kant, do livre jogo das faculdades: a da imaginação e a do intelecto. Na construção de um poema, uma vez registados pela sensibilidade os aromas, mais acres ou mais doces, mais intensos ou mais leves, com os quais a realidade perfuma a sensibilidade e a alma do poeta, desenvolve-se precisamente este livre jogo entre o sentimento e a razão, entre a alma e o espírito. Inalar espiritualmente esses perfumes para depois os devolver recriados, como pauta, compostos de acordo com uma gramática poética, é a vocação do poeta. Sobretudo daqueles perfumes que embriagam. Como o perfume do jasmim, por exemplo. Ou o da alma de uma mulher sedutora a quem o poeta desastradamente quis confiar a alma, mas falhando a relação. As suas asas são demasiado grandes, qual albatroz em terra (Baudelaire), para poder mover-se nas estreitas vielas de uma infausta vida. Mas sempre de perfume se trata. De um diálogo do real com a sensibilidade, com a alma do poeta. Só o perfume, acre ou doce, talvez mais acre do que doce, pode gerar poesia e fazer levantar voo ao poeta. E é precisamente sobre ele que o poeta se eleva, encontrando nas palavras a correspondência, a leveza e a melodia que não foi capaz de metabolizar fisicamente perante a rugosidade concreta de uma mundana relação sensorial com tentadores perfumes. Ou talvez por isso mesmo. Uma relação que desencadeia, como imperativo, um processo de transfiguração. A poesia, de certo modo, é a continuação do eros falhado, da pulsão de vida, por outros meios. Ela tem a sua própria gramática, embora talvez não tenha uma sua própria lógica, que é mais vasta, porque se inscreve na humanidade mais profunda do poeta, e que, por isso, o transcende, enquanto tal, enquanto poeta. Talvez seja isto que Eliot quer significar quando diz, a propósito de Yeats, que ”maturar como poeta, contudo, significa maturar como homem no seu todo” (2019: 119), ou a poesia como projecção e sublimação de uma experiência emocional profundamente humana, magmática, pulsional. Isto, mesmo que se considere que a poesia tem como fim ela própria, obedece exclusivamente à sua gramática, declinando-se internamente. Mas é esta sua inscrição matricial no humano que a torna existencialmente densa e lhe dá uma alta performatividade (com a ajuda da música). Ela é, sim, a continuação, por outros meios, da relação sensorial e anímica do poeta com o mundo, com os outros ou com os deuses. Só assim ele poderá levantar voo, com as suas asas de gigante, de albatroz, sobre o vasto e encrespado mar da vida.
II.
NIETZSCHE falava, em “A Origem da Tragédia”, de uma relação harmoniosa entre o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo na tragédia grega, a mais alta expressão do sublime. Do registo sensível dos estímulos e do seu tratamento racional. Enquanto no ser humano comum, vulgar, a experiência é caótica, irregular, fragmentária, no poeta ela acontece unificada numa síntese ordenada. Nessa mesma a que se dá o nome de poesia (2019: 30). E esta é autónoma e específica, e não é, para Eliot, uma meditação em forma poética. Aqui está outra distinção que considero importante. A poesia não é um instrumento ao serviço de interesses que lhe sejam estranhos, por mais importantes e sofisticados que sejam. Inscrevendo-se na esfera do pulsional, do emocional, ela vale pelo que é. Recebe estímulos, mas, depois, metaboliza-os poeticamente, dotando-os de uma gramática interna, de uma poética própria. Como ele diz, a poesia procura equivalentes verbais para estados de alma e sentimentos. E a lei não é ditada pela natureza dos estímulos, mas, sim, pelo próprio discurso poético. Os equivalentes verbais têm a sua própria gramática. “A palavra”, diz Italo Calvino. “liga as marcas visíveis à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte de acaso (di fortuna) lançada sobre o vazio” (Calvino, 1988: 74). A palavra como ponte entre o visível e o invisível em estado de levitação sobre um gigantesco vazio.
III.
A POESIA tem, por isso, uma consistente autonomia, mas também possui uma densidade talvez superior à das outras artes, mesmo à da música, graças à combinação dos dois elementos estruturais que a compõem, a sonoridade própria dos equivalentes verbais e o sentido, o valor semântico. Vejamos o que Eliot diz, no capítulo “De Poe a Valéry”, sobre a relação entre sentido e sonoridade na poesia:
“A poesia, de diferentes espécies, pode dizer-se que oscila entre aquela em que a atenção do leitor se dirige primariamente para o som e aquela em que se dirige primariamente para o sentido. Com a primeira espécie, o sentido pode apreender-se quase inconscientemente; com a última espécie – nestes dois extremos – é o som de cuja acção nós estamos inconscientes. Todavia, em cada tipo, som e sentido devem cooperar; até no poema mais puramente dominado pela encantação, não se pode ignorar com impunidade o significado das palavras que os dicionários registam” (redondo meu; 2019: 166).
Podemos aqui traduzir som por sonoridade e sonoridade por musicalidade e constatar que Eliot defende a harmonia entre musicalidade (rima, toada, melodia) e sentido. Ou seja, a poesia incorpora a música como seu elemento natural na mesma proporção da semântica, do significado, do sentido. Esta componente musical confere à poesia um poder de influência sensitiva tal que incide directamente sobre a sua performatividade, o poder de dar às palavras o valor de uma acção, uma sua maior fisicidade, logo, uma maior pregnância sensitiva. Eliot fala de encantamento poético na poesia com maior densidade musical, onde a sonoridade domina e, consequentemente, onde maior é o apelo sensitivo ou sensorial. Mas mesmo aqui reconhece que não é possível esquecer a dimensão semântica do poema, o sentido. Sem dúvida, mas na minha própria experiência poética, quando tenho de usar uma palavra e decidir sobre a sua maior ou menor adequação ao verso relativamente a outra equivalente, mas não tão pregnante do ponto de vista da sua musicalidade, do seu valor musical, eu opto sempre por aquela, pela que melhor se adequa à toada do poema. Ainda que ela diminua o valor cognitivo do próprio verso. Ou seja, dou primazia à sonoridade. É claro que a harmonia é o equilíbrio desejável, mas no meu entendimento o poder da poesia deriva mais da musicalidade do que da semântica. Mas também é verdade que Eliot critica Edgar Allan Poe precisamente por também ele dar primazia à métrica, à rimática, à musicalidade. Por exemplo, no caso do uso da palavra “(no) craven”, no poema “The Raven”:
“Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no craven,/ Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore— / Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!” / Quoth the Raven “Nevermore.” (redondo meu; Poe, 1845).
Aqui “no craven” surge, no entendimento de Eliot, somente para responder a uma exigência rimática. O sentido foi subordinado à sonoridade (2019: 166-167). Mas a verdade é que, no meu entendimento, a sonoridade é decisiva pelo seu poder performativo, por ser a forma mais eficaz e directa de envolvimento sensitivo, de interpelação, de conversão física do acto poético, de transfiguração sensitiva do que se passa na alma do poeta. O que, todavia, não diminui o valor da semântica. Por outro lado, o momento apolíneo é importante porque é nele que a rugosidade, a aspereza do emocional é espiritualmente lapidada, como as pedras preciosas ou os cristais o são. Diz, Italo Calvino em Lezioni Americane:
“Il cristallo, com la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce, è il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema” (1988: 69).
De literatura falava Calvino, mas tendo presente o que acontece na poesia e, mais concretamente, no exemplo de Paul Valéry (ou do próprio Mallarmé): “la personalità del nostro secolo che meglio ha definito la poesia come una tensione verso l’esattezza” (1988: 66). Tensão orientada para a exactidão. Para a perfeição. Mas acrescenta, um pouco à frente, uma ideia que pode resumir de forma extraordinária o que acontece na poesia: “cristallo e fiamma, due forme di bellezza perfetta da cui lo sguardo non sa staccarsi” (1988: 70). Cristal e chama, as duas dimensões essenciais que formam a poética, a génese e a forma. Exactidão, refracção e fogo – os elementos que fazem da poesia uma arte bela e existencialmente densa e intensa.
IV.
NO CAPÍTULO sobre Baudelaire, referindo-se ao poeta francês, Eliot diz:
“tendo grande génio não tinha nem a paciência, nem a inclinação, tivesse ele tido o poder, para dominar a sua fraqueza; pelo contrário, explorava-a com fins especulativos” (2019: 62).
Palavras que fazem lembrar o que Nietzsche disse dos poetas, em “Para Além do Bem e do Mal”:
“Os poetas são impudentes em relação às suas próprias experiências: eles exploram-nas” (“Die Dichter sind gegen ihre Erlebnis schamlos: sie beuten sie aus” – Aforismo 161; Nietzsche, 1924).
Poderia parecer que o poeta pura e simplesmente instrumentaliza os sentimentos, as relações, como matéria-prima para fazer poesia. Uma relação de produção como qualquer outra. Mas não é assim, porque essa relação é sofrida, vivida, experimentada como fracasso, como perda, como naufrágio. Usaria as palavras que Calvino usou em geral para a literatura: “credo che sia una costante antropologica questo nesso tra levitazione desiderata e privazione sofferta. È questo dispositivo antropologico che la letteratura perpetua” (1988: 28; itálico meu). Privação sofrida – a condição da levitação poética. O modo de produção poético é de natureza existencial e está ligado à própria génese da poesia. Ela nasce de uma perda e como imperativo, como exigência, tendo como destino a redenção. Pecado e redenção, diz Eliot, referindo-se a Baudelaire. E acrescenta, um pouco à frente: Baudelaire “foi um daqueles que têm grande força, mas força meramente para sofrer. Não conseguia fugir ao sofrimento e não conseguia transcendê-lo, portanto, atraía a dor” (2019: 62). Sim, instalado num permanente desconforto que não conseguia superar. Talvez ele próprio também fosse genuinamente como o poeta a que se refere, em Les Fleurs du Mal, no capítulo “O Albatroz”:
“Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher”
(Baudelaire, 1857-1861)
As suas asas de gigante impedem-no de caminhar. Uma bela figura de estilo, esta. A referência ao albatroz. O desconforto do poeta em relação à realidade, que o agride (“sur le sol au milieu des huées”), talvez se deva, sim, à dimensão da sua personalidade como poeta, feito, como o albatroz, mais para voar alto do que para responder confortavelmente às asperezas da vida. Talvez o poeta seja mesmo desajeitado no palco da vida. Sofra, nela. Talvez o seu mundo seja de outra dimensão. E, talvez por isso, ele sofra de acedia, de uma melancolia profunda que o enfraquece e lhe causa uma dor de que não pode libertar-se. A condição de poeta, diria: ele está condenado a viver em estado de “danação”, a única forma de se libertar “do ennui da vida moderna” (2019: 66). “L’enfer c’est les autres”, como dizia Sartre em Huis Clos? Pecado, sim, mas também, ou por isso mesmo, redenção. Baudelaire, diz Elliot, “compreendeu que o que realmente importa é o pecado e a redenção”. E a poesia, filha da fraqueza, da dor e da acedia, redime. Ela é também filha da nostalgia, é “poésie des départs”, “poésie des salles d’attente”. Poesia de evasão, do que não se pode alcançar nas relações pessoais, mas que se pode obter através das relações pessoais (2019: 67). Porque através delas, da sua irredutibilidade à vontade do poeta, ele se eleva mais alto, metabolizando-as metaforicamente por um processo de transfiguração fantasmagórica e onírica. A “vocação superior” da “danação” talvez fosse o seu maior poder. E dele, deste poder, resultava o superior exercício da vocação poética (2019: 68).
V.
NO CAPÍTULO sobre Wordworth e Coleridge, texto de 1932, Eliot, falando de S. T. Coleridge (1772-1834), faz uma declaração fatal para os poetas. Diz ele:
“durante alguns anos fora visitado pela musa (…) e desde então foi um homem perseguido por fantasmas; porque seja quem for que alguma vez tenha sido visitado pela Musa é daí em diante perseguido por fantasmas (…). “O autor de Biographia Literaria era já um homem destruído. Por vezes, contudo, ser um ‘homem destruído’ é em si uma vocação” (2019: 86-87; itálicos meus).
Também aqui não poderia deixar de relembrar o que Franz Kafka disse, numa das Cartas a Milena, de Março de 1922, acerca das cartas, do beijo e, precisamente, dos fantasmas:
“Mas escrever cartas significa desnudar-se perante os fantasmas, o que eles avidamente esperam. Beijos escritos não chegam ao seu destino, mas são bebidos pelos fantasmas ao longo do trajecto. Através deste abundante alimento multiplicam-se, assim, de forma incrível” (itálicos meus; Briefe schreiben aber heisst, sich vor den Gespenstern entbloessen, worauf, sie gierig warten. Geschriebene Kuesse kommen nicht an ihren Ort, sondern werden von den Gespenstern auf dem Wege ausgetrunken. Durch diese reichliche Nahrung vermehren sie sich ja so unerhoert – Kafka, 1922).
Mas o que são os poemas senão encontros com a musa? Cartas de amor? E o amor não é um mundo de fantasmas que atormenta os seres humanos e muito mais ainda os poetas, por eles perseguidos desde que a musa os visitou? E se há musa há eros. Eliot sintoniza plenamente com Kafka e colhe uma das dimensões essenciais da poesia, precisamente a do seu destino. Por princípio os poemas não chegam à musa que os inspira. Aquela que, um dia, visitou o poeta. Dessa visita, nasceu o poeta e surgiram os fantasmas. Ou seja, eles surgiram já em ambiente poético e, por isso, alimentam-se e reproduzem-se através da poesia, bebendo os poemas ao longo do trajecto que tem como destino inalcançável a musa do poético pecado, o invisível, o que se perdeu. Os fantasmas cumprem a função que o destino lhes reservou. Só assim se podem reproduzir. Poeta e fantasmas, todos eles filhos do encantamento da musa. Pecado mortal. Como se ela fosse a fonte inesgotável da fantasia e da fuga e ao mesmo tempo o seu trágico destino. E é isso que, de algum modo, “destrói” o poeta, porque não vê as suas cartas de poético amor chegarem ao destino. Mas é esse precisamente o seu destino, serem os poemas bebidos pelos fantasmas ao longo do seu percurso, naufragando durante a viagem. Sim, e até Giacomo Leopardi, no poema “L’Infinito”, viu “dolcezza” neste naufragar: “e il naufragar m’è dolce in questo mare”. A doçura que a melodia do poema transmite mesmo quando se trata de “experiências de angústia”, como diz Calvino (1988: 62-63), de naufrágio, de perda, de fracasso, de impossibilidade. A poesia é filha da melancolia, da nostalgia e da impossibilidade, por perda irreparável ou por fracasso.
VI.
NA INTRODUÇÃO a The Waste Land é referida uma curiosa declaração de Eliot numa entrevista que deu sobre este seu poema e sobre as intenções que tinha ao escrevê-lo:
“Eu sei lá o que é que ‘intenção’ quer dizer! Uma pessoa quer é ver-se livre de alguma coisa que lhe pesa no peito. Não sabemos que coisa nos pesa no peito antes de a conseguirmos tirar de lá” (Eliot, 2016: 65).
Também se pode ler nesta introdução o seguinte: “a crítica foi incapaz, ao longo de muitos anos, de ver em The Waste Land a expressão de um profundo conflito subjectivo que, contextualizando-se na crise psicológica vivida por Eliot no período em que escreveu o poema, foi neste elevado à representação artística do confronto entre a grandeza das aspirações da alma e a prosaica mediocridade do mundo” (Eliot, 2016: 66). Aqui está. De uma coisa tinha Eliot a certeza: queria libertar-se do que lhe pesava no peito, sendo certo que só essa libertação lhe poderia identificar a natureza dessa opressão. A verbalização poética como efeito reparador e redentor porque traz à consciência o que oprime, o que provoca infelicidade. Não estamos no mundo dos confessionários para o pecado nem no dos divãs psicanalíticos para acesso ao que está recalcado, mas, sim, numa arte que liberta e redime. Uma dialéctica virtuosa entre a mediocridade do mundo e a grandeza de alma que ganha corpo no discurso poético, embora, que se saiba, Eliot passava, de facto, nesses tempos por uma grave depressão psicológica (que, de resto, teve de ser tratada por meios médicos). Na verdade, não importa que essa “depressão” seja psicológica ou existencial. Ou até mesmo metafísica. Ou religiosa. O que importa verdadeiramente é o sentimento de impossibilidade que agita o poeta e o seu desejo de caminhar sobre uma ponte de palavras levantada sobre um imenso vazio e que une o visível e o invisível, o sensível e o desejo de sobre ele levitar.
VII.
ESTES SÃO, no meu entendimento, aspectos com que uma reflexão sobre a arte poética tem necessariamente de se confrontar. E fazê-lo com poetas que reflectiram sobre a sua própria arte e, neste caso, com alguém considerado também, além de grande poeta, um grande crítico literário, laureado com o Prémio Nobel, em 1948, é não só reconfortante para quem lida diariamente com esta difícil e delicada arte, mas também tecnicamente muito útil para o próprio exercício poético. É claro que se trata de duas dimensões muito diferentes, mas de algum modo tem razão Edgar Allan Poe quando valoriza mais, na sua Poética (2016: 5), as reflexões dos próprios poetas sobre a arte que praticam do que as reflexões dos que, não a praticando, sobre ela se debruçam.
NOTA (LATERAL) SOBRE T.S.ELIOT
PARA um enquadramento ideológico e político do Nobel T. S. Eliot (as suas idiossincrasias sobre os negros, os hebreus e as mulheres) veja-se o pequeno e interessante ensaio do Professor Dario Calimano, Full Professor da Universidade Ca’Foscari, de Veneza: “Le Oscenità di T. S. Eliot” (Calimano, s/d).
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Ch. (1857 e 1861). Les Fleurs du Mal. Dedicado ao “Poète Impeccable”, Théophile Gautier. Link: http://elg0001.free.fr/pub/pdf/baudelaire_les_fleurs_du_mal.pdf)
CALIMANO, D. (S/d). “Le Oscenità di T. S. Eliot”. In https://iris.unive.it/retrieve/handle/10278/18882/19740/Oscenità%20di%20Eliot.pdf
CALVINO, I. (1988). Lezioni Americane. Milano: Garzanti.
ELIOT, T. S. (2019). Ensaios Escolhidos. Lisboa: Relógio d’Água.
ELIOT, T. S. (2016). Poemas Escolhidos. Lisboa: Relógio d’Agua.
KAFKA, F. (1922). Briefe an Milena. In https://docplayer.org/54278-Franz-kafka-briefe-an-milena.html
KANT, I. (1790). Kritik der Urteilskraft. In: https://www.pdfdrive.com/kritik-der-urteilskraft-d184363523.html
NIETZSCHE, F. (1924). Jenseits von Gut und Böse. Leipzig: Alfred Kroener Verlag. In https://www.bard.edu/library/arendt/pdfs/Nietzche_JenseitsvonGutundBose.pdf
NIETZSCHE, F. (1872). Geburt der Tragödie. Leipzig: Verlag von E.W. Fritzsch.
POE, E. A. (2016). Poética. Lisboa: FCG, 2.ª Edição.
POE, E. A., (1845). “The Raven”. First published by Wiley and Putnam, 1845, in The Raven and Other Poems by Edgar Allan Poe. Poetry Foundation: https://www.poetryfoundation.org/poems/48860/the-raven). Jas@03-2023
A POLÍTICA TABLÓIDE
E a Crise da Democracia
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 02-2023
NORMALMENTE, A CATEGORIA “TABLÓIDE” aplica-se ao universo da comunicação mediática. O nome tem a ver com o formato dos jornais e com o tipo de imprensa que antes se designava por imprensa amarela, já nos finais do século XIX, nos Estados Unidos. Imprensa popular. Uma imprensa que sempre explorou o básico da natureza humana. Eu defino-a através de uma simples palavra: o negativo (embora nesta categoria caibam outras características mais concretas, o drama, a catástrofe, o emocional, o íntimo, o sexo, entre outras). A exploração do negativo em todas as suas variantes, em todos os seus géneros. A exploração dos instintos primários do ser humano. O objectivo é claro: atrair a atenção, aumentar a audiência e vender publicidade para ganhar poder junto dos consumidores e, naturalmente, reforçar o poder financeiro. Comércio puro, lá onde um importante bem público desce à categoria de mera mercadoria. E, naturalmente, deste modo, também ganhar poder e influência junto do poder político, de forma cada vez mais intensa, numa espiral mercantil que se afasta cada vez mais dos códigos éticos. Em geral, do que se trata é simplesmente de obter sempre mais poder, em todas as dimensões. À imprensa tablóide (quase) nada interessam os chamados códigos éticos ou a função social dos media. Nada interessam normas que já vêm do século XVII, desde o chamado Código Harris, de 1690, passando, depois, pelo da famosa Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (1751-1772), e que haveriam de se consolidar naquele que é considerado o primeiro código, em 1910, o chamado Código de Kansas, expandindo-se, depois, numa multiplicidade de códigos, de que destaco, pela sua importância, a resolução 1003, de 1993, sobre a “Ética do jornalismo”, do Conselho da Europa. O que, no final do processo, interessa a esta imprensa é a dimensão da audiência nem que para isso faça do mexerico a única razão da sua existência e da sua actividade. Ainda por cima, a coberto da chamada liberdade de imprensa, da sagrada liberdade de imprensa, consignada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e na, tão exibida, I Emenda da Constituição dos Estados Unidos, de 1791.
I.
EM BOA VERDADE, os géneros do tablóide são muitos. Tantos como os géneros informativos. E os media que os praticam podem ser divididos em dois tipos: os que são abertamente tablóides e o assumem; e os que, praticando um tabloidismo mais sofisticado, o disfarçam, exibindo uma folha de serviços prestados à cidadania, normalmente denunciando os abusos de poder (e bem) e reivindicando até o poder de oposição ao poder democrático instalado e legitimidade para isso (e mal, como dito na referida “Ética do Jornalismo”, com Conselho da Europa). Mas o verdadeiro problema começa quando a missão estratégica dos media se converte exclusivamente em informação sobre o negativo (desastres, corrupção, escândalos, etc.). Quando a ideologia do negativo se torna sistémica. Isto, num poder que já na segunda metade dos anos 30 do século XIX, em “Da Democracia na América”, Alexis de Tocqueville o considerava, além do poder soberano do povo, o primeiro poder. Um poder que, na sua matriz, acolheu espontaneamente a ideia liberal de liberdade: a liberdade negativa. O que nos inícios fazia sentido, perante o absolutismo e os regimes censitários, com a liberdade cerceada pelo poder invasivo e exclusivo do monarca e do Estado, mas que, hoje, já não se adequa às sociedades plenamente democráticas. Até porque, a partir de Bismarck, se desenvolveu, paulatinamente, o próprio Estado Social. Na história da imprensa, esta concepção pode ser considerada dominante e, hoje, ainda mais, pois alia a esta concepção negativa de liberdade (perante o poder invasivo do Estado) o culto da categoria do negativo como princípio informativo dominante, por razões de audiência, de publicidade e de autofinanciamento, numa época em que o Estado já se retirou da área da informação (e bem), enquanto proprietário. Ou seja, dois em um. O que torna os media, e em particular a televisão, “príncipe dos media”, na expressão de Denis McQuail, poderosos centros de poder. E uma espécie de justiceiros electrónicos ou digitais (em todos os géneros informativos) com a respectiva componente punitiva e pública: o pelourinho electrónico. Condenam e castigam, vigiam e punem. Ou seja, os media que, substituindo-se ao povo soberano, se assumem como o seu autêntico intérprete ou oráculo (“os espectadores gostariam de saber…”, dizem entrevistadores sem mandato) em aberto e permanente antagonismo ao poder político, o ponto de, paradoxalmente, se tornarem a sua outra face. Há neste fenómeno um processo de identificação: os media são o negativo lógico do poder e por isso partilham da mesma natureza ou identidade, do mesmo género. Duas espécies do mesmo género – o poder. Até que, por fim, cheguem – já chegaram, mais uma vez – os apóstolos militantes da política tablóide, os que assumem e metabolizam essa identidade: esses que reivindicam o poder para o devolverem simbolicamente ao povo através da mediação do oráculo que, dirão, ouve directamente a sua voz. Uns e outros ao serviço do povo soberano na gestão do poder, o seu género comum, com o povo a desaparecer de cena perante a nova dialéctica entre os mediadores – política e media. Este processo foi brilhantemente desmontado por Karl Marx na “Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito Público” (Kritik des Hegelschen Staatsrechts), de 1843, e sobre ele haveria de se afirmar a famosa escola dellavolpiana, em Itália.
II.
BEM SEI, porque a frequento, que há boa imprensa (sobretudo imprensa escrita), mas a tendência mais frequente, transformando-se em tendência sistémica, sobretudo no audiovisual, é esta. O ambiente mediático português é um exemplo muito ilustrativo, em particular o dos telejornais em canal aberto. Ora eu creio que, seja ou não o poder mediático a outra face da moeda do poder, irmão gémeo do poder político, também a política, talvez por clonagem, se tem vindo a tornar sobretudo política tablóide, como se vê pelo fenómeno populista em crescimento na Europa e por esse mundo fora. Também esta política se alimenta sobretudo (ou exclusivamente) do negativo, neste caso, denunciando as elites dirigentes, os intermediários institucionais, seja na política seja na comunicação (os inimigos de Trump eram as elites de Washington e os media), e reivindicando o direito de devolver o poder e o saber confiscados ao povo soberano, nem que seja através de tweets ou de publicidade 4.0. Mas não é só aqui que este género político acontece. Ele acontece quando os protagonistas pretendem afirmar-se politicamente usando exclusivamente a arma do negativo, da denúncia, do dedo apontado, confiantes de que essa arma lhes dará notoriedade, capacidade de polarização da atenção social sobre eles e de que, consequentemente, a notoriedade lhes dará força social, eleitoral e política. Um processo em tudo igual ao da imprensa tablóide. Esta técnica tem vindo crescentemente a ser usada em todos os géneros, incluindo até nos personagens que, por uma razão ou por outra, ocupam os interfaces da comunicação, usando-os com esta categoria para reforçarem a sua presença no espaço público e, consequentemente, o seu próprio poder e notoriedade pessoal. Hoje usa-se, nas plataformas digitais, essa palavra miraculosa que até passou a designar uma profissão: “influencers”. Os “maîtres à penser”, primeiro, deram lugar aos “opinion makers” que, agora, com as redes sociais, se tornaram “influencers”. Dos filósofos aos idiotas de serviço. Muitos deles, sejam eles “opinion makers” ou “influencers”, aplicando o negativo às suas próprias famílias políticas, na convicção de que, assim, o “produto” se revelará mais apetecível e até mais credível. Roupa suja lavada na praça pública pelos membros da família. Exemplos em Portugal não faltam. Em todas as tendências políticas.
Na verdade, desde que a televisão ocupou, a partir dos anos cinquenta, sobretudo nos Estados Unidos, o centro da comunicação social, este processo de tabloidização da política tem vindo a crescer, na própria medida do crescimento dos media. É um fenómeno bem conhecido de todos os que estudam as relações entre a comunicação, os media e a política. As teorias dos efeitos sociais e cognitivos dos media. Mas talvez nunca como hoje se tenha verificado um uso tão despudorado desta categoria, o tabloidismo, na comunicação e na política, sem ninguém que consiga pôr cobro a isto, apesar de a enxurrada tablóide pôr o país em depressão e de o fenómeno do mimetismo alastrar, em grande escala.
III.
NA VERDADE, estamos já perante uma poderosa ideologia que, aliada à ideia de liberdade negativa, à ideia de que os media são contrapoder e à protecção constitucional e legal de que dispõem, tem uma eficácia e um impacto difíceis de combater. Porque, munida destas características, apela aos instintos mais básicos da natureza humana para polarizar a atenção social. E não serve de distracção sobre o que vai mal na informação mediática invocar as redes sociais como o império do mal e do vulgar porque basta abrir os telejornais das oito para constatar até à náusea o que é o tabloidismo mais desbragado. Os populismos também são filhos directos desta ideologia, tal como todos aqueles que, vivendo em democracia, reduzem a sua vida e a razão da sua existência à procura do negativo, sob as mais variadas formas, para logo o exibirem publicamente sem se preocuparem (ou, pelo contrário, alimentando-se deles) com os efeitos que essa exibição sistemática pode ter quer sobre a sociedade em geral quer sobre os indivíduos singulares objecto de atenção. Seja nos media seja nas redes sociais. Castigadores justiceiros com a missão de resgatar o povo oprimido. Política-espectáculo e comunicação-espectáculo, fazendo-nos recordar sempre o célebre livrinho do Guy Debord, La société du Spectacle (1967). O justicialismo político entra directamente nesta categoria, sendo certo que ele possui as mesmas características do tabloidismo mediático.
IV.
ESTA DEGENERESCÊNCIA é o que vamos tendo cada vez mais, num abraço infeliz da política com este tipo de comunicação, em nome do povo e das audiências. Se, depois, a isso se juntar essa aliança espúria da comunicação e da política com o poder judicial teremos a receita perfeita para uma ruptura democrática. Lawfare. O caso brasileiro e o percurso do juiz Sérgio Moro podem servir de exemplo. E o que acaba por sobrar em tabloidismo vai faltar em ideias para a governação e para a construção do futuro, para a devolução à política da ética pública, para a mobilização política e comunicacional da cidadania, para o seu crescimento civilizacional e cultural, para a promoção da cidadania activa. Numa palavra, faltará uma concepção de política em linha com o que de melhor a democracia representativa ou deliberativa, tem para nos dar.
V.
ESTE TIPO DE COMUNICAÇÃO E DE POLÍTICA representa uma visão essencialmente instrumental de ambas: mero meio para aumentar as audiências ou o eleitorado e, em nome deles, intervir na sociedade. A política e a comunicação como instrumentos para alcançar um poder que, no fundo, acabará por tender a conceber-se como impolítico. Isto representa o triunfo do pior maquiavelismo, a negação da ética pública, mesmo quando se fala dela à exaustão e dela se serve para alcançar o poder, a política reduzida a pura retórica instrumental ao serviço da fria conquista do poder e não autogoverno da cidadania e instrumento para a transformação da sociedade. Esta política corresponde, pois, à fusão integral da comunicação e da política naquilo que ambas têm de pior, completando a fase em que a política adoptou as categorias, os tempos e a organização da comunicação mediática para atingir e conservar o poder. Há um exemplo muito elucidativo desta fusão e da forma mais avançada de política tablóide: Berlusconi, em 1993-1994. Ou seja, a captura integral da política pelo poder mediático, não só no plano da factualidade, mas também no plano da sua subordinação integral ao poder comunicacional, à sua organização, à sua lógica e à sua relação com a cidadania. Em palavras simples: Berlusconi geriu a política com as mesmas categorias com que geriu o seu império mediático, transferindo armas e bagagens da holding televisiva para o aparelho do partido (incluídos os especialistas em sondagens sobre as audiências, por exemplo, o sondagista Gianni Pilo). Afinal, as audiências (espectadores e eleitores), neste sentido, correspondem-se quase integralmente, podendo-se sobrepor, até mesmo nos targets com que se trabalha (jovens – Italia Uno; reformados e domésticas – Retequattro; classe média – Canale 5). Houve até quem definisse o acesso de Berlusconi ao poder como um “golpe de Estado mediático” (Paul Virilio). Ou a política como continuação do poder mediático por outros meios. Apesar do crescimento da rede, a política clássica, sobretudo a que ainda continua metabolizada pelos partidos da alternância e pelo establishment, continua de braço dado com o poder mediático, usando a rede com as mesmas categorias com que usa as velhas plataformas do broadcasting, fazendo jus ao seu próprio conceito de política puramente instrumental e de pura gestão do poder, como “governance”, como tecnogestão, como puro “management” ou gestão asséptica do poder, numa nova versão ideológica da política.
VI.
EM SÍNTESE, é possível afirmar que a evolução das relações entre política e comunicação levou, numa primeira fase, a uma progressiva adequação da política às categorias da comunicação, em particular, às da comunicação televisiva, e, numa segunda fase, à própria metabolização política das categorias da comunicação, a ponto de o género tablóide passar a ser transversal a ambas as esferas, lá onde se reduz a política a mera técnica retórica de captação de audiências para o espectáculo da política em dois géneros que acabam por se confundir, convertendo a cidadania em mera audiência e a política em “Jogo das Partes”, para glosar o título de uma peça do grande Luigi Pirandello. A política não passa, neste caso, de mero marketing político, que agora, com a rede, ainda ganha mais substância participativa, sobretudo no chamado Marketing 4.0, de Philip Kotler.
Hoje, todavia, as coisas, com as redes sociais, estão mesmo a mudar, para o bem e para o mal, mas este é um outro e mais complexo discurso que, todavia, pode explicar muito bem a guerra sem quartel que os velhos poderes lançaram às redes sociais. Jas@02-2023
A POÉTICA DO FRACASSO
Conversando com Emil Cioran
Por João de Almeida Santos

“Perfil de um Poeta”. Jas. 02-2023
LEMBRAM-SE do que disse Nietzsche acerca dos ideais, a que ele chamava ídolos (“idola”), em Ecce Homo? Pois Emil Cioran (1911-1995) não lhe fica atrás. Vejam o que ele diz na sua bela e disruptiva obra de 1949, Précis de Décomposition (Cioran, 2022):
“Basta-me ouvir alguém falar de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer ‘nós’ com uma inflexão de segurança, invocar ‘os outros’, e considerar-se o intérprete deles, para que o considere meu inimigo” (Cioran, 2022: 13; redondo meu).
IDEAIS, SALVAÇÃO E FILOSOFIA
CLARO, lembramo-nos logo de Nietzsche, da “mentira do ideal”, da “maldição sobre a realidade”, que ele sempre quis abater como se isso fosse a missão da sua vida. Mas também nos lembramos de certos políticos e da proclamação retórica da grandiosidade dos ideais que supostamente guiam a sua (falhada) acção. Ou dos padres: “Faz o que eu digo, não o que eu faço. No que digo estão os ideais e a salvação das almas, no que faço está a reles realidade, a vida, a tentação, o vício, o pecado, a que, pobre mortal, também eu não sou imune”. Sim, sim, pode ser, mas a perspectiva de Cioran é bem mais profunda, vai bem mais lá ao fundo da existência humana. A sua é uma posição ontológica, uma visão comprometida de quem fala da impura realidade (“só a impureza é sinal de realidade” – 2022: 32) e não foge para as nuvens brancas e celestiais dos ideais ou da fé. E também não foge, insisto, já não digo para a retórica política, mas para a própria filosofia, esse reino da decadência anunciada. Diz ele que “só começamos a viver depois da filosofia, sobre as suas ruínas” (2022: 63). Sobre as suas ruínas, sim: o caos mundano e frágil dos sentidos e das erráticas pulsões atrás das quais corre a poesia. “Além do mais,” diz, “a filosofia – inquietude impessoal, refúgio junto de ideias anémicas – é o recurso de todos aqueles que se esquivam à exuberância corruptora da vida” (2022: 62). Se não erro, é esse mesmo “triunfante” racionalismo filosófico que Nietzsche também execrava. Essa anemia que é preciso combater com a poesia para que o sangue se revitalize – no poeta e em quem o acompanha para, com ele, melhor se afundar na vida e nos seus pântanos sensoriais. Nos ideais, dizem por aí, encontramos a salvação. E os ideais, além de celestiais, também habitam a casa da filosofia, esse reino da anemia. Pois é, mas estes são mundos pouco humanos, ou mesmo inumanos, porque a vida é infelicidade e “todos os seres humanos são infelizes”, embora poucos saibam que o são (2022: 41). Diz ele:
“O erro de todas as doutrinas da salvação é suprimir a poesia, atmosfera do inacabado. O poeta trair-se-ia se aspirasse a salvar-se: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito” (2022: 40).
O ESPÍRITO
BOM, a negação do espírito talvez não, caro Cioran, pois ele, o espírito, é “amante das vertigens puras, é inimigo das intensidades”. É liquefacção. É vida em estado gasoso. Mas as intensidades são vitais, pulsionais, alimentam a vida e a poesia. Na verdade, elas pertencem mais ao reino da alma do que ao reino do espírito:
“Cobrir com normas a impureza de todos os sentimentos e de todas as sensações é uma procura de elegância necessária ao espírito, ao pé do qual a alma – essa hiena patética – é somente profunda e sinistra” (2022: 40).
É por isso que o espírito “em si mesmo não pode deixar de ser superficial” e se mostra incapaz de exprimir a melancolia, “que emana das nossas vísceras”, se não for depurada daquilo que a liga à fragilidade dos sentidos. Essa melancolia que se mostra incurável e que é alimento do poeta. O que acontece, verdadeiramente, é, pois, uma autêntica degradação de cima para baixo, com o espírito a liquefazer as intensidades, a alma, a vida, os sentidos, as sensações, o impuro, numa palavra, a realidade. Melhor ainda:
“L’Esprit est le grand profiteur des défaites de la chair. Il s’enrichit à ses dépens, la saccage, exulte à ses misères; il vit de banditisme” (1952: 6).
Oportunista, saqueador, bandido – são estes os louvores que Cioran concede ao espírito, aquele que se aproveita das derrotas da carne, que o mesmo é dizer da vida. É por isso que, por ser espiritual, “a salvação acaba com tudo; e acaba connosco”. “Quem é que, uma vez salvo, ousa considerar-se ainda vivo?”, diz Cioran (2022: 39-40). E se calhar tem razão: uma vez salvo já nada haverá para fazer. Até porque haveria sempre o risco de voltar a cair na vida, na corrupção dos sentidos, na carne, na decomposição. Voltar a perder-se nesse mundo pecaminoso da vida. Felizmente que há a poesia para nos resgatar, sim, mas sem acabar connosco, porque, depois de “chafurdar” na impureza e na dor, conserva o sofrimento no baú da memória sensitiva para o trazer à consciência quando for preciso, quando a dor mais apertar. A poesia não sai daí, não se eleva ao reino celestial dos ideais, mas somente ao da beleza, que é sensível, mesmo quando é universal. Universal subjectivo, diria o Kant da “Crítica do Juízo”. Assim é que é. Se Cioran não vai lá muito à bola com a filosofia, o mesmo não acontece com a poesia, com a arte. Porque ela verdadeiramente não tem ponto de chegada e por isso anda sempre por ali, como eterna transeunte em perda, até porque “o nosso capital de infelicidade” se mantém “intacto ao longo das épocas” (2022: 190):
“é impossível haver ponto de chegada para a vida de um poeta. É de tudo quanto não empreendeu, de todos os instantes alimentados pelo inacessível, que lhe vem o poder” (2022: 118).
O NASCIMENTO DA POESIA
É VERDADE. A poesia nasce de um sentimento de perda. Foi para suprir a vida que não tiveram que foram inventadas as biografias dos poetas” (2022: 119). Que não são como esses imbecis que a herdaram, a vida, mas não sabem o que ela é. E que, quando julgam saber, se perdem nessa inutilidade que é a filosofia. Querem a prova irrefutável? Pois “quase todos os filósofos acabaram bem”. Salvaram-se. Aqui está. Mas alguma razão haverá para isso – resistiram ao apelo dionisíaco da vida, à eterna errância, ao caos criativo. São todos exclusivamente apolíneos, poderia ter dito Nietzsche. E fugiram para o reino dos assépticos conceitos e dos ideais, para poderem inalar o agradável “perfume do espírito”. Pois. Mas o Nietzsche afundou-se. Sim, mas isso aconteceu, não porque era filósofo, mas porque era “poeta e visionário: expiou os seus êxtases e não os seus raciocínios”. E Sócrates? O seu fim “não teve nada de trágico”, diz Cioran. Foi simplesmente “um mal-entendido”. Estão a ver? A verdade é que “é sempre impunemente que se é filósofo: um ofício sem destino” (2022: 62-63), a não ser o da salvação. A linha de demarcação entre o lado de lá e o lado de cá está, pois, bem definida. E a poesia, que está do lado de cá, tem lugar de destaque pelo que representa. Veja-se o que ele diz num artigo de Janeiro de 1943 sobre o poeta romeno Mihail Eminesco:
“La quantité de résistance que la vie oppose à la soif de vivre détermine la qualité du souffle poétique” (Cioran, 1943).
A dinâmica entre a vida e a sede de viver a determinar a qualidade do sopro, da “allure”, da inspiração poética. Mesmo quando Cioran não a refere, percebe-se que ela, a poesia, está sempre presente na sua mente. Que ela anda por ali. Aliás, até poderia dizer que este livro é poesia em forma de prosa. Ou, utilizando as palavras de Cristina Campo, Cioran traduz “na aridez impessoal da prosa” as “fulgurantes visões” dos poetas (Cioran: 1943). É só ler o “Précis” para verificar a justeza desta afirmação.Ou os “Syllogismes de l’Amertume”.
O MILAGRE NEGATIVO
CIORAN não é homem de meias medidas. Atira-se ao real e navega por lá, sem barco e sem remos, à deriva, pelas suas ruas escuras, pelos seus “bas-fonds”, como os existencialistas, também, por isso, conhecidos como “rats des caves”. E até diria que também para ele “l’enfer c’est les autres”, todos, tudo e até ele próprio, outro de si. O diabo anda à solta, por aí, a alimentar-se de realidade. E não é “aborrecido” e “tão mediocremente pitoresco” como Deus. Está cheio de vida e os homens reconhecem-se demasiado nele para o celebrarem em altares (2023: 32-33). Ele é daqui, não é lá do alto, e não é portador de ideais de salvação, de azuis infinitos onde possamos navegar com a nossa alma em paz, salvos e… mortos. Não. O inferno é aqui. E é por isso que a poesia é importante, porque nasce desse lado mais subterrâneo da vida, menos luminoso, mas em fogo ardente, como o inferno. Nasce da dor, do sofrimento, do sentimento de perda. O “poeta é vítima de uma ardente decomposição”, no aprazível inferno da vida. Ele pode ser trânsfuga, até pode, mas na sua fuga tem de levar “consigo a sua infelicidade”, para não se perder. Porque, digamo-lo sem tibiezas, se a infelicidade é um nosso património incancelável já “a alegria não é um sentimento poético” (2022: 119). Bem pelo contrário, ele, o poeta, anda por aí a verter “lágrimas, vergonhas, êxtases – e, sobretudo, queixumes” (2022: 120). Um infeliz. “Só existimos quando sofremos”, diz Cioran. E “sofrer é aceitar a invasão das maleitas (…) como um milagre negativo” (2022: 40-41). Aqui está, a poesia é um milagre negativo. Negativo, sim, mas milagre. É neste negativo – filha da dor – que reside a sua própria beleza, mas também a sua necessidade neste imenso reino da contingência que é a vida.
DIGAM O QUE DISSEREM....
PODEM, pois, vir com conversas mais ou menos cultas, com a exibição de improváveis intertextualidades, com teorias abstractas, académicas e revistas por pares acerca da poesia, podem mesmo levá-la para o Pantheon, que de nada serve se não a forem procurar lá, nas vielas estreitas e escuras da vida, nos desencontros desejados ou inventados, nas silhuetas fugidias que se esgueiram, como neblina levada pelo vento, nas esquinas da sofrida existência, na infelicidade aprazível dos que a sabem cantar e a cantam para evitar que almas piedosas venham salvá-los. A poesia salva, sim, mas salva da salvação, porque se mantém ancorada na melancolia do viver incompleto e inacabado. É assim que ela redime, através da beleza, cantando o contingente fungível da multiplicidade caótica da vida. A poesia evita sempre ser trânsfuga da realidade, procura resistir ao apelo dos ideais e à busca de salvação e, por isso, é tão minimalista, tão musical e, não tendo pretensões de fugir da realidade, também não tem pretensões de dizer algo sobre ela. Nem sequer de a “corrigir”, como diz num dos aforismos de “Syllogismes de l’Amertume” (1952: 8). Simplesmente porque quer ser ela própria realidade, confundir-se com ela, casar-se com ela, não cortar o cordão umbilical no momento (nem nunca) do seu próprio nascimento, simplesmente para que possa existir. O poeta, nela, quer ser mais infeliz, mais encantadoramente infeliz do que na infelicidade que lhe bateu à porta quando teve de nascer, fruto das circunstâncias, fruto do fracasso.
O FRACASSO, O SUCESSO E A POESIA
Radicalizando talvez demasiado, se é que se pode radicalizar sem ser excessivo, Cioran, no meu entendimento, coloca-se no centro de uma interrogação primordial sobre a poesia. Ela surge como exigência, como resposta à experiência originária da impossibilidade, do fracasso, da perda. Mas é resposta, não fuga para o reino da formas puras, dos conceitos redondos, dos ideais salvíficos. E também não é salvação da impureza da vida, do caos existencial, do pecado da carne. Nada disto, precisamente porque não é fuga, mas vivo confronto com a rugosidade da contingência, imersão no que há de mais impuro na existência humana. Falho, naturalmente, a vida e fracasso – então, ainda a vou falhar mais com os meus meios, precisamente através de uma poética do fracasso.. Só que o faço com uma alegre melancolia, com o prazer de estar a navegar no caos, na turbulência, sentindo o prazer dos poços de ar existenciais. Um prazer infeliz. E, ainda por cima, o faço agitando a vida com o frenesim induzido pela melodia e pela toada poética com que vou ao confronto. E dá-se o venturoso caso de os meios de que disponho serem esteticamente performativos, poderosos, capazes de mobilizar outros para um confronto que é uma convivência infeliz. Na verdade, do que se trata é de um corpo-a-corpo, de uma tentativa de nos substituirmos à falhada contingência com outra contingência mais convincente, mais bela e até contagiante. Acabamos por acrescentar fracasso ao fracasso, só que este é mais íntimo, menos rugoso e até mais alegre e quente. Mais belo, portanto – a poética do fracasso.
Nesta frase fica tudo dito, porque não há poética do sucesso. Seria um oxímoro. Esses, os que se julgam prenhes de sucesso, não percebem que isso é uma ilusão. O Vinicius não mandou embora o passarinho e a poesia só porque julgava ter tido sucesso no amor? Sucesso no amor é insucesso na poesia. Mas logo outras janelas se abriram ao passarinho e ao seu canto. O que é isso do sucesso? É mais rápido a ruir do que a construir. Castelo de areia, tem as fundações instáveis. Só que não parece, de tão “perfeita” ser a construção. Um dia, lá mais para a frente, o homem de sucesso dirá: consegui tudo. Depois, mais clarividente, dirá ainda: quanto mais conseguia mais me faltava. E agora, que o ciclo se fechou, dirá: falta-me tudo. Alguns acabam por se render à poesia para se resgatarem da caverna e compreender que o que faltou será a medida da sua exigência e da sua própria existência (poética): o sentimento de perda e de fracasso é a medida de todas as coisas. E põem mãos à obra para, quais falhados ou vencidos da vida, tentarem a redenção… sem saírem dela. Oh, mas isso será tão doloroso como é a vida autêntica e, pior, nunca mais poderão olhá-la que não seja na óptica do fracasso, para não sucumbirem poeticamente. Rater la vie c’est mon destin, diria o poeta. Voilà.
ALGUNS AFORISMOS
Traduzo alguns aforismos de Cioran (de Syllogismes de l’Amertume, de 1952) que reforçam o sentido geral do seu pensamento e ajudam a melhor compreender a estratégia do meu artigo sobre a “Poética do Fracasso”, neste diálogo com o escritor romeno.
1. “Falhar a prória vida é aceder à poesia – sem o suporte do talento”; “O ‘talento’é o meio mais seguro de tudo falsificar, de desfigurarar coisas e de se enganar a si próprio”; (“Rater sa vie, c’est accéder à la poésie — sans le support du talent”; “Le « talent» est le moyen le plus sûr de fausser tout, de défigurer les choses et de se tromper sur soi”); (1952: 3 e 6).
2. “Uma poesia digna deste nome começa pela experiência da fatalidade. Só os maus poetas são livres”; (“Une poésie digne de ce nom commence par l’expérience de la fatalité. Il n’y a que les mauvais poètes qui soient libres”); (1952:10);
3. “Quando estamos a mil léguas da poesia, ainda participamos nela por essa súbita necessidade de gritar – último grau do lirismo” (“Quand nous sommes à mille lieues de la poésie, nous y participons encore par ce besoin subit de hurler, — dernier stade du lyrisme”);(1952: 4).
4. “Com Baudelaire, a fisiologia entrou na poesia; com Nietzsche na filosofia: Para eles, as perturbações dos órgãos foram elevadas a canto e a conceito. Proscritos da saúde, tinham o dever de garantir uma carreira à doença”. (“Avec Baudelaire, la physiologie est entrée dans la poésie; avec Nietzsche dans la philosophie. Par eux, les troubles des organes furent élevés au chant et au concept. Proscrits de la santé, il leur incombait d’assurer une carrière à la maladie”); (1952: 5).
5. “O público precipita-se sobre os autores considerados ‘humanos’; ele sabe que, deles, nada tem a temer: parados, como ele, a meio do caminho, eles propor-lhe-ão um acordo com o Impossível, uma visão coerente do Caos”; (“Le public se précipite sur les auteurs dits « humains »; il sait qu’il n’a rien à en craindre : arrêtés comme lui à mi-chemin, ils lui proposeront un arrangement avec l’Impossible, une vision cohérente du Chaos”); (1952: 6).
6. “Nada de salvação, a não ser na imitação do silêncio. Mas a nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozóides palavrosos, nós estamos quimicamente ligados à Palavra”; (“Point de salut, sinon dans l’imitation du silence. Mais notre loquacité est prénatale. Race de phraseurs, de spermatozoïdes verbeux, nous sommes chimiquement liés au Mot”); (1952: 6).
7. “A poesia (…) tinha ido mais longe do que eu na negação, ela fez-me perder até as minhas incertezas”; (“La Poésie (…) était allée plus avant que moi dans la négation, elle me fit perdre jusqu’à mes incertitudes…”); (1952: 7).
8. “Mais do que ser um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte nem mesmo a poesia conseguem corrigir”; (“Avant d’être une erreur de fond, la vie est une faute de goût que la mort ni même la poésie ne parviennent à corriger”); (1952: 8).
9. “Quem receia perder a sua melancolia, quem tem medo de se curar dela, com que alívio ele constata que os seus temores não têm fundamento, que ela é incurável”; (“Qui tremble pour sa mélancolie, qui a peur d’en guérir, avec quel soulagement il constate que ses craintes sont mal fondées, qu’elle est incurable!“); (1952: 56).
REFERÊNCIAS
CIORAN, E. (2022). Breviário de Decomposição. Lisboa: Edições 70.
CIORAN, E. (1952). Syllogismes de l’Amertume. In https://www.rodoni.ch/cioran/8338994-Cioran-Syllogismes-de-lamertume.pdf
CIORAN, E. (1943). “Mihail Eminesco”. In https://www.pangea.news/cioran-un-testo-inedito-in-italia-sulla- poesia/ – com uma introdução de Cristina Campo. Jas@02-2023
A POESIA
Conversando com Edgar Allan Poe
Por João de Almeida Santos

“Transfiguração”. JAS. 02-2023
HÁ UMA PASSAGEM no livro Poética, de Edgar Allan Poe (Poe,1848-1850; e Poe 2016), acerca do que ele entende por Poesia e que diz o seguinte:
“De modo breve, definiria a Poesia de palavras como The Rhythmical Creation of Beauty. O seu único árbitro é o Gosto. Com o Intelecto ou com a Consciência só tem relações colaterais. A não ser incidentalmente, não tem qualquer relação com o Dever ou com a Verdade” (1948-1950: 343; 2016: 155).
Sim, poesia de palavras, com palavras, porque o sentimento poético pode manifestar-se, desenvolver-se por outros meios: pela pintura, pela escultura, pela arquitectura ou pela dança, mas sobretudo pela música (1848-1840: 342; 2016:154). A música com lugar de destaque na expressão estética do sentimento poético. É verdade.
I.
“CRIAÇÃO RÍTMICA DA BELEZA”, diz Poe da poesia. Ela não se confunde, pois, com o dever ou com a verdade. Não é, portanto, só o amor que está para além do bem e do mal, como diria Nietzsche, mas também a poesia. E não só para além da moral. Também para além da esfera cognitiva, da verdade. Afinal, não tem a poesia no amor o seu alimento primordial, estando-lhe profundamente ligada? Diz Poe:
“O amor, pelo contrário, o amor, o verdadeiro, o divino Eros (…) é sem dúvida o mais puro e o mais verdadeiro de todos os temas poéticos” (1848-1840: 366; 2016: 190).
O amor e a poesia – afinidades electivas, sem margem para qualquer dúvida. A centralidade do amor na poesia que arrasta outra centralidade que lhe está profundamente ligada: a da dor e a da melancolia, melhor, a da dor melancólica. É ele que o diz:
“Regarding, then, Beauty as my province, my next question referred to the tone of its highest manifestation – and all experience has shown that this tone is one of sadness. Beauty of whatever kind, in its supreme development, invariably excites the sensitive soul to tears. Melancholy is thus the most legitimate of all the poetical tones” (1848-1850: 375; 2016: 40; itálico meu).
Sim, a beleza excita a alma até às lágrimas, suscita tristeza, melancolia, dor. Arrasa, tal como o amor autêntico, porque toca o mais profundo do que na alma acontece. E é aqui que a poesia sobretudo navega, nas águas profundas da melancolia, para, depois, se elevar ao sublime e, assim, sintonizar com as almas sensíveis que a partilham. A poesia, sim, e a música, também. Mas é verdade que o sentimento poético também é expresso pelas outras artes, pois o seu objecto é a beleza. E as vias da beleza, não sendo infinitas, são muitas. Mas a maior afinidade, a maior proximidade, a maior cumplicidade encontram-se na música, que faz parte dela. Vejamos o que diz Poe:
“a música, quando combinada com uma ideia aprazível, é poesia; a música, sem a ideia, é apenas música; a ideia, sem a música, é prosa por causa da sua própria qualidade de definição” (2016: 27); “na construção do verso a melodia nunca deveria ser deixada longe da vista” (2016: 63); “na união da Poesia com a Música, no seu sentido popular, encontramos o campo mais vasto para o desenvolvimento poético” (1848-1850: 342-343; 2016: 155).
E a mim parece que o forte poder performativo da poesia passa necessariamente pela música, se é verdade que, como diz Poe, “os sentimentos são subjugados pelos sentidos” (2016: 73). Na verdade, a música talvez seja a arte que mais directamente interpela os sentidos, os excita, os arrebata, trazendo até si todos os tipos de sentimentos, claro, não para os subjugar, no sentido literal, mas para lhes dar voz no corpo e na alma dos que a fruem:
“E assim, quando pela Poesia, ou pela música, o mais arrebatador de todos os modos poéticos, nos encontramos desfeitos em lágrimas, então choramos, não (…) por um excesso de prazer, mas por uma certa dor petulante, impaciente perante a nossa inabilidade em agarrarmos, agora, aqui, na terra, de uma vez e para sempre, essas alegrias divinas e arrebatadoras, das quais, através do poema, ou através da música, alcançamos apenas breves e indeterminados vislumbres” (1848-1850: 341-342; 2016: 154).
Música e poesia, duas artes que, conjugadas, podem ser a mais elevada expressão, e com máxima performatividade, da beleza sensível. Só elas, em situação de dor e de choro, de melancolia, nos permitem aceder ao divino e ao arrebatador, embora de forma breve e insuficiente. O absoluto não está ao alcance do ser humano. Sim, claro, mas a haver uma aproximação ela acontece sobretudo através da poesia e da música.
II.
A INCORPORAÇÃO DA MÚSICA, com a rítmica e a melodia, no interior da poesia torna-a mais poderosa porque pode atingir com maior eficácia os sentidos, como estímulo físico, sonoro, transportando consigo a ideia, a semântica, o sentido. Este encontro faz dela uma arte peculiar, poderosa, capaz de atingir algo que parece ser impossível alcançar porque aparentemente paradoxal: a universalidade sensível. Quando o estímulo estético é enviado, impulsionado pela pulsão primordial e reconfigurado pela poesia, para o espaço poético e provoca no receptor individual as sensações que estão inscritas, como mensagem, no poema, quer na dimensão sonora e sensitiva quer na dimensão semântica, como significado, fica declarado o valor universal do discurso poético. Na partilha é possível confirmar a universalidade daquilo que só pode ser sentido singularmente. Para isso, a musicalidade colabora de forma determinante, transportando, expandindo e intensificando ao mesmo tempo o conteúdo semântico. Não é uma ficção, a universalidade da beleza sensível. Ela confirma-se na partilha e na inscrição sensitiva de uma mesma mensagem estética… universal.
III.
DIZ EDGAR ALLAN POE que a poesia é estranha à verdade e à moral, sendo seu único fim a beleza. Não é uma novidade, pois já Kant o dissera e o teorizara nas suas três Críticas, a da Razão Pura, a da Razão Prática e a do Juízo, ou da Faculdade de Julgar. Esta última, aquela em que Kant analisa o juízo estético. E, glosando Nietzsche, até poderíamos dizer que a poesia está para além do bem, do mal e da verdade. Alguns aforismos de Nietzsche indirectamente também nos dão conta desse universo em que se move a poesia. Por exemplo, este: “os poetas não têm pudor das suas aventuras; eles exploram-nas – “die Dichter sind gegen ihre Erlebnisse schamlos: sie beuten sie aus” (Aforismo 161, Nietzsche, 1924). Eles, os poetas, servem-se delas, das suas experiências, para irem mais longe e não para as degradarem, as fustigarem com o poder da palavra. Vêem cair sobre elas uma profunda melancolia, para depois se elevarem ao sublime. Não se trata, pois, de um uso instrumental das suas experiências de vida, experiências que não procuram (isso é certo) como mera matéria-prima para o seu exercício poético, mas como experiências que fazem parte da sua própria vida, algo que lhes sobrou de uma vida vivida com suficiente intensidade para permanecerem na memória, tantas vezes como melancolia, como dor, como sentimento sofrido de perda, de inacabado, de imperfeito. E daqui partem poeticamente para as elevar ao plano universal da beleza sensível. E é verdade que também não se trata de descrever o que viveram e sentiram. Não. Do que se trata é de uma sua livre recriação, de uma “rítmica da beleza” construída com o que foi vivido de forma única. O modo que eles têm para resolver o que não foi resolvido, acabado, completado. Quando Michelangelo Buonarroti, no livro da Yourcenar (“Le temps ce grand sculpteur” – Yourcenar, 2020), se dirige a Gherardo Perini, o seu amante, diz-lhe que irá recriar o que nele outros já não conseguirão ver e, por isso, ele tornar-se-á (na sua obra) mais belo do que ele próprio. Não sei se falava da poesia (ele era também poeta), de pintura ou de escultura. O que sei é que um artista desta dimensão só poderia oferecer o sublime poético fosse através de que meio fosse, como diz Poe. Mas também aqui o choro, a dor, a melancolia têm o seu lugar. Michelangelo diz a Gherardo que os amigos só podem ser imortalizados se partirem enquanto ainda for possível chorá-los. Ou seja, desde que fique com o criador um melancólico sentimento de perda, de algo que ficou incompleto e que a arte completará, recriando-o.
IV.
A ARTE TEM SEMPRE REFERENTES, centrados no artista ou exteriores, mas quando eles são recriados nunca é na mesma dimensão, como retrato, fotografia, descrição, porque existe a mediação estética executada com as categorias da arte, com a linguagem e a lógica da arte. A arte não é a reprodução do real, não só porque transporta consigo a subjectividade activa do artista, mas também porque os instrumentos da reconstrução obedecem a uma lógica autónoma que só tem um fim: o da beleza sensível. A substância, a matéria-prima estará lá, a pulsão que o move é alimentada por uma relação originária intensa, mas o voo é apolíneo e o resultado é algo menos contingente do que o referente que possa ter-lhe servido de estímulo. É por isso que a arte não responde às exigências da moral nem às da verdade, porque responde essencialmente a si própria, aos seus critérios. Porque é, digamos, autopoiética.
Há nisto, evidentemente, uma conjugação entre uma pulsão originária que é propulsora da arte e uma lógica e uma instrumentação próprias que são exteriores ao estímulo e que estão inscritas numa transtemporalidade e numa intertextualidade que lhes preexiste, por exemplo, como história do gosto e da arte ou como tecnologia estética que evoluiu no tempo.
Poe fala do Princípio Poético que se manifesta como excitação que eleva a alma: “an elevating excitement of the soul” (1848-1850: 365; 2016: 190). A alma, sempre a alma que a poesia eleva, em voo apolíneo, a uma dimensão espiritual inscrita num registo sensível precisamente como beleza sensível, mas partilhada universalmente como experiência singular e sensível. É aquilo a que Kant chamou, na Crítica do Juízo, a universalidade subjectiva na contemplação desinteressada da beleza, mediante acordo entre a imaginação e o intelecto. Ou seja, mediante o jogo de faculdades próprio da contemplação desinteressada da beleza, esfera bem distinta da esfera moral ou da esfera cognitiva. E é aqui que estamos, no universo da beleza que a poesia e a música procuram atingir com o olhar sempre apontado ao desejo de partilha universal.
REFERÊNCIAS
YOURCENAR, M. (2020). O Tempo Esse Grande Escultor. Lisboa: Relógio D’Água.
NIETZSCHE, F. (1924). Jenseits von Gut und Boese. Leipzig: Alfred Kroener Verlag.
POE, E. A. (1848-1850). The Poetic Principle & The Philosophy of Composition.
In Edgar Allan Poe’s Complete Poetical Works: https://freeclassicebooks.com/Edgar%20Poe/Edgar%20Allan%20Poe’s%20Complete%20Poetical%20Works.pdf
POE, E. A. (2016). Poética. Textos Teóricos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 2.ª Edição.
AFORISMOS
Conversando com Nietzsche
Por João de Almeida Santos

“Fantasia”. JAS. Nova versão. 02-2023
NOS ÚLTIMOS TEMPOS, melhor, há anos, tenho regressado com maior frequência a Friedrich Nietzsche, às suas principais obras, algumas das quais de leitura e de compreensão nada fácil. Por exemplo, Assim falava Zarathustra. Mas regresso porque a sua obra talvez seja, no essencial, uma obra sobre a arte e/ou com perfil artístico. Desta vez, revisitei o ECCE HOMO. Como se chega a ser o que se é, de 1888 (Lisboa, Guimarães Editores, 1961), esse livro autobiográfico, e decidi reflectir sobre algumas curiosas afirmações.
I.
“FIEL DISCÍPULO do filósofo Diónisos, prefiro ser um sátiro (ou “arlequim”) a ser um santo” (“nada houve mais mentiroso do que um santo” – 1961: 161); “abater ídolos (eis o que eu chamo aos ‘ideais’) é o meu principal ofício”; “a mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade”; “não refuto os ideais, calço simplesmente as luvas perante eles” (1961: 20-21).
Claríssimo, Nietzsche, na sua devastadora incursão pelo universo dos ideais. No seu apaixonado realismo dionisíaco. Porque são mesmo os ideais, enquanto ídolos, que estão em causa. Se assim não fosse ele não calçaria luvas ao confrontar-se com eles. Luvas de combate. De boxe, talvez. Ou, então, luvas para não ficar contaminado por eles. Tudo em nome da realidade lamentavelmente falsificada, inventada. E porque os ideais-ídolos são maldição sobre ela, a realidade. Falsificando-a em palavras, a deixam entregue a si própria, desgovernada, anónima. É por isso que prefere ser sátiro a ser santo. Porque, diz, a mentira é amiga dos santos. Como os ideais.
Nietzsche traduz ideais por idola, provavelmente no sentido em que deles falava Francis Bacon no seu famoso Novum Organon (Bacon, 1959). Bacon distinguia quatro tipos de idola: idola tribus, idola specus, idola fori e idola theatri. Os dois primeiros integram a estrutura espiritual da natureza humana e os dois últimos são adquiridos por via externa. Creio, pois, que ele se refere aos idola theatri porque, diz Bacon, estes “foram encenados e representados para criar mundos fictícios e teatrais” (1959: 67). Mundividências, diria. Melhor: ideologias. Não creio, pois, que haja dúvidas. Decididamente, Nietzsche é do contra, porque é amigo apaixonado da realidade, embora não pareça. O que ele diz tem um fundo de verdade: a concentração da acção humana nos ideais, ainda por cima quando eles são forjados como mundividências ou como pura ideologia, ou seja, idola, leva a que a realidade seja por eles ficticiamente modelada, lida e, sobretudo, convertida em manta retórica que, depois, a cobre e simbolicamente a denomina. A tal maldição sobre a realidade. Isto poderia ser explicado com o mecanismo da inversão ideológica: a realidade é submetida a uma hipóstase e recriada como matéria ideal fictícia, sendo, depois, a nova realidade reconstruída por dedução a partir daquela – hipóstase, primeiro, e inversão, depois. Uma recriação “tautológica” da realidade, mas com novo conteúdo simbólico. Para enganar. A realidade como ficção ideal para efeitos de legitimação, tal é a função dos ideais sob forma de ideologia, de fora theatri. Ficção. Nietzsche não anda tão fora da verdade como podia parecer à primeira vista.
II.
OUTRO TRECHO que me chamou a atenção está incluído no capítulo I, “Porque sou tão sábio”, parágrafo 5 (1961: 37). Passo a citar:
“Afigura-se-me também que as palavras mais impertinentes, a carta mais inconveniente, têm alguma coisa de cortês, de mais honrado que o silêncio. Aos que se calam quase sempre falta perspicácia e finura de coração. O silêncio é impropriedade (no alemão: Schweigen ist ein Einwand), devorar o despeito assinala mau carácter, estraga o estômago. Todos os que se calam são dispépticos”.
Ele sofreu o silêncio, sobretudo o alemão (daí o desprezo que, nesta obra, manifesta tão violentamente pelos alemães), em relação à sua obra e por isso compreende-se esta sua posição. Mas, para além disso, a sua é uma posição de fundo para levar a sério. Discordar, argumentar contra, ser impertinente ou até mesmo inconveniente representa mais respeito pelo outro do que o silêncio. Significa torná-lo visível. A discordância frontal é, pois, mais humana, mais cortês, mais respeitosa do que a ausência discursiva, a fuga para o silêncio, a ocultação. O silêncio é perigoso para a digestão, diz ele. Provoca dispepsia, no próprio. Por isso, o silêncio não é de ouro. Pior ainda, essa prática é mesquinha, quando não é brutal, silenciando, por imposição. Também é técnica apurada para anular o outro, precisamente, silenciando-o. Mas sobretudo pelo silêncio que lhe votamos. Pode falar, manifestar-se, mas nós nunca lhe daremos voz ou falaremos dele. Ele é um estranho. Um intrometido. Um estrangeiro. Um inimigo. Um potencial invasor. Eu até me atreveria a dizer que esta atitude é intimamente cruel, sobretudo se o silêncio for movido por despeito ou então como castigo. O silêncio é escuridão quando a palavra parece estar a interpelar, a pedir que se acenda uma luz. Pelo contrário, a palavra redime e, por isso, acende essa luz. Mesmo que ela também projecte sombra. Muitas vezes sobre aqueles que, por isso mesmo, querem silenciar. Mas… “amor fati”.
III.
NIETZSCHE louva Stendhal a quem, diz, deve a melhor expressão de ateísmo que seria possível inventar: “A única desculpa de Deus é não existir” (1961: 57). Que mais não fosse só isso explicaria a razão de os cardeais o não quererem (sem terem tido sucesso, porém) em Civitavecchia, como representante diplomático de França, junto do Estado do Vaticano. Mas a afirmação não deixa de ser curiosa: só porque não existe não se lhe pode atribuir culpa pelo estado lastimável do mundo. É que se existisse não teria perdão, fossem quais fossem as conversas teológicas para o justificar. De resto, se existisse nem precisaria desses teólogos para justificar a sua não intervenção nos desatinos do mundo. Aqui, o seu silêncio diria tudo. E não seria mesquinho. O poder infinito deixa de o ser se precisar do poder finito. O infinito é inefável. A conclusão: porque não existe é que há por aí tantos a viver à custa da sua inexistência. Estão aí para preencher um vazio. E são os oficiantes desse mesmo vazio, travestido de plenitude. Será por isso que ele diz que os santos são mentirosos?
IV.
“QUANDO PRETENDEMOS libertar-nos de uma opressão intolerável, tomamos haschisch. Pois bem: eu tomei Wagner”; “Não sei estabelecer diferença entre as lágrimas e a música” (1961: 62; 64).
A música, o melhor remédio contra a opressão, contra os pesadelos, contra a dor, contra a infelicidade, contra a solidão. Melhor do que medicamentos ou drogas. Em “Para além do Bem e do Mal” (1886), na parte dos aforismos, disse: “a música oferece às paixões o meio para fruírem de si próprias” (“Vermoege der Musik geniessen sich die Leidenschaften selbst” – Aforismo 106). Um regresso à dimensão dionisíaca da vida que a música e a poesia tão bem representam. E, por isso, ele tomou doses enormes de Wagner a ponto de ficar saturado, até à ruptura. Uma paixão alimentada por Wagner que, como todas as paixões, teve o seu fim, dando lugar a duas solidões debaixo do mesmo tecto, o da música. Mas tinha de ser, para não provocar habituação. A música, para ele, é como o choro, é dionisíaca, é pulsional, física, corporal, é estremecimento, êxtase. Só assim se compreende que ele não consiga estabelecer diferença entre lágrimas e música. Eu canto como quem chora, diria. O meu choro é o canto triste da minha alma. Lembra-me o Manuel Bandeira de “Desencanto”: “Eu faço versos como quem chora / (…) Meu verso é sangue. Volúpia ardente… / Tristeza esparsa… remorso vão… / Dói-me nas veias. Amargo e quente, / Cai, gota a gota , do coração”. Que cumplicidade! Talvez porque sejam irmãs gémeas, a música e a poesia. E é por isso que Nietzsche acabará por dizer:
“E como suportaria eu ser homem, se ao homem não fosse também dado ser poeta, decifrador de enigmas, redentor do acaso?” (139).
Aqui está. A mesma exigência de tomar poesia… e não só Wagner. A alma e o corpo revelam-se na música, confundem-se com ela e concentram-se numa lágrima, sim, mas também na e com a poesia. É ela, a poesia, que vai lá ao fundo do nosso ser e traz os enigmas à flor da pele, mas sem os desvelar completamente, apesar de os expor com força dionisíaca, com poder de estremecimento, com capacidade de redenção. Mas este fluxo resulta de uma viagem ao interior de si, de Nietzsche, do compositor ou do poeta, com poder terapêutico:
“Nunca tive tanto prazer em olhar para dentro de mim como nos períodos da minha vida em que estive mais doente e mais sofri” – “uma forma superior de cura. A outra cura proveio desta” (1961: 109).
Só que assim sobrevém a solidão, esse estado que é chão da criação, o seu húmus. Até se poderia dizer que a arte é a resposta à inquietude que se manifesta neste estado anímico originário. A poesia é irmã da solidão porque ela viaja para o interior de nós próprios, sobretudo quando há dor, deixando lá fora tudo o resto. E, por isso, a linha do horizonte é a própria alma, o sol que nos ilumina lá dentro e que, de quando em quando, vamos revelando através da música e da poesia, de forma cifrada, mas intensa, rompendo com o silêncio quando ele ameaça tornar-se indigesto. Sim, mas, mesmo assim, a solidão permanece inacessível e insondável na sua plenitude, porque ela “tem sete véus” e “nada há aí com poder de atravessá-la” (1961: 130). Só a poesia e a música podem traduzir em sons e palavras a solidão, que permanece intacta como seu alimento, como seu fundo, como seu ambiente. Ambas falam, ambas se exprimem para dar voz a esse magma interior, a essa pulsão que pressiona a erupção melódica e significante, como o vulcão que já não pode ficar contido na terra e tem de explodir para o céu, com seus rios de lava a descerem vertiginosamente pelas encostas dos montes. Lavas, a petrificarem. Como os sons e as palavras da montanha. Pedras preciosas. Sim, mas o magma essencial fica lá, fonte de calor e de energia vital, protegido por sete véus, sete camadas, sem se poder atravessá-lo, mas apenas interpretar os seus indícios, as suas manifestações, as suas incrustações… Só a montanha sabe, como nós, o que vai dentro de si, no seu mais profundo interior e, por isso, quando fala, fá-lo de forma encriptada, embora de forma intensa e torrencial. Com lava, levando tudo à sua frente. Como a música ou a poesia quando transbordam em sons e palavras lá do alto, das cumeadas espirituais. E nos fazem estremecer. Mas não podem desnudar, rompendo os sete véus que cobrem e protegem a solidão da alma. Assim é o terreno primordial da música e da poesia. Como a montanha. O terreno da solidão. Ninguém pode atravessar os sete véus, nem o poeta nem o músico nem quem observa a majestosa solidão em que germina a arte – de fora para dentro, mas também de dentro para fora. O poeta e o músico só podem ser intérpretes do oráculo e oficiantes dos rituais estéticos que dão corpo à linguagem da solidão. Nietzsche é, sim, mais um fiel discípulo de Diónisos do que de Apolo. Basta lê-lo para nos apercebermos disso.
REFERÊNCIAS
BACON, F. (1959). Novum Organon. Roma: Edizioni Paoline.
NIETZSCHE, F. (1961). Ecce Homo. Como se chega a ser que se é. Lisboa: Guimarães Editores.
NIETZSCHE, F. (1888). Ecce Homo. Wie man wird, was man ist. In Digitale Kritische Gesamtausgabe (eKGWB).
NIETZSCHE, F. (1924). Jenseits von Gut und Boese. Leipzig: Alfred Kroener Verlag.
SANTOS, J. A. (2019). Homo Zappiens. Lisboa: Parsifal. Jas@02-2023
EPPUR SI MUOVE
Por João de Almeida Santos

“Luz”. JAS. 01-2023
ESTA FRASE é atribuída a Galileo Galilei, referindo-se à Terra quando teve de abjurar. O geocentrismo era a teoria dominante, mas com a descoberta de Copérnico a teoria passou a ser heliocêntrica, apesar da fortíssima oposição da igreja católica e do seu braço armado, a santa inquisição. Galileu, que integrava o conjunto dos cientistas (Copérnico, Kepler, Newton) que iniciaram o movimento cientifico moderno e o abandono da perspectiva ptolemaica, teve de abjurar, mas é-lhe atribuída a frase: sim, será como quiserdes, mas a Terra move-se, “eppur si muove”. A mudança contra a tradição e a rigidez mental e institucional que se recusa a ver e a aceitar a evidência.
1.
A FRASE leva-me aos dias de hoje e ao meu entendimento de como se está a processar a política pelas forças que a têm vindo a gerir no plano institucional e governativo. Pelo establishment. Pelos chamados partidos da alternância, o centro-direita e o centro-esquerda. Ou seja, quando algo de muito profundo está a acontecer no mundo de hoje, sobretudo nas sociedades mais desenvolvidas, a política tem-se mantido no mesmo registo, indiferente à mudança, funcionando de acordo com a lógica da inércia, revestida por uma retórica aparentemente em linha com os tempos, mas, na realidade, simples manto diáfano que cobre uma enorme pobreza cognitiva e política. Querem exemplos do que está a mudar? O da cidadania – o cidadão de hoje em nada se assemelha ao da civilização industrial, ao da modernidade. Bastaria dizer que cada cidadão traz consigo no bolso um mini-computador através do qual pode aceder a um universo infinito de informação, quer como receptor quer como produtor. O nível de informação e de exigência sobre os processos políticos e sociais é hoje incomparavelmente superior ao de há não muitos anos atrás. Este crescimento, aliado à capacidade investigativa dos media e à sua concreta aliança com o poder judiciário, tem dado lugar a uma estranha (ma non troppo) prática que alguns designam por lawfare: a acção política através da sua judicialização. O direito como continuação da política por outros meios, para glosar Carl von Clausewitz. Como a guerra. E para aumentar o grau do desvio as redes sociais lançam para o espaço público mais elementos disruptivos que tornam o ambiente político ainda mais complexo, difícil, descontrolado e mais permeável à interferência de factores não políticos. Por outro lado, a globalização é uma realidade que veio para ficar, relativizando as autonomias locais de exercício da política. A inteligência artificial (IA) é uma variável que já não podemos ignorar. Acompanha-nos no dia-a-dia, através das TICs. Uma parte das interacções comunicativas já são geridas pela IA, através dos algoritmos. A fragmentação dos sistemas de partidos é hoje uma realidade difusa e incontestável que aumenta o factor de imprevisibilidade e de instabilidade à política.
2.
TUDO ISTO tem implicações profundas nos processos políticos, mas o establishment parece não se dar conta do que está a acontecer. E então berra retoricamente contra os que, aproveitando-se da sua inépcia, estão a crescer à grande, os populistas de direita. Mas é uma reacção inconsequente e até contraproducente porque não está centrada no essencial, mas tão-só na retórica e na lógica do apostolado moral pretensamente democrático e anti-qualquer coisa. Acaba por lhes dar palco, aumentando a sua notoriedade, e por os fortalecer eleitoralmente. Uma linguagem radical contra os radicais. Não uma acção radical para mudar os processos políticos. À procura do inimigo externo (às nossas idiossincrasias democráticas) para unir as tropas ou mesmo o povo em torno de projectos que há muito perderam o norte, a eficácia e até, em certos casos, a decência. Mas a verdade é que o resultado tem sido o oposto ao desejado: o “inimigo” cresce a olhos vistos e tende cada vez mais a conquistar o poder por via democrática. Já temos, aliás, exemplos disso. Em Itália, por exemplo, no poder. Ou na Hungria, no poder. Ou na Polónia, no poder. Mas também na França, com 31% numa recente sondagem (Kantar Public); na Suécia, com cerca de 20%, nas recentes eleições; na Alemanha, com cerca de 15%; na Espanha, com cerca de 15 %; em Portugal, com 12,9% – estes últimos nas mais recentes sondagens.
3.
NADA SE MOVE na política institucional e nos partidos da alternância, mas a realidade está a mover-se a grande velocidade. “Eppur si muove”. No caso português, tudo isto é evidente. Não sei quais serão as consequências para o partido socialista desta grave crise de credibilidade que está a afectar o seu governo devido aos inúmeros casos que têm levado à saída de tantos governantes, e em tão pouco tempo. Como não se sabe o que acontecerá ao PSD com a frágil liderança do maior partido da oposição, interpretada por Luís Montenegro, agora também fragilizado pelo caso de Espinho, e a efectiva liderança radical, aguerrida e persistente da oposição, à direita, por André Ventura. Poderá acontecer, mais rapidamente do que previsto, o aprofundamento da fragmentação do sistema de partidos português. Vamos ver qual será o comportamento da Iniciativa Liberal (IL) com a nova liderança de Rui Rocha. Em que filão do liberalismo e da sua tradição mais especificamente político-partidária se inscreverá a IL do novo líder. A mais recente sondagem, da Aximage (de 22.01.2023), já dá conta disso, da fragmentação, ao registar uma forte queda do PS para os 27,1% e do PSD para os 25,1%, ao mesmo tempo que o CHEGA regista 12.9% e a IL 9.5%. Estes dois últimos partidos a registarem, juntos, quase o valor eleitoral do PSD. Por outro lado, o conjunto dos 4 partidos susceptíveis de se aliarem com o PS (Bloco, PCP, Livre, PAN) regista 18%. Nesta sondagem, o bloco de direita já está, pois, à frente do bloco de esquerda cerca de sete pontos percentuais (sem o PAN), com o líder radical, André Ventura, a marcar claramente pontos, na liderança da oposição de direita, sobre o líder do PSD, Luís Montenegro.
Por outro lado, parece certo que a famosa solução do Questionário aprovado por Resolução do Conselho de Ministros, resultado inesperado da fuga para a frente de António Costa (e da nega do PR), perante as sucessivas crises do seu governo, veio introduzir, como era expectável, mais problemas do que resolver os que já existiam. E o PR, Marcelo Rebelo de Sousa, parece ter já decidido amarrar António Costa à sua própria solução, abrindo provavelmente brechas na equipa governativa, que poderão levar rapidamente a eleições antecipadas, e abrindo também uma grave brecha nas relações entre ambos, PR e PM. Bem sei que o PR é um pouco volátil no verbo, mas a insistência nesse ponto da aplicação do Questionário ao actual governo indicia uma clara e publicamente assumida estratégia nesse sentido. Ao que parece, o voto já só é, pois, uma das variáveis que determinam a estabilidade governativa e parlamentar, até no caso de maiorias absolutas, como se vê. Na verdade, a legitimidade flutuante veio para ficar, substituindo a chamada legitimidade de mandato, em grande parte devido à gigantesca máquina comunicacional que está instalada nas sociedades contemporâneas e que engloba quer os media tradicionais quer as redes sociais e, em geral, a rede. O poder de aceleração de brechas na opinião pública pelo sistema comunicacional aumentou exponencialmente e ganhou uma intensidade suplementar quando passou a produzir efeitos directos sobre o grau de intervenção pública da máquina judiciária, devolvendo efeitos políticos devastadores para o sistema. Também aqui o establishment ainda não conseguiu vislumbrar o que se passa e a dimensão do que se passa. Lawfare – cada vez mais se faz política usando para tal a justiça e a ética, numa aliança que pode ameaçar as instituições democráticas a um ponto de não retorno. A única instância que tem o poder de controlar (leia-se: investigar) todas as outras é a instância judiciária, dando origem a uma curiosa teoria da separação dos poderes, com um deles a estar mais separado do que os outros e até a reivindicar algum poder legislativo, para além do jurisprudencial. O lawfare é a projecção política desta condição. A justiça, em regime de lawfare, aliada à ética e posta na ventoinha pública pelo sistema comunicacional, funciona como a nova arma branca da conjura e produz efeitos absolutamente devastadores para o sistema de poder, mas também para o próprio poder judicial, afectando a sua credibilidade.
4.
TUDO ISTO mereceria, sim, uma atenta e profunda reflexão por parte dos partidos do sistema, do establishment, para que não se regrida no sistema democrático (e há várias formas de regressão), mas, antes, se evolua para uma democracia com capacidade de responder e de integrar as profundas mudanças que estão a ocorrer nas sociedades contemporâneas a uma enorme velocidade. Alguns falam de democracia deliberativa, uma democracia que não vive da pura retórica instrumental com vista ao sucesso eleitoral, mas antes integra a comunicação, enquanto “espaço intermédio”, na sua própria matriz. Ao fazê-lo, está a dar voz à cidadania e a promover a sua participação nos processos políticos informais e formais. Mas também está a repor em cena a própria política, acabando com o exclusivo que hoje parece pertencer aos populistas e aos santos apóstolos da política identitária. Pôr em cena a política moderada, sim, moderada, mas política, não o puro management, não a pura governance, não a tecnogestão asséptica do poder, não a “algebrose” (ou doença infantil da retórica exibicionista dos grandes números estatísticos para fins eleitorais e de legitimação) e não a pura propaganda. A reintrodução da política na esfera do discurso moderado deveria começar no interior dos próprios partidos, nos mecanismos internos de selecção dos dirigentes, no culto rigoroso da ética pública e na formação política dos militantes e, em geral, na promoção da literacia política como factor de emancipação política séria da cidadania. Mas não só. Seria necessário também promover o rigor e a ética pública na gestão dos bens públicos, a eficácia na administração do Estado (e não só na cobrança dos impostos), a superação do tabloidismo político, um pacto social com os grandes meios de comunicação para o cumprimento dos seus próprios códigos éticos em vez de um tabloidismo desbragado que põe o país em depressão, um pacto com o poder judicial para que se respeite o justo equilíbrio entre os direitos individuais e o poder sancionatório do Estado, em particular o respeito pelos princípios fundamentais da nossa cultura jurídica, para que, por exemplo, os julgamentos não sejam feitos na praça pública electrónica e a prisão preventiva não seja norma e espectáculo em vez de ser excepção.
5.
MAS NÃO É ISTO que se vê. O que aconteceu ao partido democrático em Itália (mas também aos partidos socialistas em França ou na Grécia) é muito elucidativo e não me parece que a propalada refundação venha resolver as coisas, se não forem a fundo na compreensão da crise. O “Manifesto per il Nuovo PD”, que se intitula feminista (“siamo e saremo un partito feminista”), deixa muito a desejar, enxameado que está de conversa politicamente correcta. A crise do centro-esquerda é generalizada, lá, como noutros lugares da União, mas parece não haver consciência disso, ou seja, das causas profundas que a explicam. Crescem os extremos, minguam os centros. E aqueles crescem na exacta medida em que cresce, por sua iniciativa, a fala e a linguagem da política, interpretando a desilusão ou mesmo a revolta da opinião pública em relação ao establishment. E estes, os centros, diminuem na medida em que se aninham na tecnogestão, ainda por cima com resultados pífios, com uma tendência generalizada a reproduzirem-se no poder por via endogâmica e inundados de uma linguagem politicamente correcta e “woke” que desafia o bom senso (e até enjoa) da maior parte dos cidadãos. Mas também é verdade que, às vezes, os partidos da alternância mais parecem federações utilitárias de interesses puramente pessoais do que formações que aspirem a gerir o interesse geral, inspiradas numa sólida ética pública. Não é por acaso que estão em crise por essa Europa fora. Apetece usar a fórmula dos apóstolos “woke”: acordai, ó moderados do centro-esquerda e do centro-direita! Se não acordardes quem pagará as favas serão os cidadãos, com a cumplicidade ingénua dos próprios.
NOTA SOBRE O POPULISMO
Por João de Almeida Santos
OCORRERÁ amanhã, dia 19.01, por via digital, uma Conferência Internacional sobre “Populismos, Democracia e Comunicação na História”, promovida pela Associação Espanhola de Investigação da Comunicação, com organização de seis Universidades espanholas e a participação de doze. Terei a honra e o gosto de proferir a Conferência de Abertura com uma reflexão sobre “O Discurso Populista”. As intervenções ficarão disponíveis no final de 2023 num número especial da Revista de “Historia y Comunicación Social”, da Universidade Complutense de Madrid.
1.
A ESTE PROPÓSITO gostaria de aqui propor algumas reflexões sobre esta matéria (que não são o texto da minha conferência de amanhã), revisitando a ideia de povo, a base sobre a qual está ancorado o populismo, e partindo de algumas considerações de Ernesto Laclau, na obra “A Razão Populista” (2005).
E começo por uma sua interessante afirmação: “uma identidade popular funciona tendencialmente como um significante vazio” (Laclau, E., La Razón Populista, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2005: 125). Ou seja, a identidade popular não exprime uma realidade sociológica concreta e não pode, pela sua indeterminação, atingir a dignidade conceptual, tornar-se conceito. O que é então? Laclau distingue entre a dimensão ôntica da ideia de povo e a sua dimensão ontológica. A primeira refere-se às formas concretas que a ideia de povo assumiu ao longo da história e à sua concreta assunção pelas várias correntes políticas. A segunda refere-se à sua dimensão genérica, à pretensão de dar essencialidade e universalidade àquilo que tem uma simples dimensão ôntica, histórica, contingente, parcial, transformando a espécie em género, a parte em todo, o particular em universal. Para esta operação é necessário extirpar as concretas determinações da ideia de povo, ficando, então, em condições de acolher as suas concretas determinações temporais, a sua realidade ôntica. Mas para isso terá de funcionar precisamente como “significante vazio” ou como “abstracção indeterminada”, para usar a linguagem do filósofo italiano Galvano della Volpe.
2.
O POVO (político) foi identificado ao longo da história com os indivíduos que tinham direito de pronúncia sobre as causas da comunidade (Grécia), os que eram titulares de direitos em virtude da sua condição de cives (Roma), os citoyens actifs (época liberal), a classe operária (marxismo), o campesinato (populistas russos), as massas (populismos de direita e de esquerda no período entre as duas guerras mundiais), os eleitores (na democracia representativa). O que, entretanto, acontecia, quando estas identidades eram assumidas pelas formações políticas como âncoras fundamentais da sociedade, era converterem-se em totalidade social, identificando-se com o conjunto da sociedade, apesar de serem apenas uma sua parte (haveria sempre uma parte excluída da identidade popular): a plebs que se torna populus, os polítai que se tornam demos. E é para isso mesmo que serve a palavra povo na sua dimensão ontológica, equívoca, genérica, vazia ou indeterminada. Por exemplo, identificando o povo com a nação esta conversão ficaria garantida. Ou, como no marxismo, quando a classe esgota em si a ideia de povo, porque ela está no centro do processo histórico e determina a sua evolução rumo a uma sociedade sem distinções de classe, homogénea, genérica, onde todos são iguais, numa “cadeia equivalencial” de identidades individuais. O mesmo vale para a raça, para os herdeiros de Gobineau. A igualdade como identidade absoluta.
3.
TRATA-SE DE UM PROCESSO tipicamente ideológico, onde acontece uma hipóstase e uma inversão: o particular é projectado como universal (hipóstase) para, depois, a partir desta condição, reformatar a realidade como sua determinação (inversão). Este processo foi muito bem visto e teorizado por Galvano della Volpe em Logica come Scienza Storica (Roma, Riuniti, 1969) e em Rousseau e Marx (Roma, Riuniti, 1956): a ideia de povo não seria mais do que uma “abstracção indeterminada”. Parte, sim, de uma parte da realidade, mas para a sublimar, através de uma hipóstase, absorvendo (della Volpe usa a palavra “indigerir”) o seu conteúdo empírico para, depois, lhe devolver uma nova dimensão funcional. Uma espécie de tautologia com funções reconstrutivas. Na realidade, uma reconstrução ideológica do real. A realidade é sublimada para ser simbolicamente confirmada e legitimada com maior densidade ideal. Portanto, tem também razão Laclau quando diz que o povo dos populistas é uma construção política (eu diria reconstrução) e não espelha, de facto, uma realidade sociológica, sendo, pelo contrário, objecto de uma “sobredeterminação” – a que ele chama “nominación” – a partir de um vértice que é representado por uma individualidade, por um nome unificador da heterogeneidade societária, por um intérprete da realidade sublimada como povo. O vazio da identidade popular, na sua dimensão ontológica, é, então, preenchido por uma individualidade, por um chefe, por um nome, normalmente carismático e oracular. O exemplo clássico está identificado no monarca, na sua corporeidade e no seu simbolismo relativamente ao povo-nação. No período entre-guerras, na idade de ouro da propaganda, da ideologia e das grandes narrativas este processo ganha um novo tipo de protagonistas. Figuras oraculares que materializavam e representavam a ideia de povo e de povo-nação: “il Duce”, “der Fuehrer”, “el Caudillo”, “o Secretário-Geral”, “o Chefe” ou “il Capo”. A redenção do povo alemão, da nação alemã, no filme encomendado por Hitler a Leni Riefensthal, “Triumph des Willens”, de 1935, este surge com o deus ex machina que desce sobre o palco de Nuerenberg para resgatar a nação alemã, que saíra humilhada do Tratado de Versailles (1919), que se seguiu à Grande Guerra.
A generalidade da ideia povo precisa, por necessária lógica interna, de um princípio que, simultaneamente, a materialize, a identifique e, ao mesmo tempo, a unifique funcionalmente. No nacional-socialismo até existia o “Fuehrerprinzip”, como princípio supremo que dava unidade a toda a acção política. Um monarca (ou mesmo imperador) de novo tipo. Glosando Gramsci, se o partido é o novo príncipe, o líder carismático e oracular é o novo monarca.
4.
HOJE, o princípio do populismo é o da soberania do povo-nação, na sua forma mais radical de soberanismo e nacional-populismo, interpretado também ele por uma individualidade que concentre nela um poder acima das partes, precisamente porque investida desta exigência de unificação, de materialidade e de representação. Poder que supera as instâncias de intermediação em nome de uma permanente recondução da política ao seu fundamento primário, fonte de toda a legitimação – o povo. Na verdade, os populistas não se identificam com o primado constitucional da nação, antepondo-lhe o primado do povo soberano. Não é por acaso que este populismo é soberanista e considera, diferentemente dos liberais, seus adversários (ou mesmo inimigos – veja-se a ideia de “democracia iliberal” de Viktor Orbán), que a soberania reside no povo, não na nação.
5.
A NATUREZA DO POPULISMO é aqui que se encontra e para a compreender é necessário fazer uma incursão quer sobre as várias formas que a ideia de povo foi assumindo historicamente quer sobre o processo da sua própria sublimação ou hipóstase para que se possa cumprir aquilo que é absolutamente necessário: garantir a unidade do heterogéneo social e a identificação com a totalidade social e garantir uma alta performatividade do seu próprio discurso político. Para tal é preciso distinguir o plano ôntico da ideia de povo, a sua dimensão contingente, do plano ontológico, onde ela funciona como ideologia totalizante (interpretada por uma concreta individualidade) a partir da qual – e através de um decisionismo reforçado (que hoje repousa no presidencialismo do primeiro-ministro) – o real é recriado ou reformatado. Só assim ele pode ganhar terreno na competição pelo poder. O que tem vindo a conseguir à custa da inépcia política e ideológica das formações políticas que se têm alternado na gestão do poder democrático. Com efeito, a política parece hoje ter ficado confinada à esfera de acção das formações políticas de inspiração populista e à chamada “nova esquerda” das causas fracturantes, politicamente correcta, identitária e revisionista, de largo espectro. O centro-esquerda tem preferido a assepsia política, o “management”, a “governance” e a tecnogestão dos processos sociais, numa progressiva “despolitização” da gestão do poder. Os resultados estão à vista. Jas@01-2023
TRUMP FOI AO PLANALTO
Por João de Almeida Santos

“Alvorada II”. JAS. 01-2023
NÃO É PRECISO SER um grande especialista em política para perceber que o que aconteceu no Domingo passado no Brasil parece ser um clássico modelo experimental. De resto, nem sequer muito original. Criar o caos para que a ordem seja reposta. É sempre do caos que nascem as ditaduras. Umas vezes por imaturidade dos sistemas democráticos (foi assim na I República portuguesa, 1910-1926), outras vezes de forma politicamente induzida. Na Itália, os squadristi lançaram a violência e o caos um pouco por todo o país, no início dos anos vinte, que conduziria à entrega do governo italiano, pelo Rei, nas mãos de Mussolini. Na Alemanha a mesma coisa, violência e caos, e ao sucessivo triunfo de Hitler nas eleições. Sobrevieram, primeiro, uma ordem militar, no caso português, e, nos casos italiano e alemão, ditaduras unipessoais, com Mussolini e Hitler, que se foram rapidamente consolidando até se tornarem verdadeiros regimes totalitários. Para não falar aqui na vizinha Espanha, em 1923, com Primo de Rivera. Os tempos são outros, mas a “besta” continua sempre à espreita. Ninguém previa esta escalada bélica convencional da Rússia à revelia dos princípios básicos do direito internacional e das convenções internacionais. Mas ela aconteceu com, pelo meio, irresponsáveis e impensáveis suspiros nucleares.
I.
ESSE PARECE TER SIDO o significado imediato do assalto ao Capitólio, nos USA, ou seja, um teste violento ao sistema de poder instalado, que poderia servir de pretexto para bloquear a eleição de Joe Biden, ou algo ainda pior. “Se non è vero è ben trovato”, dir-se-ia. Não diria que, em política o que parece é, mas não andamos longe disso. Um episódio, este, que ganha particular significado se considerarmos o papel nele desempenhado pelo ainda presidente Trump e pelo que ele representava, tendo em conta os conspícuos resultados eleitorais obtidos. O processo judicial em curso parece, com efeito, confirmar a participação activa de Trump naquele lamentável e incrível episódio. E esse também parece ser o significado do assalto ao Palácio do Planalto, com a única diferença de que Bolsonaro já não era presidente há uma semana, o que alimenta a ideia de que o que eles pretendiam era realmente uma intervenção militar. Uma vontade que vêm alimentando desde as eleições. A extrema-direita assumiu aqui a sua face mais violenta, tendo sido mais explícita e directa do que a direita americana, ao pedir abertamente a intervenção das forças armadas, certamente confortada por ocultas cumplicidades internas.
II.
A OUTRA EXTREMA-DIREITA, a mais soft, só não assume esta estratégia porque sabe que as sociedades civis em que opera são muito mais robustas e previsivelmente não seriam permeáveis a soluções deste tipo. Permeáveis eleitoralmente, sim, como se demonstra pelo actual caso italiano (Giorgia Meloni condenou abertamente o episódio), mas provavelmente pouco disponíveis para aceitar uma ditadura militar. Já aqui falei deste assunto, no artigo sobre “A Democracia Iliberal”. Mas a verdade é que do lado de lá do atlântico as coisas parece serem diferentes. Alguém dizia que se Trump estivesse no poder nos USA, hoje já teríamos no Brasil de novo a ditadura militar. Não sei, mas o que parece é que o capitão Bolsonaro não sonha com outra coisa. Nos USA a tentativa faliu, mas não é por isso que Donald Trump deixa de tentar voltar a ser Presidente dos Estados Unidos. No Brasil a tentativa também faliu, mas provavelmente a lógica do assalto ao Planalto continuará e à revelia dos mecanismos eleitorais próprios de uma democracia representativa. Quando a nova arma branca da política, o lawfare, falha, tenta-se que regresse a velha arma das botas cardadas. A direita moderada terá aqui um papel essencial. Mas não sei se aprendeu a lição. Os republicanos americanos não aprenderam, de certo. No Brasil, verdadeiramente não se sabe. O exemplo americano será sempre muito importante, para o bem e para o mal.
III.
NO ARTIGO que publiquei logo a seguir à vitória de Lula, em 30 de Outubro, escrevi o seguinte: “a grande tarefa do Presidente Lula é, sem sombra de dúvida, a de cuidar, com talento, da solidez e da credibilidade do sistema de poder brasileiro. Sim, também as grandes reformas pelo crescimento, pela preservação do eco-sistema brasileiro e mundial e pelo combate à pobreza. Claro. Mas se não cuidar, com toda a atenção, do sistema de poder nada disto poderá ser alcançado”.
Não podia adivinhar o que viria a acontecer oito dias depois da sua tomada de posse. Mas, vistos os resultados eleitorais, era claro que a principal tarefa do novo presidente seria a de esvaziar a sociedade brasileira do ódio que o bolsonarismo espalhou durante os últimos anos a partir do Palácio da Alvorada. Uma imitação ainda mais grosseira do grosseiro Presidente Trump, agora aprofundada com o mimético e inacreditável assalto ao Planalto, com o senhor Bolsonaro no Estados Unidos provavelmente a receber inalações de trumpismo no seu próprio oráculo. Importante foi a declaração da congressista Ocasio-Cortez (“The US must cease granting refuge to Bolsonaro in Florida”), mas mais importante será punir o responsável máximo pelo assalto ao Capitólio, o modelo que, afinal, inspirou Bolsonaro y sus muchachos. Os papagaios de serviço que acharam que o discurso do Presidente Lula deveria omitir os desmandos de Bolsonaro se calhar até acham que o assalto foi provocado pelo discurso. Mas enganam-se: a democracia deve utilizar as suas armas para se defender. E as primeiras são a da justiça e a da palavra. Talvez até tenha sido de menos a acção do Presidente, não removendo de imediato os restos de bolsonarismo em instituições fundamentais, como, por exemplo, a da segurança. Foi preciso esta inacreditável arruaça para afastar o secretário de segurança pública do distrito federal, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública (e homem de confiança) de Bolsonaro, Anderson Torres, e o Governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha – ambos considerados responsáveis pela ausência de medidas de segurança ou mesmo “por conivência”. Sim, Lula não pode demonstrar fraqueza e deve agir com firmeza, ao mesmo tempo que deve procurar, como tem vindo a fazer, trazer ao seu projecto as forças moderadas. As falinhas mansas de pouco servem quando se está perante golpistas violentos cheios de ódio.
IV.
O QUE ACONTECEU no Domingo em Brasília é a confirmação da gravidade do que aconteceu nos USA, com o assalto ao Capitólio, e que tarda a resolver-se com medidas exemplares em relação ao seu principal responsável (e não só em relação aos seus peões de brega) que mostrem como os Estados Unidos são firmes na defesa da legalidade democrática e, deste modo, demonstrem o que em palavras sempre defenderam. Neste compasso de espera, o Brasil bolsonarista imita o que de pior têm os Estados Unidos. Mostra-se, dizem os italianos, como a sua “brutta copia”. E é precisamente por isso que os Estados Unidos deverão julgar com toda a severidade e urgência (que já tarda) o responsável pelo que se verificou há dois anos na capital americana. E não só porque se tratou de um grave atentado ao coração da democracia americana, à lei e à ordem democrática, mas também porque, dada a importância mundial dos USA, a impunidade dará fôlego à mais violenta direita radical, um pouco por todo o lado. Quando hoje a comunidade internacional prepara um processo à Rússia de Putin pelos crimes contra a humanidade que está a praticar na guerra contra a Ucrânia, seria incompreensível que os Estados Unidos não sancionassem com rigor, em todos os aspectos, inclusive o de proibir a recandidatura de Trump, esse gravíssimo assalto ao Capitólio, essa invasão do “altar” da democracia americana, esse lugar onde diariamente se celebra o ritual democrático. As leis da imitação, formuladas pelo clarividente Gabriel Tarde, ganham mais força quando ancoradas no exemplo dos mais fortes, dos que exibem maior notoriedade e dos que mais influência têm nos destinos colectivos. Prova disso mesmo foi o que acabámos de ver em Brasília, a escassos dias da tomada de posse do novo Presidente do Brasil.
V.
É, POR ISSO, OCASIÃO para voltar a sublinhar que a principal tarefa de Lula da Silva é a de restaurar o sistema democrático brasileiro, de o reforçar, aplicando a lei sem tibiezas, e de desenvolver um trabalho político intenso junto da direita moderada para que também ela ajude nessa gigantesca e primária tarefa. Extirpar o ódio da sociedade brasileira não é tarefa fácil, mas será porventura o maior dos desafios que o Presidente Lula deverá abraçar, desde já. Extirpar o ódio, sim, para que possa meter mãos à obra para extirpar também a fome e a pobreza nesse rico e imenso país que é o Brasil.
“QUE BROTEM TODAS AS FLORES”
Lula e o Futuro do Brasil
Por João de Almeida Santos

“Alvorada”. JAS. 01-2023
NO PASSADO DOMINGO, dia 1 de Janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse como Presidente da República Federativa do Brasil. Foi um momento de grande significado, sim, para o Brasil, mas também para a Política. Lula disse-o de uma forma enfática no seu discurso: “Negar a política, desvalorizá-la e criminalizá-la é o caminho das tiranias”. O seu antecessor não esteve fisicamente nem simbolicamente presente na posse, tendo-se ausentado intencionalmente para os Estados Unidos, dois dias antes. Competir-lhe-ia passar o testemunho, mas não quis fazê-lo, dando, com esta atitude, um sinal negativo em relação à política democrática. Ou seja, não aceitou a derrota, o que significa que não se revê na mais alta simbologia democrática, se é que alguma vez a interiorizou. Os eleitores não o quiseram, democraticamente, na Presidência e ele voltou-lhes as costas no momento culminante da materialização da decisão popular, apesar do significativo nível de representação que o seu próprio partido obteve no Congresso, na Câmara e no Senado, e nos estados federados. Aguardemos para ver o que acontecerá e que destino terá Bolsonaro.
I.
O NOVO PRESIDENTE fora impedido judicialmente de se candidatar às eleições de 2018, esteve preso 580 dias (entre Abril de 2018 e Novembro de 2019, quando Bolsonaro já era Presidente há quase um ano), depois de ter sido condenado a quase nove anos de prisão. Saiu da prisão por manifesta ilegalidade do processo e pôde finalmente candidatar-se à Presidência em 2022. E venceu. O juiz que o prendeu, Sérgio Moro, passou rapidamente de juiz a ministro da justiça de Bolsonaro, saiu em confronto com o Presidente que o nomeara e, depois de várias peripécias em torno de uma falhada candidatura presidencial, conseguiu ser eleito senador pelo estado do Paraná. Um juiz que, nessa qualidade, fez política (lawfare) e que, por isso mesmo, foi politicamente promovido, primeiro, a ministro, depois, a senador. Fez política, dizendo que estava a fazer justiça, para, depois, ser politicamente recompensado. Um percurso que diz tudo sobre o personagem.
II.
ESTA É a terceira vez que Lula toma posse como Presidente da República, aos 77 anos de idade e, de algum modo, a sua vitória representou verdadeiramente o resgate triunfal de uma triste história que começou com o Lava Jato, com a destituição de Dilma Rousseff, com a sua prisão e com a eleição de Bolsonaro. Uma história pilotada para tirar do poder o PT. Puro lawfare, a nova arma branca para fazer política por outros meios, para usar a célebre fórmula de Carl von Clausewitz. Usada até mesmo no impeachment de Dilma Rousseff: teria agido à revelia das leis da república. E pilotada, sim, pela extrema-direita, com a conivência da direita moderada. Só que o personagem que a interpretou era mau demais para conseguir aguentar por muito tempo esta história mal contada. A direita moderada apercebeu-se do erro e bateu em retirada. A evolução de Fernando Henrique Cardoso no processo diz muito sobre o que aconteceu. Mesmo assim, a batalha eleitoral foi intensa, muito disputada e até perigosa. Acabou bem com a declaração institucional de vitória de Lula da Silva pelo Supremo Tribunal Eleitoral. Ele surge, assim, como um combatente denodado, com fortes convicções, uma vontade de aço e como grande e inteligente lutador. De operário metalúrgico a Presidente da República por três vezes, numa longa história com mais de quarenta anos.
III.
O QUE DISSE LULA DA SILVA no discurso de tomada de posse? Vejamos o essencial: (1) que o balanço dos últimos quatro anos é catastrófico, em todas as áreas da governação – “devastação”, foi a palavra usada; (2) que corrigirá os graves danos provocados pelo governo de Bolsonaro, sem hesitação – “reconstrução”, foi a palavra usada; (3) que serão restaurados os procedimentos democráticos na sua plenitude; (4) que vai concentrar-se na resposta às desigualdades, à fome, aos direitos sociais, aos direitos das mulheres e das minorias; (5) que vai investir no desenvolvimento nas suas várias frentes, (6) combater às alterações climáticas e (7) repor o Brasil na cena política mundial, enquanto grande potência mundial.
Uma tarefa ciclópica, mas ainda maior porque não dispõe de maioria no Congresso e nem sequer nos estados federados, devendo por isso negociar exaustivamente o seu concreto programa. A formação do governo já tomou esta circunstância em atenção, integrando diversas forças políticas nele. Negociações, sim, mas lealdade para com os princípios que sempre o moveram desde que entrou na política quer como sindicalista quer como líder do PT.
IV.
QUEM PENSAVA que Lula da Silva não iria referir-se crítica e gravemente ao passado no seu discurso de posse, em nome da reconciliação nacional, enganou-se. E, no meu entendimento, ele fez bem em referir-se à devastação bolsonarista (de que dará conta aos principais agentes institucionais do Brasil), mas também em dizer ao que vem, apontando as grandes linhas principiais e programáticas. É difícil, a reconstrução? É sim, dada a magnitude da devastação, mas não demasiado, pois sabe muito bem o que quer. E disse-o de forma muito clara, para quem quis ouvir. O que já é muito. Quatro anos passam depressa e ele terá 81 anos quando o mandato chegar ao fim. Mas a verdade é que a tarefa é eminentemente política e a clareza na definição da orientação política e a precisão nos objectivos a alcançar são os pilares essenciais e decisivos. Em termos gerais, são cinco os seus grandes objectivos políticos: reconstruir a política democrática; reconstruir as políticas sociais, em particular o combate à fome e à pobreza, que envolvem, respectivamente, 33 e 100 milhões de brasileiros; relançar as políticas de desenvolvimento, com particular destaque para o papel da ciência e da tecnologia no processo; retomar as políticas de combate às alterações climáticas e assumir o desmatamento zero da Amazónia; e, finalmente, repor o protagonismo do Brasil como grande potência emergente.
Este é o programa estratégico e Lula da Silva já o formulou com grande clareza e num momento solene. A etapa seguinte será a de pôr os responsáveis por estes sectores estratégicos a negociar e a desenvolver o seu programa.
V.
TALVEZ A DIREITA moderada tenha aprendido a lição e compreenda que muito terá a ganhar se o Brasil voltar a levantar a cabeça, reconquistando o seu protagonismo enquanto grande país que é, em dimensão, em população e em recursos. Mas é evidente que também o Brasil sofre a influência de uma política mundial onde as forças radicais têm vindo a ganhar crescente protagonismo e em várias formas. A começar pelos Estados Unidos, onde se espera que a experiência de Donald Trump fique definitivamente consignada aos arquivos da história e a liderança americana esteja nas mãos de personalidades moderadas, de centro-esquerda ou de centro-direita, não de direita radical. Já basta termos na Europa o senhor Putin a destruir à bomba um país de quase 45 milhões de pessoas. Por isso, não creio que seja mais do interesse da direita moderada alinhar em soluções radicais. Aprendeu a lição? Esperemos que sim. Afinal, a coisa nem era de todo nova. Já tinha acontecido com os liberais em Itália nos anos vinte do século passado. Aprenderam também eles, passados dois ou três anos, a lição, mas já era demasiado tarde. As consequências foram devastadoras. É por isso que esta vitória de Lula da Silva tem um altíssimo valore simbólico. Ela representou, a seguir à dos democratas nos USA, uma nova vitória da democracia sobre os radicais e golpistas de extrema-direita. É por isso que ela tem um alto valor simbólico.
VI.
SIM, UM FORTÍSSIMO SIMBOLISMO. A democracia é um valor muito alto, maior do que o daqueles que a vão materializando, à esquerda ou à direita. É um valor universal, que vale por si, porque garante os direitos fundamentais do indivíduo. Por isso, a derrota dos que atentam contra ela, a democracia representativa de matriz liberal, é por si só uma vitória de grande alcance. Nem se conhece uma forma política alternativa melhor. É conhecida e apreciada a fórmula minimalista de Winston Churchill sobre a democracia representativa. Depois, a força anímica do personagem que interpretou esta viragem política, Lula da Silva, é inspiradora e acrescenta algo de muito valioso à própria democracia. A coragem, a persistência e os valores. Depois, ainda, a clareza da enunciação política do seu discurso, a trave mestra do que considera ser a missão da sua vida e que pode ser resumida numa frase que disse no seu discurso de posse, relembrando a sua primeira investidura como Presidente da República: “a missão de minha vida estaria cumprida quando cada brasileiro e brasileira pudesse fazer três refeições por dia”. Esta frase diz tudo. Modéstia até na missão grandiosa de acabar com a gigantesca fome no Brasil. Não houvesse outras importantíssimas missões para o seu mandato, como, por exemplo, a de acabar com a criminosa desmatação da Amazónia, e aquela só por si justificaria o regresso de Luiz Inácio Lula da Silva. E não terá sido mera retórica o que ele disse na tomada de posse: “Que brotem todas as flores e sejam colhidos todos os frutos da nossa criatividade“. Com a sua história de vida, o que ele disse e diz é para levar mesmo a sério.
VII.
TERMINO, SAUDANDO O PRESIDENTE LULA com as palavras que, em 23.01.1981, ele escreveu, no livro que me ofereceu, Lula, Entrevistas e Discursos (São Bernardo do Campo-SP, ABCD-Sociedade Cultural, 1980), como dedicatória: “Ao Companheiro Lula com abraços do Companheiro João” (somente a ordem dos nomes está trocada). E faço-o com o particular prazer de quem assistiu (embora na Europa) ao nascimento do PT e de um líder político que haveria de revelar as melhores qualidades que se podem esperar de quem um dia teve a ambição de assumir, interpretar e conduzir os destinos de um grande país como o Brasil. Bom trabalho, Senhor Presidente.
ELOGIO DO POETA
Por João de Almeida Santos

“La Diseuse”. JAS. 12-2022
À PRIMEIRA VISTA, o título deste artigo pode parecer um auto-elogio (admitindo que sou poeta, o que não é uma certeza), mas não é. Na verdade, inspirei-me no título de um belíssimo livrinho de Pierre Jean Jouve, Apologie du Poète, publicado em 1947 (Jouve, 1982). O autor, importante poeta e romancista francês, viveu entre 1887 e 1976. Morreu em Paris.
I.
POR QUE RAZÃO escrevo hoje sobre poesia, inspirado nele? Houve uma razão imediata que me levou a ler e a reler o livrinho e a escrever este artigo. Encontrei nele uma interessante coincidência, no que diz respeito às relações entre a alma, o espírito e a poesia, com o que eu próprio escrevera em “Pessoa Revisited” (1). Cito, para começar, Jouve:
“Il est donc vrai que la poésie supérieure est une fonction de l’âme, e non pas de l’esprit. C’est l’âme qui fournit l’énergie spéciale capable de faire, de la masse agglutinée, une ‘chose de beauté’”. (…) “le contenu ultime de la Beauté serait le caractère d’éternel devenu sensible” (Jouve, 1982: 10).
Parece estranha esta distinção entre alma e espírito, tal como a essencialidade da conexão funcional da poesia com a alma e não com o espírito. Mas não é. A poesia é uma função da alma, sim, porque a alma, tal como a poesia, é mais dionisíaca e o espírito é mais apolíneo. Esta posição remete para a relação estabelecida por Nietzsche entre espírito dionisíaco e espírito apolíneo, em A Origem da Tragédia, onde ele valoriza na arte a dimensão pulsional e anímica sobre a construção racional da relação estética com o mundo. É certo que Nietzsche via a perfeição (da tragédia grega) na relação de harmonia e equilíbrio entre estas duas dimensões, mas colocava a primeira na génese da arte, como sua energia propulsora primordial. A beleza, afinal, é a simbiose do eterno ou do universal com o sensível, um processo que começa com e no dispositivo anímico. Diz Jouve: “Nós, poetas, devemos, pois, produzir este ‘suor de sangue’ que é a elevação a substâncias tão profundas, ou tão altas, que derivam da pobre, da bela potência erótica humana” (1982: 33-34). Uma ligação indubitavelmente forte entre o dispositivo erótico, a beleza e a poesia e onde o próprio dispositivo anímico desempenha uma função originária essencial. A poesia é uma função da alma, não do espírito. É verdade.
Permitam-me, pois, que lembre o que eu próprio escrevi, a este propósito, em “Pessoa Revisited”:
“Afinal, alma e espírito nem são a mesma coisa, pois este é culto e aquela, a alma, pode não ser. Falo no plano transcendental, claro, embora um espírito inculto seja mais alma do que espírito. Digamos, uma alma um pouco espiritual. Mas a verdade é que a alma não tem de ser culta. A alma sente e o espírito pensa. Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz… e doloroso. O amor é mais da ordem da alma do que da do espírito. É por isso que se diz ‘dor de alma’ e não ‘dor de espírito’. E, por isso, o espírito é perigoso para o amor. Quando ele chega, dita lei e o amor acaba” (Santos, 2022).
E, por isso, só faltou, nesta passagem do meu Ensaio, ter verbalizado o que já lá estava implícito na distinção entre alma e espírito – a poesia. Mas isto já o dizia também de forma muito clara Jouve, em 1933: “La poésie est un véhicule intérieur de l’amour” (1982: 33). Função da alma e veículo interior do amor. Conexão íntima entre a alma, o amor e a poesia. Por isso, a poesia e o amor são irmãos gémeos e ambos habitam o mesmo espaço: a alma. E até são incestuosos. É em nome desta relação, deste vínculo natural, que Jouve recorre a Rimbaud para dizer: “j’y suis; j’y suis toujours”. Onde? Na “conservação viva e espiritual do amor”, pela poesia (1982: 34). Se dúvidas houvesse, aqui ficam elas esclarecidas.
II.
PARA PIERRE JEAN JOUVE, a alma é o magma intangível que nos energiza e abre a um vastíssimo espectro que a poesia tenta captar dando-lhe forma numa versão minimalista da linguagem estético-expressiva: a “narrativa” poética. Em boa verdade, nem é bem de narrativa que se trata, mas sobretudo de um “grito de alma” ou de uma “dor de alma” que são expressos através de palavras, em formas belas: poemas, estrofes, versos. E é precisamente a beleza que os fortalece e lhes dá o poder de, ao serem comunicados desta forma, subindo à “extremidade suprema do verbo”, “determinar o mesmo” (isto é, sensibilizar com o belo) “na alma de quem o poema quiser tocar”. É por isso que o poeta é essencialmente um jogral, um solista (“le poète reste um chantre”), qualquer que seja o grau de espiritualidade que ele atinja (1982: 52). Jouve, falando da “obra mística do poeta” (que pertence à esfera humana da beleza), afirma que, tal como os santos atenuam a sua solidão infinita através da comunhão com os seus pares, também o poeta tem como objectivo próximo e remoto que a obra comunicável (1982: 52) para poder chegar aos outros e, dessa forma, também ele romper a sua infinita solidão. A poesia nasce em solidão (parece não haver dúvida), mas aspira a ser universal e partilhada, universal-sensível, através da beleza, o que acontece no interior desse dispositivo anímico de que o ser humano é dotado.
III.
NADA MELHOR do que dizer o que é a poesia, usando as próprias palavras de Jouve:
“A Poesia é uma linguagem, por assim dizer, magnetizada, portadora de uma densidade (charge) diferente essencialmente da linguagem falada ou até mesmo da prosa escrita; através desta linguagem deve produzir-se a unidade ao mais alto nível entre o pensamento e a palavra, entre o sentido e o signo, entre uma resultante de todas as massas psíquicas em movimento e o desenvolvimento agradável das sílabas. Tudo isso coexiste porque tudo nasce em conjunto” (1982: 11; itálico meu).
E é por isso mesmo que na poesia não existe o problema da relação entre o fundo e a forma. Sente-se, ou pressente-se, esta relação, esta tensão, e até atormenta um pouco no acto da criação (e também falo por experiência própria), mas não existe como problema propriamente dito. Jouve cita Baudelaire para o confirmar: “L’idée et la forme sont deux êtres en un” (1982: 11). Na criação poética fundo e forma confundem-se e fundem-se. O fundo está lá na forma e esta, por isso, converte-se, na poesia, em unidade expressiva sem exterior. A forma não será poética se não provier ela própria do fundo, da substância anímica mais profunda. Dir-se-ia que o fundo fala directamente na forma e que esta é a sua face mais visível, ainda que relativamente cifrada.
IV.
ELE DIZ que a poesia “é um pensamento – um estado psíquico – de aglutinação” (1982: 9). Aglutinação de quê? “De tendências, de imagens, de ecos de vagas recordações, nostalgias, esperanças”. Ela parece-se com certos sonhos aparentemente absurdos, mas que, de repente, se iluminam quando os desenvolvemos invertendo o seu alinhamento (“si on les déroule à l’envers). O sonho ocupa na poesia um lugar cimeiro. Jouve cita Victor Hugo, que fala do promontorium somnii:
“no mundo misterioso da arte, há o cume do sonho. Neste cume da arte está apoiada a escada de Jacob. Jacob deitado junto da escada é o poeta, o que dorme com os olhos da alma abertos” (1982: 17; itálico meu).
O sonho é, pois, algo que, embora mereça uma operação de descodificação poética, especial, ocupa um lugar cimeiro na poesia e exige, lá no topo onde acontece, ser visualizado com “os olhos da alma”. O sensível onírico e a alma, atenta e de olhos bem abertos. Uma operação desenvolvida com os sentidos interiores, os da sensibilidade. A poesia, diz, “é uma coisa de alma”, é “um assunto de transcendência, sempre relativamente velado”, “um assunto de energia da alma” (Pierre Emmanuel). Sempre a alma e o mistério nesse vasto e oculto mundo interior que exige à poesia um atento olhar anímico e sensível.
A poesia é “aglutinação” das “massas psíquicas”, de estados interiores magmáticos, do fervilhar de fragmentos dispersos de memória, de nostalgia, quentes de estados não resolvidos, de perdas e desencontros, mas também de expectativas em face do poder que a poesia tem de tocar a alma do ser a que se dirige – de tudo isto, sim, mas numa unidade superior e numa toada sensível capaz de tocar em profundidade a sensibilidade.
V.
“Chose de beauté”, a poesia é canto que não se confunde com a própria oralidade e, por isso, muito menos se esgota nela, mas também não se identifica com a prosa escrita, embora use os mesmos meios, as palavras, o que faz, todavia, em registo minimal e em toada melódica. A poesia é canto que aspira a ser partilhado com seres psíquicos que andam por ali, nesse território, através do belo, que, nela, é resolução, libertação, apaziguamento de memórias quentes ou mesmo febris que vêm à tona, porque (segundo Baudelaire) ele, o belo, “tem uma força de integração total”, isto é, pode “engrandecer tudo aquilo em que toque” (1982: 9-10, 14). E é por isso que o livro começa com a citação de uma frase de Elisabeth Browning: “O poeta é aquele que diz as coisas essenciais”, para depois se referir à poesia como “a arte mais soberana e a mais misteriosa” (1982: 7). É por isso também que “o ‘pequeno veículo’ da Poesia transporta consigo os pesos mais pesados: ele torna-se tanto mais precioso para o amor e a justiça quanto mais o carro mecânico da iniquidade mundial engrossar” (1982: 53). Ela não desempenha papéis práticos ou de natureza utilitária, é verdade, mas como função da alma e veículo interior do amor cobre um raio de influência que acaba por se revelar essencial para promover a libertação e o apaziguamento dos seres sensíveis ao seu canto. Pelo menos desses.
VI.
CONCLUO, citando palavras de Jouve, em 1940 (tempo de guerra):
“Je proclame en ce lieu l’espoir, de sous la terre / Où tous mes frères inouïs sont ressemblés / Quand les faces convulsées de mort sont sur la terre…”
E duas estrofes do seu poema “Hymne”:
“Toujours je mangerai ton bien / Toujours je connaitrai ton centre / Toujours je verrai ton oeil peint / E j’aurai ta présence absente…
// La beauté traverse le temps / Le silence conquiert une arme / Je suis depuis longtemps ton sang / Ta pensée unie et ta flamme.” (1982: 53 e 57).
VII. REFERÊNCIAS
JOUVE, P. J. (1982). Apologie du Poète. Cognac: Le Temps Qu’il Fait.
SANTOS, J. A. (2022). “PESSOA REVISITED. Nova Versão revista e aumentada. A propósito de “Pessoa. Uma biografia de Richard Zenith”. In joaodealmeidasantos.com/Artigos-Ensaios, 12 de Outubro de 2022, Ponto IX.
O DISCURSO DOS POPULISTAS
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 12-2022
É UMA PALAVRA muito gasta, esta – populismo. Como a palavra “neoliberal” ou a palavra “resiliência”. Já cansa ouvi-las. Não há conversa que as não use. A dúvida é se quem as usa sabe exactamente o que está a dizer. Hoje é da palavra populismo que me ocupo. Não para fins historiográficos, mas para fins de análise política e comunicacional. Um contributo para pensar melhor a política, nos dias de hoje.
I.
O POPULISMO nasceu na Rússia, à esquerda, na segunda metade do século XIX, e procurava dar voz ao campesinato e às suas formas organizacionais, os muziks e a obshina. Achavam eles que a Rússia não tinha de seguir a via da industrialização e que o progresso poderia acontecer com a civilização rural, desde que se suprimissem as formas de dominação imperial e se criasse novas formas de organização social e de legitimação política. O que se seguiu na Rússia, a seguir à segunda “Terra e Liberdade” (1876), é conhecido – a social-democracia russa, a Grande Guerra e a revolução da Outubro, com a instalação no poder do sistema soviético, afinal, mais poder do Estado do que poder dos sovietes (1). Entretanto, e fruto da Guerra e da revolução de Outubro, nasceram na Europa movimentos populares de direita e de esquerda com forte capacidade política, uns contra a revolução soviética e os seus efeitos na geografia política europeia, outros a favor. Os partidos comunistas, por exemplo, o português e o italiano, nasceram em 1921. Todos eles reivindicando-se do povo contra as elites no poder, designadamente as elites liberais. De facto, o populismo é antiliberal, seja ele de esquerda ou de direita.
II.
MAS QUE POVO É ESTE? De que povo se reivindicavam uns e outros? Uma coisa é certa e tem razão François Furet, no seu belíssimo livro O Passado de uma Ilusão, quando diz que a Grande Guerra deu origem à entrada das massas na política. Ortega e Gasset, em “A Rebelião das Massas”, na segunda metade dos anos vinte, vai no mesmo sentido (2). E, em geral, os partidos radicais de direita e de esquerda é também dessa realidade que se ocupam – organizar as massas em torno de uma grande narrativa mobilizadora (a classe, a raça, a nação). Na verdade, a maioria dos regimes que tinham, até então, a responsabilidade de governar a Europa em crise eram regimes liberais, monarquias constitucionais, regimes de elite, onde poucos eram os que votavam e muito menos os que chegavam ao poder. Ou seja, eram regimes censitários, tendo o sufrágio universal sido lentamente adoptado ao longo no século XX. Havia sistemas representativos, não havia democracias representativas.
III.
O MUNDO posterior à Grande Guerra inaugura uma nova era política, dando origem a dois populismos, um de direita e o outro de esquerda. Ambos falavam em nome do povo e contra as elites. Ambos eram anti-liberais. Mas, repito, que povo era este? À esquerda, o povo dos oprimidos, “les damnés de la terre”, para usar a feliz expressão do Frantz Fanon (título da sua famosa obra de 1961), os proletários e os camponeses. À direita, o povo-nação a quem as elites, diziam, tinham subtraído o poder soberano. Só que, na verdade, a ideia de povo nunca está muito bem definida. Para a esquerda, há sempre os dominadores, que não são considerados povo, e há também outras faixas que não o são, mas que também são consideradas como não sendo propriamente povo. Aqui o povo está identificado com o conjunto das classes subalternas, com os explorados, os oprimidos. Em geral, o povo é um conjunto indeterminado de indivíduos (plêthos, um dos significados de dêmos) num determinado território, dentro de determinadas fronteiras. Mas, em sentido político, a noção estreita-se. Na Grécia antiga, fora da ideia de povo (dêmos, -ou), no seu sentido político, enquanto conjunto de cidadãos (polítai), estavam as mulheres, os escravos e os estrangeiros, embora a palavra grega tenha, em geral, uma ampla extensão semântica: país, comunidade, território, povo, em contraposição a notáveis, multidão (Dicionário grego-italiano Gemoll). Na verdade, o povo confundia-se com os membros da cidade com direito de pronúncia sobre os assuntos comuns – a Ecclêsía -, mas não era propriamente um conceito jurídico, como, segundo algumas interpretações, viria a acontecer em Roma com o termo “populus” (populus, plebs, plethos, multitudo – palavras usadas para designar os membros da cidade), mas um conjunto de pessoas físicas. Na verdade, o que em Roma parece ter existido como populus era uma colectividade de cidadãos titulares de direitos. Populus romano, cives romanos, os que possuem cidadania romana, com os respectivos direitos. A questão que se põe reside em saber se populus é o conjunto dos cidadãos titulares individuais de direitos (Jhering) ou é já uma entidade colectiva abstracta (como o Estado, sujeito de direito em si), titular de direito (e lugar de soberania) superior aos cidadãos singulares. Como quer que seja parece haver um real avanço na integração política do populus, do povo, entendido, na maior parte das interpretações, como o conjunto dos cidadãos titulares de direitos (a pluralidade dos cives), independentemente de também poder ser considerado ou interpretado como parte do sistema de poder romano (os magistrados, o Senado e o povo), de ser lugar de soberania e de se identificar com a própria ideia de Estado. A verdade é que a noção de povo, no sentido político, continuou a ser muito indeterminada.
IV.
NA ÉPOCA LIBERAL, dessa noção política continuavam excluídas as mulheres e os que não podiam exibir determinados rendimentos – veja-se, por exemplo, a 19.ª Emenda da Constituição americana, de 1920, e a distinção entre cidadãos activos e cidadãos passivos na Constituição francesa de 1791. Na óptica marxista e dos partidos comunistas, o povo está identificado com as classes subalternas, por oposição à classe dominante, a detentora do capital e dos meios de produção. No meio estava a indefinida pequena burguesia. Nos movimentos de massas do pós-Grande Guerra a ideia de povo é mais indiferenciada, mas em geral identifica-se, por um lado, com as massas e, por outro, com a ideia de nação. Nas democracias de matriz liberal que se regem pelo sufrágio universal o povo é constituído por todos aqueles que votam, excluindo apenas os que, afinal, são tutelados por estes, isto é, os menores de idade, que não votam. A noção política de povo tem variado, pois, na história e é entendida diferentemente pelas diferentes ideologias políticas. Na verdade, o correlato político, o outro lado do povo, mais definido, é o próprio Estado. Poder-se-ia dizer que é a condição de configuração como Estado que identifica o povo como entidade política. O povo político, a cidadania. Mas a verdade é que, enquanto tal, e mesmo no sentido político, a noção de povo não pode ser considerada unívoca e, assim, ser elevada a conceito. Quando muito é uma noção ou uma ideia um pouco vaga. E, todavia, tem sido uma ideia generalizadamente utilizada no discurso político, à direita e à esquerda. É uma ideia genérica que tem servido para muitos e diferentes fins políticos. Designadamente para o populismo.
V.
O QUE É, POIS, O POPULISMO, lá onde o povo é simultaneamente fonte de legitimidade e destinatário do discurso e da respectiva política? Em qualquer caso, o populismo postula um regresso à fonte primária da legitimidade e promove a crítica das instâncias de intermediação na gestão do poder. É um retorno às origens através de uma recondução mais directa do poder ao soberano primário, esse povo, feita mais através da personalização do que de mecanismos quantitativos de medida do consenso e da própria representação política. Back to the basics. Por isso, o seu modelo ideal é mais a democracia directa do que a democracia representativa. Nele, a soberania reside no povo e não tanto, como quer a generalidade das constituições liberais, na nação. No essencial, o que esta posição critica é a separação de quem exerce o poder da fonte originária da sua própria legitimidade, ou seja, o domínio da burocracia e a prática generalizada da reprodução no poder por via endogâmica. As duas faces de uma mesma moeda. A personalização classicamente assumiu a forma do carisma num chefe oracular capaz de interpretar não só o sentimento popular, mas também os desígnios da história, quer seja por inspiração oracular quer seja por interpretação (científica) da verdade histórica. Isto aconteceu na era das grandes narrativas, que teve a sua época de ouro no período entre-guerras: fascismo, nacional-socialismo, comunismo – Duce, Caudillo, Fuehrer, Secretário-Geral. Em Portugal o líder, Oliveira Salazar, não tinha uma designação específica, era simplesmente conhecido como “O Botas”.
VI.
DURANTE MAIS DE SETE DÉCADAS, no pós-Segunda Guerra, assistimos, primeiro, a um mundo bipolar (político, ideológico, estratégico e económico) e, depois, ao aparente triunfo universal da democracia representativa (o chamado fim da história, de Fukuyama), com a queda do sistema socialista, à excepção do sistema chinês, que, mantendo o seu sistema político intacto, todavia, iniciou um percurso de superação da economia de plano a caminho de uma economia de mercado, com expansão mundial. O que, entretanto, se começou a verificar do lado de cá, com a crise da representação e dos partidos da alternância, foi a irrupção de tendências nacional-populistas (sobretudo de direita) com forte capacidade de afirmação política institucional, quer nos Estados Unidos (com a vitória e a presidência de Donald Trump) quer na Europa, com Viktor Orbán, na Hungria, Jaroslaw Kaczynski, na Polónia, Marine Le Pen, na França, os Brexiters, na Inglaterra, Giorgia Meloni, Matteo Salvini e Beppe Grillo, em Itália. Este último representante de um populismo de novo tipo, mas que se distanciava ostensivamente da clássica tópica esquerda-direita. Sim, o fracassado M5S (pelo menos na sua forma original, uma vez que está a recuperar com uma nova identidade sob a liderança de Giuseppe Conte: 16,7%) inaugurou, de forma bastante exuberante, uma nova era no populismo sob a forma de neopopulismo digital (3). Mas neopopulismo digital é também aquele que, silenciosamente, praticam, na rede, os nacional-populistas de Steve Bannon, como já se viu.
VII.
O QUE NO POPULISMO MUDOU em relação à sua forma original, foi não só a sua base de apoio (deixou de ser rural), mas também a forma política que os movimentos populistas adoptaram, aceitando a democracia representativa, mas transformando-a internamente para instalar o seu sistema de poder (4). No caso do M5S tratou-se de um neopopulismo cujo povo se identificava com os users da plataforma digital Rousseau e, mais em geral, com o povo da rede. Nos outros casos, a base foi o soberanismo, o que mais se identificava com o sentimento nacionalista e, em particular, o que, em nome da segurança física e da segurança dos postos de trabalho, se manifestava intensamente contra a ameaçadora imigração, contra o outro, contra o invasor. Este sentimento parece ter prevalecido, por exemplo, no BREXIT. Um povo que cresceu muito com a onda gigante dos fenómenos migratórios resultantes da crise do grande Médio Oriente (Iraque e Síria). Mas é evidente que, com este fenómeno, com a crise da representação e com o gigantesco crescimento do povo da rede e, em particular, o povo das redes sociais, algo mudou em profundidade e está a mudar neste panorama. É certo que a ideia de “democracia do público”, centrada no império dos media na formatação da opinião pública, continua a manter a sua validade, mas também é verdade que, como diz Castells, com a rede está a emergir uma nova democracia de cidadãos centrada naquilo que ele designa por “mass-self communication”, comunicação individual de massas (Castells, 2007), também ela sujeita ao perigo de um processo de instrumentalização personalizada, como se viu nos casos do Brexit e da candidatura de Donald Trump, onde a Cambridge Analytica orientada pelo seu vice-presidente, Steve Bannon, condicionou fortemente e com sucesso o eleitorado em ambos os países (veja a este respeito o ensaio de Cadwalladr & Graham-Harrison, 2018). Se este terreno torna possível evoluir da democracia representativa para a democracia deliberativa, ele também é terreno muito favorável à intervenção do nacional-populismo através da injunção directa sobre os eleitores singulares nesse imenso campo silencioso, ou espaço intermédio, da rede. E isto não é futurologia, porque já foi feito com sucesso, continua e continuará a ser feito.
VIII.
É ESTE O TERRENO em que os novos populistas têm estado a intervir com maior sucesso do que as forças políticas moderadas. E é este o campo do seu discurso. A democracia clássica ainda não evoluiu para a democracia deliberativa porque os que mais deviam fazer por ela estão como que paralisados numa gestão asséptica do poder. Esta, de resto, é a única que pode resolver os problemas estruturais do modelo clássico da democracia representativa, mas a direita radical compreendeu melhor a nova configuração das sociedades contemporâneas e os seus temas fracturantes, incluídos os que hoje são representados pela ideologia woke (5), estando a gerir com inteligência o seu discurso e a adaptar com grande eficácia os mecanismos centrais do sistema representativo aos seus desígnios, alterando os seus equilíbrios internos. O caso de Viktor Orbán é exemplar. O caso da Cambridge Analytica também. Mas exemplar foi também a experiência do M5S quando, em menos de dez anos (entre 2009 e 2018), consegue elevar o seu score eleitoral a quase 33 por cento do eleitorado italiano. A que acresce ainda a experiência da LEGA de Matteo Salvini, que, explorando à exaustão o tema da imigração, chegou a atingir, nas europeias de 2019, cerca de 34 por cento do eleitorado. E ainda os Fratelli d’Italia que, em quatro anos, passam de pouco mais de 4 por cento para cerca de 26 por cento, estando hoje, já no governo, a crescer (média nas seis sondagens mais recentes: 28,5 por cento), enquanto o centro-esquerda e o centro-direita definham a olhos vistos (PD: 17 por cento).
IX.
ESTA É A REALIDADE que o centro-esquerda e o centro-direita teimam em não ver, pondo em risco uma conquista da civilização ocidental que, por entre avanços e recuos, levou mais de dois séculos a amadurecer para chegar a níveis de desenvolvimento civilizacional verdadeiramente notáveis. O populismo está na ordem do dia, tem como adversário histórico o liberalismo e como adversário político conjuntural e directo a ideologia e a política woke, que, de resto, para efeitos de combate identifica instrumentalmente com aquela doutrina, apesar da diferença matricial que as separa. Os italianos têm um expressão que se aplica eficazmente a este truque da direita radical: “fare di tutta l’erba un fascio”, meter tudo no mesmo saco para tornar o combate mais eficaz e aceitável, conhecendo muito bem o laxismo das forças moderadas, que se estão a deixar vergonhosamente infiltrar ou mesmo dominar por esta pretensa “nova esquerda” progressista e revisionista de largo espectro. Cabe, pois, aos defensores da democracia representativa e da matriz da nossa própria civilização acordarem, sim, acordarem para uma realidade que é por demais evidente, procurando repor uma hegemonia que está a ser tão tristemente perdida pelas piores razões. Mas não tenho grandes ilusões acerca de um combate para o qual parece não estarem realmente preparados.
X.
1. REFERÊNCIAS
CADWALLADR, C., & GRAHAM-HARRISON, E. (2018). “The Cambridge Analytica Files”. In The Guardian. Consultado a 17 de março de 2019, em https:// http://www.theguardian.com/news/series/cambridge-analytica-files.
CASTELLS, Manuel (2007). “Communication, Power and Counter-power in the Network Society”, in International Journal of Communication, n. º1 (2007), pp. 238-266.
CERRONI, U. (1965). Le Origini del Socialismo in Russia. Roma: Riuniti.
FURET, F. (1995). Le Passé d’une Illusion: Essai sur l’idée communiste au XXème Siècle. Paris: Éditions Robert Laffont/Calmann Lévy.
ORTEGA Y GASSET (1930). La Rebelión de las Masas. Ciudad del México: La Guillotina.
SARTORI, G. (2009). La Democracia em 30 Lecciones. Madrid: Taurus.
2. NOTAS
(1). Há um livro belíssimo de Umberto Cerroni sobre As Origens do Socialismo na Rússia que desenvolve este tema (Roma, Riuniti, 1965).
(2). Veja, para ambas as referências, neste site, o meu artigo de 15.11.2022 sobre o PCP (“PCP – O Nome e a Coisa”), em particular as citações de Ortega y Gasset.
(3). Para uma melhor compreensão do MoVimento5Stelle veja o meu ensaio em ResPublica, 17/2017, pp. 51-78.
(4). Veja aqui, neste site, o meu recente artigo sobre “A Democracia Iliberal”, de 07.11.2022
(5). Veja aqui, neste site, o meu recente ensaio “WOKE”, de 14.12.2022, sobre esta ideologia.
WOKE
Por João de Almeida Santos

“Woke”. JAS. 12-2022
WOKE. A ideologia woke o que é? É uma ideologia? Sim, é, e tem todas as características de uma ideologia: uma visão parcial da realidade que aspira a tornar-se norma de comportamento universal, invertendo a ordem das coisas. Etimologicamente, deriva de wake, woken (acordar, acordado). E há duas referências que importa assinalar: o famoso artigo de William Melvin Kelley no New York Times, em Maio de 1962, “You’re woke, dig it” e o activismo do movimento Black Lives Matter. Segundo Juan Meseguer, este movimento “combate a injustiça social, mas também tudo aquilo que considera fonte de opressão: a heteronormatividade, o ‘privilégio cisgénero’, o modelo da família nuclear, o capitalismo, etc.” (Meseguer, 2022). A ideologia wokerefere-se, pois, à injustiça racial e social, podendo-se mesmo entendê-la como uma vasta moldura que integra a política identitária, o politicamente correcto, a famosa teoria crítica da raça e, em geral, a luta contra a discriminação de género, racial e de orientação sexual. A ideologia woke é protagonizada por uma certa esquerda de elite e de um bom nível económico. Não representa necessariamente, do ponto de vista sociológico, os grupos sociais a que se aplica. É uma ideologia de vanguarda e tem todas as características de uma ideologia: apresenta-se como uma mundividência com valor universal, apesar de ela própria combater o universalismo. Sim, a ideologia woke, a que nos diz para estarmos acordados, atentos, congrega a política identitária, a ideologia de género, o antirracismo radical, o revisionismo histórico, o politicamente correcto, a cultura do cancelamento, o triunfalismo e o orgulho LGBT, o maximalismo da velha teoria da diferença sexual (tão em voga em Itália nos anos oitenta), o multiculturalismo radical. É forte no mundo universitário e já penetrou em importantes instituições nacionais e internacionais. Identifica-se como a nova esquerda e, mais uma vez, o seu adversário histórico é o liberalismo. O mesmo que, curiosamente, é também o adversário histórico da direita radical. A história repete-se mais do que parece, como veremos.
1.
COM CERTEZA que devemos estar atentos às injustiças raciais, sociais e de género, mas também devemos estar atentos às próprias formas de combate, seja à esquerda seja à direita. E esta é a razão por que escrevo este pequeno Ensaio. Sim, atentos desde que estar atento não signifique partilhar formas absolutas de intolerância que ponham em causa o universalismo que integra a matriz da nossa civilização, fonte de tantos e reconhecidos progressos civilizacionais, provavelmente os maiores que o mundo alcançou até hoje, e que promovam uma lógica de antagonismo radical, sucedânea da luta de classes, como lei fundamental da sociedade. Porque é disso que se trata. Na verdade, a matriz da nossa civilização acolhe a diferença e procura integrá-la, exprimindo-a em cartas universais de princípios que são já património mundial: a Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000-2009. E esta matriz não é mesmo compatível com formas de policiamento da linguagem e do pensamento, com a intolerância moral e histórica, com a dialéctica negativa amigo-inimigo como lei fundamental da realidade societária, com o cancelamento da temporalidade histórica e a absolutização do presente como norma selectiva do passado, com a fragmentação identitária da sociedade ou com o neocorporativismo orgânico, disfarçado de religião da igualdade.
2.
O COMBATE WOKE ao universalismo de matriz liberal é uma discriminante fundamental que precisa de ser clarificada. Pelas razões que Juan Meseguer evidencia de forma muito clara e correcta:
“Nos anos oitenta, um grupo de juristas jovens retomaram a preocupaçãp de Derrick Bell (…) para demonstrar como o Direito servia para mascarar o ‘racismo sistémico’ ou ‘institucional’ (…) Inspirando-se na teoria crítica da Escola de Frankfurt, de orientação neomarxista, estes juristas propõem o estudo crítico do Direito e tentam demonstrar como a moldura jurídica da democracia liberal joga a favor da ‘hegemonia branca’ através de ideias como o Estado de direito, a objectividade da lei, a neutralidade do Estado ou o mérito” (Meseguer, 2022).
Ora aqui está uma boa formulação do problema: um claro desafio aos fundamentos da ordem liberal. A mesma que está na matriz da nossa ordem civilizacional. Mas esta visão não é nova. Já os românticos os combateram, ao combaterem o iluminismo, o liberalismo e o legado da Revolução Francesa. É famosa a afirmação de Joseph de Maistre, nas Considerações sobre França, de 1797, sobre este legado: “A constituição de 1795, como em todas as suas predecessoras, é feita para o homem. Ora não existe homem no mundo. Vi na minha vida Franceses, Italianos, Russos, etc.; até sei, graças a Montesquieu, que é possível ser persa; mas, quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei na minha vida; a não ser que exista sem que eu saiba” (De Maistre, 1829: 94). E de que falam estas constituições? De direitos do homem. Em comentário a esta posição, Karl Mannheim, no seu excelente Conservative Thought, junta-lhe, depois, uma afirmação vinda da esquerda, de Marx, na Introdução à Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito: “Mas o homem não é um ser abstracto, aninhado fora do mundo” (“Aber der Mensch, das ist kein abstraktes, ausser der Welt hockendes Wesen”, Marx, 1981, I, 378). Há nesta posição uma evidente identidade entre os conservadores e a esquerda marxista, de resto já assinalada por Mannheim na obra que referi: a recusa do homem abstracto, político, artificial, alegórico, sob forma de cidadão (por exemplo, em Sobre a Questão Hebraica, 1981, I, 369-370). Com efeito, Marx, na Kritik des Hegelschen Staatsrechts e em Zur Judenfrage, desenvolve uma crítica estrutural quer do Estado representativo, como formulado por Hegel nos Princípios de Filosofia do Direito (1976), quer dessa universalidade abstracta e irreal do cidadão. No fundo, o que ele diz é que esta universalidade irreal(unwirkliche Allgemeinheit) e abstracta aprofunda a separação, o fosso entre o cidadão (Staatsbuerger) e o homem concreto e privado (Lebendigen Individuum), permitindo que as desigualdades efectivas se intensifiquem e reproduzam na sociedade civil, no lugar próprio do homem privado e egoísta, legitimando e preservando, deste modo, a ordem instalada. Esta universalidade abstracta fora teorizada pelos contratualistas e, depois, embora de forma diferente, precisamente por Hegel, naquela obra. Ora é precisamente por aqui que, consciente ou inconscientemente (com ou sem Harvard a legitimá-los cientificamente), navegam os identitários, embora alargando a esfera das identidades ou dos sujeitos históricos para além do indivíduo concreto ou da classe social, por exemplo, à mulher ou à raça, enquanto comunidades. Mas há mais. Em relação à universalidade do direito, desenvolveu-se mesmo uma doutrina marxista do direito (o chamado direito soviético) que reconduz o ordenamento normativo à classe dominante. Falo de Pashukanis, de Stuchka e de Vishynsky, entre outros, este último o famoso procurador-geral de Stalin. O que diziam eles? Que o direito é de classe, não universal. Ou burguês ou operário e socialista. Mas de classe. Um identitarismo de classe, aqui não de raça ou de género, mas mais geral e abstracto, no qual assentaria a redenção futura do ser humano, através da reapropriação da sua identidade, através da reabsorção daquele cidadão abstracto no ser humano concreto e emancipado, enquanto tal (na sociedade sem classes), promovida por este sujeito histórico axialmente centrado na verdadeira linha evolutiva da história, a classe operária. Esta posição está muito bem exposta no famoso livro de Lukács, História e Consciência de Classe, de 1923. Todos os teóricos do direito soviético consideram que a universalidade do direito é uma ficção para mascarar o efectivo domínio de classe (independentemente das discussões que houve sobre saber se o direito era, ou não, um ordenamento normativo). Posição que viria a ser totalmente refutada nos anos cinquenta por Hans Kelsen no célebre livro sobre A Teoria Comunista do Direito (Kelsen, 1981). O que daqui resultou foi que o sujeito da história era uma classe, uma concreta identidade, que se afirmaria por supressão de outra identidade (a burguesia), no interior de uma dialéctica negativa (a da luta de classes).
3.
POR QUE RAZÃO falo disto? Porque a política identitária também nega esta universalidade,considerando-a fictícia, enganosa e instrumental, em nome da verdade que se exprime nas diversas identidades que compõem o corpo social, sejam elas de género, étnicas ou de orientação sexual. O facto é que, segundo Kelsen ou Bobbio, o direito (e para além do conteúdo concreto das normas) tanto pode ser válido numa formação social capitalista como socialista, precisamente porque não é de classe nem pode ser identificado com um sujeito histórico em particular. Mas a sociedade, contrapõem os identitários, como já o fizeram os marxistas, não se resolve na abstracção normativa, que cobre o real domínio de uma raça sobre outra ou de um género sobre outro, tornando-se necessário promover uma viragem que ponha no centro do discurso as identidades sufocadas por essa ficção da universalidade abstracta da lei ao serviço do domínio dos mesmos de sempre (brancos e homens). E a linguagem torna-se, por isso mesmo, decisiva, sendo imperativo e urgente proceder à sua revisão institucional para a corrigir e a tornar politicamente correcta. O mesmo vale para a história, que conta a longa dominação de uns pelos outros, tornando-se necessário proceder também à sua revisão institucional e ao cancelamento dos seus símbolos mais odiosos, aos seus testemunhos de rua, de praça ou de museu, nas cidades por esse mundo fora (revisionismo histórico). É, pois, também urgente e necessário reconhecer as sociedades como realidades multiculturais integradas por identidades ou sujeitos irredutíveis ao velho universalismo abstracto, irreal e artificial. Esta ideologia woke é animada por um revanchismo histórico que põe no centro do discurso as diversas identidades, anulando a sua pertença a uma dimensão integradora e comum, logo, universal. O Estado e o direito têm essa dimensão e, por isso, falam esta linguagem. O direito, por exemplo: a lei é geral e abstracta. É essa a regra e não a excepção, ao contrário do que dizem os identitários e os apóstolos da ideologia woke. Precisamente porque quer o Estado quer o direito são universais e constituem a unidade da diversidade, o uno do múltiplo, o comum do diferente, tornando assim possível a promoção da intercambialidade entre aquilo que é diferente, entre as diferentes identidades, partilhando e participando no que é comum. E é comum enquanto forma reguladora das relações sociais (independentemente do conteúdo concreto da norma). Pelo contrário, elevar a diferença a norma significa torná-la irredutível, convertendo, deste modo, a lei social em dialéctica do conflito por falta de terreno comum para a partilha e a composição de interesses e valores. Alguém disse, e com razão, que as identidades não são negociáveis e por isso a sua lei é a do conflito permanente (Patrícia Fernandes; Fernandes, 2022). A narrativa contratualista sobre o Estado e sobre o direito (centrada na ideia de interesse) ou a sua conceptualização hegeliana (centrada numa exigência lógica) tinham precisamente este objectivo: resolver superiormente a guerra de todos contra todos, dando unidade à diversidade caótica da sociedade civil. É precisamente esta unidade que torna possível a afirmação livre e pacífica de todas as diferenças, a sua intercambiabilidade, o compromisso e a composição de interesses. Um terreno comum de negociação, portanto. E hoje este terreno comum até tem uma tradução constitucional, que se funda precisamente no património universal dos princípios constantes das cartas universais. Juergen Habermas, falando da União Europeia e das identidades nacionais que a integram, propôs um “Verfassungspatriotismus”, um “patriotismo constitucional” referido a um universo comum (a constituição) que torne possível a livre expressão de todas as identidades, nacionais, étnicas, regionais, de sexo, de língua, etc., etc. (Habermas, 1991: 132). Pelo contrário, a política identitária não tem chão comum, precisamente porque nega esta universalidade e afirma a primazia das identidades sobre a lógica e a unidade societária, ao identificá-la como pura máscara do domínio do homem branco e masculino sobre a raça negra e sobre a mulher ou sobre outras identidades. Como se só uma viragem, que antes se chamava revolução, pudesse acabar com esta evolução por inércia do domínio histórico de um sobre todos (homem e branco), através do artifício da pretensa universalidade. As identidades, sendo irredutíveis, inegociáveis e não intercambiáveis, por falta de um espaço comum, desencadeiam uma lógica que só pode ser a da dialéctica amigo-inimigo, a lógica do conflito radical que visa a aniquilação do outro, precisamente como se verificava com a luta de classes: a eliminação da burguesia. O universalismo encobre o domínio de uns sobre os outros e é nele que se centra a representação política, a passagem do particular para o universal, do indivíduo para o cidadão, da sociedade civil para o Estado e para o ordenamento jurídico. Acabar com um significa acabar com a outra, repondo a centralidade das múltiplas identidades como expressão orgânica ou corporativa de interesses e valores próprios. Entramos, assim numa lógica puramente corporativa que anula a representação e a individualidade singular e repõe a centralidade e a exclusividade da pertença comunitária. Não se vê deste modo como poderá falar-se de interesse geral e de vontade geral, uma vez que estes conceitos implicam um plano que só pode ser o de uma universalidade integrativa, que tem na constituição a sua carta expressiva, a única que, aliás, pode permitir uma pacífica dialéctica de identidades, com os seus interesses e valores, desde que no interior de um efectivo “patriotismo constitucional”.
4.
O QUE AQUI TEMOS, na ideologia woke, é, de facto, uma alteração substancial do sistema representativo ou mesmo a sua supressão: não há “representação política” do indivíduo singular, mas a projecção institucional da comunidade em que se integra (somente através dela a singularidade pode ser reconhecida), numa lógica corporativa ou de comissariado; não há “mandato não imperativo” porque este resulta de uma separação ou corte entre a génese do mandato e o mandato propriamente dito, como acontece no sistema representativo clássico; o mandato deixa de se referir à nação ou ao povo, mas sim à identidade, ao sujeito identitário, ou seja, não é universal, como o “mandato não imperativo”. Mesmo assim, coisa bem diferente era a classe como identidade ou sujeito, pois ela coincidia com a totalidade, ou seja, ocupava o eixo histórico evolutivo da história, como teorizado por Lukács na obra acima referida, não correspondendo a concretas determinações, como a de raça ou a de género, por exemplo, porque a classe podia integrar em si todas as determinações que hoje são diferenciadas como identidades ou sujeitos sociais comunitários. E só por isso a teoria podia postular que no fim as diferenças de classe iriam desaparecer, na “sociedade sem classes”. O que é de todo inconcebível com as identidades – por exemplo, a extinção dos géneros ou das raças. Estas são as consequências desta teoria elevada a modelo de sistema social, não contendo sequer alguns dos pressupostos que a teoria marxista podia apresentar, ao elevar a classe a sujeito histórico apontado ao futuro. Mas estas são características das chamadas teorias críticas, que mais não são do que puras ideologias de combate. E, por isso mesmo, elas devem ser combatidas com as armas da crítica, sim, mas também com as da democracia representativa.
5.
ESTA CONVERSA, como se vê, tem barbas e nada tem de original. E até possui menos coerência do que as suas antecessoras. O que foi (ou foram) e onde levou (ou levaram) todos sabemos. E onde levará, se a cavalgada da ideologia woke continuar, também todos sabemos. Os únicos que parece não saberem são os tradicionais partidos da alternância que já se deixaram infiltrar, à grande, por esta falsa esquerda pós-moderna que hoje se tornou o principal alimento do combate da direita radical, com os sucessos que todos lhe conhecemos. Se quisermos encontrar entre nós esta presença da linguagem “woke” basta ler alguns projectos de revisão constitucional que estão em debate parlamentar. Com uma agravante: a direita radical atribui esta mundividência a forças políticas que na sua matriz nada têm a ver com a ideologia woke ou a política identitária, mas que se deixaram seduzir por elas quando lhes faltou o conteúdo ideal que não souberam renovar ou que trocaram por um pragmatismo de governo axiologicamente asséptico e em molho “algebrótico”, como diria um psicanalista meu amigo, ao resumir, com uma só palavra, o linguajar exclusivo dos números e das estatísticas que a maior parte dos políticos exibe a propósito e a despropósito. As linhas de força deste universo problemático estão aí bem visíveis e se as forças moderadas que se reconhecem na matriz moderna do nosso quadro civilizacional não puserem cobro a esta cavalgada será a direita radical a promover o seu combate e a ganhar com isso fortes consensos eleitorais que continuarão a levá-la ao poder, como tem vindo a acontecer.
BIBLIOGRAFIA
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SANTOS, J. A. (1999). Os Intelectuais e o Poder. Lisboa: Fenda, pp. 71-87.
“A DEMOCRACIA ILIBERAL”
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 12-2022
TALVEZ O CONCEITO de “democracia iliberal” não seja, como parece, um oxímoro, porque há uma democracia que não é liberal: a democracia directa. Por exemplo, a que se exprime através dos referendos. De resto, ela até começou como democracia de assembleia, na Grécia – democracia não representativa, muito restrita nos direitos políticos (só os polítai participavam, excluindo mulheres, escravos e estrangeiros) e onde a comunidade subsumia os indivíduos singulares, ao contrário do sistema representativo liberal que aponta para a centralidade do indivíduo singular: “um homem (literalmente), um voto” (veja a diferença no famoso discurso de Benjamin Constant no Ateneu Real de Paris, em 1819). Como diz Sartori, em “Elementos de Teoria Política”: para os gregos o homem identificava-se com o cidadão, e a cidade precedia-o: “era o polítes quem devia servir a polis, não a polis o polítes”. Pelo contrário, na moderna democracia representativa é o Estado que está ao serviço dos cidadãos, não os cidadãos ao serviço do Estado (2008, p. 40). Mas, verdadeiramente, não é esta a questão. A “democracia iliberal” mantém-se representativa, não propondo propriamente uma democracia directa, mas promove profundas distorções no sistema institucional. Por exemplo, lá onde o poder executivo se agiganta e sai fora das margens da separação dos poderes e dos princípios que animam a visão liberal do sistema representativo. Bom, o regime liberal no início nem era democrático e, portanto, não se identificava com a democracia, uma vez que era censitário e até proibia, com pena de prisão, a publicitação dos actos do poder legislativo, restringindo a liberdade e os direitos. É ver, por exemplo, o crime de breach of privilege para quem, no século XVIII, na Inglaterra, publicasse os debates parlamentares (veja o que diz Habermas no seu livro Strukturwandel der Oeffentlichkeit, de 1962). O que tínhamos no início da nossa modernidade era, na verdade, um sistema representativo, isso, sim, mas não uma democracia representativa, porque não havia sufrágio universal, mantendo-se muito limitado o número de cidadãos com direitos políticos e muito restrita a circulação de informação. Mas o sistema representativo e o Estado de direito, contra o regime do privilégio, foi um passo de gigante que haveria de ser completado com o sufrágio universal e com as cartas universais de direitos, uma logo em 1789, em França, e a outra em 1948.
I.
MAS QUEM VIU bem o problema que se insinua no conceito de “democracia iliberal”, já na primeira metade do século XIX, e previu esta possível evolução, foi Alexis de Tocqueville na sua magnífica obra “Da Democracia na América” (1835-1840), quando falou de “tirania da maioria” (Tocqueville, 2001). E é precisamente num sentido muito próximo do que, a este respeito, escreveu Tocqueville que se estão a desenvolver algumas experiências na própria União Europeia, por exemplo, na Hungria ou na Polónia. Por enquanto, não ainda em Itália. Só que o nome, agora, já não é o de “tirania da maioria”, mas o de “democracia iliberal”, a que alguns, seguindo mais de perto o caminho traçado por Tocqueville, também já designam por “autoritarismo maioritário” ou “maioritarismo extremo” (Thierry Chopin, Nadia Urbinati). Nadia Urbinati: “Il populismo al potere rende la democrazia un maggioritarismo estremo” (Anselmi, Blokker, Urbinati, 2018: 31). Não está em causa o sistema representativo, mas, sim, outras variáveis do sistema. E o pano de fundo é o “populismo de governo” (Pierre Rosanvallon) ou, mais em geral, o populismo ou o neopopulismo, devidamente mitigados ou acomodados à democracia representativa. Neopopulismo porque, em boa verdade, o populismo original nasce, à esquerda, na Rússia rural, precisamente como socialismo rural e tendo como seus primeiros inspiradores Herzen e Chernyshevski e como seus primeiros núcleos organizativos a primeira e a segunda “Terra e Liberdade” (constituídas, respectivamente, em 1861 e em 1876). Os seus referentes eram os camponeses pobres, os muziks, e a obschina (sobre este assunto veja o belo livro de Umberto Cerroni, Le origini del socialismo in Russia – Cerroni, 1965). Uma matriz bem diferente da que hoje inspira os novos populismos. Há experiências neopopulistas cujo “povo”, eminentemente urbano e economicamente confortável, é possuidor de uma boa literacia digital. O primeiro M5S, em Itália, de Beppe Crillo e Gianroberto Casaleggio, representava precisamente esse neopopulismo e dizia-se nem de direita nem de esquerda (o M5S actual, de Giuseppe Conte, já é outro). E há o plutopopulismo, o populismo dos ricos, de que Trump é o ícone máximo (“I am your voice”, terá dito, referindo-se aos americanos). O populismo moderno ganhou um rosto diferente daquele que era o seu nas origens. E este, o que anima a “democracia iliberal” ou o “autoritarismo maioritário”, também mudou de rosto ou mesmo de pele.
II.
O QUE DIZIA realmente Tocqueville? Vejamos algumas das formulações sobre o “despotismo da maioria”, a “tirania da maioria” ou a “omnipotência da maioria”, que constam da obra acima referida:
- «A omnipotência da maioria, nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que favorece o despotismo legal do legislador, favorece também a arbitrariedade do magistrado», porque trata os cidadãos como seus súbditos (2001: 302-303; itálico meu).
- «Actualmente, e assim será ainda durante muitos anos, o perigo mais temível é a tirania dos legisladores» (2001: 309-310; itálico meu).
- «Não há monarca tão absoluto que consiga reunir nas suas mãos todas as forças da sociedade, eliminando resistências, como o pode fazer uma maioria revestida do direito de redigir as leis e de as pôr em prática». «A maioria (…) possui uma força a um tempo material e moral, que tanto age sobre as acções como sobre as vontades, e que impede a acção e, ao mesmo tempo, o desejo de a realizar» (2001: 303-304).
- «Na América, a maioria encerra o pensamento dentro de um círculo de ferro» e «a tirania(…) nas repúblicas democráticas (…) já não se ocupa do corpo; vai directamente à alma» (itálico meu).
- «Quando eclodiu a revolução americana (…) a opinião pública dirigia as vontades e não as tiranizava» (2001: 306; itálico meu).
- «Se algum dia se perder a liberdade na América, deveremos atribuí-lo à omnipotência da maioria, que terá conduzido as minorias ao desespero, obrigando-as a apelarem à força material. Encontraremos então a anarquia, mas ela chegará como consequência do despotismo» (2001: 309; itálico meu).
Tudo isto poderia ser resumido numa só formulação:
«quando sinto a mão do poder pesar-me na cabeça, pouco me interessa saber quem me oprime e não me sinto mais disposto a submeter-me ao jugo só pelo facto de ele me ser apresentado por um milhão de braços» (2001: 498).
Separação de poderes; forte afirmação do corpo de juristas, das leis e do poder judicial; comunidades locais fortes, com as suas associações, e uma imprensa local livre; igualdade de condições num território ilimitado, rico e pleno de oportunidades individuais; Estado federal, que conjuga e harmoniza a grande dimensão com a pequena; hábitos e costumes dos americanos, destacando-se dentre eles a religião.
São estes, para Tocqueville, os ingredientes cujo desenvolvimento pode impedir que venha a afirmar-se uma efectiva «tirania da maioria”.
Na verdade, é disto que se trata nas chamadas “democracias iliberais”: a criação de condições que possam permitir o domínio absoluto do executivo sobre todos os outros poderes, mantendo o sistema representativo (ainda que deformado).
III.
COMO PODEREMOS FORMULAR hoje a questão da «tirania da maioria»? Vejamos, com Giovanni Sartori, em Democrazia: Cosa è (2000: 93-96). Segundo ele, a «tirania da maioria» pode ser entendida em três sentidos: a) no sentido constitucional; b) no sentido eleitoral; e c) no sentido social.
No primeiro sentido, constitucional, consiste em violar os direitos das minorias, aplicando de forma absoluta o princípio maioritário. Portanto, quando não se verifica um exercício moderado ou limitado do princípio maioritário, estamos perante uma «tirania da maioria».
No segundo sentido, eleitoral, o que se verifica é uma espécie de «tirania dos números», uma vez que, não conseguindo eleger representantes, a minoria é institucionalmente eliminada. Este caso tem muito a ver com os sistemas eleitorais, designadamente, com a sua capacidade de dar maiores ou menores possibilidades às minorias de conseguirem eleger seus representantes. Sabemos que um sistema proporcional é, por isso, mais limitativo desta possibilidade de «tirania da maioria», no sentido eleitoral, do que um sistema maioritário, uma vez que está configurado para facilitar uma integração institucional proporcional das minorias e uma menor perda de votos para efeitos de contagem de mandatos. Tem defeitos, mas esta é uma sua vantagem.
No terceiro sentido, social, que é certamente aquele em que pensava Tocqueville, estamos perante o esmagamento da liberdade individual de pensamento perante a força do pensamento social maioritário, ou seja, perante uma espécie de opressão simbólica societária sobre o indivíduo. Para resolver esta distorção, o esforço deveria, por isso, ser dirigido não só à separação e autonomia recíproca dos poderes, à garantia de representação política das minorias, mas também à sua defesa, designadamente através dos instrumentos, muito americanos, associativos e dos poderes locais. Não é por acaso que Tocqueville valoriza tanto o associativismo quer político quer civil ou social. De facto, se a igualdade de condições tende a atomizar os indivíduos, uma vez que anula as «ordens» e as classes, libertando os indivíduos singulares dos vínculos orgânicos, também é verdade que, atomizando-os, os isola e lhes retira força social. Ora, só o associativismo pode recuperar a força que perderam, sobretudo se ele tiver uma sua forte expressão na imprensa, como seu cimento imaterial, como instrumento de ligação associativa metaterritorial e metapessoal. De outro modo, o indivíduo encontrar-se-á subjugado pelos ditames e tendências da maioria.
IV.
SABEMOS, aliás, que estas tendências têm vindo a ser reconhecidas no âmbito das teorias da comunicação, das chamadas teorias dos efeitos. Já em fins do século XIX Gabriel Tarde incorporava esta tendência nas suas leis da imitação. Mas ainda hoje, por exemplo, a teoria da «Espiral do silêncio» mais não é do que o reconhecimento do poder condicionante da opinião maioritária sobre o indivíduo singular e dos seus efeitos políticos e sociais. Imaginemos, agora, que esta maioria absoluta é usada para expandir a um nível quase absoluto um dos três poderes, ou seja, o do executivo, e poderemos encontrar o melhor modo de elevar não só a opressão simbólica societária, mas também a própria configuração do poder, a níveis democraticamente insustentáveis. O regime português do Estado Novo tem características muito parecidas com estas. Mas os exemplos que são regularmente referidos são o da Hungria do senhor Viktor Orbán e o da Polónia do senhor Kaczynski (não o Unabomber, claro, mas o líder do partido “Lei e Justiça”).
A preocupação de um liberal e democrata como Tocqueville pela questão da liberdade individual de pensamento perante as tendências sociocráticas da opinião maioritária é compreensível. Como é compreensível que, por estas mesmas razões, se tenham verificado tendências liberais hostis ao próprio pensamento democrático, visando limitar a tendência para o igualitarismo.
V.
É CLARO que a «tirania da maioria» encontra hoje obstáculos difíceis de transpor, sobretudo nos actuais sistemas onde as sociedades civis são muito mais robustas e onde encontramos partidos de massas que se alternam em ritmo cada vez mais rápido no poder. Mas esta dificuldade parece estar a ser superada pelos partidos populistas e pelas chamadas “democracias iliberais”, inimigos declarados do liberalismo, tendo aprendido a conviver com a democracia representativa, usando os seus mecanismos centrais a seu favor, isto é, aceitando as eleições, mas condicionando-as e anulando o equilíbrio dos poderes a favor de um executivo todo-poderoso que interfere em todas áreas institucionais do poder com vista à sua reprodução, ou seja, reduzindo o poder judicial, o parlamento e as instâncias institucionais independentes a meras próteses do poder executivo e do respectivo líder, preferencialmente carismático, fonte máxima da legitimidade do poder, enquanto oráculo do povo. Thierry Chopin define assim a chamada “democracia iliberal”:
” Este tipo de regime político caracteriza-se, pelo menos, por três atributos: a referência à soberania do povo como fundamento exclusivo da legitimidade democrática do poder; com base na legitimidade conferida pelas eleições e pelo voto maioritário dos cidadãos, o reforço do poder executivo; e a intervenção deste último sobre os contra-poderes de modo a reduzir o seu papel à custa do Estado de Direito” (Chopin: 2; itálico meu).
É este o caminho do actual autoritarismo nacional-populista, mais concretamente, do “populismo de governo”: alteração profunda dos equilíbrios do sistema representativo, através de um forte reforço do poder executivo, o “povo” como fundamento exclusivo da legitimidade, forte condicionamento, pelo executivo, de todos os outros poderes institucionais e da opinião pública. Um caminho que Tocqueville já tinha premonitoriamente antecipado com enorme clarividência. Os nacional-populistas agitam sobretudo a questão da corrupção (das elites), da segurança e da imigração e o nacionalismo como instrumentos para reforçarem os seus poderes de condicionamento da vida democrática. Mas usam também o truque político-ideológico de identificação das forças moderadas (centro-direita e centro-esquerda) com a política identitária e a ideologia do politicamente correcto (generalizando indevidamente aquelas que são incompreensíveis cedências de muitos dos que, afinal, se identificam com a matriz do liberalismo clássico, que é a do nosso próprio sistema democrático), alargando a frente de um combate que reivindicam como exclusivamente seu. E, além disso, fazem da tradição liberal o seu adversário histórico, como já antes os românticos haviam feito.
VI.
TOCQUEVILLE foi, de facto, premonitório e, quem sabe, talvez os nacional-populistas tenham lido à sua maneira a sua análise, fazendo da democracia representativa um simulacro de democracia, não recusando o sistema representativo, mas promovendo a distorção interna dos seus mecanismos centrais (sobretudo a separação e o equilíbrio dos poderes institucionais e a tutela constitucional dos direitos individuais). Garantem, assim, um simulacro de democracia representativa. Neste processo tende a emergir sempre uma figura tutelar que interpreta, representa e enaltece directamente a voz popular (“I am your voice”) contra as elites que, dizem, ao longo dos tempos se apoderaram do poder e o usaram a seu favor. Digamos que é um populismo deslizante que se desenvolve no interior do próprio sistema representativo, mas que aspira a elevar-se sobre ele, anulando a sua própria matriz liberal, os seus pesos e contrapesos, e impondo um decisionismo autoritário e pretensamente moral… em nome do povo.
REFERÊNCIAS
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Anselmi, M., Blokker, P., Urbinati, N. (2018). La sfida populista. Milano: Fondazione Giangiacomo Feltrinelli.
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Cerroni, U. (1965). Le origini del socialismo in Russia. Roma: Riuniti.
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Chopin, T. (2019). “Democratie illibérale” ou “Autoritarisme majoritaire”. Contribution à l’analyse des populismes en Europe. In “Europe puissance des valeurs”. Policy Paper n. 235, 19.02.2019. #Démocratie. Institut Jacques Delors.
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Constant, B. (1819). “Discurso sobre a liberdade dos antigos comparada à dos modernos», pronunciado no «Ateneu Real de Paris», em 1819. In: http://www.panarchy.org/constant/liberte.1819.html.
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Habermas, J. (1962). Strukturwandel der Oeffentlichkeit. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp.
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Sartori, G. (2000) Democrazia: Cosa è. Milano: BUR.
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Sartori, G. (2008). Elementos de Teoría Política. Madrid: Alianza Editorial.
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Tarde, Gabriel (1890). Les Lois de l’Imitation. In: http://classiques.uqac.ca/classiques/tarde_gabriel/lois_imitation/lois_imitation.html
- Tocqueville, A. (2001). Da Democracia na América. S. João de Estoril: Principia.
PCP – O NOME E A COISA II
João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 11-2022
RETOMO A REFLEXÃO sobre os partidos comunistas (veja o artigo anterior sobre o PCP, aqui: joaodealmeidasantos.com/2022/11/15/artigo-86/), no momento em que o novo secretário-geral do PCP (SG), Paulo Raimundo, está a dar os primeiros passos nessa condição. Desta vez, a propósito do papel do SG numa organização política deste tipo, muito diferente dos restantes partidos. Bastaria considerar a vigência do centralismo democrático para estabelecer uma fronteira clara entre o PCP e os outros partidos. Ou a natureza orgânica do partido, onde não há lugar para a afirmação do indivíduo como directo protagonista na cena política. No próprio discurso dos membros do partido é raro encontrar uma afirmação que remeta exclusivamente para a própria individualidade: “eu”, em vez de “nós” ou de “o partido”. Sendo verdade, podemos ainda encontrar uma dupla confirmação nas palavras de José Pacheco Pereira, na introdução ao primeiro volume do livro sobre Álvaro Cunhal: “como se ele (Cunhal) quisesse absorver na sua pessoa o conjunto de todos os actos dos ‘seus’, do Partido, de um ‘colectivo” de que ele acaba, nesta multiplicidade, por ser o único com direito à individualidade” (Pacheco Pereira, J., Álvaro Cunhal. Uma biografia política. Lisboa, Temas e Debates, 1999, I, pág. XVII). Talvez fosse mesmo assim. Do colectivo só uma individualidade emergia, a do secretário-geral, e só essa usava com total propriedade o plural majestático – na sua individualidade, na sua pessoa, no seu corpo se reflectia integralmente o colectivo, como no corpo de um monarca se espelha toda uma nação. Algo que, afinal, até nem é exclusivo do PCP porque, embora já num outro plano, também a comunidade científica portuguesa usa regular e sistematicamente o plural majestático nos textos escritos individuais: “nós”, em vez de “eu”. Mas neste partido esta prática tem um sentido muito claro: a prevalência do comunitário sobre o societário, onde, naquele, o todo subsume integralmente as partes e onde a massa orgânica se exprime através de uma única e simbólica individualidade concreta, a do líder comunitário. Esta distinção foi estabelecida em 1887 por F. Toennies na sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft e também assumida por Max Weber. Na concepção de Toennies comunidade, “vida real e orgânica”, opõe-se a sociedade, “formação ideal e mecânica”, e, por isso, os membros da comunidade são “essencialmente ligados, apesar do que os separa”, enquanto os da sociedade são”essencialmente separados, apesar daquilo que os une”. A comunidade é animada por uma “vontade essencial” (Wesenwille), imanente ao grupo, que não se dissolve numa societária “vontade arbitrária” (Kuewille) dos indivíduos singulares (veja Sergio Cotta, na Entrada “Comunità”, em Enciclopedia Treccani). E isto bastaria para explicar tecnicamente, e fora da tradição marxista, esta eleição, a forma como se processou e o resultado. O SG foi escolhido sem competição aberta entre propostas programáticas e candidatos alternativos e o resultado foi uma personalidade desconhecida da opinião pública, sem curriculum digno de especial registo. Na realidade, um funcionário de partido de longa data (e desde muito jovem, com 19 anos). E sem experiência parlamentar (o que, todavia, na lógica do PCP não tem importância de maior). Não são conhecidas as verdadeiras razões por que foi escolhido. Talvez os candidatos há muito em pole position se tenham anulado uns aos outros. As razões que explicam a forma inopinada da sua eleição (a mudança estaria prevista para 2024, em Congresso) e até a ausência de um ritual celebrativo que teria a sua expressão precisamente num congresso estão por explicar cabalmente. Digamos que o SG foi gerado organicamente pelo sistema, algo verdadeiramente impessoal. O processo consistiu, como disse Paulo Raimundo, numa recente e longa entrevista a Daniel Oliveira, em consultas individuais aos membros do Comité Central com ulterior aprovação, por unanimidade, pelo mesmo Comité Central. E do processo de gestação resultou um militante como todos os outros, embora já ocupasse, desde cedo, posições de relevo no partido (no secretariado e na comissão política). Este processo, onde o SG não é eleito pelos militantes, mas pelo órgão máximo do partido, não mereceria, mesmo assim, particular atenção não fosse verificar-se na história centenária dos partidos comunistas uma tradição um pouco diferente, logo a começar pelo PCP, precisamente com a figura carismática de Álvaro Cunhal. Uma tradição onde os secretários-gerais eram, de facto, figuras carismáticas e portadoras de um historial heróico. Exemplos? Lenine, Estaline, Tito, Mao-Tse-Tung, Dimitrov, Gramsci, Togliatti, Fidel, Berlinguer, Cunhal. E onde os rituais que os acompanhavam eram sempre de um simbolismo muito intenso e correspondiam a efectivo poder na máquina partidária. Este aspecto não é de somenos porque anda de mãos dadas com a grande narrativa, ou a metanarrativa (“métarécit”), comunista, sempre associada a uma filosofia da história (o materialismo histórico) e também à própria civilização industrial, para usar o conceito de Jean-François Lyotard, no seu famoso livro La Condition Postmoderne, de 1979. De facto, com a introdução da micro-electrónica, nos anos ’40 do século passado, ter-se-ia iniciado a época pós-industrial e pós-moderna, ou seja, a superação da civilização industrial, a cujo destino estariam ligados os partidos comunistas e a sua própria narrativa.
1.
Quando Fidel Castro morreu, em 2016, escrevi um artigo sobre esta tradição. Retomo, pois, em parte, e a este propósito, o que então escrevi. Trata-se de um caso com um particular simbolismo se considerarmos todas as circunstâncias que rodearam a sua vida e a sua função, inscrevendo-se totalmente e de forma, diria, exuberante, na tradição do marxismo-leninismo e dos partidos comunistas. De facto, a sua partida foi um acontecimento histórico, mas do foro puramente simbólico. Como se se tivesse encerrado uma grande narrativa que sempre teve o seu centro discursivo e vital em grandes figuras carismáticas. Dir-se-á que os partidos comunistas continuam, embora o registo doutrinário, designadamente o marxismo-leninismo e a própria economia de plano, já tenha perdido eficácia teórica e política e credibilidade. Mas até as constituições socialistas foram, ao longo do tempo, removendo os resquícios da inspiradora Constituição soviética de 1936. Veja-se, por exemplo, a Constituição de 1982 daquele país (ainda em vigor, no essencial, com diferentes revisões, como a de 2018, a última) e compare-se o art. n.º 2 do Cap. I desta Constituição com o art. n.º 2 da de 1975. O que quero significar é que a liturgia perdeu a última referência simbólica em 2016, por mais que Xi Jinping queira entrar na galeria heróica, mantendo e prolongando a velha tradição. E a partida, mais recente, de Mikhail Gorbachov tem outro significado, que já aqui analisei num recente Ensaio, “Mikhail Gorbachov. Perestroika ou o Princípio do Fim” (https://joaodealmeidasantos.com/2022/08/), porque representa precisamente a tentativa de superação de dimensões nucleares do velho sistema socialista. Nesta liturgia, as figuras carismáticas tinham um tal ascendente que a doutrina lhes era imputada nominalmente: marxismo, leninismo, marxismo-leninismo, estalinismo, titoísmo, maoísmo ou marxismo-leninismo-pensamento-de-Mao-Tse-Tung (a fórmula oficial). Até com direito a inscrição constitucional, como se pode verificar, por exemplo, no Preâmbulo da constituição chinesa de 1982, para os nomes de Mao Tse Tung ou de Deng Xiaoping, e, agora, na recente revisão constitucional de 2018, para o nome de Xi Jinping, o actual líder, que poderá manter a sua liderança por tempo indeterminado: “a visão científica do desenvolvimento e o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era”.
2.
OS ROSTOS E OS NOMES constituíam, pois, uma iconografia doutrinária que animava a liturgia. Basta consultar as obras dos pais fundadores nas edições oficiais para o constatar. Por exemplo, as edições da Dietz Verlag, de Berlim (com fotografias destacáveis). A iconografia oficial punha em linha os rostos de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao. Lenine e Estaline foram embalsamados e colocados na Praça Vermelha. Mao, Deng e Jinping estão inscritos na Constituição da China (Preâmbulo). A unidade da Jugoslávia e da Liga dos Comunistas era garantida pela figura do Marechal Tito. Em Portugal, Álvaro Cunhal era o líder carismático incontestado e o seu intelectual de referência. A sua história pessoal confundia-se com a história do próprio partido. Verdadeiramente, a atmosfera dominante era a do culto da personalidade. Mas o que acontece é que a natureza orgânica e comunitária do sistema exige figuras tutelares, intérpretes oraculares da doutrina e do sentido da história. A ideologia elevava-se a ciência e a filosofia (o Istmat e o Diamat) e estas não eram acessíveis no seu significado mais profundo ao homem comum. Elas eram, no plano político, mais de natureza oracular do que verdadeiramente científica ou filosófica. Até porque o património teórico do marxismo não era de fácil acesso intelectual. Bastaria, para tal, referir a complexidade da obra de Marx (embora pouco ou nada tenha a ver com o marxismo-leninismo, mais inspirado na obra de Engels). Por isso, exigia intérpretes qualificados e não só politicamente, mas também intelectualmente. Autênticos intelectuais orgânicos, além das especiais qualidades políticas e pessoais. E Fidel era um deles, o último dos ícones. A sua partida pode ser entendida como se tivesse caído o pano sobre uma dramaturgia a que a sua figura ainda continuava a emprestar um certo realismo e um certo encanto, embora cada vez mais como último sobrevivente de um longo e sofrido naufrágio ideológico e político, marcado pelo tempo e pela evolução histórica da sociedade industrial rumo à sociedade pós-industrial. Não por acaso, as visitas a esse oráculo vivo, a esse testemunho da utopia perdida eram permanentes e vindas de todos os quadrantes. Ver ao vivo o passado, aquilo que já acabara. Um oxímoro, mas, por isso, ainda mais fascinante.
3.
A QUE SE DEVE o estranho e animado debate em torno de uma figura que representou em tudo uma evidente ditadura que deveria ser, pelos defensores da democracia representativa, liminarmente rejeitada, juntamente com os seus protagonistas? A que se deve essa admiração reverencial por Fidel Castro, esse fascínio “del Comandante”? Não vou fazer comparações de mau gosto e injustas entre Fidel e Pinochet, como fez um colunista do “Observador”. Por uma simples razão, que talvez explique o fascínio pelo personagem e pela doutrina. E essa razão centra-se na força e no valor da utopia: a libertação das massas do jugo do capital e a luta pela autodeterminação dos povos. Os comunistas lutaram e lutam por este objectivo e pelos seus valores associados (o que torna ainda mais estranha a posição do PCP sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, mesmo no quadro do seu feroz anti-imperialismo americano). Não interessa, para compreender este fascínio, discutir a validade da sua grelha de leitura da história e as suas concretas opções políticas, económicas, sociais ou filosóficas. A história já respondeu a isso, rejeitando-as. O modelo era o dos sistemas políticos orgânicos, não o da democracia representativa, o da economia de plano, não o da economia de mercado e nem sequer o da economia social de mercado (o modelo proposto na Perestroika), e o da rejeição do direito à propriedade privada (dos meios de produção). Modelo que faliu. Mas, para o que nos interessa, a questão de fundo reside nos ideais. E esses são absolutamente compartilháveis. E se a isso juntarmos os actos de resistência e de heroísmo que sempre se inscreveram nessa luta pelos ideais pode compreender-se o fascínio da doutrina e dos personagens. Fidel é um interessante exemplo disso. Não podemos esquecer que durante várias décadas o mundo viveu em regime de partilha global com os sistemas socialistas e a sua doutrina (Bloco de Leste, China, Cuba, Movimentos de Libertação, partidos comunistas ocidentais, alguns muito poderosos, com o o italiano, por exemplo, movimentos estudantis, movimentos de natureza multicultural, etc.). E Fidel esteve sempre plenamente integrado neste movimento global. Acresce que ele se encontrava numa situação muito particular para ganhar força simbólica: uma pequena ilha socialista junto ao gigante americano capitalista. Um David contra Golias em conflito mais que latente. Crise dos mísseis em 1962, com Cuba no centro; Fidel que resiste a um interminável embargo, empenhando-se, além disso, na luta pela emancipação de povos no continente americano e noutros continentes. Mais do que a iconografia – que foi muito importante, a boina do Che ou o charuto e as barbas de Fidel –, foi a posição estratégica de Fidel que determinou o fenómeno da popularidade e do fascínio ao limite do mito. Esta localização também lhe serviu para se consolidar, uma vez que lhe permitiu exibir, perante os cidadãos cubanos, os Estados Unidos como o inimigo externo (físico e ideal) sempre incumbente, gerando, assim, uma permanente coesão interna. Táctica de manual. A mesma que agora Putin está a usar na Rússia. Na verdade, o personagem aliava à nobreza dos ideais e à inteligência política uma força anímica e uma estética discursiva que sempre encantaram a esquerda. Um David que cresceu, como personagem cénica, à dimensão de um Golias. E este é um exemplo simplesmente fascinante, talvez mais do que qualquer outro, na tradição do marxismo-leninismo e do sistema socialista. Um mito que se inscrevia plenamente nesta grande narrativa.
4.
FIDEL converte-se ao marxismo depois de ter tomado o poder (1959). Ainda foi recebido na Casa Branca (pelo vice-Presidente Nixon). Mas logo, dois anos depois, adopta um “programa marxista-leninista” e cria o Partido Comunista, em 1965. O passo seguinte foi a elaboração de uma Constituição (1975) e a sua aprovação em 1976 (agora alterada, em 2019, mas conservando o essencial do regime), em referendo esmagador. É aqui que se dá forma à democracia orgânica cubana, com todas aquelas características nucleares que se encontram nas constituições dos Estados socialistas, inspiradas na soviética de 1936: sistema orgânico, Estado gerido (constitucionalmente) pelo partido comunista e inspirado na doutrina marxista-leninista (inscrita na Constituição), centralismo democrático, mandato (dos deputados) imperativo, ou seja, revogável (art. 83 da Constituição de 1976 e art. 116, secção II, cap. II da actual, de 2019 ). E uma Assembleia Nacional que nem sequer era eleita por sufrágio universal directo (mas hoje já é, art. 104, secção I, cap. II), mas que resultava das assembleias municipais (art. 69).
As características do sistema político cubano eram (e continuam a ser, no essencial) equivalentes às das democracias orgânicas do sistema socialista. Este sistema manteve sempre uma componente carismática centrada na figura de Fidel, não existindo razão aparente para não ser julgado com a mesma rede crítica aplicável às outras ditaduras de esquerda. Mas a verdade é que a percepção pública sempre foi, neste caso, diferente. Certamente pelas razões que apontei, mas também pelo difuso sentimento anti-americano inscrito em tantas frentes da esquerda, mesmo na sua ala mais moderada. E partilhado ainda hoje. Sentimento que Fidel sempre interpretou com notável maestria política.
5.
A PARTIDA DE FIDEL tem relevância histórica também por isso, ou seja, porque o sistema socialista sempre teve ícones, sempre se alimentou deles como se essas figuras tutelares não só dessem um rosto e um corpo à doutrina, mas também humanizassem esse colectivismo orgânico tão impessoal e frio que estava inscrito na natureza do regime. Mas eu creio que é a própria natureza orgânica destes regimes que, paradoxalmente, solicita esta fortíssima personalização de uma doutrina que, afinal, a refuta. O colectivo, sim, o colectivo, mas com figura tutelar, que dê unidade e, sobretudo, alma e corpo ao conjunto. Como nas religiões. Ou nas monarquias. Uma estrutura orgânica que actualiza a “graça”, ritualizando-a, mas com um Papa, um Aiatolá, um Profeta, um Secretário-Geral como figuras tutelares. E este também foi o caso de Cuba e do seu eterno líder. Um líder que personificava o regime, a doutrina de libertação de Cuba e em geral dos povos oprimidos, que simbolizava a coragem de enfrentar a vizinha e máxima potência do imperialismo mundial, que participava nas lutas de libertação nacional e que, ao mesmo tempo, exibia uma humanidade pouco comum em líderes desta natureza. Não deixará de lá estar uma certa latinidade e mestiçagem, numa espécie de socialismo tropical, que dão a Cuba um cromatismo existencial e uma exuberância que marcam a sociedade em todas as suas frentes. Mas o fundamental estará certamente naquilo que Fidel interpretava, como o fazia, em que lugar geométrico o fez e em que tradição se inscrevia. Diz isto alguém a quem Fidel nunca fascinou. Mas não admira. O meu fascínio sempre esteve mais naquela figura fisicamente um pouquinho disforme, mas intelectualmente com a dimensão de um verdadeiro Golias: António Gramsci, prisioneiro e mártir pelas suas ideias em tempos de fascismo.
6.
POIS BEM, se Cuba tinha Fidel, o PCP tinha Álvaro Cunhal. Uma personalidade que ganhou também uma dimensão de mito. A história deste partido quase se confunde com a vida dele. Pacheco Pereira, que publicou vários e extensos volumes biográficos sobre ele, di-lo no segundo volume: “No essencial, o PCP dos anos quarenta é Cunhal, como o vai voltar a ser nos anos sessenta” (Pacheco Pereira, 2001, II: XV). Mas, sem qualquer dúvida, será correcto afirmar que quase toda a história do PCP se confunde com a dele – “a sua biografia (a do jovem Cunhal) ainda não coincide com a do PCP, como acontecerá depois dos anos quarenta”, diz Pacheco Pereira (1999: I, XIX). E o corpo colectivo também encontrava nele a personificação perfeita, a cultura, a sofisticação intelectual, a ética socialista, o realismo e a inteligência táctica, a sua inscrição no património do socialismo mundial, o heroísmo, uma vida de luta contra a ditadura. Tudo. Álvaro Cunhal era ao mesmo tempo o líder político e o intelectual orgânico do partido e fazia a ponte, a ligação, com o que de melhor tinha a tradição doutrinária do marxismo-leninismo. Com ele, durante décadas, a tradição interna do partido cumpriu-se sem sobressaltos de maior que não fossem, naturalmente, os que advinham da difícil e dura luta contra a ditadura. Depois, com a sua saída, também o PCP passou por uma orfandade que nunca mais viria a recuperar, nem com Carvalhas nem com Jerónimo de Sousa e, provavelmente, nem com Paulo Raimundo. Porquê? A saída de Cunhal é equivalente ao fim de Fidel Castro e ao fim da grande narrativa comunista interpretada e personificada pelos líderes carismáticos. A figura de Estaline vale simbolicamente, e ao extremo, por todas. Ou a de Fidel. Por isso, eu creio que esta escolha de Paulo Raimundo, não parecendo, representa a consumação da ruptura com a velha tradição. E digo não parecendo porque a escolha ainda se inscreve na filosofia global e abstracta do marxismo-leninismo e no organicismo partidário, mas, de facto, ela representa a consumação de uma ruptura já que à grande narrativa comunista sempre correspondeu a existência de um intérprete carismático que a corporizasse e a singularizasse como função, sim, mas também como corpo, como pessoa concreta dotada de especiais capacidades, designadamente intelectuais, e de efectiva auctoritas e gravitas. Uma personalidade de natureza oracular. Poderia simplificar o significado da mudança extremando um pouco as posições: se, antes, a história do partido se condensava na história de Cunhal, agora, é a história do novo SG que se condensa (até factualmente) na história do partido. Uma inversão total no protagonismo relativo. O partido, com a nova identidade do SG ganha uma singularidade que com Cunhal não tinha, pois ela era como que delegada na sua personalidade (no mínimo, partilhada), na sua persona, no seu corpo e no seu discurso.
Não me atrevo a dizer que Paulo Raimundo não tenha estas qualidades. Não o conheço, nem pessoalmente nem politicamente. Mas parece não poder tê-las – finda a grande narrativa, também acaba a necessidade de a interpretar e de a personalizar, como uma dramaturgia, a um nível superior através de heroicidade e de carisma pessoais.
7.
QUE SIGNIFICADO TEM, então, a escolha de Paulo Raimundo? Na realidade, tem dois significados: cumpre a tradição teórica e abstracta, ao elevar à máxima função um trabalhador comum (mas na verdade trata-se mais de um funcionário de longa data do partido do que de um trabalhador comum), como previsto na evolução histórica, mas não cumpre a tradição histórica porque não se inscreve na tradição carismática dos líderes do movimento comunista internacional, todos eles com dimensão de intelectuais orgânicos dos respectivos partidos, de produtores e de intérpretes oraculares da doutrina; mas também, aparentemente, não responde (ou respondia, havendo no partido outras personalidades mais adequados a este papel) às exigências de personalização da política que decorrem da civilização da imagem e do marketing eleitoral para os efeitos políticos que a democracia representativa e pluralista vem exigindo a todas as lideranças, de esquerda ou de direita. Não se trata aqui de uma capitis diminutio do novo líder nem de uma avaliação da sua liderança ou da sua capacidade de afirmação, mesmo depois de ter ouvido com toda a atenção a longa entrevista que deu a Daniel Oliveira. Seria, pelo menos, injusto e desapropriado. Trata-se, isso sim, de uma análise histórico-comparativa: o fim das lideranças carismáticas corre paralelo ao fim das grandes narrativas que se afirmaram no Século XX e por isso esta liderança cumpre deste modo a sua função temporal, de solução de continuidade, embora ainda de forma somente parcial. Pode até acontecer que Paulo Raimundo se venha a afirmar como um excelente líder e com sucesso, mas o que não acontecerá será a simbiose que antes se verificava entre doutrina e liderança. Isso não acontecerá de certeza. Até porque, como no anterior artigo julgo ter demonstrado, a doutrina perdeu, até no PCP, a sua centralidade, a sua pregnância, o seu valor invocativo, mantendo-se apenas como remota utopia, meramente indicativa e por razões de identidade e de história patrimonial. Na realidade, não havendo uma grande narrativa com efectiva pregnância política é natural que não haja uma figura oracular que a represente, a interprete e a produza com a profundidade histórica com que foi concebida. O PCP estando ainda, de algum modo, marcado e condicionado pela velha tradição da democracia orgânica, nestes quase 50 anos de democracia também já metabolizou os principais mecanismos da democracia representativa. É neste complexo e difícil intervalo entre uma e a outra que, no meu entender, se inscreve a eleição de Paulo Raimundo como SG do PCP. E é nele que terá de se mover, a não ser que se venha a verificar uma profunda mudança na identidade estatutária, programática e até doutrinária, através da eliminação dos resquícios organicistas que ainda subsistem. Mas este passo não viria a pôr o PCP perante uma radical crise de identidade, obrigando-o a confrontar-se com a necessidade de assunção de formas políticas de que sempre se distanciou e que até sempre energicamente combateu? Jas@11-2022
ANTÓNIO DE CASTRO GUERRA
UMA VIAGEM NO TEMPO Romance
Por João de Almeida Santos

Foto da Capa, de António de Castro Guerra
Texto completo da minha intervenção na Sessão de apresentação de "Uma Viagem no Tempo" (Lisboa, Rosa de Porcelana, 2022, 218 pág.s) no Grémio Literário de Lisboa, ao Chiado, no dia 17 de Novembro de 2022.

Imagem da minha intervenção na sessão de apresentação de “Uma Viagem no Tempo”
1.
ANTES DE ENTRAR directamente no tema, permitam-me uma nota de carácter pessoal. Tenho conversado muito com o António de Castro Guerra e, frequentemente, no mesmo registo que nos tem, nos últimos tempos, levado a escrever fora da nossa zona de conforto profissional (no autor, a economia, na minha a filosofia e a comunicação política), entrando directamente na esfera do exercício estético (a narrativa literária, a fotografia, a poesia e a pintura), que é ao mesmo tempo uma nova e diferente forma de olhar para o mundo, mas também de se relacionar com ele. Ou seja, agora, que não estamos dependentes do trabalho profissional, da captação dos recursos financeiros necessários à sobrevivência (sempre necessários, mas agora não tão prementes) e das exigências formais da vida social ligada à profissão ou às funções que fomos desempenhando ao longo da vida, e foram muitas e diversificadas (e até partilhadas), ocorre um livre reencontro connosco próprios, com o nosso tempo de vida, seja ele passado, presente ou futuro. O tempo, o destino e as incontornáveis contingências da vida – é o que está em causa. Tudo, para além da vontade com que a enfrentámos e da representação que dela fizemos, porque este, o de hoje, é um tempo diferente em que o passado e o futuro ganham maior acuidade e urgência (como julgo que está escrito, e bem, no livro). Aqui, como se compreende, o que do passado persiste como presente é decisivo até porque o futuro, no fundo, já é mais tempo de balanço do que de um programa estratégico. Mas não se trata de algo que tenha a ver com uma espécie de relatório. Não. Trata-se de arte, ou seja, de “viagens no tempo” recriadas e revividas com as categorias da arte. Viagens, pois, esteticamente comprometidas, que acrescentam algo, tornando, afinal, o “balanço” mais uma nova forma de vida, de vida bela, de vontade e de representação do que de um frio relatório de contas, de sucessos ou de fracassos. Melhor, a arte permite-nos reconstruir o tempo vivido em formas esteticamente partilháveis e fruíveis, tornando esse exercício uma revivescência, sim, mas num plano superior, o da beleza sensível. E o que é mais interessante é que do passado vivido e sofrido o que tende a ser reconstruído não são os sucessos, mas sim os insucessos, o inacabado, o imperfeito, o inconcluso, o ausente, a perda. A arte como solução do inacabado e como redenção. Espelho do imperfeito (com as refracções próprias da arte), sim, porque este é o lado mais humano e contingente. É esse inacabado que nos motiva, quase como imperativo, exigência incontornável. E eu creio que é este o sentido deste romance autobiográfico. Porque é, sim, um romance autobiográfico assumido. E, naturalmente, ficcionado. Ma non troppo. Di-lo ele, na Nota do Autor. E digo eu, que julgo conhecê-lo um pouco e que também me encontro nestas andanças de procura e de recriação estética do tempo perdido no tempo.
2.
NAS NOSSAS CONVERSAS, temos relembrado, frequentemente, a Marguerite Yourcenar e o monólogo do Michelangelo Buonarroti com o seu amante Gherardo Perini no seu livro “Le Temps ce Grand Sculpteur”: “Gherardo”, diz Michelangelo, “maintenant tu es plus beau que toi-même”. Queria ele dizer que, por um lado, a partida do amante e, por outro, num momento em que ainda podia chorar a sua partida, seriam as condições imprescindíveis para lhe poder imortalizar a alma pela arte. Mais uma vez, a arte como solução ou resolução superior do inacabado. Ausência, sim, mas também pulsão que resistiu à partida, algo que lhe sobrou daquilo que perdeu – condições fundamentais para o exercício estético, com as categorias da arte. Como se se tratasse de uma forte pulsão dionisíaca que permaneceu e que, depois, alimentou, como energia, o voo apolíneo da arte. Para o dizer com o Nietzsche de “A Origem da Tragédia”.
Por que razão falo disto?
Falo disto porque creio que o movimento em que se inscreve a actual vida (literária) do António Castro Guerra (e a minha) também é este. Elevar o seu passado mais remoto, aquilo que dele ficou por concluir e que, com intensidade subsistente, lhe sobrou, à sua máxima expressão estética, neste caso através de um romance ou, simplesmente, no caso do outro livro (Quase memórias de um lugar e de outras andanças, Lisboa, Rosa de Porcelana, 2020), de uma concreta narrativa literária centrada em Valezim, essa bela aldeia situada nas margens do rio Zezerim. Mas não como ajuste de contas. Não. Nem ele é homem para perder tempo com isso. Como recriação do vivido, sim, e com desejo de universalidade, a que a arte torna possível, mas também de partilha e, digamo-lo sem rodeios, de redenção. A arte existe para ser comunicada, dizia, se não erro, o Bernardo Soares, e, ao sê-lo, muitas vezes sob a forma de directa interpelação e até de dádiva, desencadeia um processo que até pode ser de redenção. Sim, de redenção. Pela arte. Que melhor do que isto?
3.
TOMEMOS O FIO CONDUTOR do romance, a relação entre António Baltazar com a jovem francesa Ariel, aqui identificada, na dedicatória, com a pequena sereia de Hans Christian Andersen. Não quero nem devo antecipar o que acontece no romance (isso seria maldade para com o editor), mas tão-só a minha impressão de que essa história foi de tal modo inacabada (de tão “perfeita” ter sido) que o obrigou a recriá-la e a ficcioná-la com as categorias da literatura. A perfeição nunca se atinge e obriga sempre a ulteriores aproximações. E talvez também por isso ele se tenha obrigado a uma “viagem no tempo”, a uma improvável revivescência. Como impulso ou pulsão incontornável.
Não direi que o tenha feito com as seis categorias que o Italo Calvino considerava serem as categorias literárias deste milénio que já estamos a viver, mas com algumas, das quais sublinho a leveza, a rapidez e a visibilidade. Categorias que julgo atravessarem toda a narrativa. A história é um exercício de leveza sobre a relação entre os dois personagens (António e Ariel), mediada pelos ambientes naturais em que os encontros ocorrem, mas é também uma rápida visualização de um tempo (o deles) em que o peso insustentável da existência quotidiana e profissional fica de fora, sem interferir na relação, nas vivências partilhadas que acontecem quase em modo de levitação. Leveza da narrativa, portanto. O autor até parece ter um imenso pudor em se concentrar sobre as intensidades subjectivas de cada um, preferindo, pelo contrário, gerá-las indirectamente através da descrição da beleza natural e da exuberância algo dionisíaca dos ambientes em que os encontros ocorrem. Isso parece ter a ver com a própria paixão física do autor (de resto, o narrador parece confundir-se mesmo com o próprio autor) pelos ambientes naturais, tendo sido na infância muito influenciado pelo belíssimo vale – uma confluência de três vales banhada por um rio de água cristalina – onde nasceu e cresceu e da montanha mais alta que o enquadra. Essa paixão física mantém-se e até pode levar-nos a pensar que ela funcionou ex post como excesso que cobre e periferiza literariamente as próprias atmosferas mais íntimas ou sensuais. Mas não sei. O que sei é que a suspeita deriva da intensidade narrativa sobre os ambientes em que ocorrem os encontros.
4.
NA VERDADE, esta, que parece – digo parece com alguma ênfase – ser uma história de amor contido ou de fronteira, é exposta com leveza, expressa num pudor que vai desde a dimensão sexual (quase oculta ou apenas indirectamente aludida) até à partilha afectiva e sensual, quase inexistente (na narrativa explícita), porque fundida ou confundida com as intensities dos ambientes naturais. Tudo parece acontecer numa espécie de exaltação dionisíaca da vida e da natureza, num certo paganismo ou imanentismo, no poder telúrico da vida simples e natural, que me faz lembrar, até pelas várias descrições que se encontram no romance, quando acampam nos mais variados lugares (da Costa Alentejana ao Gerês), o canto de Liolà para o Zio Simone, na belíssima peça homónima (“Liolà”), de Luigi Pirandello:
Io, questa notte, ho dormito al sereno; /solo le stelle m’han fatto riparo: /il mio lettuccio, un palmo di terreno; /il mio guanciale, un cardoncello amaro. /Angustie, fame, sete, crepacuore? /non m’importa di nulla: so cantare! /canto e di gioja mi s’allarga il cuore, /è mia tutta la terra e tutto il mare. /Voglio per tutti il sole e la salute; /voglio per me le ragazze leggiadre, /teste di bimbi bionde e ricciolute /e una vecchietta qua come mia madre.
É mais ou menos também este o ambiente que António Baltazar oferece a Ariel e é este o ambiente que ela ama. Ou em que ela o ama. E é neste ambiente que cresce e se reproduz a ligação entre ambos, a ponto de António Baltazar começar a notar o semblante tristonho de Ariel quando o ambiente natural que lhe oferece não corresponde às suas expectativas, mudando de imediato quando a riqueza exuberante da natureza ressurge, regressa. Sim, a mediação da exuberância natural era decisiva ou até mesmo constitutiva da própria relação. Quase um certo paganismo sedutor que os envolvia e que surge aludido pelo fascínio que lhe suscitaram as histórias do famoso padre de Vilar de Perdizes, que, por isso, quis encontrar, embora sem sucesso. Idílio pastoral – é expressão que, exagerando um pouco, se poderia aplicar aos momentos de êxtase ambiental e natural que lhes aconteciam sempre que iam de encontro à simplicidade e à exuberância natural dos lugares que os acolheriam. Repito as palavras de Liolà: “Io, questa notte, ho dormito al sereno; / solo le stelle m’han fatto riparo”. Pirandello, Sicília, o jovem Liolà que dormia, como eles, ao relento, tendo ele as estrelas como “riparo” e eles uma tenda como abrigo.
5.
E, TODAVIA, ao leitor não é, de facto, oferecida uma panorâmica aprofundada do universo interior dos personagens nos seus longos, repetidos e diversificados encontros e nas intimidades partilhadas, digamos. Diria mesmo: nas pulsões sensuais, dionisíacas. Da terra natal de António Baltazar ela reteve sobretudo o rio, a vontade de acampar ali ao lado para nadar, possivelmente nua, e ali adormecer ao som do murmúrio das suas águas cristalinas, nos braços de António Baltazar, digo eu (que o narrador não fala disso). Era assim que eles melhor se encontravam e se reconheciam. Era assim que os seus universos interiores se conjugavam, induzidos pela força telúrica da natureza. Pois bem, quando isto não acontecia as relações tendiam a esmorecer e talvez tenha sido por isso mesmo que a relação ficou inacabada, à espera que o destino marcasse um futuro que talvez nunca fosse acontecer e que, de resto, nem eles programariam. Ou à espera da sua conversão literária, digo eu, agora. O que for, há-de ser, dizia sempre, de si para si, António Baltazar. Como se conscientemente tivesse deixado ao destino decidir do futuro da relação, lembrando-se do desfecho da relação da pequena sereia com o príncipe, no conto de Andersen?
Na verdade, parece-me legítimo suspeitar que esse pudor extremo de António Baltazar e, já agora, do autor, em manter velado o universo sentimental de ambos, não o dissecando na narrativa, não o expondo mais do que o necessário para dar vida à relação, não o revelando até para resolver com palavras o que a existência não resolveu, fosse sinal de que tudo foi obra do destino, mais do que de intencionalidade ou de racionalidade estratégica de qualquer um deles. E o destino exige pudor, respeito, silêncio, porque nunca se sabe o que nos reserva. Porque é nele que habitam os deuses e o arbítrio divino. Ao que se juntava ainda, neste caso, a expressividade, a intensidade e a exuberância da natureza que os acolhia e com a qual procuravam identificar-se ao ponto de quase se anularem, imergindo nela com todos os sentidos em alerta. Um destino, pois, marcado, mais uma vez, pela força telúrica da natureza. Ou pelos deuses que o habitam, o destino. Vá lá saber-se.
6.
E ASSIM NASCE o romance escrito. A reposição ficcionada, a recriação de uma história vivida, como se o acto de a reviver permitisse resolvê-la. Mas parece que não a resolveu e disso mesmo há o testemunho do narrador e também de Daisy, a mulher de António Baltazar, que, mais tarde, o incentivaria a que fosse encontrá-la lá onde ela vivia, como se, mulher, bem compreendesse que sem esse passo nem o melhor dos romances conseguiria fechar, concluir a relação. Uma pedra no sapato era o que talvez Daisy sentisse. “Vai, vai lá e resolve isso de uma vez por todas. Por ti e, já agora, também por mim”. Isto, digo eu. Mas é o próprio romance que prevê isso mesmo, o que nos deixa entender que o assunto não ficou mesmo resolvido com esta ficção literária. Mas, pergunto, algum dia ficará? O passado poderá ser cabalmente reconstruído através da literatura para ser livre e confortavelmente habitado, sem ponta de inquietação? Não será também aqui o destino a decidir? Ou os deuses? E, de qualquer forma, o estro passar a ser a medida da própria eficácia existencial do romance, da obra de arte? A beleza esteticamente construída como fonte de sedução…
7.
ESTE ROMANCE será lido pela própria (supondo que ela seja mais do que uma versão romanceada da pequena sereia de Andersen), partilhando assim a revivescência, sabe-se lá com que sentimentos interiores? O pudor extremo da narrativa é devido a essa eventualidade? Há esta intenção originária na escrita? Um diálogo à distância? Uma espécie de interpelação? Ou o autor mantém-se numa pura posição transcendental, ou seja, age literariamente “como se”? Talvez o que reste sejam apenas modulações de intensidade desses fragmentos de memória viva, muito viva. À procura do tempo perdido… Mas será possível reencontrá-lo e revivê-lo? Acho que sim, em parte. E se for através da poesia talvez a revivescência seja ainda mais intensa e reparadora, pela sua alta performatividade. Em qualquer caso, ficará, todavia, sempre um sentimento de perda e de ausência. Tem razão a Yourcenar. Ou o Michelangelo. O mesmo sentimento que, afinal, anima, energiza a pulsão da arte. Sim, uma perda irreparável que é compensada ou relativizada pela beleza a que o autor a eleva, universalizando-a e possibilitando a sua partilha com os amantes do belo e dos segredos mais profundos da alma humana. Verbalizar a perda para a relativizar, sem ser psicanálise, mas arte. E até com alguém que poderá compreender agora melhor o que ele sentiu então, nesse passado ao mesmo tempo luminoso e inocente. Sim, porque só por isso esse sentir se pôde projectar como momento de uma narrativa romanesca futura. Talvez seja esta a solução. E aquilo que na origem era perda talvez se tenha transformado, com o acto da escrita, em dádiva esteticamente oferecida, quadro pintado com palavras para que conste da galeria de arte das suas vidas. Pintura com o que lhe sobrou, porque foi (e continuou a ser) verdadeiramente intenso. Sobrou-me algo de ti (aquilo que outros nunca em ti encontrarão, diria Michelangelo Buonarroti) e com esse algo imobilizo-te a alma numa obra de arte. A escrita acontece assim como acto sublime de viver e de reviver. Mesmo assim, estou convencido de que o António Baltazar vai continuar a dizer: o que for, há-de ser. Talvez seja esse o seu ADN. Se a encontrar, claro, apesar de o breve encontro de Paris nos dar bem conta dos embaraços que o tempo sempre produz nas relações temporalmente interrompidas ou suspensas. Encontro futuro que não é uma certeza, porque, na verdade, os seus encontros com ela passaram a ser a um outro nível, digamos, encontros aproximados de “terceiro grau”, o da arte (depois dos reais e dos da memória). Mas tenho a certeza de que este encontro, agora mediado não pela natureza, mas pela arte, vai acontecer. Passa-se assim da exuberância natural à exuberância estética da palavra escrita, que é a versão decifrável da alma, onde o encontro agora ocorrerá. Mais: já está a ocorrer. Quase me apetecia perguntar ao autor: você vai enviar-lhe o livro? Ela até fala português… Supondo que ela exista fora do romance. Mas não sei. E nunca perguntaria ao autor… O que sei, e já não é pouco, é que o romance é também (ou sobretudo) dedicado a essa “pequena sereia que viveu muitas vidas” e que tem por nome Ariel.
8.
MAS A NARRATIVA não se esgota nesta história (de amor?). Ela desenvolve-se em descrições concretas, variadas e demoradas acerca dos ambientes que serviram de fundo aos seus encontros e reencontros. A América (New York, Newark, Washington e Filadélfia), Paris, a costa alentejana, o Buçaco, o Gerês, Terras de Basto, Valezim, na Beira Interior. Uma preocupação que o autor teve em dar ao leitor informações acerca destes locais que ambos frequentaram e fruíram. Sim, sempre eles e as suas circunstâncias. Às vezes (quase sempre) mais as circunstâncias do que eles. Na narrativa, claro.
9.
O ROMANCE também procura resolver uma dúvida existencial do personagem António Baltazar acerca da sua própria identidade remota. Vai às suas próprias origens tal como vai ao seu futuro, ao adoptar (enquanto personagem central do romance) o nome do seu próprio neto. Também aqui “uma viagem no tempo”: ao passado e ao futuro, consignando em plenitude a sua identidade passada e futura ao mundo da arte, expondo-a na sua galeria pessoal, a das suas memórias filtradas pela arte e com sinais de futuro (o nome do personagem). Mais uma vez a recriação da uma linha temporal através da chamada literária dos seus familiares à narrativa para resolver um assunto familiar existencialmente há muito pendente. Quase apetece dizer que também aqui a literatura é uma solução para a própria vida. E também que o companheiro de Ariel era esse mesmo cujas origens e identidade a narrativa também viria finalmente revelar… e a projectar. Milagres da arte!
10.
NÃO É, COMO SABEM, a primeira vez (nem será a última) que o António Castro Guerra vai às raízes e as projecta literariamente, recriando aquilo que lhe vai na alma, lá mais no fundo da alma, e que tem o seu contraponto (como o silêncio na música) no território que ele palmeia frequentemente com aquele prazer de quem gosta de sentir os perfumes da terra húmida, das árvores, das plantas, das flores, as vertigens da montanha, o sussurrar das águas desse rio que não lhe sai da alma, porque nasceu com ele, a ouvir-lhe os murmúrios líquidos, ali ao lado da sua casa. Este território físico e interior parece ser um dos pilares essenciais da sua vida vivida, algo que nunca o abandonou nas mil e uma andanças por este mundo. E faz-se sentir de forma poderosa até na relação com uma mulher, quase a dissolvendo na exuberante imanência natural como abrigo de almas e lugar de destino. Mas agora parece ter chegado o momento de pôr no devido lugar, um pouco mais acima, mais alto, a desordem dessa vida que sempre nos vai atropelando e até nos impede de seguir rumos diferentes daqueles que acabamos por seguir, por vontade ou por destino. Ah, foi assim? Pois agora sou eu que decido através deste instrumento extraordinário que está à minha disposição: a narrativa literária. A arte. Recrio a minha vida, mesmo aquela ou sobretudo aquela que teve uma solução de continuidade e dou a tudo a harmonia e a beleza que o poder da palavra escrita me conceder. Chamo a mim um tempo que sempre transbordava do leito por onde corria a minha própria vida. E dou asas ao desejo. Resolvo o que não teve solução? De certo modo, sim, porque elevo essa circunstância à universalidade da arte e até a posso partilhar com quem comigo viveu esse tempo existencial. E, assim, posso revivê-lo… em cumplicidade. Verbalizando-o ou ocultando-o (o tal pudor), digo eu, não só como narrativa, mas também como gesto, o gesto da escrita e da consignação desse tempo ao futuro. E não só, poderia ainda acrescentar. Ele, o autor, anda também às voltas, para além da escrita, com a recriação plástica de fragmentos da sua vida interior e dos ambientes que lhe servem de moldura viva. Um dia há-de fazer como eu e encontrar a sinestesia como rumo estético entre a pintura e a literatura. Ou talvez já o faça, em parte, através de uma conjunção entre a fotografia e a narrativa literária, onde aquela funciona para ele como suporte inspirador da escrita. Exercício plástico muito inspirado também na sua visão do mundo e da amada natureza, lá onde, tal como os deuses, também residem as cores que nos seduzem o olhar. Não era o Leonardo da Vinci que dizia, no “Tratado da Pintura”, que “la pittura è partorita da essa natura”, filha da natureza e parente de Deus, ou, diria eu, dos deuses? Fazendo arte, ele, o autor, está como que a ajudar o tempo a esculpir melhor a sua própria vida, chamando o futuro a um presente mais completo, promissor e, sobretudo, livre. Fazer do passado uma linfa que lhe alimente a veia artística e, assim, ir construindo livremente o seu próprio futuro com as asas do desejo. Mesmo, ou sobretudo, insisto, daquele que não se cumpriu integralmente por obra do destino. Mas que, por isso mesmo, aqui se projecta em forma de arte. Jas@11-2022
PCP – O NOME E A COISA
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 11-2022
A INESPERADA E RÁPIDA eleição do novo secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, justifica uma incursão pelo universo doutrinário em que se move este partido, não só pela densidade histórica específica que ele transporta consigo, mas também pela sua inscrição numa tradição que determinou o destino de grande parte do século XX. E talvez ainda se justifique mais por, pela segunda vez consecutiva, o secretário-geral ser (depois de Jerónimo de Sousa) de uma condição diferente das de anteriores secretários-gerais, Álvaro Cunhal e Carlos Carvalhas, dois intelectuais: vir do mundo do trabalho e não ter formação superior, fazendo jus à natureza de classe do partido e, no fundo, melhor representar o trabalhador comum, sendo um deles. Vejamos.
I.
OS PARTIDOS COMUNISTAS nasceram na época das grandes narrativas ideológicas, disputando seriamente o terreno às narrativas religiosas. Os mesmos rituais, os mesmos catecismos, a mesma ordem existencial. Só que se a utopia religiosa coloca a utopia e a felicidade no além, a utopia comunista e a felicidade são terrenas. Mas eles são também filhos remotos do industrialismo, da revolução industrial inglesa e do êxodo rural para as periferias das grandes cidades. E surgiram também com a laicização integral e anti-elitista da política. E, ainda, da rápida evolução do sufrágio eleitoral, do alargamento da participação política e da emergência da sociedade de massas. François Furet, no seu belíssimo e longo livro sobre a utopia comunista Le passé d’une illusion. Essai sur l’idée communiste au XX.e siècle (Paris, Éditions Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995), fala da emergência das massas na política com a Grande Guerra e, depois, com a revolução soviética e os movimentos políticos radicais, de esquerda e de direita, que se lhe seguiram Europa fora, com as consequências que todos conhecemos. Todos lemos a obra do Ortega y Gasset, La Rebelión de las Masas, de 1926-1930 (1930; Ciudad del México, La Guillotina, 2010) e ficámos a saber que:
- “Hay un hecho que, para bien o para mal, es el más importante en la vida pública europea de la hora presente. Este hecho es el advenimiento de las masas al pleno poderío social. (…) Esta crisis (…) se llama la rebelión de las masas” (10; itálico meu).
- “Así (…), creo que las innovaciones políticas de los más recientes años no significan otra cosa que el imperio político de las masas” (p. 20; itálico meu).
- “El modo de operar natural a las masas”: a «acción directa», que consiste em «proclamar la violencia como prima ratio, en rigor, como única razón” (pp. 104-105; itálico meu).
- “El estatismo es la forma superior que toman la violencia y la acción directa constituidas en norma. A través y por medio del Estado, máquina anónima, las masas actúan por sí mismas (p.173; itálico meu).
Nestas afirmações de Ortega y Gasset é possível encontrar o pano de fundo em que se inscreviam os movimentos mais radicais, de esquerda e de direita, que haveriam de se impor durante o período entre guerras. Estes movimentos representam, de facto, a rebelião das massas e dão origem a formas políticas que já nada têm a ver com a tradição liberal nem com a democracia representativa, que, na verdade, era considerada o verdadeiro inimigo, para uns e para outros.
II.
OS PARTIDOS COMUNISTAS nasceram no início dos anos vinte inspirados na revolução soviética e na doutrina marxista, apesar de a revolução russa ter sido mais filha da guerra do que da industrialização. De resto, a lógica que subjazia à sua doutrina era a lógica da guerra, a da aniquilação do inimigo de classe, o capital, a burguesia e, por consequência, também a propriedade privada dos meios de produção, como se verá, depois, de forma explícita, na Constituição soviética de 1936. Nada de estranho, portanto. Mas a verdade é que a Rússia era um país rural e a palavra que traduzia bem essa condição era obschina, formas de autogoverno das comunidades rurais russas, que viriam a ser abolidas definitivamente com o processo de colectivização da agricultura (1928-1929). Não se verificava, pois, um processo de industrialização, como previsto pela teoria. Antonio Gramsci até escreveu, a este propósito, um artigo no “Avanti”, em 24 de Novembro de 1917 (XXI, n. 326), cujo título era “A Revolução contra o Capital”. Sim, contra “Das Kapital”, de Karl Marx:
“Esta é a revolução contra o Capital de Karl Marx. O Capital de Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários. Era a demonstração crítica da fatal necessidade que, na Rússia, se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer pensar na sua desforra, nas suas reivindicações de classe, na sua revolução. Os factos superaram as ideologias (…), os cânones do materialismo histórico” (Gramsci, A., Scritti Giovanili, 1914-1918, Torino, Einaudi, 1958, p. 150).
E foi isto que aconteceu. Provavelmente, se não tivesse havido guerra não teria havido revolução. Não é por acaso que François Furet diz que o comunismo e o fascismo são filhos da guerra: «bolchevisme et fascisme sont les enfants de la Première Guerre mondiale» (1995: 39-40). E sabemos também que o marxismo que viria a enquadrar a ideologia dos partidos comunistas foi mais o DIAMAT e o ISTMAT (o materialismo dialéctico e o materialismo histórico) do que a extraordinária obra de Karl Marx. E que a obra de Friedrich Engels (sobretudo A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, a Dialéctica da Natureza e o Anti-Duehring) o influenciou mais do que a obra de Marx. Esta orientação viria, depois do tão divulgado Manual Popular de Sociologia Marxista, de N. Bukhárine, de 1921, a ficar consignada no famoso n. 2 do capítulo IV da História do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS, de 1938, que seria publicado autonomamente em todo o mundo e que assumiria a função de autêntica bíblia do movimento comunista nacional e internacional. Mas não só. A estrutura constitucional dos países do socialismo de Estado viria a ficar, no essencial, definida na famosa Constituição Soviética de 1936.
(Para uma visão global sobre o comunismo veja o capítulo “Novas formas de comunismo e radicalismo de esquerda”, de minha autoria, na obra, coordenada por António Reis, As Grandes Correntes Políticas e Culturais do Século XX, Lisboa, Colibri, 2003, pp. 155-181).
III.
FOI ESTE O ENQUADRAMENTO DOUTRINÁRIO em que sempre se moveu o PCP. O marxismo que cresceu a seu lado, conhecido como marxismo ocidental – Gramsci, a Escola de Frankfurt, a escola dellavolpiana ou o estruturalismo marxista francês, de forte inspiração gramsciana – foi-lhe sempre estranho. E também a experiência do eurocomunismo, de Enrico Berlinguer, Georges Marchais e Santiago Carrillo, lhe foi estranha e claramente rejeitada. A sua posição de alinhamento com a URSS em relação à revolta húngara, em 1956, subsequente ao XX Congresso do PCUS (sendo provável, não consegui, todavia, obter informação segura sobre a posição do PCP sobre esta matéria), e à de Praga, em 1968, também. E finalmente, a clara rejeição da Perestroika. E, ainda, agora, mesmo depois do fim da URSS, a posição sobre a agressão russa à Ucrânia. E assim continua, fiel ao santuário russo da revolução de Outubro, ao anti-imperialismo americano e a essa tradição marxista-leninista, centrada na contradição principal entre trabalho assalariado e capital, na ideia de “consciência de classe” e na projecção da utopia de uma sociedade sem classes, “a sociedade nova”, de que falou o novo secretário-geral, Paulo Raimundo, no seu discurso de investidura, no passado domingo. É aqui que, no essencial, ainda estamos e é com estas categorias e posições que deveremos compreender o PCP, enquanto partido inscrito numa tradição que vem do século XIX e que ainda mantém nas suas grandes linhas. Se lermos o Programa e os Estatutos do PCP (Lisboa, Editorial “Avante!”, 2013) aí encontraremos uma componente doutrinária perfeitamente alinhada com esta tradição (especialmente nas pág.s 72-79).
IV.
VEJAMOS, pois, algumas afirmações constantes do Programa:
- Do capitalismo ao socialismo: “No sistema de capitalismo monopolista, o Estado, dada a sua natureza de classe, integra e assegura o funcionamento do modo de produção capitalista e a sua manutenção, inclusivamente com recurso à violência e a métodos coercivos, sendo, na sua essência e em geral, um instrumento do capital.” No capitalismo “acentua-se a contradição entre o capital e o trabalho, entre o carácter social da produção e a apropriação privada dos meios de produção, entre os monopólios e as camadas não monopolistas, entre as principais potências capitalistas e os países em desenvolvimento” e “impõe-se a superação revolucionária do capitalismo com a instauração de uma formação económica e social superior – o socialismo” (p. 75; itálico meu).
- O grande objectivo do PCP: “a abolição da exploração do homem pelo homem, a criação de uma sociedade sem classes antagónicas” – “liquidação da exploração capitalista” através da “revolução socialista” (pp. 79 e 72). “No horizonte da evolução social está o comunismo – sonho milenário da humanidade progressista, sociedade sem classes, sociedade de abundância, de igualdade social, de liberdade e de cultura para todos” (p. 81; itálico. meu).
- Historicamente, “as revoluções socialistas, com o poder dos trabalhadores, empreenderam a construção de uma nova sociedade sem exploradores nem explorados, sem classes antagónicas, sem discriminações e injustiças sociais, uma nova sociedade” (p. 74; itálico meu).
- Em Portugal, as características da sociedade socialista, segundo o PCP, são: no sistema político, o poder dos trabalhadores”, “a propriedade social sobre os principais meios de produção, uma direcção planificada da economia combinada com a iniciativa e directa intervenção das unidades de produção e dos trabalhadores”, “ a libertação dos trabalhadores de todas as formas de opressão e exploração” (80), a transformação da cultura em património, instrumento e actividade de todo o povo”, a “luta de classes” (p. 81; itálico meu).
- A autocrítica ou a crítica do socialismo de Estado: “um «modelo» que violou características essenciais de uma sociedade socialista e se afastou, contrariou e afrontou aspectos essenciais dos ideais comunistas. Em vez do poder político do povo, um poder excessivamente centralizado nas mãos de uma burocracia cada vez mais afastado da intervenção e vontade das massas e cada vez menos sujeito a mecanismos fiscalizadores da sua actuação. Em vez do aprofundamento da democracia política, a acentuação do carácter autoritário do Estado. Em vez de uma economia dinamizada pela propriedade social dos principais meios de produção, uma economia excessivamente estatizada desincentivando progressivamente o empenhamento dos trabalhadores e a produtividade. Em vez de um partido de funcionamento democrático, enraizado nas massas e delas recebendo energias revolucionárias, um centralismo burocrático baseado na imposição administrativa de decisões, tanto no partido como no Estado, agravado pela fusão e confusão das funções do Estado e do partido. Em vez de uma teoria viva e criativa, a sua dogmatização e instrumentalização” (p. 77; itálico meu).
No essencial, são estas, em discurso directo, as posições que constituem o pano de fundo doutrinário do PCP e que o identificam com a tradição marxista-leninista a que me referi: a natureza do sistema capitalista e o antagonismo económico, político e social; a luta de classes pela emancipação das classes subalternas e a superação da contradição entre capital e trabalho, guiada pela vanguarda da classe operária, o PCP, neste caso; a utopia comunista e da sociedade sem classes e sem propriedade privada dos meios de produção. Mas também o elogio da experiência histórica das sociedades do socialismo de Estado e a crítica dos seus desvios, do “modelo” que promoveu um Estado autoritário, o centralismo burocrático (e não o centralismo democrático), a estatização da economia (e não a propriedade social dos meios de produção), a confusão entre Estado e partido, o dogmatismo e a imposição administrativa das decisões. Assunção plena da velha tradição, balanço das coisas positivas da experiência socialista, mas também crítica dos graves desvios que levou à derrota do sistema.
V.
A TRADIÇÃO em que se inscreve a doutrina do PCP recusa frontalmente a tradição liberal (mas não são os únicos, pois até a orientação dominante do partido socialista tende também, e incompreensivelmente, a rejeitar a tradição liberal, agora dominantemente, e comodamente, lida e identificada como doutrina neoliberal, a sua versão mais radical); defende uma visão orgânica ou mesmo organicista da sociedade; aplica o centralismo democrático, fundado, no essencial, no domínio das relações verticais (da base para o topo e do topo para a base) sobre as relações horizontais (entre as estruturas); assume a natureza de classe do partido (“Partido político e vanguarda da classe operária e de todos os trabalhadores”; p. 82) e uma visão antagonista da dialéctica política e social, aliás, pouco conforme à natureza da dialéctica política democrática (na democracia não há inimigos, mas adversários); um partido onde o interesse geral e a vontade geral são identificados como coincidentes com o destino de uma concreta classe (o proletariado), aquela na qual Lukács, em História e Consciência de Classe, de 1923, reconhece existir uma “consciência de classe” em sintonia integral com a evolução necessária do processo histórico na fase do modo de produção capitalista, bem diferente, pois, da “falsa consciência” da burguesia.
Este património tem sido, como vimos, preservado, mesmo à custa de perda de influência, mas, na verdade, ele tem sido, na prática, relativizado pela experiência de quase meio século de concreto exercício da política no interior de uma democracia de matriz liberal, embora, por exemplo, nos estatutos esteja previsto o dever de os deputados, e outros eleitos em cargos públicos, manterem “sempre os seus mandatos à disposição do Partido” (n. 1 do art. 54 dos Estatutos), contrariando, deste modo, e frontalmente, a natureza do mandato não imperativo. Ou seja, tendo os partidos a exclusividade de propositura dos candidatos a deputados, eles, todavia, não são os titulares dos mandatos conquistados uma vez que, por um lado, são os eleitores a conferi-los e, por outro, se trata de funções de soberania no Estado, superiores à natureza privada dos próprios partidos e dos seus órgãos. Não é por acaso que os mandatos não são revogáveis e muito menos pelos partidos que propuseram os seus titulares. De qualquer modo, o PCP assume claramente a democracia representativa:
“democracia política baseada na soberania popular, na eleição dos órgãos do Estado do topo à base, na separação e interdependência dos órgãos de soberania, no pluralismo de opinião e organização política, nas liberdades individuais e colectivas, na intervenção e participação directa dos cidadãos e do povo na vida política e na fiscalização e prestação de contas do exercício do poder”, em suma, um Estado democrático e representativo (pp. 29, 36, 38).
E assume também de forma explícita e detalhada os princípios relativos à liberdade de expressão e de imprensa, o direito à informação e à livre constituição de partidos políticos sem “autorização prévia de entidades públicas”, o que, mais uma vez, parece contrariar o estipulado pela Constituição da República na alínea e) do n. 2 do art. 223 sobre as competências do Tribunal Constitucional: “ Verificar a legalidade da constituição de partidos políticos e suas coligações, bem como apreciar a legalidade das suas denominações, siglas e símbolos, e ordenar a respetiva extinção, nos termos da Constituição e da lei” (pp. 32-34). Competências que, de resto, hoje, este Tribunal parece já estar a usar com excesso de zelo. Mais: o PCP defende, curiosamente, que a democracia é a via para o socialismo, embora relativizando temporalmente a afirmação: “No Portugal do tempo em que vivemos o caminho do socialismo é o da luta pelo aprofundamento da democracia” (p. 73; itálico meu). O socialismo parece ser aqui assumido como democracia aprofundada, que, no fundo, é o que o PCP propõe como “democracia avançada”. A doutrina desenha a utopia, a prática relativiza-a e converte-a.
VI.
EM SÍNTESE, o PCP mantém no plano doutrinário os princípios fundamentais da tradição do DIAMAT e do ISTMAT, mas deu passos de gigante na assunção sem reservas da democracia representativa e dos seus princípios fundamentais, apesar de, tal como ela existe, ter uma matriz claramente liberal, tradição que foi sempre, e é, no plano doutrinário, rejeitada. Esta afirmação de que a democracia (e não a ditadura do proletariado) é a via do socialismo já fora assumida em 1989 pelo PCI e, até antes, se não erro, por Enrico Berlinguer. Um caminho que o PCP poderá aperfeiçoar sem trair o essencial dos valores que defende.
Que esta seja mesmo, cada vez mais, a via e que, com ela, o PCP também possa evoluir para a plena aceitação da União Europeia e da NATO como organização exclusivamente defensiva é o que deseja quem considera ser o PCP um partido necessário ao sistema de partidos português. E nesta sua nova fase, et pour cause, é natural que deseje os maiores sucessos ao PCP e ao seu novo Secretário-Geral. O seu sucesso será também o sucesso de uma democracia pluralista, justa e que não discrimina as diferenças políticas desde que elas se processem no interior de um verdadeiro patriotismo constitucional e de uma eficaz democracia representativa, que até poderá vir a ser uma democracia deliberativa. Jas@11-2022.
A POESIA E A PINTURA SEGUNDO LEONARDO
O "TRATADO DA PINTURA"
Por João de Almeida Santos

“Mulher”. JAS. Composição sobre desenho de LdV. 11-2022
VISITO COM FREQUÊNCIA o “Trattato della Pittura” (1631; Roma, Club del Libro Fratelli Melita, 1984) de Leonardo da Vinci (1452-1519). Desta vez, fui reler o que ele diz na I Parte (pp. 3-31), em particular o discurso sobre as relações entre a pintura e a poesia. E não resta qualquer dúvida: ele considera a pintura superior à poesia como arte, embora lamente que a pintura não esteja integrada nas chamadas “artes liberais”: gramática, retórica, dialéctica (trivio), aritmética, música, geometria e astronomia (quadrivio):
“Con debita lamentazione si duole la pittura per essere lei scacciata dal numero delle arti liberali” (p. 18).
Uma boa parte da argumentação de Leonardo baseia-se na superioridade da visão relativamente aos outros sentidos: “os olhos, que dizemos serem janela da alma” (p. 10). E no poder de oferecer, de forma imediata, à fruição uma totalidade expressiva que representa o que a natureza nos oferece, a realidade. O que, para ele, não acontece com a poesia. Acresce ainda que, nesta, pode não haver sequer correcto entendimento (“spesse sono le volte che non le sono intese”, p. 13), sendo necessários comentários, que muitas vezes também não espelham o pensamento do poeta (“la mente del poeta”). Ora isso não acontece com a pintura, que permite uma fruição com a mesma rapidez com que se fruem as coisas naturais (“com quella presteza che si vedono le cose naturali”). Se uma, a poesia, exige uma progressiva descodificação e interpretação a outra dá-se com imediatidade e de forma transparente ao olhar (“senso più nobile che l’orecchio”), de onde resulta uma “proporzione armonica”, o que não acontece com a poesia “per esser le sue parti dette separatamente in separati tempi” (p. 13). Separadamente, em tempos separados, sucessivamente, em progressão, no tempo de fruição. Compreende-se: a poesia trabalha com palavras, é preciso saber ler, conhecer as línguas ou então estar em condições de descodificar o que se ouve e progredir na leitura para ir dando conta do sentido do poema, enquanto a pintura se oferece sem necessidade de mediações e de esforço analítico (o pintor “abbraccia in sè la prima verità di tali corpi”, p. 7). E, para Leonardo, a comunicabilidade das artes, maior na pintura, marca profundamente a sua eficácia e a sua utilidade. E, além disso, a pintura comunica com universalidade sem ter necessidade de “intérpretes de diversas línguas, como têm as palavras” (p. 4).
I.
E, TODAVIA, LEONARDO diz o seguinte:
“La pittura è uma poesia muta, e la poesia è uma pittura cieca” (p. 12).
O que é curioso é esta intercambiabilidade da poesia e da pintura, reconhecida aqui por Leonardo. Esta equivalência, embora com configurações diferentes – uma é cega e a outra é muda – só se verifica na recíproca condição de artes, no seu reconhecimento como artes. A identidade de uma (a sua essência) equivale à da outra, mas cada uma surge determinada ou condicionada pelos sentidos com que opera. Cega ou muda, consoante seja a visão ou a fala/escrita que as caracterizam. Mas elas, sendo diferentes, são equivalentes – não é só a música que é irmã da pintura (p. 19) – enquanto arte, o género de que participam, para usar uma linguagem platoniana. Ou seja, elas só não se identificam porque os sentidos a que pertencem são diferentes no seu valor sensitivo e cognitivo, exibindo uma posição hierárquica diferente, onde a visão ocupa um lugar cimeiro. A frase é muito interessante e de certo modo relativiza o juízo drástico de Leonardo sobre a superioridade da pintura em relação à poesia. Superioridade bem expressa não só quando fala explicitamente do valor cognitivo do olhar, mas também quando diz que “la pittura è partorita da essa natura”, é filha da natureza e parente de Deus. É por isso que ele diz que “quem condena a pintura, condena a natureza” e é falho de sentimento (p. 7).
Mas vejamos ainda mais de perto o que Leonardo diz da sobre a pintura e a poesia:
“A pintura exibe um mérito superior ao da poesia, representa com mais verdade as obras da natureza do que o poeta, e são muito mais dignas as obras da natureza do que as palavras, que são obras do homem; porque tal proporção é a mesma que se verifica entre as obras dos homens e as da natureza e a que se verifica entre o homem e Deus” (p. 7; tradução minha).
II.
UMA DIFERENÇA ONTOLÓGICA, quase se poderia dizer, apesar da equivalência que Leonardo lhes reconhece. Da ordem do ser. No meu entendimento, do que aqui se trata é da natureza eminentemente sensitiva ou sensorial da arte (estamos perante um tratado sobre a pintura, onde as restantes sete partes se ocupam da técnica da pintura) e é por isso que ele reconhece a superioridade da pintura, já que ela não exige o esforço analítico e a mediação intelectual que a poesia exige, porque se dirige mais directa e rapidamente aos sentidos do que esta. E este, que não é também um problema da música, não só é um problema da poesia como é também um problema de toda a literatura. Só que a poesia o minimiza pela forma que assume: por um lado, pela sua dimensão musical, rimática, pela toada que o encadeamento rítmico dos versos gera; por outro lado, pela sua expressividade não analítica e a sua alta performatividade. Na poesia, cada palavra tem como que um valor de tipo onomatopaico, é como uma ressonância vital, um sentimento estilizado, um grito de alma, uma interjeição. É aqui que a poesia, diferenciando-se do romance, se aproxima mais da pintura e da música. E até do silêncio. Dá-se de forma mais imediata aos sentidos ao ponto de quase se confundir com eles. É isto que quero dizer quando digo que ela é altamente performativa. De resto, até já assistimos a experiências de escrita desenhada de poesia, a da poesia visual e concreta, que funde desenho e poesia, algo ainda mais íntimo do que o próprio processo sinestésico. E também existem as experiências de poesia meta-semântica onde a sonoridade domina e determina, de forma simplesmente alusiva, a própria dimensão semântica. Ou seja, o significado não está lá (as palavras são totalmente artificiais) e o que resta é tão-só a mera sonoridade, que pode ou não aludir indirectamente a determinadas palavras, através da proximidade dos sons. Mas é o próprio Leonardo que encontra algumas coincidências em ambas: a “invenzione” (na matéria) e a “misura” (nos versos ou na proporção das pinturas); mas também diz que, ao contrário do que acontece com a poesia, as outras ciências (por exemplo, a astrologia) vão beber na pintura e, ainda, que a pintura “muove più presto i sensi (…) che la poesia”, a pintura estimula mais rapidamente os sentidos do que a poesia (p. 16). É, portanto, mais sensitiva, mais sensorial, mais directamente dirigida ao sentidos, mais impressiva.
III.
A PINTURA, para Leonardo, exprime a relação do pintor com a natureza, enquanto a poesia exprime a relação do poeta consigo mesmo, enquanto sujeito poético, ou, como ele diz,
“rappresenta le opere dell’operatore, cioè le opere degli uomini, che sono le parole, com’è la poesia” (5).
Diria, pois, que ela exprime mais a atmosfera anímica do que a realidade externa, é mais espelho do “operatore” do que de algo que lhe seja exterior. Uma diferença muito consistente, mesmo tendo em conta que este naturalismo ou, se quisermos, este positivismo de Leonardo em relação à pintura não exclui a intrusão do pintor na alma do rosto que pinta, seja o seu seja o de outrem. Ou ele não diria de forma tão clara que os olhos são a janela da alma (p. 10) e o que liberta o corpo da sua prisão física. A conceptualização é assim, radicaliza as posições para que sejam mais nitidamente determinadas.
IV.
FIXEMO-NOS, pois, sobre o que ele diz acerca de outras diferenças entre a poesia e a pintura, lembrando-nos do famoso escrito de Walter Benjamin, de 1936, sobre “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica” (Torino, Einaudi, 1966), em particular da ideia de “aura”, de unicidade da obra de arte. O que diz Leonardo? Esta, a pintura, “não se copia”, “não faz infinitos filhinhos como (se) faz com os livros impressos”, é “preciosa e única” e “nunca pare filhinhos iguais a si”. Tal singularidade, acrescenta, “la fa più eccelente che quelle che per tutto sono pubblicate” (p. 5). É disto mesmo que se trata. A “aura” é a unicidade da obra de arte, a sua singularidade, a sua autenticidade e a sua inscrição numa tradição e num culto que funcionam como seus ambientes e de onde não é legítimo retirá-la sem que a sua singularidade seja afectada (W. Benjamin, na obra citada). Pois também nisto Leonardo estabelece a diferença: a que existe entre os livros que transportam igualdade absoluta entre eles, valor desmultiplicado e igual, ao contrário de uma obra de arte, de uma pintura que é única, singular e não reprodutível. E esta é também uma diferença relevante na lógica de Leonardo.
V.
MUITAS SÃO AS DIFERENÇAS entre a pintura e a poesia para Leonardo da Vinci, sendo certo que esta última se aproxima mais da pintura e da música do que o romance. É evidente que Leonardo partia claramente de uma posição naturalista sobre a pintura e não valorizava suficientemente a estrutura nuclear da poesia e as componentes que a aproximam da pintura ou da música, quer do ponto de vista semântico quer do ponto de vista mecânico, se assim posso dizer, referindo-me à sua dinâmica musical, à toada e à melodia, mas também ao minimalismo frásico do discurso poético, características que o tornam mais intenso e sensitivo, mais capaz, portanto, de estimular rápida e directamente os sentidos… e não só o espírito. É a conjunção destes elementos que faz do discurso poético um discurso altamente performativo e que lhe atribui um poder sensitivo ou sensorial provavelmente maior do que o que transparece do escrito de Leonardo.
VI.
ESTAS SÃO CONSIDERAÇÕES, centradas no “Trattato della Pittura”, sobre a relação entre a pintura e a poesia, sem considerar outras convergências, como as da sinestesia, ou diálogo convergente, mas com autonomia relativa, entre a pintura e a poesia e a própria experiência da poesia visual e concreta, que, todavia, considero como experiência falhada, sobretudo por ser desviante e por retirar densidade e mistério à poesia ou mesmo por não passar de um mero “amusement” poético e plástico. E, todavia, também esta foi uma tentativa de aproximação da poesia da pintura, de simbiose experimental de duas artes. Ou ainda como a da poesia meta-semântica, onde a sonoridade é o eixo decisivo da composição poética. O exemplo que mereceria uma aturada reflexão é “Il Lonfo”, de Fosco Maraini.
VII.
COMPREENDO MUITO BEM a posição de Leonardo, o seu objectivo neste tratado sobre a pintura, mas parece-me que a poesia reflecte uma tal posição intermédia entre a narrativa literária e a pintura que merece uma reflexão que vá para além das categorias que o grande Leonardo aqui avança. Esta posição intermédia não só reflecte o intervalo em que o poeta se coloca, mas também o carácter não analítico, mas sensitivo (sensorial e sensual) do discurso poético. Diria, por fim, que a poesia é uma arte que se aproxima mais da pintura e da música do que da própria narrativa literária, a que parece pertencer. Jas@11-2022.
“TRIAL&ERROR”
O MÉTODO DA POLÍTICA BRITÂNICA

“S/Título”. JAS. 10-2022
AS ELEIÇÕES OCORRERAM no final de 2019, com um extraordinário resultado para os tories de Boris Johnson, mas, como se sabe, este, atropelado pelas inúmeras trapalhadas ocorridas durante a pandemia, foi forçado a deixar a liderança e, consequentemente o cargo de primeiro-ministro (é esta a norma no sistema britânico), tendo sido substituído por Liz Truss, após uma renhida disputa com Rishi Sunak. Agora, pouco tempo depois de assumir a liderança, também Liz Truss acabou por ter de sair e o Partido Conservador escolheu rapidamente, mais uma vez, um novo líder e um novo primeiro-ministro. Três líderes e três primeiros-ministros em três anos (e cinco em seis anos, desde 2016). Pior: três primeiros-ministros num só ano. Pior ainda: entre Julho e Outubro. É obra, temos de reconhecer. E as eleições só serão em Dezembro/2024 ou em Janeiro/2025. Haverá ainda tempo para um quarto líder e um quarto primeiro-ministro? Não se sabe, mas, à prova dos factos, já verificados, tudo pode acontecer. O método parece ser o conhecido “Trial&Error”. Os conservadores vão tentando, até reduzindo procedimentos, até acertar. É a política compatível com este método?
I.
O PARTIDO CONSERVADOR tem uma maioria muito confortável no parlamento (357 mandatos, contra 196 dos trabalhistas, sendo necessários para a maioria absoluta 326). O sistema institucional numa democracia parlamentar como a britânica confia a formação do governo ao partido que tiver maioria. Apesar do poder (basicamente cerimonial) de nomear e exonerar o primeiro-ministro e de dissolver o parlamento, a margem de escolha do Rei não existe, pois este, de acordo com a tradição, deve aceitar as escolhas políticas que o primeiro-ministro e o parlamento fizerem, não dispondo do poder de livremente decidir sobre a nomeação do primeiro-ministro ou sobre a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições. O rei reina, mas não governa e tem o estrito dever de manter neutralidade política.
“the Crown is an integral part of the institution of Parliament. The King plays a constitutional rol in opening and dissolving Parliament and approving Bills before they become law” (...) “Time has reduced the power of the monarchy, and today it is broadly cerimonial” (…). “The day after a general election the King invites the leader of the party that won the most seats in the House of Commons to become Prime Minister and to form a government” (…) “The Crown also dissolves Parliament before a general election” (do Site do UK Parliament).
Numa palavra: os poderes do rei são de carácter meramente formal. A neutralidade real é garantida pela (obrigatória) assunção formal das decisões políticas tomadas pelo Parlamento e pelo PM. O partido maioritário detém, assim, todo o poder e, note-se, está também acima de qualquer liderança, relativizando de certo modo aquela que tem sido a crescente personalização da política (maior nos sistemas presidencialistas e nos sistemas eleitorais proporcionais). Mas também acontece que o poder do partido e o da liderança não anulam o poder de cada militante (decisivo para a eleição do líder) e, sobretudo, de cada deputado no seu interior, enquanto eleito em sistema maioritário uninominal e portador de legitimidade originária própria. Note-se que, desta vez, por decisão do Comité 1922, Rishi Sunak foi eleito somente pelos deputados do partido, sem recurso ao voto dos militantes (o que não acontecera com Liz Truss). Neste sentido, o partido conserva uma forte dialéctica interna diferente daquela onde a liderança partidária domina absolutamente a vida interna dos partidos, sendo a militância sobretudo “braço armado” da liderança de turno, “massa de manobra” para o combate eleitoral, não tendo os deputados o mesmo poder. Isto sobretudo nos partidos mainstream, nos partidos que tradicionalmente disputam a alternância governativa e que, por isso, dispõem de um vasto poder de ocupação da administração do Estado. Neste caso, o sistema eleitoral que melhor se adapta é o sistema proporcional com listas fechadas, onde não só as lideranças podem impor os seus candidatos, mas onde também estes não têm de disputar directamente os círculos eleitorais onde se candidatam – na verdade, a disputa centra-se sobretudo no partido (na sigla) e numa liderança altamente personalizada. E por isso verifica-se uma diferença substancial entre estes dois sistemas: em ambos o partido é decisivo, mas no sistema maioritário uninominal não só os deputados têm uma maior autonomia política, correspondente à responsabilidade pessoal de ganhar o respectivo círculo eleitoral (constituency), como também o partido na sua proposta tem de reconhecer e respeitar as dinâmicas da sociedade civil, sendo obrigado a fazer criteriosas escolhas dos seus candidatos se quiser ter sucesso eleitoral. Nestes sistemas muitas vezes a maioria eleitoral no país nem sequer corresponde à maioria vencedora. Esta pode perder no país, mas ganhar em mandatos. Este sistema eleitoral (maioritário uninominal) tem naturalmente uma influência directa sobre o próprio partido. Não é a panaceia que tudo resolve, mas é melhor do que um sistema que acabe sempre por afunilar o processo político na liderança do momento. Tal como as primárias abertas não o são, embora também estas sejam melhores do que o sistema que não as adopta. A questão é mais funda, mas também aqui está muito em jogo o bom e o eficaz funcionamento de um partido político.
II.
O SISTEMA INGLÊS tem esta vantagem e não raramente se assiste a crises de líderes (e de primeiros-ministros) centradas nos respectivos grupos parlamentares. Foi o que aconteceu com Johnson e com Liz Truss. Parece ser negativo, mas, na realidade, é mais positivo do que negativo. O sistema ganha maior vitalidade e liberdade interna.
Mas, neste caso, depois da saída de Liz Truss, será compreensível que se assista a uma terceira tentativa sem que, razoavelmente, a palavra seja devolvida ao povo (mas nem sequer foi dada aos militantes), verificada que está a longa desorientação do próprio partido conservador? Provavelmente, se fosse uma república parlamentar, como a nossa, o Reino Unido estaria agora em eleições antecipadas. Em Portugal seria assim, com toda a certeza. Já aconteceu por menos (recentemente, mas também com a dissolução do Parlamento por Jorge Sampaio). Só que na monarquia constitucional britânica, com um Rei desprovido tradicionalmente de iniciativa política, não há mecanismo institucional que possa decidir eleições antecipadas, estando esse poder no Parlamento (existe, para a dissolução, um Fixed-term Parliaments Act 2011: “An Act to make provision about dissolution of Parliament and the determination of polling days for paliamentary general elections”) e no primeiro-ministro.
E, todavia, parece evidente, vistas as circunstâncias, que o Reino Unido ganharia em ir para novas eleições legislativas como vem pedindo o Labour de Keir Starmer, dado, pelas sondagens, como claríssimo vencedor se isso viesse a acontecer, o que indicia uma evidente perda de legitimidade dos conservadores. Mas os tories, estando no poder desde 2010 (desde o tempo de David Cameron, o verdadeiro responsável moral pelo BREXIT) e estando, numa sondagem de YouGov, 33 pontos abaixo dos trabalhistas (21% contra 54% do Labour) e 21 pontos noutra, da Survation, não parece estarem muito interessados em ir para eleições, esperando melhores condições em 2024/2025. O que não será coisa fácil. O novo líder foi, de facto, declarado na Segunda-Feira e nomeado pelo Rei ontem. E é Rishi Sunak. O sistema procede, pois, por um cada vez mais expedito método “trial and error” no interior do partido maioritário e, consequentemente, no próprio executivo britânico. Vamos ver se é de vez agora e iremos também ver se os cidadãos e o grupo parlamentar farão uma avaliação positiva da sua acção até às próximas eleições. Rishi Sunak tem, portanto, pouco mais de dois anos para mostrar o que vale. Como se dizia na segunda-feira, 24.10, no New York Times (Eshe Nelson), ele vai precisar de muita habilidade para navegar entre um partido “unruly and fractious” e o rigor nas finanças públicas exigido pelos mercados financeiros. Para já, reconduziu grande parte do governo anterior.
III.
NA VERDADE, esta situação não parece dignificar muito a própria política, ao reduzi-la simplesmente a uma questão de poder e, neste caso, ao único objectivo de manter o poder a todo o custo. As virtudes do sistema britânico têm, neste caso, consequências que são claramente negativas. Na verdade, não havendo eleições, como decidido pela ex-primeira-ministra e pelo Comité 1922, isso significará uma ulterior degradação da política ou mesmo uma autêntica autêntica palhaçada democrática, como afirmam os autores de uma petição em curso (promovida pela Avaaz.Org – The World in Action) para a realização imediata de eleições: “it makes a mockery of democracy”. Pelo menos, parece ser a redução da política a um mero exercício de poder, a um seu uso instrumental, a uma menorização do próprio princípio da legitimidade substancial e da legitimidade de exercício. E um uso excessivo (em política), e cada vez mais expedito, do método assente em “trial and error”, pouco adequado ao processo político democrático, mesmo tendo em consideração a natureza (livre) do mandato não imperativo. De resto, como vimos, as sondagens são claríssimas sobre o estado da opinião pública e a legitimidade do partido conservador para governar. Talvez Keir Starmer tenha mesmo razão: “the Tories have shown they no longer have a mandate to govern. (…) It’s time to a general election” (de um e-mail de Starmer). Parece-me mesmo que sim. Em nome da decência política. Mas isso não irá acontecer se Sunak conseguir estabilizar a liderança do partido conservador, a sua principal tarefa, já que a resolução da crise se mostrará muito mais difícil.
A LIÇÃO ITALIANA
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 10-2022
TALVEZ O CASO ITALIANO mereça uma atenção especial. Não seria a primeira vez. E não só porque, na sua história, houve a originalidade da criação do fascismo. Ou porque foi também a única democracia europeia (não falo das autocracias que, entretanto, se mantinham) que permaneceu mais de quarenta anos bloqueada, sem alternância no poder, até à queda do Muro de Berlim. Houve sempre uma conventio ad excludendum relativa ao único partido de oposição (o PCI) com capacidade alternativa de governo que impedia a sua chegada ao poder. Isto, apesar de, em 1981, François Mitterrand ter engajado quatro ministros do PCF no poder (entre os quais Charles Fiterman), levando desse modo, e paradoxalmente (ou não), este partido ao desaparecimento da cena política francesa. Mas em Itália a situação manteve-se inalterada. Apesar do eurocomunismo e da liderança confiável de Enrico Berlinguer e de quem se lhe seguiu na liderança (Alessando Natta e Achille Occhetto). A Itália é uma grande democracia que viu o imenso património político e ideal acumulado do PCI desmoronar-se progressivamente a caminho da actual irrelevância do Partito Democratico. Trata-se de um país que é um poderio económico europeu e com um património histórico e cultural único. Um dos pilares da União Europeia. Um berço da Europa. Um país que conheço bem, onde vivi e trabalhei dez anos e sobre o qual escrevi centenas e centenas de páginas. Conheci muito de perto os meandros internos da política italiana pela proximidade que tive com vários dos seus mais altos representantes. Vivi por dentro a sua história política, mas também a sua história cultural. Mas hoje vejo-me confrontado com algo que julgava que nunca iria ver na minha vida: as mais altas posições do Estado estarem ocupadas pela direita radical, aquela cujo património nos leva directamente ao Movimento Sociale italiano (MSI), de Giorgio Almirante, e mesmo à Repubblica di Salò. Com efeito, o Senado é já hoje dirigido por Ignazio la Russa, um personagem que deu os seus primeiros passos políticos no MSI de Giorgio Almirante e que sempre me fez lembrar um episódio impressionante desse extraordinário filme de Bernardo Bertolucci, o “Novecento”. Por sua vez, Lorenzo Fontana, o novo Presidente da Câmara dos Deputados, da LEGA de Salvini, é um católico ultra, tradicionalista e alinhado, através do seu conselheiro espiritual Vilmar Pavesi, com as posições do famoso bispo Marcel Lefebvre (casou-se segundo o “rito tridentino”) e defensor acérrimo das idiossincrasias mais retrógradas; um homem que reza, diz-se, cinquenta avé-marias por dia e que enxameia as redes sociais com santos e santinhos. Nada de mal, mas algo que nos dá bem ideia do que será a gestão institucional de Itália. Amanhã, a defensora da “universalidade da cruz” e fundadora dos “Fratelli d’Italia”, Giorgia Meloni, será a Presidente do Conselho de Ministros. Seguir-se-á a ocupação de todos os cargos de nomeação por parte dos conservadores radicais. Não estaremos a caminho de uma teocracia nem do fascismo. Não. Mas lá que devemos estar atentos, lá isso devemos. Pelo caminho, até já tenho saudades dos tempos em que Itália era governada pela DC e pelo PCI (que nunca governou, mas que tinha, e exercia, muito peso político).
I.
MAS A VERDADE É QUE, no país, o bloco de direita é minoritário porque, à prova dos factos (eleitorais), teve menos um milhão e meio de votos do que o centro-esquerda. A sua vitória deveu-se sobretudo ao sistema maioritário uninominal, a uma só volta, aplicável a cerca de 37% do eleitorado, e à estupidez umbilical do centro-esquerda. Mas agora também acabamos de ver o partido de Berlusconi (excepto o próprio e a ex-Presidente do Senado Casellati) a não participar na votação de La Russa, que obteve, todavia, da oposição 17 votos. O que me dá algumas garantias. Se nem a oposição se preocupa, por que razão me hei-de preocupar eu? O governo está em formação e veremos se o programa de governo exprime aquele que foi o moderado programa eleitoral do bloco de direita ou se haverá alterações substanciais ao que foi apresentado aos eleitores. E, todavia, não creio mesmo que se possa dizer que o fascismo chegou a Itália, assim, com a reposição de algo que a democracia rejeitaria liminarmente, até porque ela ainda dispõe de mecanismos suficientemente robustos para isso. A chave de leitura do que virá aí, na minha perspectiva, não será essa. A história tem, claro, “corsi e ricorsi”, como dizia o Giambattista Vico. Mas os “ricorsi” não suficientes para fazer regressar Mussolini. E, de qualquer modo, nesta teoria a história progride sempre para novas fases. E até creio que, apesar de soberanistas (a LEGA e Fratelli d’Italia), nem sequer será a questão europeia (não esqueçamos que Itália é o país que leva a maior dotação do PRR, mais de 200 mil milhões de euros) a marcar a diferença ou a da guerra na Ucrânia. Neste último aspecto, Giorgia Meloni sempre foi clara. A “pacchia” pode ter acabado, mas 200 mil milhões são sempre 200 mil milhões. E, tenho a certeza, a Itália não é a Hungria, que, apesar de tudo, se mantém na União. Farão bloco, sim, “ma non troppo”. Disso também tenho a certeza. Por uma simples razão: Itália não fez parte do bloco das repúblicas socialistas, do Comecon ou do Pacto de Varsóvia. E isso fará alguma diferença.
II.
AS QUESTÕES INCONTORNÁVEIS serão, no meu entendimento, as da imigração e dos direitos civis. Mas a mudança ocorrerá também no plano mais global da hegemonia ético-política e cultural. Foram muitos os anos em que a direita mais radical esteve também sujeita a uma conventio ad excludendum. E em que sofreu uma capitis diminutio ideológica e política, para pagar o preço do “ventennio”. E outros tantos anos em que a hegemonia foi claramente do partido comunista italiano, incluído o campo cultural. A este propósito, veja-se os meus ensaios “La Cosa” e “A Revolução no Sistema Político Italiano e a Esquerda” na Revista “Finisterra” (5/1990 e 15/1994, pp.95-109 e 51-69), onde mostro como. Mas, depois, o que tivemos foram outros tantos anos em que a ideia de hegemonia, com a tecnicização progressiva da política e a financiarização global da economia, parece ter sido banida do vocabulário político, à esquerda e à direita. Só que, entretanto, ela parece estar a regressar em força, quer na óptica da direita mais radical quer na de uma esquerda fracturante que procura impor uma visão do mundo politicamente correcta. Uma matriz mais tradicionalista e outra mais construtivista. Duas visões antitéticas que nada devem à tradição iluminista e liberal. Ou seja, a hegemonia está a entrar pelos lados mais perigosos da história, pondo em causa a própria ideia de liberdade e a matriz da nossa própria civilização. O tradicionalismo e o construtivismo são, de facto, duas visões que tendem a anular uma parte substancial e progressiva da história que renasce com a Revolução Francesa. Esta dimensão da hegemonia, entretanto, tem vindo a ser ignorada pelo centro-esquerda que, em compensação, se está a deixar seduzir pelo militantismo do politicamente correcto, do construtivismo social e das políticas identitárias, acabando por não definir com exactidão aquela que deveria ser a sua própria colocação. Esta marcha tem ajudado à paralisia ideológica do centro-esquerda, que tem preferido, pelo contrário, embarcar acriticamente neste discurso, exibindo-o retoricamente como o discurso da nova esquerda, talvez porque, assim, não tem de propor um seu discurso próprio, progressista, sim, mas mais realista e respeitador da temporalidade histórica, ao mesmo tempo que também se alimenta do anacrónico discurso do militantismo antifascista, como se a história não fosse dotada dessa astúcia (List) da razão que se impõe à dialéctica das contingências ou das meras oportunidades. Alguma transcendência será possível encontrar na história, sem que ela tenha de ser referida necessariamente a deuses ou ao destino. Sim, mas a verdade é que o centro-esquerda sente-se muito bem aconchegado e resguardado num “politiquês” asséptica e programaticamente correcto e num manto discursivo diáfano transversal capaz de encadernar muito bem as políticas ao sabor das contingências, dos oportunos cálculos eleitorais e do ditame da razão económica global. Do que não se apercebe é que há uma cidadania que tem vindo a crescer ao lado destes discursos e que já não os absorve acriticamente, votando hoje cada vez mais em discursos com substância e clareza (seja ela de esquerda, França, por exemplo, seja ela de direita, Itália, por exemplo) ou, então abstendo-se.
Pois bem, o bloco de direita italiano somar-se-á aos da Hungria e da Polónia e tentará desenvolver mecanismos políticos internos que transformem a sua hegemonia eleitoral numa mundividência hegemónica. Ou seja, a questão central disputar-se-á no terreno da sociedade civil e, por isso, o centro-esquerda deve construir a sua própria e autónoma identidade ético-política e cultural de modo a que se possa contrapor com eficácia à visão tradicionalista, nacionalista e soberanista do bloco de direita, e no qual, de resto, a visão neoliberal é claramente minoritária (enquanto representada por Forza Italia). Sinceramente, não sei se a direita radical italiana será movida por essa pulsão hegemónica (ajudada pela crescente tendência mais global), se terá essa ambição, sem se deixar afogar nas ingentes tarefas governativas e pela gestão dos próprios interesses de curto alcance. Alguns já falam de uma revolução ou agenda “antropológica positiva” alternativa. Que ela tem condições para isso, é verdade, não só porque dispõe de doutrina, mas também porque é nela que tem vindo a sustentar o seu próprio crescimento político e eleitoral, designadamente no seu combate frontal à agenda dos apologistas do politicamente correcto e das políticas identitárias. No extremar de posições, designadamente no plano dos direitos civis, sente-se cada vez mais a falta de uma consistente e hegemónica visão progressista, moderada, respeitadora da temporalidade histórica e adversária quer do tradicionalismo ultra quer do construtivismo social e linguístico.
III.
E, TODAVIA, SE VIRMOS DE PERTO o panorama político do centro-esquerda italiano o horizonte é algo desolador. O PD é todo para reconstruir e redesenhar. É convicção generalizada que a mudança não pode esgotar-se numa simples mudança de dirigentes. Mas também é convicção generalizada que a operação não é simples. O Movimento5Stelle deverá, com Conte, consolidar uma sua identidade, que já não é a de um “partido digital”, a do defensor da democracia directa, a do neopopulismo que não é de esquerda nem de direita. Também este partido terá de se identificar melhor aos olhos dos italianos. Depois, vem o chamado terceiro polo de Calenda e Renzi. Mas aqui, com o imprevisível Renzi, é impossível prever o que possa vir a acontecer. Deste personagem pode-se esperar tudo e o contrário de tudo. A sua única estratégia é a da sobrevivência política, sem olhar a meios políticos ou morais. O seu modelo parece ser o do partido unipessoal. E por isso não é preciso ver mais para que a dúvida permanente se instale sob forma de certeza: não se pode confiar nele, porque se trata de um verdadeiro catavento.
IV.
O essencial discute-se aqui, talvez mesmo mais do que a perspectiva programática, uma dimensão para onde as forças de governo parece, cada vez mais, tendencialmente convergirem (todas elas), como se os governos fossem uma espécie de oráculo onde os vários sacerdotes se vão revezando nas liturgias, com os “deuses” a comandarem lá de longe, movendo os fios a seu bel-prazer, isto é, de acordo com os seus interesses e fins últimos. E sabemos bem que os partidos da alternância estão mesmo em crise, até nos casos em que ainda governam. De resto, os sistemas de partidos estão fragmentados por todo o lado e os seus discursos perderam poder mobilizador perante a cidadania. O asseptismo ideológico veio para ficar e só falta mesmo que os políticos passem a dizer, sistematicamente, sempre que haja uma decisão a tomar, que a entregarão aos técnicos da matéria em causa. Especialistas, técnicos, reguladores, tribunais constitucionais, grupos de missão, União Europeia – tudo serve para “descontaminar” a decisão da política. E por isso acho que a descolagem já é com a própria política, mais do que com os programas, de resto, cada vez mais tendencialmente iguais. A tendência é, de facto, a de mascarar a decisão política com a roupagem tecnocrática ou até científica, ou seja, a de retirar dimensão política à decisão. De resto, o bem-estar dos cidadãos parece ter sido mesmo reduzido a uma questão de gestão. A uma questão empresarial. Uma questão de racionalidade técnica. A determinação de fins, o funcionamento global da sociedade, os valores, o intangível, a educação estética do cidadão, a profundidade temporal (em relação ao passado e em relação ao futuro), tudo isso é redutível e convertível numa visão simplesmente empresarial da sociedade, quando, afinal, o que da experiência sabemos é que é precisamente o contrário o que acontece: a importação para dentro do universo empresarial das próprias categorias da vida social. Isto nas visões empresariais mais avançadas. Exemplo clássico? O fordismo. Veja-se o que dele disse Gramsci nos “Quaderni del Carcere”.
V.
A POLÍTICA MUDOU MESMO. Por um lado, os partidos da alternância tendem cada vez mais a despolitizar a decisão política, deixando que ela se exprima somente durante os períodos de deliberação política, sobretudo eleitorais. Por outro, cresce na cidadania a vontade de uma política diferente que não lhe é oferecida, a não ser pelos extremos do espectro partidário. Mas é disso que os partidos mainstream não se querem convencer. E sinceramente não sei como é que o Partito Democratico se vai reconstruir: que discurso, que identidade, que estratégia. E não sei se se porá a questão da hegemonia, ou seja, a procura de uma identificação com o que de melhor a Itália tem para oferecer em todas as dimensões da sua riquíssima história. A experiência ganhadora do M5S acabou. Esse já não é o partido de Conte. Casaleggio morreu. E Beppe Grillo já só pensa em si e nos benefícios que ainda pode conseguir da sua posição de “Garante”. O Luigi di Maio nem sequer foi eleito pela sua minúscula e recente formação política. Desapareceu. Como desapareceram politicamente os herdeiros de Casaleggio, a começar pelo filho. E quanto ao chamado “terzo polo” não vejo mesmo como é que se poderá aguentar com um saltimbanco como esse tal Matteo Renzi. Falta gravitas à política actual. E a cidadania cada vez se reconhece menos nela. Senão vejamos. Como acreditar, quando um dos parceiros do bloco de direita que venceu as eleições, precisamente Silvio Berlusconi, diz da futura Presidente do Conselho de Ministros: “Giorgia non ha disponibilità ai cambiamenti, è una con cui non si può andare d’accordo”. Mas, mais: ela é “supponente, prepotente, arrogante e ofensiva” e até “ridicola”, se a palavra não tivesse sido riscada. E Forza Italia é um partido necessário para garantir uma maioria de suporte do governo chefiado por Giorgia Meloni. Berlusconi sabe bem do que fala, pois ela foi sua ministra (da Juventude) num dos seus governos e não adianta que agora venha desmentir para levar a bom porto as suas operações ministeriais. E a LEGA? O famoso “Senatur” Bossi ainda mexe e muitos já falam do regresso da velha LEGA. E, para ser sincero, nem me parece que os 26% de Fratelli d’Italia estejam ancorados muito solidamente na sociedade italiana. Porque a falta de gravitas, na verdade, talvez seja mesmo transversal.
VI.
A CIDADANIA TAMBÉM MUDOU muito e hoje o cidadão pode saber tudo acerca de quem o representa e de quem o governa. Conhecer as vidas dos representantes e dos governantes. O sistema informativo, mesmo com essa enorme dimensão simulacral que o integra, cresceu brutalmente e isso veio alterar significativamente a percepção acerca da política. Já não é possível determinar instrumentalmente a estrutura da opinião pública como quando eram os grandes meios de comunicação, o outro lado do poder, a fazê-lo. Esta mudança implica uma mudança radical na forma como a cidadania olha para o poder. Mas é precisamente aqui que os partidos mainstream falham rotundamente ao não perceberem que a política deve ser abordada com outras categorias que não as que tem vindo a adoptar. Que deve restaurar a sua natureza originária, como governo de seres humanos e não de coisas. Olhar para o exemplo das religiões e do poder que elas exprimem. Olhar para o seu sucesso. Ou para os grandes desportos de massas. Numa palavra, olhar para a dimensão emocional da política, para aquilo que toca mais profundamente o ser humano, por um lado, humanizando-a e, por outro, tornando-a mais amiga da natureza. E não só para sobreviver fisicamente, mas também como reconhecimento de que o ser humano é também ele próprio natureza. As sociedades não são empresas porque nelas a presença do elemento emocional (e os sentimentos) é decisiva e deve ser considerada fundamental. O Max Weber falava criticamente de “gaiola de aço” para designar o sistema jurídico-racional que tendia a engavetar a realidade em fórmulas burocráticas e desumanas. Hoje temos “gaiolas electrónicas” e “gaiolas estatísticas” que engavetam a vida dos indivíduos. O Fernando Pessoa, no dizer de Richard Zenith, na sua monumental biografia do poeta, parece ter dito, em meados dos anos trinta, que Salazar era “demasiado técnico”, faltando-lhe “criatividade e calor humano”: “Para ele o país”, dizia o Pessoa, “não é a gente que nele vive, mas a estatística dessa gente”. E vivíamos num período conhecido como a época de ouro das ideologias. Imagine-se, pois, o que Pessoa não diria da política de hoje, com o eclipse das ideologias e o triunfo das visões tecnocráticas do mundo, da racionalidade global e da financiarização integral da economia. Mas é disto mesmo que se trata: a nova visão é a dos grandes números da macroeconomia, a única visão que os políticos do mainstream parece saberem proclamar. Não é assim tão difícil de perceber: esmague-se a cidadania com impostos e depois poderemos exibir resultados nas finanças públicas suficientes para todos abrirmos os olhos de espanto com tanta competência. Gasta-se demais? Tem de ser, porque são imperativos sistémicos. Esta parece ser a conversa principal dos partidos mainstream. Mas é por aqui que os extremos avançam ao proporem sociedades fundadas em valores, sejam eles os da “soi-disant” esquerda sejam eles os da mais tacanha tradição.
VII.
É CLARO QUE NÃO HÁ RECEITAS MÁGICAS. Mas também é claro que basta abrir os olhos para ver a crise da política e as tendências que começam a formar-se na sociedade civil e na opinião pública. O que aconteceu nos USA, com Trump, não parecia possível. O que está a acontecer no Brasil, com Bolsonaro, também não. O que aconteceu na Itália era realisticamente previsível, mas, ainda assim, não deixa de chocar e de impressionar. O que aconteceu na Suécia, também, com um partido radical como segundo partido, com cerca de 20%. O Alternative Fuer Deutschland sobe aos 13% e a CDU/CSU já se encontra a 10 pontos (com 30%) acima do SPD de Olaf Scholz (segundo uma recente sondagem da Allensbach para o Frankfurter Allgemeine) e com um consistente grupo parlamentar. O que está a acontecer na Hungria e na Polónia merece atenção redobrada. Isto para não falar de Espanha, onde o fenómeno VOX tem vindo a emergir com muita força, cifrando-se hoje o seu score eleitoral em cerca de 15% (na média de 10 sondagens entre 17/10 e 03/10; o que, somado com os 31, 58% do PP, permite atingir uma maioria absoluta à direita espanhola, mantendo-se o PSOE em cerca de 25%). Em França é o que se sabe, com a extrema-esquerda a ocupar o lugar do centro-esquerda e a extrema-direita sempre à espreita da Presidência da República e agora com um numeroso grupo parlamentar. Em Portugal algo se move neste sentido, ao mesmo tempo que o centro-esquerda adormece sobre uma concepção de política assente no movimento por inércia.
É também claro, como disse, que a direita italiana não tem uma posição muito estável, sobretudo se atendermos à posição de Forza Italia na eleição para o Presidente do Senado e ao juízo de Berlusconi sobre Giorgia Meloni. Ou também às movimentações internas na LEGA. Mas seguramente terá oportunidade para dar início a uma tentativa de hegemonização na sociedade italiana rompendo aquele que sempre foi tradicionalmente um espaço dominado pela esquerda, desde os tempos da esmagadora hegemonia do PCI. O suporte político já existe e certamente não perderá a oportunidade de se afirmar também nessa frente, logo a começar pela agenda “antropologicamente positiva”, sendo, todavia, certo que não há uma linearidade entre uma hegemonia político-eleitoral e uma hegemonia ético-política e cultural. Mas o que é certo é que a direita radical tem, neste domínio, um seu claro património consolidado, o que não acontece com o centro-esquerda, que terá de o reinventar, ao mesmo que tempo que terá também de se reinventar politicamente. A ver vamos.
PESSOA REVISITED
(Nova Versão revista e aumentada)
A propósito de “Pessoa. Uma biografia”,
de Richard Zenith
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 10-2022
“PESSOA. UMA BIOGRAFIA”, de Richard Zenith, é uma obra monumental, com quase 1200 densas páginas (mais exactamente: 1184; Lisboa, Quetzal, 2022, com uma excelente tradução do original em inglês por Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes), que segue milimetricamente a vida e a obra de Fernando Pessoa, do nascimento à morte, como se o autor procurasse, pela via histórico-analítica, encontrar o verdadeiro Pessoa, o que se escondia sempre nos inúmeros heterónimos, do Alexander Search (“uma projecção do próprio Pessoa”, p. 266), dos primórdios, ao neopagão António Mora, ao Alberto Caeiro, ao Álvaro de Campos ou ao Ricardo Reis. Estes três últimos os principais. Encontrar o personagem que ia sendo moldado (embora o seu mestre Caeiro gostasse de dizer: “contenta-me ver com os olhos e não com as páginas lidas”) pelas inúmeras referências intelectuais que visitava regularmente, John Keats, Edgar Alain Poe, Milton, Walt Whitman, Oskar Wilde, Shakespeare, ou até ele-próprio na figura do seu assumido mestre Alberto Caeiro, o poeta puro, o guardador de rebanhos. Não tanto o Bernardo Soares, porque esse era somente um semi-heterónimo (p. 889) que, por vezes, se identificava totalmente com o Pessoa (p. 817), esse sujeito que chegou até nós envolto na neblina dos heterónimos e nalgum sebastianismo. Parece, de facto, ser verdade que, por vezes, “Pessoa e Soares coincidem na perfeição”, diz Zenith (p. 939). E digo também eu, que não sou especialista em Pessoa, mas um simples frequentador assíduo do Livro do Desassossego, essa admirável obra filosófica em fragmentos. Sendo ele próprio, ou quase, não podia ser seu mestre, como reconhecidamente acontecia com o Caeiro. Mas, quem sabe? Com o Pessoa tudo é possível.
I.
A coisa é tão espantosa que até o nome Fernando Pessoa parece ser também o heterónimo de um sujeito não inscrito no registo civil, como se a pessoa física estivesse integralmente subsumida no produtor de arte literária, não existisse enquanto tal. É por isso que algures, neste livro, se diz que Fernando Pessoa é aquilo que escreve. Nada mais. Como se o resto fosse simplesmente espectral. Se dúvidas houvesse, bastaria ler o que ele próprio escreveu em 24.08.1930: “Não sei quantas almas tenho / Cada momento mudei / Continuamente me estranho / Nunca me vi nem achei” (p. 850). É fingimento? A julgar pelo que foi realmente a sua vida e a acreditar no que nos conta Zenith, sim, é fingimento, mas para valer, como se fingir fosse viver ainda mais profundamente do que, pura e simplesmente, existir, se é que é possível existir sem fingir. Fingimento poético, entendamo-nos. Ou não fosse verdade o que dizia o bobo Bitolas a Aurora, em “Como Vos Aprouver”, de William Shakespeare: “a poesia mais verdadeira é a que mais finge” (p. 877). Ora toma! Logo haveria de ser Shakespeare o inspirador da sua “Autopsicografia”. O nosso autor bebeu bem em Shakespeare. Sem dúvida, como está clara e amplamente demonstrado nesta obra. Uma coisa é certa: a poesia não é descritiva, denotativa, como gostam de dizer os linguistas. E, se não é, o fingimento tem um valor diferente, na poesia. Com ela, não se descreve, sente-se, mesmo que se finja. Mais: só é mesmo poesia se fingir. Se tiveres de confessar algo, dizia ele, então “confessa o que não sentes”, ou seja, finge (p. 998). Finge que é dor a dor que deveras sentes. Mas não é poesia se não se sentir. Assim é que é. O resto é virtuosismo linguístico, jogo artificial. Só quem sente pode poetar, mesmo que seja só pelo gosto de sentir, não o sentir propriamente dito, como me parece ser o caso. Só em parte, para o caso do Pessoa, diria a Ofélia, que experimentou o calor dos seus beijos, mas não os do Álvaro de Campos, para o qual, de resto, “Fernando Pessoa (…) não existe, propriamente falando” (p. 999). Mas se não existe como poderia sentir? Talvez seja vingança do Campos por Pessoa se ter apaixonado por Ofélia, algo que nunca devia ter acontecido. Querem melhor prova do que esta? Ou o que diz Zenith: “Os poemas e os textos em prosa eram ele, a própria pessoa dele, ou os fragmentos da pessoa, ou Pessoa, que não existia enquanto tal” (p. 1046). Será que o Campos achava que a relação com a Ofélia o tornava real, banalmente real, e, por isso, impróprio para a poesia ou para a literatura? O que parece é que o Pessoa estava sempre a colocar-se no tal intervalo (entre si e o real) de que falava o Bernardo Soares. A colocar-se num espaço intermédio que não era palco nem plateia.
II.
JÁ NÃO CHEGAVA O HETERÓNIMO dizer que ele não existia, agora vem o biógrafo confirmar a tese do Campos. E a Ofélia a sentir-se cada vez mais uma alucinada que viveu um sonho real. O biógrafo chegou, se não erro, pelo menos duas vezes, a interrogar-se directamente sobre quem era, afinal, este Pessoa (pp. 761 e 941). Uma das vezes, interpelando mesmo o ausente. Claro, não teve resposta, mas estou convencido de que, em qualquer caso, não teria mesmo resposta. E, de facto, a interpelação do biógrafo só foi parcialmente respondida na fase final da vida do personagem, porque houve uma espécie de reincarnação existencial do poeta, tendo-se ele aproximado mais da vida e desnudando-se um pouco no “Livro do Desassossego”. Se bem entendi, a última parte do livro do Zenith é isso mesmo que nos diz. Mas, em boa verdade, e no fim de contas, o Pessoa era mesmo só aquilo que escrevia. No essencial era isso. O outro não interessa. Só isso, mas sem deixar de ser muito mais do que isso. O que, afinal, lhe sobrava como irrelevância, constante fracasso, quando tentava resolver coisas na reles e banal vida quotidiana. Coisas sempre mal resolvidas, a começar pelos empréstimos financeiros. De resto, o que ele deixou nada mais foi do que um baú cheio de preciosidades literárias que iriam fazer dele o maior escritor português do século XX (que me desculpem os outros e também o Saramago). Até a relação com a Mãe não correu lá muito bem… Que fazer? Ele não se ajeitava mesmo com a vida concreta, quando passava à tentativa de concretização daquilo que idealizava. Planificar, sim, tudo o resto era uma maçada e ele nem sequer estava para se chatear muito com isso. De resto, mesmo que quisesse e tentasse realmente nunca iria conseguir. Porque o seu mundo era outro. E não era só em questões amorosas, como foi o caso que teve com a infeliz da Ofélia Queiroz ou mesmo com alguma inclinação homo-erótica que tivesse tido em relação a jovens ou até a grandes amigos poetas como o Mário de Sá-Carneiro. Com este talvez tenha experimentado o homo-erotismo intelectual, o relacionamento afectivo através da poesia. Tertium datur. Isso mesmo: amavam-se em palavras aparentemente ou fingidamente impessoais. O que garantia a Pessoa ficar longe dessa “obscenidade” que repudiou (p. 869). Nunca saiu da sua toca poética (p. 663). Só o suficiente para sobreviver. Bom, saiu com a Ofélia Queiroz. Saiu mesmo, mas, no fim, a realidade literária impôs-se, e até porque a consumação sexual, para além dos beijos apaixonados, corresponderia a trair essa decisão que tomou em 1930: “banir da vida a obscenidade”.
III.
E NÃO ERA SÓ O HOMO-EROTISMO, que nunca experimentou (não há evidências suficientes para o afirmar), era também deixar-se capturar pelo corpo de uma mulher e ficar queimado por esse perigoso ácido sulfúrico. Ficar com a alma queimada e, por essa via, também com o espírito. Isto não é conversa, não, porque, realmente, ele sentiu – e disse-lho – Ofélia como ácido sulfúrico. “Tu és ácido sulfúrico”. Deve ter estado alguma vez bem perto de se queimar gravemente. Talvez quando a puxou para um vão de escada e a beijou desalmadamente. Não sei mesmo se haverá um caso tão radical de vida vivida exclusivamente de forma literária como o seu, o de Fernando Pessoa. Parece possível que, namorando (que ele me desculpe por usar esta palavra, cujo uso lhe proibiu) com a Ofélia, faltasse aos encontros porque mandava um dos seus heterónimos, o Álvaro de Campos, encontrar-se com ela? Ou pedir ao Ricardo Reis para lhe telefonar a dizer que o Pessoa não podia ir ter com ela? Parecer, parece, e é verdade. De resto, o Álvaro de Campos não gostava da Ofélia e tentou sempre estragar-lhes a relação. Por isso ela odiava-o e pedia ao Pessoa para nunca o deixar meter-se nas relações entre eles.
Com tudo isto, a pergunta parece ser legítima: afinal, quem é este Fernando Pessoa?
IV.
FICA-SE IMPRESSIONADO ao ver a dimensão da cultura de Pessoa. Como se tivesse nascido para isso. Homo Totus Poeticus. Há nomes que se acrescentam ao vasto leque de referências literárias: o Johann Winckelmann, fundador da história da arte; já não digo o de Christian Rosenkreutz, vista a sua inclinação para a alquimia, o hermetismo e o ocultismo, mas o de Johann Valentin Andreae, o teólogo protestante e provável autor dos três Manifestos Rosacruzes; o de Antínoo, a ponto de escrever um importante texto sobre este amante do Imperador Adriano; Santo Agostinho e as Confissões; o Proudhon de O que é a propriedade?, Max Stirner, o que é objecto de longa atenção de Karl Marx e F. Engels, em A Ideologia Alemã, o filósofo evolucionista inglês Herbert Spencer, o pai da psicanálise Sigmund Freud, para além dos inúmeros grandes nomes da literatura mundial com os quais dialoga e que já referi acima. Mas poderia citar também políticos que mereceram uma sua atenção especial como o Presidente americano Woodrow Wilson ou o Primeiro-Ministro inglês Lloyd George, por exemplo. Todas estas são só algumas referências, a título de exemplo, procurando evidenciar a riqueza da formação intelectual de Fernando Pessoa e de que a obra de Zenith nos dá um quadro exaustivo. Um espanto, a vastidão das multifacetadas referências de Fernando Pessoa. Espanto meu, pelo menos. Mas não é isto que faz dele um caso sério da cultura mundial. O que faz dele um caso sério é o problema da sua identidade, sobretudo se tomarmos na devida consideração que ele, de facto, como bom poeta e fingidor levitou sobre a realidade ao mesmo tempo que ia escrevendo uma enorme obra. Nem poeta se considerava, ou melhor, não queria ser conhecido como tal, senão não tinha proibido a Ofélia de dizer que ele era poeta, mas que, no máximo, escrevia poesia. Talvez fosse porque, como dizia o Caeiro, ser poeta não era uma ambição sua, mas sim, “a minha maneira de estar sozinho”. “Estar sozinho” – não é, em Pessoa, coisa de pouca monta, vista a sua vastíssima produção poética. Pobre Ofélia, que não só não podia dizer que namorava com ele, apesar de namorar, mas que também não podia dizer que ele era poeta, apesar de o ser. Puro negativismo em molho de afecto sincero. Disso parece não haver dúvidas. Só que outros valores mais altos se levantaram. Mas, sim, trata-se do tal intervalo de que ele fala no Livro do Desassossego ou aquela estratégia de “criar a desanalogia entre mim e o que me cerca – eis a primeira passada e a vigília que começa” (p. 871). Só lhe faltou mesmo dizer que ele, o Fernando Pessoa, não existia. Mas ficou perto. Na verdade, “certos personagens ficcionais eram mais reais para ele do que pessoas vivas”, sustenta Zenith (p. 451), dando assim credibilidade à hipótese de tudo converter – por exemplo, o amor – em “tópicos literários”. Ele próprio era uma dramaturgia em pessoa, um palco onde se exibiam os mais variados personagens: “sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças”, dizia no Livro do Desassossego (p. 1024). E a poesia era o seu “confidente”, diz Zenith (p. 941). Mesmo assim, considerava-se um poeta impessoal, apesar de tantas coisas pessoais que lhe aconteciam. O que poeticamente concretizava era precisamente porque os poemas lhe aconteciam, como disse o sobrinho de Ofélia e amigo de Pessoa, Carlos Queiroz. Nele acontecia poesia. Sim, poeta impessoal. Que melhor condição do que esta para fazer poéticas confidências, fingindo? Aproveitava a boleia do acontecimento. Na verdade, ele era mais um “viciado na vida sonhada” do que um viciado na vida vivida. O Calderón de la Barca não diria melhor.
V.
O GASPAR SIMÕES, o primeiro biógrafo do Pessoa, com quem se correspondeu, e que eu ainda conheci em Roma, tinha uma teoria sobre a razão profunda da obra de Pessoa: “a nostalgia da infância perdida” (pp. 898 e 1025). Não sei. O próprio Pessoa dizia que isso era ficção literária. Mas lá que havia ali qualquer coisa parecida com perda, com desajustamento em relação ao real, com vida a decorrer num intervalo entre si e o real, em pulsão onírica mais forte do que ele, lá isso havia. E que ele sublimava, para não se perder na banalidade do real, também parece ser verdade. Ele precisava que o real estivesse ausente para recriar, o recriar à sua medida. Precisava de distância. Até de um país: “minha pátria é a língua portuguesa”. A distância era a que a língua portuguesa lhe permitia. E o Quinto Império era aí, nesse território da língua, não no território físico, que devia ser construído. Por isso é que ele julgava que seria capaz de concretizar essa utopia. O sonhador em perda sonha ainda mais alto. E ele sonhou alto, muito alto.
VI.
Vou-me referindo, nesta viagem, ao Bernardo Soares, personagem por quem sinto uma especial atracção, mas também me refiro sistematicamente a Fernando Pessoa, sem preocupações filológicas de distinção entre o próprio e os heterónimos e seguindo o fio da meada do livro do Richard Zenith. Às vezes entrando em diálogo com eles, no presente, para avivar a reflexão. Reproponho também, alterado, um quadro alusivo ao poeta, o mesmo Pessoa que se escondeu nos inúmeros heterónimos que construiu como máscaras para dizer a verdade: “o homem é menos ele quando fala na sua própria pessoa. Se lhe dermos uma máscara dir-nos-á a verdade” (Zenith, 2022: 422). E eu dei-lha, aqui. Mas esta figura parece ser, pelo menos por fora, a do conhecido desassossegado. Ou, então, a do próprio Pessoa, já que a do Soares só correspondia a metade dele. Uma máscara que vale para todos os seus rostos porque deixa indefinido o rosto vivo do poeta, lui-même, sich selbst, exibindo tão-só os adereços que ficaram famosos e o identificam como Fernando Pessoa. Ícones. Simples, mas tão significativos ícones. Estes óculos exprimem toda uma filosofia, toda uma visão do mundo. Óculos a mais para rosto a menos. Rosto poeticamente dissimulado, escondido, à superfície, atrás dos adereços e, mais em profundidade, nos heterónimos.
VII.
ELES, ESTES ÓCULOS, mas o quadro em geral também, reflectem um certo verdor com que o mundo felizmente ainda se vai exprimindo, embora nele o verde não represente lá grande esperança. Não sendo um vencido da vida, lidava mal com ela e a esperança ressentia-se. E não eram tempos propícios, como se sabe. Mas é de arte que se trata. Pelo menos aqui, neste quadro, com esta identidade oculta sob os dois ícones. De qualquer modo, é um verdor mais verde do que o verde do mundo: o verdor espiritual, o que é pintado com palavras ou que sai directamente da alma de um pintor. E este saiu. Bem poderia ser, pois, o indivíduo que leva sempre a renúncia a peito e que se identifica com um tal Bernardo Soares, um gajo da família de um tal Fernando Pessoa, esse personagem sempre envolvido por um certo e sebastiânico nevoeiro ou, mais poeticamente dizendo, por uma certa neblina existencial. Sim, esse, o do desassossego. Um tal que, antes, dava pelo nome de Vicente Guedes, “um empregado de escritório introvertido” (2022: 688). Um tipo muito cerebral. Talvez até demais. Personagem estranho e pouco dado às cedências da vida vivida, que não à vida pintada com palavras, seja de que forma ou de que cor for. O tal que, estranhamente, não se ajeita com a poesia e que, quando precisa dela, pede ajuda a outros, designadamente ao engenheiro Campos. O que é estranho, porque o desassossegado é filho de peixe e, por isso, deveria saber nadar. Mas não importa, porque tem sempre ali à mão de semear vários e bons poetas, o Caeiro, o Reis ou o Campos, para não falar dos que escrevem em inglês. Mas ele, sobretudo ele, nem sequer se ajeita com a vida, o que já é mais natural do que não se ajeitar com a poesia. Uma alma mais filosófica do que poética, este desassossegado Soares, embora ele, o Pessoa, ache que não. Mas talvez assim seja, embora o seu criador se achasse “um poeta animado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas” (2022: 273). Talvez fosse as duas coisas. Com efeito, há uma dimensão da filosofia que se funde inteiramente com a arte. Querem um exemplo? Nietzsche. Mas esse personagem que não se achava filósofo era o eterno encapuzado com os barretes heterónimos e, por isso, pouco digno de crédito. Não era o Caeiro que também dizia que a poesia era a sua maneira de estar sozinho? Uma coisa é certa: o gajo não acertava uma em cada projecto que imaginava. Projecto que nunca (ou quase nunca) concretizava. Ele era bom, sim, era a estar sozinho. Perguntem ao Richard Zenith que sabe tudo sobre ele (sabe mesmo) e verão que é verdade. Mas, para seu consolo, sempre poderíamos dizer que há por aí tantos outros que não se ajeitam com a vida, mas não sabem. Eu acho ele que sabe, até porque o que é importante para si é construir ou reconstruir o mundo com palavras. Que será mais mundo do que o mundo propriamente dito. E, por isso, o importante é a arquitectura, não a construção.
VIII.
Pessoa, o arquitecto. Mais arquitecto do que engenheiro. Se não é, tem de ser, até porque ele tem o espírito e a alma franzidos pela aspereza e a contingência do existir, do real, do mundo, da vida. Dá-se mal com isso. Ele bem tenta adaptar-se às suas exigências, mas nunca consegue. Falha sempre nas tentativas de entrar no mundo pela porta. Só entra pela janela, à distância. O que o leva, sobretudo ao Soares, a reiterar teimosamente a sua militante dissidência e o seu ziguezaguear em relação à vida. A sua dissidência estética da vida. E erótica, também, pois, apesar de os espíritos do além lhe terem garantido sucesso, só foi capaz de dar uns beijos à Ofélia Queiroz, antes de se despedir dela numa carta um pouco fria e talvez mesmo despropositada (2022: 690-691). À sua maneira ele é um insurgente existencial que tem como única arma de combate a palavra. Move-se a partir da superfície plana da existência (é assim que a assume) para dentro. Parecendo falar para os outros, o que ele faz é falar de si para si, a propósito de tudo e de nada, inventando interlocutores à medida do momento e das circunstâncias. O seu olhar é como que devolvido pelos óculos, que se lhe colam ao rosto como sua pele. Como uma máscara. Ou melhor, como suporte de todas as máscaras. O seu não seria rosto sem o chapéu e estes óculos. Ficaria tudo a negro… ou a verde. Óculos como espelho da alma mais do que espelho do mundo e para o mundo, trabalhados a cinzel como se quer a um filósofo que goste de poesia, embora não se ajeite com ela. Quer ele queira ou não – e já disse que não – é filósofo. Oh, sim, também é, ou então não tinha encarnado no desassossegado Soares. Ficava-se pelos outros. E é por isso que me associo a Zenith e lhe pergunto descaradamente: “o verdadeiro Fernando Pessoa quer fazer o favor de se identificar?”. Ou o senhor é sempre outro, nunca você próprio (2022: 761)? Ah, os óculos! Às vezes até parece que ele não é mais do que uns óculos que só vêem para dentro, embora o seu mestre Caeiro tenha dito “Não vejo para dentro. Não acredito que eu exista por detrás de mim”. Mas o Caeiro era muito especial e cedo ficou pela caminho, a guardar os seus rebanhos. Creio que em 1915. A importância dos óculos: como se o meio fosse a mensagem – uma mensagem “ocular” com uma estranha cor que lhe devolve um real já pré-representado por si. Um verdor que é mais seu, mais íntimo, do que exterior, do que da natureza. Os óculos como terminal de um cérebro autocentrado. Tudo se passa aí, entre a alma (um pouco queimada, não sei se pelo “ácido sulfúrico”) e o espírito. Mas depois não me venha dizer que não vê para dentro. O Caeiro, sim, é ele que o diz, mas o Pessoa ou o Soares não. Estes também vêem para fora, embora pouco.
IX.
DIGAMOS A VERDADE: não há existência tão verde como o verde que se reflecte nos seus óculos, o da alma. E talvez nem sequer a sua alma reflicta tanto verdor. Eles, os óculos, em boa verdade, são mais um espelho do espírito do que da alma. Nem espelho do mundo nem da alma, mas do espírito. Voilà. É este, o espírito, que pinta o verdor com palavras. Afinal, alma e espírito nem são a mesma coisa, pois este é culto e aquela, a alma, pode não ser. Falo no plano transcendental, claro, embora um espírito inculto seja mais alma do que espírito. Digamos, uma alma um pouco espiritual. Mas a verdade é que a alma não tem de ser culta. A alma sente e o espírito pensa. Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz… e doloroso. O amor é mais da ordem da alma do que da do espírito. É por isso que se diz “dor de alma” e não “dor de espírito”. E, por isso, o espírito é perigoso para o amor. Quando ele chega, dita lei e o amor acaba. E ele, o Bernardo, vê sempre o amor com o filtro espiritual dos seus óculos. Foi o espírito dele, o do Bernardo-Pessoa, que derrotou a Ofélia Queiroz e não só o intriguista Álvaro de Campos. Aquele desenhava o amor com palavras, isto é, neutralizava-o ou, pelo menos, relativizava-o. E isto acontecia cada vez que ia passear com ela e levava com ele o Álvaro de Campos, que também contribuiu para estragar a relação, embora, como é evidente, a questão fosse mais funda do que a mera influência do engenheiro naval. Ou seja, o Pessoa anulava o amor, porque ele tem de ser incondicionado, não pode ficar engavetado em palavras. Mas o Zenith também diz que o Campos sempre fez tudo para “frustrar o relacionamento deles” (2022: 675). Juntou-se a fome com a vontade de comer. O Fernando acabou, como sempre, por transformar o seu relacionamento afectivo num tópico literário (2022: 574). O que não se pode é atribuir todas as culpas ao Campos, quando, na verdade o problema residia a montante e era mais fundo. Mas foi assim que o Pessoa arrumou o assunto. Para sempre.
X.
Pois, com este verde, que o torna irreal, até mais do que já é, e, por isso, mais perdurável, é mesmo ele, o homem da renúncia, o que nunca se deixa ir para não se perder, ao sair de si, o que quer subsistir… à força de sentimentos desvitalizados e transfigurados. Ou não foi ele que disse que “agir é exilar-se” (2022: 802)? E, se tivesse de se “exilar”, então, o melhor era mandar o Campos encontrar-se com a Ofélia ou, pelo menos, irem os três passear. Assim, “exilava-se” menos. Estão a ver? O perverso era mesmo o Pessoa, que usava o Campos para conseguir o que não tinha coragem para fazer. A verdade é que ele olha para a vida – o olhar deveria ser tudo – como para uma galeria de arte, sobretudo uma galeria de arte literária, que as outras artes podem muito bem ser subsumidas na literatura, à excepção talvez da música (2002: 504). Ele olha para um rosto como para uma fotografia pendurada numa parede, animando-a com o que tem disponível na alma naquele momento. Mas no qual não toca sequer com a ponta dos dedos. Tudo parece ser, para ele, um pretexto para redesenhar o mundo no seu estirador mental. Redesenhar também Portugal e elevá-lo a V Império, pelas letras. Como fazem os melancólicos profundos quando se sentem impotentes para o mudar realmente, na prática. Desenham-no com os traços e as cores da utopia e acreditam que um dia ela acontecerá. Pelo menos no papel. Sim, sim, apesar de eu ter dúvidas de que o Soares ou o seu Artífice alguma vez tenham querido verdadeiramente mudá-lo na sua mundana escala. Tentativas não faltaram, como nos conta o Zenith, mas nunca passavam de projectos que essa figura algo espectral e movida pelo vento nunca (ou quase nunca) passava à prática. Sim, sim, o Pessoa é mais arquitecto do que engenheiro. Mas não creio que por ser incapaz ou por não ter jeito para isso, como o Soares dizia que acontecia com a poesia. O que, lá mais no fundo de si mesmo, ele não quer realmente é misturar-se com essa irrelevância da vida vivida. Porque ela é banal, andam por lá todos… Era o que mais faltava!
XI.
NA VERDADE, este homem tem o corpo confundido mais com o espírito do que com a alma. Só se lhe vê a parte de cima, o sítio onde está o espírito, de propósito, o que não aconteceria se tivesse jeito para a poesia e andasse por aí aos trambolhões, dorido de alma. Nesse caso, haveria de se lhe ver o peito. Mas não, porque também tem a alma confundida com o espírito, numa progressiva redução de planos, ou camadas. Ele, afinal, é um desdobramento do seu Artífice, esse espírito voraz, capaz de (in)digerir o mundo com palavras. Uma bela operação, diga-se. As palavras viram-se para dentro dele, dobradas sobre si, e o bigode (que está lá, mas não se vê) é a porta fechada da sua fala. Uma fala espiritual. Resistente e fechada, à força, não vá a tentação abri-la e deixar escapar um reles sentimento carnal ou uma comprometida e ridícula declaração de amor. Não, não vá ele queimar-se com esse “ácido sulfúrico” que são as mulheres. Sabia bem o que temia: o “ácido sulfúrico” que era a Ofélia (2022: 679). É preciso renunciar. Ficar na “mansarda” mesmo não morando nela (2022: 803). Mas para renunciar é preciso força de vontade e alguma crispação. Lábios apertados até se anularem na superfície lisa do rosto. A boca, tal como os olhos com os óculos, está protegida pelo bigode e pelos lábios apertados. “Vulgares bocas de mulheres beijas / E eu só o sonho vão da tua boca”, dizia num poema homo-erótico, que terminava dizendo que a sua maior tortura seria a de, aceite pelo amado, se sentir “incapaz do último acto”. Incapaz, ele, que tem “tanta gente” em si, de sair da “toca poética”, como refere Zenith (2022: 663). Andam por aqui memórias de Antinous – A Poem, esse poema sobre a paixão de Adriano pelo jovem grego Antínoo, que viria a ser tão bem retratada por Marguerite Yourcenar, nas Memórias de Adriano. Sim, mas a boca, essa, beijou, e com loucura, diria, mais tarde, quem lha sentiu: Ofélia Queiroz. Mas foi sol de pouca dura, certamente porque o poeta não quis correr o risco de ficar “exilado” para toda a vida. E para isso criou um muro protector, o bigode, esse arame farpado que lhe protegia a alma. Tal como os óculos eram o muro que lhe protegia o espírito das vulgares insídias do real, do canto das “sulfúricas” sereias luminosas e tentadoras. Que mais se pode imaginar se não isto, quando olhamos para os seus óculos e para esse chapéu amarelo torrado ou laranja, de tanto sol apanhar? A verdade é que o espírito, mais do que a alma, precisa de sol, mas que não seja em demasia, para não o encandear ou mesmo incendiar. Precisa de sol indirecto e o chapéu absorve a energia solar e alimenta-lhe o espírito. Chapéu e óculos, as armas do guerreiro que quer ganhar o mundo à custa de palavras, em português ou em inglês, essa ondulação em que foi navegando durante toda a sua vida.
XII.
“INDIFERENÇA SENTIMENTAL” – dizes tu, ó desassossegado! Essa até pode ser reconvertida em palavras ao rubro com a alma aos pulos, livremente, à vontade e até contra si próprio e tudo o que for planeado para ser eventualmente feliz. Ah, como é bela a indiferença se for minha e a puder converter em autêntica diferença. Ser indiferente de forma original é cultivar a diferença e afirmá-la perante iguais. Ser indiferente é indiciar (perante outros) que eu existo sob forma irredutível, que sou outros, muitos outros, para além deles, a ponto de nem me aperceber que esses outros eles existem. E eles sentirem isso na pele. Até a gravata, ou o laço, me torna mais encrespado com o exterior de mim. Agarra-me pelo colarinho e não me deixa ir. Sou livre à força… quase à forca. Morrendo para fora à medida que vivo para dentro… de mim. Sim, porque a minha “alma se identifica com aquilo que menos vê” (2022: 546). Para fora, claro. Não para dentro, que é onde eu vivo ou mesmo me conservo: “sou um fragmento de mim conservado num museu abandonado” (2022: 506). É que, depois destes óculos me terem protegido quando “uma rajada baça de sol turvo (quase) queimou nos meus olhos a sensação física de olhar” (Bernardo Soares), passei a olhar quase só para dentro, olhando de través para fora, sem tirar os óculos… Hum, só o suficiente. Minimalismo visual, diria. Mas não comprometido. Cedendo apenas um pouco à exigência desse objecto que tenho no meu rosto e a que chamam “óculos”. Nome tão estranho como o de “olho”… nome com esse som seco e quase oco que exibe como triste sonoridade. Óculos – prótese quase supérflua porque não me serve para ver o essencial, aquilo com que a alma mais se identifica. Serve para me resguardar, mas não para ver o essencial. Que está dentro de mim. Tudo o resto é puro acidente, coisa supérflua, e, portanto, só serve para ser visto de través. O que até é demasiado. Os meus óculos são mais um muro do que uma prótese para ver o mundo. Quando falo para o mundo as palavras fazem sempre eco no muro e saem fazendo ricochete nele. Chegam lá de mansinho com a energia quebrada pela rigidez deste muro ocular. Demasiado de mansinho, a ponto de só timidamente me ir literariamente afirmando. O que requer um sentido prático da vida que eu não tenho e que, para falar a verdade, não quero ter porque não pretendo exilar-me de mim próprio. Ou lá o que isso seja.
XIII.
“QUE OS TEUS ACTOS sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação” – é isso que sentes, ó desassossegado da vida, quando falas dela? É isso, renúncia, indiferença e negação? Tudo pela negativa? A vida é só metamorfose espiritual? É metempsicose? Com a fixidez desse teu olhar escondido atrás dos óculos metabolizas e suspendes a vida, para a viveres interiormente de forma mais intensa? Decidiste eliminá-la “pelo processo simples de” a “exprimir intensamente”, fazendo com ela o mesmo que fazes quando o obsceno te captura e te obriga a escrever, como fizeste, tu, Pessoa, em Epithalamium e em Antinous (Carta a Gaspar Simões – 2022: 416-417)? Está atento, que a vida ainda pode atropelar-te. E atropelou. Pouco, mas atropelou, levando-o a atirar-se para um vão de escada com uma Ofélia que beijava perdidamente. Sol de pouca dura ou, o que é mais provável, experiência obrigatória para quem estava a ser constantemente interpelado pelo além para experimentar o amor de uma mulher. Um amor que se revelaria desajeitado, talvez porque o que ele melhor sabia fazer era “uma arte de masturbação” (literária) (2022: 397-398), fosse qual fosse o excitante, homem ou mulher.
XIV.
“UM AMARELO DE CALOR estagnou no verde preto das árvores”, dizes tu, com esse ar sisudo, de caso, Bernardo. Mas foi por baixo que estagnou… sim, no teu rosto, quase te queimando para a vida. Estagnou em ti porque estavas sob esta copa pouco frondosa, mas suficiente, que é esse teu chapéu amarelo torrado ou laranja. Mas, mesmo assim, o teu rosto pintou-se de verde, marca da passagem do sol por ele. O sol faz renascer o verde. Sem sol não há verde. Mesmo na poesia para haver verde é preciso que um sol interior te ilumine. Sim, sim, este verde está em ti porque não é humanamente real e faz de ti um ser livre e solar. Filho do sol. Em palavras. Mas foi o sol em excesso que te queimou a alma. Questão de luz, meu caro. Sobrou-te o espírito, eu sei, e só com ele te debruças sobre o mundo. Esse resiste e sobrevive. Mesmo sem alma ou com ela queimada, de tanto sol cair sobre ti. Queima-se a alma, liberta-se o espírito. Parece-te sensato? Não, não parece, mas não posso esquecer que tu és um insurgente existencial.
XV.
ACHO, POIS, que uma parte importante de ti, Fernando, se chama mesmo Bernardo e que essa parte gostaria muito de ter jeito para a poesia. Não tem, mas é como se tivesse. Por detrás deste verde escondem-se muitos outros rostos que adoram escrever poesia. Foi por isso que lhe arranjaste, ao Bernardo, tantos irmãos poetas, sabendo muito bem que a poesia não é para todos. Sobretudo para os que fecham as portas ao real e ao embate da paixão. Às fraquezas da alma. Claro, a poesia está perto demais do sentimento, da emoção, da vida e o Bernardo (e tu próprio) correria o risco de se deixar ir na onda da sua perigosa e lamentável fugacidade. Ser como os outros na sua triste corporeidade sujeita à prisão do banal e corruptível sentimento. Andar por aí aos caídos. Oh, isso é que não, mesmo que a poesia seja o lugar onde o sentimento acontece em palavras e onde se finge o que deveras se sente. Finge, sim, e sente, também. Mas o fingimento poético é a porta de salvação relativamente à queda amorosa da alma ou à “maladie de l’âme”, como diria o Stendhal. Mesmo assim, a poesia é perigosa, reconheço. O Campos era poeta, conhecia bem as insídias do sentimento e, talvez por isso, não gostasse da tua relação afectuosa com a Ofélia. E, cúmplice, ajudou ao desfecho.
Por isso, é melhor, no essencial, que o Bernardo (e talvez tu também) se conserve assim e não saia de si a não ser o estritamente necessário, só para espreitar, de esguelha, a realidade. Que se mantenha no intervalo, afaste um pouco a cortina e espreite o público a remexer-se nas cadeiras antes de o espectáculo da vida começar. De qualquer modo, esse pouco de vida de que ele precisa estará sempre lá, não desaparece. E assim ainda será maior (por dentro) do que o tamanho do que vê (por fora), se é que, com esses óculos, vê mesmo. Se vê é com os sentidos interiores, apesar do sinal enganador desses teus óculos de aparente observação externa e tão comprometedores.
XVI.
MAS, OLHA, e se te deixasses ir um pouco mais além, até à vida, achas que te tornarias banal? A tua relação, ou mesmo ralação, com a Ofélia banalizou-te? Ao menos toca o real com a ponta dos dedos e, se for caso disso, depois desinfecta-a com palavras um pouco mais fortes ou até mesmo mais ácidas. Ou tens medo do “ácido sulfúrico” da vida e do sexo? Ah, bem sei! Uma parte de ti não tem jeito para a poesia e tu achas que só ela é que te poderia salvar em caso de perigo, em caso de contágio. Sim, o perigo é o sentimento, não a poesia. Bem pelo contrário, esta resolve, sem perigo, os perigos do sentimento. Mas tenta, meu caro, tenta, não sabes quanta metafísica pode haver na ponta dos dedos quando eles folheiam o real, sobretudo num poema, e o poder que têm de te resgatar dos fracassos da vida. Tens tanta poesia lá em casa! E da boa. Bom, mas não te quero convencer porque, como dizia o outro, o acto de convencer alguém é pura violência, é tentativa ilegítima de lhe colonizar a alma, de impor superioridade espiritual. E eu, que sou poeta, prezo muito a liberdade, a minha e a dos outros. E, portanto, também a tua. A de seres o que quiseres e ser sempre outro que não tu mesmo. O que quer dizer que também podes, ao mesmo tempo, ser poeta, ser Reis, Caeiro ou Campos ou mesmo essa parte de ti que é o Bernardo Soares e, portanto, resolver esse teu problema existencial. É como voltar a ser criança, como tanto desejaste quando já só te sentias um adulto com excesso de lucidez, a ponto de te começares a informar com o teu amigo sobre como seria a vida no manicómio onde o tiveram enclausurado por algum tempo. Mas não, tens muito mundo sobre o qual levitar com todos esses teus alter egos. Afinal, mesmo quando eras Bernardo Soares sempre gostaste de poesia, não é?
AI, BRASIL
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS, 10-2022
ENCERRADA A PRIMEIRA VOLTA das eleições presidenciais no Brasil (a segunda será no dia 30.10), ficamos a saber que as sondagens falharam no cálculo da distância prevista entre a vitória de Lula da Silva e a derrota de Jair Messias Bolsonaro. A distância entre os dois foi muito menor do que as sondagens previam e Bolsonaro contrariou o anunciado desastre eleitoral. Uma primeira conclusão há que tirar daqui: Bolsonaro representa um vasto bloco de poder radicado na sociedade, que é muito maior do que a sua figura política e presidencial. Bloco que começa logo na organização política da sua própria família, ou seja, na distribuição de funções pelos seus três filhos: no Senado (política), nas relações internacionais (diplomacia) e na comunicação digital (propaganda). Um bloco que, depois, nesta primeira volta, já exibe melhores resultados do que a esquerda nas eleições para a Câmara dos Deputados, para o Senado e para os Governadores dos estados federados (que são 27, tendo já sido eleitos 15). E um sistema onde até essa figura desqualificada de Sérgio Moro, depois de várias peripécias pouco edificantes, consegue ser eleito, no Paraná, para o Senado. Ou mesmo um tal Deltan Dallagnol, também implicado nas trapaças do processo Lava Jato, já eleito para a Câmara dos Deputados, também no Paraná. Portanto, um sistema institucional que está a absorver personagens duvidosos no seu interior, contribuindo, assim, para piorar o próprio sistema institucional, que, afinal, se tem revelado pouco credível. Exemplos? É ver como se processou o impeachment de Dilma Rousseff e todas as histórias que envolveram o ex-Presidente Michel Temer e o ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, já para não falar do processo que levou à prisão de Lula da Silva e que o próprio sistema judicial acabou por anular (mas veja os meus Artigos sobre o assunto: “Quanto conta o voto popular?” (aqui transcrito e também em link) – https://www.jornaltornado.pt/quanto-conta-voto-popular/; e “Lawfare” – https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/24/artigo-23/).
I.
O BLOCO DE PODER DA DIREITA, na sua maioria, inscreve-se na nova direita nacional-populista, que tem em Trump a referência idolatrada de Jair Bolsonaro, mas que também avança fortemente na Itália de Giorgia Meloni (veja o meu Artigo sobre o assunto, aqui: https://joaodealmeidasantos.com/2022/09/27/artigo-82/), na França de Marine Le Pen, na Espanha de Santiago Abascal, na Hungria de Viktor Orbán ou na Polónia do Senhor Kaczynski, entre outros, incluído o português CHEGA. Em três destes países governa. Uma realidade que é necessário ter na devida consideração porque ela já representa um poder político nacional e internacional considerável. E um forte poder na União Europeia, se tomarmos em consideração as regras de funcionamento do sistema decisional da União. E não fossem os erros clamorosos de Trump, designadamente o louco ataque ao Capitólio ou a apropriação indevida de documentos do Estado, e a força deste bloco ainda seria maior, visto o papel de referência que os USA desempenham na cena internacional. Os sucessivos episódios de Trump vieram descredibilizar esta direita americana, que perdeu alguma capacidade propulsiva na cena internacional.
II.
MAS A VERDADE é que, no Brasil, Lula da Silva conseguiu um resultado que ficou a menos de dois pontos da maioria absoluta que o consagraria de imediato como Presidente. A expectativa era grande, o resultado é muito significativo, mas foi diminuído pela resiliência de Bolsonaro e do bloco de poder que ele representa. Pouco significativos foram, entretanto, os resultados de Simone Tibet, com cerca de 4%, e de Ciro Gomes, com uns miseráveis 3% (relativamente ao que noutras eleições tivera, uma média de quase 12% nas outras três tentativas). Nestas eleições a polarização foi, de facto, muito intensa, numas eleições onde votou 79% dos 156 milhões de eleitores.
III.
O QUADRO POLÍTICO saído destas eleições não é muito animador para a esquerda, embora a vitória presidencial esteja ao alcance de Lula da Silva. Pelo contrário, a direita surge com mais força do que aquela que se registava nas sondagens e na própria opinião pública. A nível presidencial, mas sobretudo a nível do Congresso e do governo dos estados federados. A onda de esquerda que se tem vindo a verificar na América Latina (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Honduras, México, Panamá, Peru) conhecer sérias dificuldades naquele que é o seu maior país e a sua maior democracia.
Uma das fraquezas da candidatura de Lula da Silva, mas que também pode ser considerada como um ponto forte, é ela, por um lado, ser vista como um regresso ao passado, um dejá-vu mais centrado no passado do que no futuro, mas, por outro, ser vista também como um resgate da injustiça clamorosa que foi cometida quer contra o PT quer contra Lula da Silva e Dilma Rousseff; esta candidatura ser, pois, vista como um ajuste de contas com um bloco de forças que usou todos os meios não só para tirar do poder o Partido dos Trabalhadores, mas também para pôr no poder um seu agente pouco qualificado, um seu fiel serventuário, ideologicamente marcado como de extrema-direita ou nacional-populista, intérprete das novas tendências da direita que têm vindo a afirmar-se um pouco por todo o lado. Uma escolha, pois, supostamente alinhada com os ventos da (sua) história. Os resultados deste primeiro turno são para eles animadores. A dimensão da votação, mais de 51 milhões de votos, é para levar a sério.
IV.
NA VERDADE, ESTES RESULTADOS são preocupantes. E não só em matéria de política nacional. Eles são um ulterior e preocupante sinal do avanço político da extrema-direita um pouco por todo o lado, um péssimo sinal para o conflito que o ocidente trava com a Rússia de Putin e um sinal preocupante para o combate à ameaça ambiental, em particular para a salvaguarda do pulmão do Mundo, a Amazónia. Mas um sinal preocupante também para a democracia e para todos os que confiam numa intervenção eficaz do Estado quando se verifiquem sérios riscos e ameaças à colectividade. O que aconteceu durante a pandemia deveria pôr em alerta todos os que hoje são chamados a escolher o Presidente. Mas, pelos vistos, a evidência não foi assim tão evidente. O Brasil está, de facto, fortemente dividido e bipolarizado.
V.
MAIS DE SEIS MILHÕES DE VOTOS separam os dois candidatos que disputarão o segundo turno. Uma situação que favorece, à partida, Lula da Silva. Seis milhões de votos não é pouco. Mas é preciso não esquecer que por detrás de Bolsonaro há todo um bloco de poder fortemente enraizado na sociedade civil brasileira e com uma fortíssima presença nas instituições do Estado, a começar no próprio Congresso e no governo dos estados federados e a terminar nas Forças Armadas. Este bloco de poder mobilizará todas as suas forças para influenciar o eleitorado, animado pelos resultados desta primeira volta e convencido de que ainda poderá dar a volta ao resultado. Interessante será também a posição de Simone Tebet e de Ciro Gomes na sua indicação de voto… ou no seu silêncio, que seria sempre interpretado como de tácita tolerância para com Bolsonaro e o bloco de poder que ele representa (mas Ciro Gomes já disse que acompanha a decisão do seu partido, PDT, no apoio a Lula da Silva, embora sem mencionar Lula no vídeo em que anuncia a sua posição, e Simone Tebet também já terá decidido o apoio a Lula da Silva). Somados, representam mais de sete por cento do eleitorado e cerca de 8,5 milhões de votos. A sua mobilização poderá, pois, ser determinante para o desfecho destas eleições.
VI.
DE QUALQUER MODO, para além das considerações de ordem mais política e programática, o que aqui está também em causa é a relação entre a política e a ética, uma moralidade de senso comum que é transversal a qualquer actividade humana e uma correspondente concepção de democracia que respeite os seus valores fundamentais e onde os adversários não sejam considerados pura e simplesmente como inimigos. O resultado do dia 30 de Outubro dir-nos-á muito não só sobre o estado da política no Brasil, mas também sobre a evolução da política no plano mundial. Uma evolução que, de resto, não está a conhecer bons dias.
VII. Reprodução de Artigo (suplementar) sobre o “Impeachment” de Dilma Rousseff.
“Quanto conta o voto popular?” Por João de Almeida Santos (Art. publicado em 01.09.2016)
“TRÊS JURISTAS, Miguel Real Jr., Janaina Paschoal e Hélio Bicudo, solicitaram o Impeachment, em 2015. A pedido de quem? Não se sabe, mas…
1. EDUARDO CUNHA, Presidente da Câmara dos Deputados, que arriscava um processo na Câmara, acusado de ter 5 milhões de dólares na Suíça por subornos (Petrobras/Lava-Jato), pede a Dilma e ao PT que impeça, com o voto, a investigação. Dilma e o PT recusam. Cunha admite o pedido de “impeachment” e despacha-o em grande velocidade. Final: Dilma perde o mandato presidencial. Michel Temer, o seu vice e ex-aliado, também ele suspeito de corrupção, torna-se Presidente efectivo até às eleições de 2018.
2. A ACUSAÇÃO (por “crime de responsabilidade”) baseia-se em três decretos presidenciais que envolveram cerca de 717 milhões de dólares em créditos de bancos públicos para financiar as áreas da educação, do trabalho, da cultura e da justiça. Segundo os acusadores foram feridos o n.º 2 do Art. 11 e o n.º 4 do Art. 10 da “Lei do Impeachment”, que implicam “crime de responsabilidade” (Cap. VI – crimes contra a “Lei Orçamentária”). A defesa (e Dilma) argumentou que eram despesas já autorizadas pelo Senado, tendo-se verificado somente alternativas à alocação de recursos, não afectando a meta fiscal. Mas Dilma também foi acusada de ter atrasado o reembolso, ao Banco do Brasil, de cerca de mil milhões de dólares (relativos ao Plano SAFRA), considerando que este atraso era de facto uma operação de crédito (!), proibido por lei, incorrendo, por isso, noutro “crime de responsabilidade” (art.s 10 e 11). Na verdade, nem o próprio Ministério Público Federal o considerou crédito. Pedaladas fiscais! Mas, neste caso, a Presidente nem sequer praticou qualquer acto (a responsabilidade é do Ministério da Fazenda). Maquilhagem de contas, disseram os acusadores.
3. FUI LER A LEI. No caso do Presidente, para oito “crimes de responsabilidade” estão previstos 65 casos em que estes podem ocorrer. Cabe lá tudo. Até um que diz “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo”! Ou, então, “infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais” ou, ainda, “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. Este último também foi invocado na acusação. E outros que são claramente instrumentalizáveis para efeitos de destituição arbitrária do Presidente. Basta interesse, um pouco de imaginação e bonecos de serviço.
4. TRATA-SE DE JUSTIÇA POLÍTICA e não já propriamente de responsabilidade penal. Muito bem. Mas com esta lei qualquer Presidente – e o regime brasileiro é presidencialista – está altamente fragilizado porque permanentemente sujeito a fáceis “conjuras” jurídico-políticas, como esta. E muito em particular pelos poderes fortes que circulam nos corredores do poder brasileiro… e fora dele. Por exemplo, pelos famigerados mercados (que até estimularam o processo)!
5. O “IMPEACHMENT” é um instrumento antigo. Vem de Inglaterra, do século XIV. Era um modo de submeter os Ministros (nomeados livremente pelo rei) ao crivo do Parlamento em caso de crimes graves (responsabilidade penal). A Constituição dos USA (1787) prevê-o explicitamente (art. 1, secção 3; art. II, secção 4). Mais tarde ganharia, de facto, uma dimensão também ético-política (veja-se o caso Clinton).
6. ESTE INSTRUMENTO tem-se revelado bastante problemático e irregular. O Presidente é eleito por sufrágio universal directo (neste caso, foi por cerca de 54,5 milhões de eleitores, em 110 milhões). Também o seu é um mandato não imperativo e, portanto, só em caso de grave responsabilidade penal, e em extrema “ratio”, deveria ser aplicado (Constituição USA, 1787, art. II, secção 4: “traição, corrupção/extorsão ou outros crimes graves”). Mas, no caso brasileiro, com o que a lei prevê, há para todos os gostos. No fim de contas, do que se trata é de um instrumento para revogar mandatos presidenciais e confiscar a soberania popular (sobretudo num regime deste tipo).
7. DISSE O EX-MINISTRO DA ECONOMIA, Nelson Barboza: “vocês decidiram que há um crime e, portanto, procuraram o delito”. Nem mais. O cardápio é extenso e para todos os gostos. Até para a nossa Paula Bobone, como vimos!
8.OS VOLUNTÁRIOS FORAM TRÊS mais um: os juristas e Eduardo Cunha que, afastado da Presidência da Câmara, ainda continua deputado (à espera do processo). A condenada, que nem sequer era suspeita, já perdeu o mandato presidencial. Bonita “justiça política”, esta!
A SITUAÇÃO ECONÓMICA ajudou à festa, com o PIB a cair e o desemprego e a inflação a subirem. Mas, por isso mesmo, a democracia brasileira não precisava disto. Na verdade, as conjuras quase já não precisam de armas. Nem sequer das armas brancas do tempo de Maquiavel. Basta esgrimir, de forma conjugada e com alguma maestria, o direito e os media. Intelectuais orgânicos da conjura é o que não falta. E por isso não entendo esses democratas dos quatro costados que viram no afastamento de Dilma uma fulgurante vitória da sua formidável razão política.“Beati loro!”, costumam dizer os italianos.”
UMA REVOLUÇÃO (ELEITORAL) EM ITÁLIA
A marcha da extrema-direita continua
Por João de Almeida Santos

“Roma”. JAS. o9-2022
O BLOCO DE DIREITA ganhou, em Itália, as eleições legislativas com maioria absoluta de mandatos quer na Câmara de Deputados quer no Senado (237/400 e 112/200). O primeiro partido foi “Fratelli d’Italia” (FdI, com 26%), de Giorgia Meloni, a líder, deputada, ex-ministra de um dos governos de Berlusconi, herdeira legítima de Alleanza Nazionale, de Gianfranco Fini, e do Movimento Sociale Italiano, de Giorgio Almirante. Ela criou, com Ignazio la Russa e Guido Crosetto, o partido FdI, em 2012, mantendo a “Fiamma Tricolore” do MSI, o herdeiro legítimo do fascismo italiano e do Partito Nazionale Fascista. Estamos conversados em relação à família política histórica do partido que verá a sua líder tornar-se a primeira mulher que ocupa a Presidência do Conselho italiana.
I.
ESTE RECENTE PARTIDO tinha obtido pouco mais de 4% nas eleições legislativas de 2018, mas conseguiu crescer rapidamente à custa da LEGA, de Matteo Salvini, um dos grandes perdedores nestas eleições, invertendo a posição. Salvini chegara a ter nas eleições europeias de 2019 cerca de 34%, 28 eurodeputados e mais de 9 milhões de votos, mas hoje está reduzido a 8,78%, acompanhado pelo partido de Berlusconi, Forza Italia, com 8,12%. Estes três partidos ( mais um outro pequeno partido) formaram a coligação pré-eleitoral vencedora destas eleições de 25 de Setembro e formarão um governo liderado por Giorgia Meloni, logo que os deputados tomem posse e estejam eleitas as lideranças dos dois ramos do Parlamento.
II.
O CENTRO-ESQUERDA, que foi para as eleições dividido, perdeu em mandatos (157 deputados e 79 senadores), mas, note-se, mantém, globalmente, no país, uma percentual maior do que a coligação de direita. Mas era já claro que os erros de Letta, o secretário do Partito Democratico (PD), relativamente à possibilidade de uma aliança pré-eleitoral com as outras forças de centro-esquerda (M5S, que obteve 15,55% e Azione-Italia Viva, que obteve 7,78%), seriam mortais. Com efeito, era claríssimo que os mandatos atribuídos (total global de 400 para a Câmara dos Deputados e de 200 para o Senado) através do sistema maioritário, uninominal numa só volta, seriam “abocanhados” pela aliança de direita, pela simples razão de que, na coligação, avançaria o candidato que estivesse em melhores condições de ganhar, o que não seria possível com um centro-esquerda desunido. Este sistema premeia as alianças e pune quem não as fizer. Com efeito, se olharmos para o mapa de Itália com as cores do vencedor no uninominal encontraremos um mapa quase todo pintado com as cores do bloco de direita. Falo de 147 mandatos para a Câmara dos Deputados e de 74 para o Senado, os que foram disputados em maioritário uninominal a uma volta: 121, na Câmara, e 59, no Senado, foram para a coligação de direita.
III.
VEJAMOS MAIS CONCRETAMENTE. O centro-esquerda desunido teve mais cerca de 1 milhão e meio de votos e mais de cinco pontos percentuais (13.858.030 e 49,35%) do que o bloco de direita (12.299.648 e 43,79%). A gravidade da desunião viu-se sobretudo nos círculos uninominais, onde a coligação de direita teve, para a Câmara dos Deputados, 121 mandatos e, para o Senado, 59 mandatos, ao passo que o centro-esquerda desunido teve apenas 22, para aquela, e 15 para este. Se pusermos lado a lado estes dois factores, número global de votos obtidos e mandatos obtidos no uninominal, poderemos ver a dimensão do erro do PD e, em geral, de toda a esquerda. Toda a gente sabia o que iria acontecer se o centro-esquerda fosse a eleições desunido com o actual sistema eleitoral (o Rosatellum) em vigor. Como disse, e muito bem, o filósofo e ex-presidente da Câmara de Veneza, Massimo Cacciari,
“con questo sistema elettorale il centrosinistra è andato a giocare a briscola con le regole dello scopone. Era evidente che perdesse. Questo è un sistema elettorale che premia la coalizione”.
Em votos, o centro-esquerda desunido é maioritário; em mandatos, perdeu clamorosamente. O bloco de direita, mesmo com diferenças e em clara competição interna, foi mais inteligente e soube aliar-se eleitoralmente. O centro-esquerda preferiu o erro e o espírito de “quinta”. Perdeu clamorosamente. Mas não é tudo. Há também questões de identidade em todos os partidos do centro-esquerda, no PD, no M5S e na dupla Calenda-Renzi (líderes dos partidos unipessoais Azione e Italia Viva).
IV.
O QUE É QUE ACONTECEU, no essencial? O FdI – um partido que esteve sempre na oposição e que disso retirou vantagens, sobretudo na fase do governo Draghi – foi tirar votos à Liga de Salvini e também ao M5S (este tivera 32,6% nas eleições de 2018 e agora tem 15.55%), movimento que congregava eleitores de direita e de esquerda, afirmando-se como um movimento anti-sistema. A partir de 2018 (Governos com Salvini, Conte I, e com o PD, Conte II, e depois, com Draghi), deixando de ser um partido anti-sistema, foi caindo nas sondagens até aos cerca de 10%, tendo conseguido agora iniciar uma inversão de tendência com a nova liderança de Giuseppe Conte. Com Conte assumiu um perfil mais de esquerda, procurando de novo uma identidade de oposição, uma esquerda social centrada na representação dos excluídos e dos deserdados. Nestas eleições, afirmou-se significativamente no Mezzogiorno, uma região sempre economicamente deprimida. E estar na oposição explica também, em parte, o crescimento de Giorgia Meloni, que ficou fora do governo de unidade nacional liderado por Mario Draghi. E é isto mesmo que Matteo Salvini vem agora dizer para explicar a sua enorme queda eleitoral. Por outro lado, o Partido Democrático é um dos grandes perdedores, ficando-se em menos de 19% dos votos, ou seja, mantendo-se quase ao nível de 2018, mas agora perante um grande transvase de votos para a extrema-direita de Meloni, que então obtivera pouco mais de 4% (4,35%, se não erro).
V.
COMO PODEREMOS CARACTERIZAR GIORGIA MELONI e o seu partido? Ela é, de facto, a herdeira legítima do Movimento Sociale Italiano, inscrevendo-se na tradição que vai até ao Partito Nazionale Fascista, de Benito Mussolini. O símbolo de ligação directa ao Movimento Sociale Italiano, de Giorgio Almirante, é a “fiamma tricolore”. É soberanista, embora não seja contra a União Europeia, cantando, todavia, com garra, o hino da Europa dos “patriotas” e o da “soberania dos povos”. Ou seja, a União Europeia é tolerada apenas por razões de oportunidade, de pragmatismo político. O bloco europeu soberanista, representado sobretudo pela Polónia e pela Hungria, vê-se agora reforçado pela Itália e talvez também pela Suécia, quatro países que poderão vir a condicionar fortemente a orientação política da União. Assume-se como atlantista e não titubeia sobre a questão da Ucrânia. É ferozmente adversária, como, aliás, toda a direita radical, do politicamente correcto e das políticas identitárias, como se viu muito bem no discurso da Andaluzia, que transcrevo a seguir. Não aceita o “rendimento de cidadania”. E é adversária de algumas das conquistas civilizacionais que ocupam a agenda dos países desenvolvidos (por exemplo, a eutanásia). “È finita la pacchia”, disse durante a campanha eleitoral. “Pacchia”: facilitismo, festança, bodo aos pobres. É isto o que ela quer dizer. E di-lo em relação à Europa, esquecendo-se que Itália foi o país mais beneficiado com o PRR (mais de 200 mil milhões”, una pacchia”, diria eu), mas di-lo também em relação a Itália e às políticas sobre os direitos civis e sociais promovidos pelo centro-esquerda. Como ontem alguém dizia, numa televisão italiana: votem, depois fiquem em casa e deixem-nos governar com mão dura, para pôr a Itália na ordem. “È finita la pacchia”. Sobretudo em matéria de imigração, estreitamente associada (ou até reduzida) à questão da segurança: proteger as fronteiras, ou seja, bloquear a entrada de navios com imigrantes nos portos de Itália. Esta política já dera bons frutos eleitorais (e jurídicos) a Salvini. FdI integra plenamente o grupo de partidos de extrema-direita europeia, VOX, Rassemblement National, Fidesz, de Orbán, “Lei e Justiça”, de Kaczynski, e… o CHEGA. E quer introduzir um regime presidencial (eleição directa do Presidente da República), embora não se saiba bem em que termos. Vai aplicar (parcialmente) a “flat tax”. E così via…
VI.
MAS VALE A PENA VER O QUE DISSE, em discurso directo, Giorgia Meloni num comício do VOX na Andaluzia, em Junho de 2022:
“Ou se diz sim ou se diz não. Sim à família natural, não aos lobbies LGBT; sim à identidade sexual, não à ideologia de género; sim à cultura da vida, não ao abismo da morte; sim à universalidade da cruz, não à violência islamista; sim a fronteiras seguras, não à imigração massiva; sim ao trabalho dos nossos cidadãos (o público do VOX levanta-se em pé), não às finanças internacionais; sim à soberania dos povos, não aos burocratas de Bruxelas… e sim à nossa civilização e não aos que a querem destruir… viva a Europa dos patriotas” (transcrevi directamente do discurso oral)
Todo um programa a ler e a interpretar com atenção. São estes os princípios que a inspiram. O tom em que o disse não deixa margem para dúvidas. E talvez interesse mais reflectir sobre isto do que sobre o próprio programa eleitoral da coligação.
VII.
O GRANDE ERRO DO CENTRO-ESQUERDA: a sua fragmentação, gravemente prejudicial sobretudo nos círculos eleitorais maioritários uninominais a uma só volta. E o centro-esquerda de novo a derrapar, agora em Itália. Erros tácticos, mas também problemas de afirmação da sua identidade. Problema de tal dimensão que levaria Massimo Cacciari a dizer que o PD “è, insomma, un partito tutto da rifondare.” Por sua vez, o M5S, com a saída de Luigi di Maio, e a nova liderança de Giuseppe Conte, está em processo de refundação, apresentando-se hoje como um movimento de esquerda social, já muito distante daquele M5S que se dizia não ser de esquerda nem de direita, sendo um partido anti-sistema. Agora será, sim, um partido de oposição, mas a sua identidade estará mais claramente definida e assumida. Só não se sabe como a conjugará com o (novo) PD, a refundar. Ou como coexistirão estes dois partidos numa área política que parece sobrepor-se, afim. Com Conte, o M5S deixa de ser aquele partido digital, que foi concebido por Gianroberto Casaleggio (sobre este movimento veja-se o meu Ensaio “Mudança de Paradigma: a emergência da rede na política. Os casos italiano e chinês”, ResPublica/17, 2017, 51-78), para passar a ser um partido mais institucional, mais na linha dos partidos clássicos. Mas a verdade é que os clássicos partidos da alternância (da esquerda e da direita clássicas) estão em crise e o sistema de partidos está definitivamente fragmentado, requerendo hoje uma maior capacidade de diálogo político. Em Itália, ainda por cima, é costumeira a vontade de formar partidos unipessoais, o que acentua ainda mais a fragmentação do sistema de partidos. É o caso dos partidos Azione (de Calenda) e Italia Viva (de Renzi). Uma coisa é certa: à esquerda o que temos é uma situação algo caótica, não se vendo uma força central com capacidade de polarização, com uma identidade bem definida e programaticamente bem concreta nas matérias fundamentais, em condições de protagonizar um movimento progressista e de atrair ao seu projecto as outras formações políticas mais consistentes. O PD é todo para refundar e a competição pela liderança já começou. Letta, numa carta aos militantes, diz em que termos deverá ocorrer o Congresso Constituinte do novo PD, diz que estará em causa “l’identità, il profilo programmatico, il nome, il simbolo, le alleanze, l’organizzazione” do novo partido. O M5S de Conte está em fase de afirmação da sua nova identidade, depois da experiência de di Maio (que nem sequer conseguiu ser eleito) e da tutela cada vez mais longínqua de Beppe Grillo, “Il Garante”. Prevê-se uma fusão dos partidos Azione e Italia Viva e, por isso, aguarda-se uma redefinição de identidade. Agora, todos terão tempo para isso, pois o que se prevê é cinco anos de governo da direita radical. Os efeitos vão-se sentir em Itália e na União Europeia.
NOTA
O MINISTÉRIO DO INTERIOR já reconheceu vários erros na contagem de votos, incluído o erro relativo a Umberto Bossi, o histórico (ex-)líder da LEGA, que, afinal, foi eleito. Logo que terminada a recontagem darei aqui notícia, se for caso disso, ou seja, se alterar os dados que aqui apresentei e que foram obtidos no site do Ministério do Interior. Corriere della Serra, hoje (29.09): “non c’è qualche partito che guadagna seggi e qualcun altro che ne perde. Il numero dei seggi distribuiti a livello nazionale a ciascun partito è rimasto invariato”. Ponto.
“PESSOA REVISITED”
A propósito da monumental Biografia
de Fernando Pessoa, de Richard Zenith
Por João de Almeida Santos

“O Poeta”. JAS. 09-2022
RETOMO A SEGUNDA VERSÃO de um texto que aqui publiquei há algum tempo, desenvolvo-a e enriqueço-a, com a mesma estratégia discursiva, mas com uma viagem pelo monumental e excelente livro de Richard Zenith, Pessoa. Uma Biografia (Lisboa, Quetzal, 2022, 1184 páginas, com uma bela tradução de Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes). Referindo-me essencialmente a Bernardo Soares, também me refiro em geral a Fernando Pessoa, sem preocupações filológicas de distinção entre heterónimos. Reproponho também, alterado, um quadro alusivo ao poeta, o mesmo Pessoa que se escondeu nos inúmeros heterónimos que construiu como máscaras para dizer a verdade: “o homem é menos ele quando fala na sua própria pessoa. Se lhe dermos uma máscara dir-nos-á a verdade” (Zenith, 2022: 422). E eu dei-lha, aqui. Mas esta figura parece ser, pelo menos por fora, a do conhecido desassossegado. Uma máscara que vale para todos os seus rostos porque deixa indefinido o rosto vivo do poeta, lui-même, sich selbst, exibindo tão-só os adereços que ficaram famosos e o identificam como Fernando Pessoa. Heterónimos que foram muitos. Muitíssimos, como pormenorizadamente nos conta Richard Zenith ao longo das quase mil e duzentas páginas. De resto, estes óculos exprimem toda uma filosofia, toda uma visão do mundo. Óculos a mais para rosto a menos. Rosto poeticamente dissimulado, escondido, à superfície, atrás atrás dos adereços e, mais em profundidade, nos heterónimos. Por isso aqui surge a negro, só ficando à vista a pura exterioridade distintiva do personagem.
O DESASSOSSEGADO, A POESIA E A VIDA
ELES, OS ÓCULOS, apesar de tudo, reflectem um certo verdor com que o mundo se exprime, embora nele o verde não represente lá grande esperança. Pelo menos aqui, neste quadro, com este luto de identidade perdida ou nunca revelada. De qualquer modo, é um verdor mais verde do que o verde do mundo. Ah, sim, o verdor espiritual, o que é pintado com palavras ou com o verde que sai directamente da alma de um pintor. E este saiu. Bem poderia ser, pois, o indivíduo que leva sempre a renúncia a peito e que se identifica com um tal Bernardo Soares. Um gajo da família de um tal Fernando Pessoa, esse personagem sempre envolvido por um certo e sebastiânico nevoeiro ou, mais poeticamente dizendo, por uma certa neblina existencial. Sim, esse, o do desassossego. Um tal que, antes, dava pelo nome de Vicente Guedes, “um empregado de escritório introvertido” (2022: 688). Um tipo muito cerebral. Talvez até demais. Personagem estranho e pouco dado às cedências da vida vivida, que não à vida pintada com palavras, seja de que forma ou de que cor for. O tal que, estranhamente, não se ajeita com a poesia e que, quando precisa dela, pede ajuda a outros, designadamente ao engenheiro Campos. O que é estranho, porque o desassossegado é filho de peixe e, por isso, deveria saber nadar. Mas não importa, porque tem sempre ali, à mão de semear, vários e bons poetas, o Caeiro, o Reis ou o Campos, para não falar dos que escrevem em inglês. Mas ele, sobretudo ele, nem sequer se ajeita com a vida, o que já é mais natural do que não se ajeitar com a poesia. Uma alma mais filosófica do que poética, este desassossegado Soares. Talvez assim seja, embora o seu criador se achasse “um poeta animado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas” (2022: 273). Mas esse era o eterno encapuzado com os barretes heterónimos e, por isso, pouco digno de crédito. Uma coisa é certa: o gajo não acertava uma em cada projecto que imaginava. E que nunca (ou quase nunca) concretizava. Perguntem ao Richard Zenith que sabe tudo sobre ele (sabe mesmo) e verão que é verdade. Mas, para seu consolo, sempre poderíamos dizer que há por aí tantos outros que não se ajeitam com a vida, mas não sabem. Eu acho que sabe, até porque o que é importante para ele é construir ou reconstruir o mundo com palavras. Que é mais mundo do que o mundo propriamente dito. E, por isso, o importante é a arquitectura, não a construção. Se não é, tem de ser, até porque ele tem o espírito e a alma franzidos pela aspereza e a contingência do existir. Dá-se mal com isso. Ele bem tenta adaptar-se às suas exigências, mas nunca consegue. Falha sempre nas tentativas de entrar no mundo pela porta. Só entra pela janela, à distância. O que o leva, sobretudo ao Soares, a reiterar teimosamente a sua militante dissidência e o seu ziguezaguear em relação à vida. A sua dissidência estética da vida. E erótica, também, pois, apesar de os espíritos do além lhe terem garantido sucesso, só foi capaz de dar uns beijos à Ofélia Queiroz, antes de se despedir dela numa carta um pouco fria e talvez mesmo despropositada (2022: 690-691). À sua maneira ele é um insurgente existencial que tem como única arma de combate a palavra. Move-se a partir da superfície plana da existência (é assim que a assume) para dentro. Parecendo falar para os outros, o que ele faz é falar de si para si, a propósito de tudo e de nada, inventando interlocutores à medida do momento e das circunstâncias. O seu olhar é como que devolvido pelos óculos, que se lhe colam ao rosto como sua pele. Como uma máscara. Ou melhor, como suporte de todas as máscaras. O seu não seria rosto sem o chapéu e estes óculos. Ficaria tudo a negro. Óculos como espelho da alma mais do que espelho do mundo e para o mundo, trabalhados a cinzel como se quer a um filósofo que goste de poesia, embora não se ajeite com ela. Quer ele queira ou não – e já disse que não – é filósofo. Oh, sim, também é, ou então não tinha encarnado no desassossegado Soares. Ficava-se pelos outros. E é por isso que me associo a Zenith e lhe pergunto descaradamente: “o verdadeiro Fernando Pessoa quer fazer o favor de se identificar?”. Ou o senhor é sempre outro, nunca você próprio (2022: 761)? Ah, os óculos! Às vezes até parece que ele não é mais do que uns óculos que só vêem para dentro. Como se o meio fosse a mensagem – uma mensagem “ocular”, com uma estranha cor, a dos óculos, que lhe devolve um real já pré-representado por si. Um verdor que é mais seu, mais íntimo, do que exterior, do que da natureza. Os óculos como terminal de um cérebro autocentrado… na sua alma.
O ESPÍRITO E A ALMA
DIGAMOS A VERDADE: não há existência tão verde como o verde que se reflecte nos seus óculos, o da alma. Talvez nem sequer haja existências verdes, mas somente existências com algum verdor. E talvez nem sequer a sua alma reflicta tanto verdor. Eles, os óculos, em boa verdade, são mais um espelho do espírito do que da alma. Nem espelho do mundo nem da alma, mas do espírito. Voilà. É este, o espírito, que pinta o verdor com palavras. Afinal, alma e espírito nem são a mesma coisa, pois este é culto e aquela, a alma, pode não ser. Falo no plano transcendental, claro, embora um espírito inculto seja mais alma do que espírito. Digamos, uma alma um pouco espiritual. Mas a verdade é que a alma não tem de ser culta. A alma sente e o espírito pensa. Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz… e doloroso. O amor é mais da ordem da alma do que da do espírito. É por isso que se diz “dor de alma” e não “dor de espírito”. E, por isso, o espírito é perigoso para o amor. Quando ele chega, dita lei e o amor acaba. E ele, o Bernardo, vê sempre o amor com o filtro espiritual dos seus óculos. Foi o espírito dele que derrotou a Ofélia Queiroz. Ele desenhava o amor com palavras, isto é, neutralizava-o ou, pelo menos, relativizava-o. E isto acontecia cada vez que ia passear com a Ofélia e levava com ele o Álvaro de Campos, que ela odiava. As vezes que ela lhe pediu para o não levar com ele! Mas o outro impunha-se e acabou por estragar a relação. Ou seja, anulava o amor, porque ele tem de ser incondicionado, não pode ficar engavetado em palavras, sobretudo as que o engenheiro Álvaro de Campos usava. Sempre que a encontrava. Diz o Zenith que este sempre fez tudo para “frustrar o relacionamento deles” (2022: 675). O Fernando acabou, como sempre, por transformar o seu relacionamento afectivo num tópico literário (2022: 574). E ali arrumou o assunto.
Pois, com este negro, que o torna irreal, até mais do que já era, e, por isso, mais perdurável, é mesmo ele, o homem da renúncia, o que nunca se deixa ir para não se perder, ao sair de si, o que quer subsistir… à força de sentimentos desvitalizados e transfigurados. Ou não foi ele que disse que “agir é exilar-se” (2022: 802)? E, se tivesse de se “exilar”, então, mandava o Campos encontrar-se com a Ofélia ou, pelo menos, iam os três passear. Assim, “exilava-se” menos. Ele olha para a vida – o olhar deveria ser tudo – como para uma galeria de arte, sobretudo uma galeria de arte literária, que as outras artes podem muito bem ser subsumidas na literatura, à excepção talvez da música (2002: 504). Ele olha para um rosto como se fosse uma fotografia pendurada numa parede, animando-a com o que tem disponível na alma naquele momento. Mas no qual não toca sequer com a ponta dos dedos. Tudo parece ser, para ele, um pretexto para redesenhar o mundo no seu estirador mental. Redesenhar também Portugal e elevá-lo a V Império, pelas letras. Como fazem os melancólicos profundos quando se sentem impotentes para o mudar realmente, na prática. Desenham-no com os traços e as cores da utopia e acreditam que um dia ela acontecerá. Pelo menos no papel. Sim, sim, apesar de eu ter dúvidas de que o Soares ou o seu artífice alguma vez tenham querido verdadeiramente mudá-lo na sua mundana escala. Tentativas não faltaram, como nos conta o Zenith, mas nunca passavam de projectos que essa figura algo espectral e movida pelo vento nunca (ou quase nunca) passava à prática. Mas não creio que por ser incapaz ou por não ter jeito para isso, como o Soares dizia que acontecia com a poesia. O que, lá mais no fundo de si mesmo, ele não queria realmente era misturar-se com essa irrelevância da vida vivida. Porque ela é banal, andam por lá todos… Era o que mais faltava!
ÁCIDO SULFÚRICO, A OFÉLIA?
NA VERDADE, este homem tem o corpo confundido mais com o espírito do que com a alma. Só se lhe vê a parte de cima, o sítio onde está o espírito, de propósito, o que não aconteceria se tivesse jeito para a poesia e andasse por aí aos trambolhões, dorido de alma. Nesse caso, haveria de se lhe ver o peito. Mas não, porque também tem a alma confundida com o espírito, numa progressiva redução de planos, ou camadas. Ele, afinal, é um desdobramento do seu artífice, esse espírito voraz, capaz de (in)digerir o mundo com palavras. Uma bela operação, diga-se. As palavras viram-se para dentro dele, dobradas sobre si, e o bigode (que está lá, mas não se vê) é a porta fechada da sua fala. Uma fala espiritual. Resistente e fechada, à força, não vá a tentação abri-la e deixar escapar um reles sentimento carnal ou uma comprometida e ridícula declaração de amor. Não, não vá ele queimar-se com esse “ácido sulfúrico” que são as mulheres. Sabia bem o que temia: o “ácido sulfúrico” que era a Ofélia (2022: 679). É preciso renunciar. Ficar na “mansarda” mesmo não morando nela (2022: 803). Mas para renunciar é preciso força de vontade e alguma crispação. Lábios apertados até se anularem na superfície lisa do rosto. A boca, tal como os olhos com os óculos, está protegida pelo bigode e pelos lábios apertados. “Vulgares bocas de mulheres beijas / E eu só o sonho vão da tua boca”, dizia num poema homo-erótico, que terminava dizendo que a sua maior tortura seria a de, aceite pelo amado, se sentir “incapaz do último acto”. Incapaz, ele, que tem “tanta gente” em si, de sair da “toca poética”, como refere Zenith (2022: 663). Andam por aqui memórias de Antinous – A Poem, esse poema sobre a paixão de Adriano pelo jovem grego Antínoo, que viria a ser tão bem retratada por Marguerite Yourcenar, nas Memórias de Adriano. Sim, mas a boca, essa, beijou e com loucura, diria, mais tarde, quem a sentiu: Ofélia Queiroz. Mas foi sol de pouca dura, certamente porque o poeta não quis correr o risco de ficar “exilado” para toda a vida. E para isso criou um muro protector, o bigode, esse arame farpado que lhe protegia a alma. Tal como os óculos eram o muro que lhe protegia o espírito das vulgares insídias do real, do canto das “sulfúricas” sereias luminosas e tentadoras. Que mais se pode imaginar se não isto, quando olhamos para os seus óculos e para esse chapéu amarelo de tanto sol apanhar? A verdade é que o espírito, mais do que a alma, precisa de sol, mas que não seja em demasia, para não o encandear ou mesmo incendiar. Precisa de sol indirecto e o chapéu absorve a energia solar e alimenta-lhe o espírito. Chapéu e óculos, as armas do guerreiro que quer ganhar o mundo à custa de palavras, em português ou em inglês, essa ondulação em que foi navegando durante toda a sua vida.
INDIFERENÇA SENTIMENTAL
“INDIFERENÇA SENTIMENTAL” – dizes tu, ó Desassossegado. Essa eu até a reconverto em palavras ao rubro com a alma aos pulos, livremente, à minha vontade e até contra mim e tudo o que eu próprio planeei para ser eventualmente feliz. Ah, como é bela a indiferença, se for minha e a puder converter em autêntica diferença. Ser indiferente de forma original é cultivar a diferença e afirmá-la perante iguais. Ser indiferente é sugerir ao outro que eu existo sob forma irredutível, que sou outros, muitos outros, para além dele, a ponto de nem me aperceber que esse outro ele existe. E ele sentir isso na pele. Até a gravata me torna mais encrespado com o exterior de mim. Agarra-me pelo colarinho e não me deixa ir. Sou livre à força… quase à forca. Morrendo para fora à medida que vivo para dentro… de mim. Sim, porque a minha “alma se identifica com aquilo que menos vê” (2022: 546). Para fora, claro. Não para dentro, que é onde eu vivo ou mesmo me conservo: “sou um fragmento de mim conservado num museu abandonado” (2022: 506). É que, depois destes óculos me terem protegido quando “uma rajada baça de sol turvo (quase) queimou nos meus olhos a sensação física de olhar”, passei a olhar quase só para dentro, olhando de través para fora, sem tirar os óculos… Hum, só o suficiente. Minimalismo visual, diria. Mas não comprometido. Cedendo apenas um pouco à exigência desse objecto que tenho no meu rosto e a que chamam “óculos”. Nome tão estranho como o de “olho”… nome que tem essa sonoridade seca, e quase oca, que exibe como triste sonoridade. “Olho”! Prótese quase supérflua porque não me serve para ver o essencial, aquilo com que a alma mais se identifica. Serve para me resguardar, mas não para ver o essencial. Que está dentro de mim. Tudo o resto é puro acidente, coisa supérflua, e, portanto, só serve para ser visto de través. O que já é demasiado. Os meus óculos são mais um muro do que uma prótese para ver o mundo. Quando falo para o mundo as palavras fazem sempre eco no muro e saem fazendo ricochete nele. Chegam lá de mansinho com a energia quebrada pela rigidez deste muro ocular. Demasiado de mansinho, a ponto de só timidamente me ir literariamente afirmando. O que requer um sentido prático da vida que eu não tenho e que, para falar a verdade, não quero ter porque não pretendo exilar-me de mim próprio. Ou lá o que isso seja…
METAMORFOSE
“QUE OS TEUS ACTOS sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação” – é isso que sentes, ó desassossegado da vida, quando falas dela? É isso, renúncia, indiferença e negação? Tudo pela negativa? A vida é só metamorfose espiritual? É metempsicose? Com a fixidez desse teu olhar escondido atrás dos óculos metabolizas e suspendes a vida, para a viveres interiormente de forma mais intensa? Decidiste eliminá-la “pelo processo simples de” a “exprimir intensamente”, fazendo com ela o mesmo que fazes quando o obsceno te captura e te obriga a escrever, como fizeste em Epithalamium e em Antinous (Carta a Gaspar Simões – 2022: 416-417)? Está atento, que a vida ainda pode atropelar-te. E atropelou. Pouco, mas atropelou, levando-o a atirar-se para um vão de escada com uma Ofélia que beijava perdidamente. Sol de pouca dura ou, o que é mais provável, experiência obrigatória para quem estava a ser constantemente interpelado pelo além para experimentar o amor de uma mulher. Um amor que se revelaria desajeitado, talvez porque o que ele melhor sabia fazer era “uma arte de masturbação” (literária), talvez mesmo com homens, consigo próprio ou até com o seu amigo do peito Mário de Sá-Carneiro (2022: 397-398).
QUESTÃO DE LUZ
“UM AMARELO DE CALOR estagnou no verde preto das árvores”, dizes tu, com esse ar sisudo, de caso. Mas foi por baixo que estagnou… sim, no teu rosto, quase te queimando para a vida. Estagnou em ti porque estavas sob esta copa pouco frondosa, mas suficiente, que é esse teu chapéu amarelo. Mas, mesmo assim, o teu rosto pintou-se de negro neutro, marca da passagem do sol por ele. Sim, sim, o negro está em ti porque não é humanamente real e faz de ti um ser livre e solar. Em palavras. Foi o sol que te queimou a alma e te pôs negro por fora, para que permanecesses resguardado, protegido da luz exterior que pode cegar. Questão de luz, meu caro. Sobrou-te o espírito, eu sei, e só com ele te debruças sobre o mundo. Esse resiste e sobrevive. Mesmo sem alma ou com ela queimada, de tanto sol cair sobre ti. Queima-se a alma, liberta-se o espírito. Parece-te sensato? Não, não parece, mas não posso esquecer que tu és um insurgente existencial.
EM SUMA
ACHO, POIS, que uma parte importante de ti se chama mesmo Bernardo Soares e que essa parte gostaria muito de ter jeito para a poesia. Não tem, mas é como se tivesse. Por detrás do negro escondem-se muitos outros rostos que adoram escrever poesia. Até porque o que tu vês é o mesmo mundo que vêem os poetas. Foi por isso que o teu pai te arranjou tantos irmãos poetas, sabendo muito bem que a poesia não é para todos. Sobretudo para os que fecham as portas ao real e ao embate da paixão. Às fraquezas da alma. Claro, a poesia está perto demais do sentimento, da emoção, da vida e tu correrias o risco de te deixares ir na onda da sua perigosa e lamentável fugacidade. Seres como os outros na sua triste corporeidade sujeita à prisão do banal e corruptível sentimento. Andar por aí aos caídos. Oh, isso é que não. E o negro ajuda à renúncia, pois ajuda. Logo, ajuda a procurar a beleza intemporal, a que não é corruptível, biodegradável. Negro não é azul nem vermelho. Um é etéreo demais e o outro é demasiado emocional. Por isso, é melhor conservares-te assim e não saíres de ti a não ser o estritamente necessário, só para espreitares, de esguelha, a realidade. Mantém-te no intervalo, afasta um pouco a cortina e espreita o público a remexer-se nas cadeiras antes de o espectáculo da vida começar. De qualquer modo, esse pouco de vida de que precisas estará sempre lá, não desaparece. E assim ainda serás maior (por dentro) do que o tamanho do que vês (por fora), se é que, com esses óculos, vês mesmo. Se vês é com os teus sentidos interiores, apesar do sinal enganador desses teus óculos aparentemente tão comprometedores e instrumentos de observação do exterior. Olha, se te deixasses ir um pouco até à vida achas que te tornarias banal? A tua relação, ou mesmo ralação, com a Ofélia banalizou-te? Ao menos toca o real com a ponta dos dedos e, se for caso disso, depois desinfecta-a com palavras um pouco mais fortes ou até mesmo mais ácidas. Ou tens medo do “ácido sulfúrico” da vida e do sexo? Ah, bem sei! Não tens jeito para a poesia e achas que só ela é que te poderia salvar em caso de perigo, em caso de contágio. Mas tenta, meu caro, tenta, não sabes quanta metafísica pode haver na ponta dos dedos quando eles folheiam o real, sobretudo num poema, e o poder que têm de te resgatar dos fracassos da vida. Tens tanta poesia lá em casa, Bernardo Soares! E da boa! Bom, mas não te quero convencer porque, como dizia o outro, o acto de convencer alguém é pura violência, é tentativa ilegítima de lhe colonizar a alma, de impor superioridade espiritual. E eu, que sou poeta, prezo muito a liberdade, a minha e a dos outros. E, portanto, também a tua. A de seres o que quiseres e ser sempre outro que não tu mesmo. O que quer dizer que também podes, ao mesmo tempo, ser poeta, ser Reis, Caeiro ou Campos e, portanto, resolver esse teu problema existencial. É como voltar a ser criança, como tanto desejaste quando já só te sentias um adulto com excesso de lucidez, a ponto de te começares a informar com o teu amigo sobre como seria a vida no manicómio onde o tiveram enclausurado por algum tempo. Mas não, tens muito mundo a visitar com os teus irmãos. Afinal, mesmo não tendo jeito para ela, sempre gostaste de poesia, não é?
A RAINHA, A POLÍTICA E O PODER DO SIMBÓLICO
Por João de Almeida Santos

“The Queen”. Composição minha sobre capa da TIME. 08.09-2022.
ELIZABETH II partiu e com ela toda uma época passa definitivamente aos anais da História. Ela era o mais rico e significativo testemunho vivo do que de mais importante aconteceu na História Mundial desde o segundo pós-guerra. E representava uma importante dimensão da política – o poder do simbólico, colante no qual se reconheciam um reino (UK) e uma comunidade internacional (Commonwealth) por identificação na concreta personalidade de uma Rainha que interpretou, com leveza e densidade, uma altíssima função institucional agregadora. O poder do simbólico materializado, no palco da História, no corpo de uma mulher com profissionalismo, dedicação, humanidade. E leveza, sim, poder-se-ia dizer sem receio de errar. A leveza do seu sorriso, a leveza do seu espírito de humor e a delicadeza com que foi exercendo o poder. E o valor político do simbólico a partir do qual se estrutura a visão de um país sobre si próprio e se sedimenta a própria identidade, para além das diferenças. Sim, para além das legítimas diferenças políticas que têm expressão institucional numa monarquia constitucional. Uma grande narrativa, a de uma potência, que sobreviveu na sua pessoa, interpretando-a radicalmente ao entregar-se de corpo e alma à função que a história lhe pôs nas mãos, no rosto, no corpo. Corpo vivo e singular de uma nação, com a superior e difícil exigência de anulação da própria subjectividade por diluição integral na identidade nacional. Uma função complexa que devia sobreviver às contingências do tempo histórico, durante as sete décadas em que foi máxima autoridade do Reino Unido e da Commonwealth. A própria magnificência dos palácios reais acabava por ser redimensionada na figura simples, austera, elegante e humana da monarca, que os habitava com a mesma simplicidade do cidadão comum que habita essa nação grande e poderosa. Ao que parece, do que ela gostava era mesmo do ambiente natural de Balmoral, na Escócia, da vida simples que aí podia ter. Mas nessa simplicidade ela era mais do que si própria e também mais do que a própria monarquia constitucional. Transcendia-se e transcendia o sistema político, respeitando-o escrupulosamente, mas elevando-se a figura tutelar da nação, confundindo-se de tal modo com ela que, como alguém disse, às vezes era difícil dissociá-las. Alguém se perguntava se uma vida poderia ser vivida assim, em permanente negação de si própria para realizar a plena afirmação de uma identidade nacional materializada no corpo vivo de um ser humano que era, afinal, igual a todos os outros. A representação política foi aqui consumada, ao mais alto nível, no simbólico, correspondendo-lhe, como é natural, uma dimensão muito mitigada dos seus concretos poderes, que mais eram rituais e cerimoniais.
I.
NELA, NA RAINHA, a monarquia ganhava um seu peculiar sentido, merecendo aceitação mesmo daqueles que não partilhavam o sentido do regime. Era um traço de união de todos os ingleses na sua simplicidade e na sua grandeza. Algo que parece ter desaparecido nestes tempos caóticos e desajustados que estamos a viver, onde o simbólico e a ética pública parece terem sido relegados para um plano inferior. É por isso que a sua partida sela mesmo o fim de uma época. Uma época ainda de grandes narrativas, de sentido do trágico histórico, da virtus e da gravitas emprestadas à política, marcas indeléveis de responsabilidade histórica transtemporal. A sua partida é, pois, sentida como uma Ausgang, uma saída irreversível que é também perda irreparável. Marca, sim, o fim de uma época.
II.
ALGUÉM DIZIA (com uma ponta de ironia) que a maior homenagem que se lhe poderia fazer seria ninguém ocupar o lugar que foi o seu. Seu, quase como que por antonomásia. Sim, mas mesmo que seu filho Carlos III o ocupe, e já ocupa, é impossível repor o sentido e o simbolismo de uma história que passou e que com ela, sua especial intérprete, se fechou. O seu lugar nunca poderá ser ocupado por quem quer que seja, porque o interpretou de uma forma irrepetível, quase uma obra de arte com aura, construída ao longo de muitas décadas no seu atelier de Buckingham. De certo modo, em solidão, tal como os artistas. E não só porque o tempo histórico não se repete. Também porque ela se plasmou e diluiu na função. Se transfigurou. Deu posse à nova Primeira-Ministra como sempre o fez e logo, dois dias depois, partiu no silêncio dos seus aposentos em Balmoral, deixando aquele sorriso inconfundível e aquela imagem doce, fisicamente tão marcada (nas mãos), para o futuro. Como se tivesse interrompido a marcha implacável da sua partida para cumprir, pela última vez, com serenidade e gentileza, o seu dever. E fê-lo na Escócia, um lugar problemático para a unidade do Reino Unido, deixando, com a sua presença, no momento crucial da sua vida, o momento de fronteira, uma silenciosa, mas significativa, mensagem de apego, de afecto e de identidade aos escoceses.
III.
O SEU MAIOR LEGADO talvez seja o da importância do simbólico na história e na política quando interpretado por uma pessoa concreta de forma tão elevada, mas tão simples, elegante e dedicada. Esta imagem final de uma simplicidade trágica (sabemos agora) a receber a nova primeira-ministra, o seu último e terno sorriso, diz tudo sobre ela e marca com enorme singeleza inesperada o fim de uma época.
IV.
TUDO TEM UM FIM, mas nem todos os fins são iguais. A partida da Rainha é maior do que o fim de um soberano porque ela transportava consigo um simbolismo irrepetível. God save the Queen queria mesmo dizer God save the United Kingdom. Esta era mesmo uma identidade profunda, acima das peripécias da história e dos episódios mundanos de uma família que, como tantas outras, está sujeita às vicissitudes próprias dos seres humanos. Sobreviveu às contingências, sim, mas porque se elevou acima delas. Por isso ela partiu intacta e nas universais manifestações de pesar não é possível encontrar ponta de hipocrisia, ao contrário de tantos outros momentos em lutos de significado histórico.
V.
TAMBÉM EU, que sou republicano, lhe presto a minha homenagem e evidencio o significado do seu reinado, da forma como o interpretou, do seu minimalismo constitucional e da intensidade simbólica da sua identificação com o destino de uma enorme comunidade, como legado simbólico a assumir no futuro como expressão de valores que a história humana merece que sejam preservados, seja nas monarquias constitucionais seja nas repúblicas.
Thanks, Her Majesty The Queen Elizabeth II.
#JAS@09-2022
A ESQUERDA NA EUROPA DO SUL
Quo Vadis?
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 09-2022
JULGO SER INTERESSANTE PROPOR, partindo das sondagens mais recentes (de Agosto e Setembro), uma reflexão sobre a esquerda na Europa do Sul, onde somente o PS mantém uma clara hegemonia política, liderando o governo do país (o PSOE governa, mas com maioria relativa e em coligação). Na Grécia, apesar da liderança de Nikos Androulakis ter, ao que parece, levantado o PASOK do estado calamitoso em que se encontrava, estando hoje, nas sondagens, em cerca de 11%, a bipolarização continua a centrar-se na Nova Democracia e no Syrisa, com valores a rondarem respectivamente os 33% e os 24%. Na França, é o que se sabe: o PSF desapareceu ou foi engolido pela esquerda de Jean-Luc Mélenchon. Em Espanha, está a acentuar-se de forma sustentada a hegemonia do PP de Núñez Feijóo, distanciado (nas últimas 10 sondagens), com cerca de 32%, a 8 pontos do PSOE, com cerca de 24%, enquanto se verifica uma consolidação do VOX, com cerca de 15.5%, e uma progressiva queda do Unidas Podemos, para cerca de 11%. Em Itália, é o Fratelli d’Italia, legítimo herdeiro do Movimento Sociale Italiano, de Giorgio Almirante, fascista, que lidera, com 25,1% (IPSOS, de 02.09) e 25,8 (SWG, de 05.09), situando-se o Partido Democrático em segundo lugar, a cerca de 3 ou 4 pontos de diferença (22% e 21,4%), mas o terceiro lugar é ocupado pela LEGA, de Salvini, (com 12,1%, SWG; mas na sondagem IPSOS passa para 4º lugar com 12,2% contra 14,1% do M5S, que sobe para 3.º lugar) também de extrema-direita, tendo o Movimento5Stelle 11,9% (SWG) e mantendo-se o Forza Italia em 8,3% (IPSOS) ou caindo para 6,7% (SWG). É de anotar que, no ranking dos líderes (IPSOS), Giorgia Meloni (FdI) já ocupa o primeiro lugar, com 34,5%, seguida de Conte (M5S), 31,5%, Salvini (Lega), 27,4%, Letta (PD), 26, 2%, e, finalmente, Berlusconi (FI), com 26%.
Sabe-se agora, depois das eleições de Domingo, 11 de Setembro, que os Democratas Suecos, partido de extrema-direita, já são o segundo partido sueco, com 20, 6%, depois do partido social-democrata, que continua a ser o primeiro partido, com 30,4%, não tendo, todavia, conseguido levar o centro-esquerda à vitória, podendo para a direita e a extrema-direita, que obteve 176 mandatos contra os 173 do centro-esquerda. O partido de Akesson, os DS, alinha no Parlamento Europeu com o partido da Senhora Meloni, o FdI. Formar-se-á, portanto um governo de direita que irá integrar os DS. Mais uma lição para o centro esquerda: o grande protagonista destas eleições é um partido cuja principal orientação é a luta contra a imigração, ficando na sombra a sua verdadeira identidade ideológica, pouco recomendável quer para vencer eleições quer para integrar um governo (mudara, entretanto, a chama para uma flor, no seu logo).
I.
A SITUAÇÃO não é brilhante para o centro-esquerda e o próprio PS, apesar da situação confortável de que dispõe, tem de ver um pouco mais além do que, no meu entendimento, está a ver. E, ao contrário do que poderia parecer, o facto de dispor de uma maioria absoluta talvez lhe dê melhores condições para, no plano do partido, proceder ao aggiornamento e aos ajustamentos que teima em não fazer. A começar logo pelo próprio partido, pela doutrina e pelo modo como entende a política, porque é aqui, a montante do processo, que se joga o essencial. Por uma simples razão: são os partidos que fornecem os mais altos dirigentes para a direcção política do país. A forma como se vê e se identifica, como se organiza, como funciona, como se prepara estrategicamente e se dota de um horizonte ideal em linha com os tempos é, pois, decisiva. Mas isso não acontece simplesmente adoptando a linguagem asséptica, o politiquês, ou politicamente correcta, aquilo que os franceses chamam langue de bois, agora aggiornata. Depois, é fundamental perceber por que razão a extrema-direita está a ter o sucesso que se vê nas sondagens e nos resultados eleitorais nesta Europa, estudando o seu discurso, tão motivador para enormes faixas do eleitorado. Como e por que razão as motiva. Em Itália, ela já corresponde a cerca de 38% do eleitorado, sem contar com o partido de Berlusconi (que vem exibindo regularmente uma média de cerca de 8%), um partido de tipo neoliberal (ou melhor, liberal em política e “liberista” em economia”). Em França, o Rassemblement National dispõe hoje de 89 deputados na Assembleia Nacional e a sua líder continua a ser a alternativa presidencial, num sistema maioritário a duas voltas. Aqui, no plano parlamentar, a alternativa é a coligação NUPES, liderada pelo senhor Jean-Luc Mélenchon e pelo seu partido “La France Insoumise”. Em Espanha, o VOX em pouco tempo atingiu quase uma média de 16,6% no conjunto das sondagens, mas tendo nas últimas dez recuado para cerca de 15,5%. Na Hungria, o parceiro político e ideológico da direita mais radical, o partido-Estado Fidesz do senhor Viktor Orbán, governa o País e acarinha a extrema-direita internacional, designadamente o partido de Matteo Salvini, o amigo político de Putin, com o qual, em tempos, este assinou um protocolo de colaboração entre os respectivos partidos, que teve posteriores e polémicas consequências. Na Polónia, o Lei e Justiça, partido de direita, do senhor Kaczynski, o seu poderoso líder, governa e dita lei. Em Portugal, em duas eleições, o CHEGA passa de 1 para 12 deputados no Parlamento.
II.
POR TUDO ISTO, torna-se necessário compreender por que razão estas forças políticas conseguem atrair importantes faixas do eleitorado, sendo certo que elas centram o seu combate em duas linhas fundamentais de argumentação: contra o politicamente correcto e as políticas identitárias que, errada, mas eficazmente, imputam em geral ao sistema e às forças de centro (-esquerda ou -direita) que o governam; e contra a visão liberal da sociedade, retomando a velha tradição romântica e anti-iluminista, crítica radical do legado da revolução francesa (veja-se a obra de Alain de Benoist e as declarações de Orbán sobre o liberalismo). Mas é também necessário compreender as razões de fundo que explicam a fragmentação dos sistemas de partidos, à direita e à esquerda. Uma coisa, todavia, é certa: não vamos lá com a habitual conversa da mudança dos sistemas eleitorais ou com a contratação de especialistas de comunicação. E não vamos lá porque a questão é mais profunda e atinge, por um lado, a própria ideia de política e, por outro, a nova identidade do cidadão/eleitor (veja-se o que, sobre este assunto, digo no meu “A Política, o Digital e a Democracia Deliberativa”, em Camponez, Ferreira e Díaz-Rodriguez, Estudos do Agendamento, Covilhã, Labcom-UBI, 2020, pp. 137-167). Não falo, pois, de targets eleitorais, não. Falo do cidadão em geral, daquele que hoje tem acesso ilimitado à informação através de variadíssimas plataformas, dos media tradicionais à rede, das plataformas tradicionais às novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs). Esse mesmo cidadão que tanto é eleitor como é consumidor ou produtor, que tanto pode ser progressista nos costumes como pode ser conservador na política, que tanto milita em partidos como é activista em associações de vário tipo. Falo de um cidadão que exibe várias pertenças em simultâneo e que é alvo de informação amplamente disseminada que lhe chega por diversas plataformas, tornando subalterno o velho sentimento de pertença ideológico e político e que até já possui meios que permitem circunscrever o poder instrumental dos media tradicionais (imprensa, rádio, televisão), que, todavia, continua a ser muito forte. E falo também de um cidadão que está cansado da langue de bois da política e muito mais ainda da nova ordem linguística que o activismo identitário e politicamente correcto lhe quer impor moral e juridicamente, sob pena de proscrição da justa ordem social. Uma versão laica, aggiornata e sofisticada do velho auto-da-fé, agora processado pela nova religião e pelos novos cardeais do politicamente correcto através do pelourinho electrónico ou, nos casos mais graves, da fogueira electrónica, onde pululam os seus fiéis representantes.
III.
MAS FALO TAMBÉM de uma política que não pode continuar a ser reduzida a uma espécie de conversa de conselho de administração que é quase igual em todos os programas eleitorais. Vão ler o programa da coligação de (extrema-) direita italiana e digam-me se não tenho razão. Se, portanto, quiserem ver qual é a política desta coligação não será através da leitura do seu programa eleitoral (que é puramente instrumental), mas, sim, ouvindo, por exemplo, o discurso da senhora Giorgia Meloni no comício do VOX na Andaluzia, por ocasião das recentes eleições regionais, onde o PP obteve a maioria absoluta e onde, mesmo assim, aquele partido ainda conseguiu, se não erro, mais dois mandatos do que os que tinha. Um discurso, este, que mostra a virulência com que a extrema-direita ataca as políticas identitárias, como se elas fossem já a expressão do sistema em vigor. Em boa verdade, ela, em parte, acerta no alvo visto o irresponsável acolhimento, passivo e activo, que a política identitária e politicamente correcta tem vindo a ter no próprio sistema e nos seus principais agentes, alimentando, deste modo, o discurso da extrema-direita e engordando-a eleitoralmente. Já chega também de identificar governo com governança e de reduzir a política à gestão do statu quo, tantas vezes com a lógica e o deslumbramento do aprendiz de feiticeiro, gerindo instrumentalmente a comunicação e a informação para fins exclusivamente eleitorais. O fim não deve ser, para a esquerda, a mera conquista do poder, mas sim a conquista do poder para fazer coisas e mobilizar a cidadania, induzindo confiança e espírito de comunidade, promovendo junto dos cidadãos aquilo que o Kennedy disse de forma muito certeira: não pergunte o que é que os Estados Unidos podem fazer por si, mas sim o que é que você pode fazer pelos Estados Unidos. A esquerda deve proteger e garantir os direitos, as garantias e as liberdades, correspondendo às expectativas dos cidadãos, mas não pode esquecer os deveres e as responsabilidades, afastando essa erva daninha que é a fórmula “a culpa é do sistema”, que desresponsabiliza tudo e todos, a começar pelos próprios. Desresponsabilização que atira para o Estado, esse paternal manto protector, o dever de tudo reparar, com os recursos financeiros dos (poucos) cidadãos que pagam impostos. Para este fim, é, pois, necessário promover seriamente uma ética pública e o sentido de responsabilidade e de dever, sem deixar, claro, de abrir espaço à livre e plural ética da convicção e de promover a centralidade dos valores e o investimento estratégico na cidadania pela formação cívica, pela ética, pelo conhecimento, pela cultura, pela arte, dimensões intangíveis hoje tão subalternizadas ou abandonadas perante o domínio absoluto da centralidade dos bens materiais de consumo ou, em geral, dos chamados “bens transaccionáveis”, na vida social. A questão é de uma simplicidade meridiana: não pode haver uma boa sociedade e uma boa política democrática sem cidadãos motivados, bem formados, autodeterminados e com uma relação com a sociedade sensível aos valores da comunidade. A conversa da produtividade a todo o custo, para onde tudo parece convergir, centrada exclusivamente no trabalho (individual), é errada sabendo nós que a produtividade hoje está essencialmente centrada na ciência, na tecnologia e, claro, na boa organização das unidades produtivas e que, este é o ponto, só promovendo uma ética do trabalho financeiramente sustentada será possível pedir aos cidadãos efectivo empenho a todos os níveis. Não se consegue promover a ética do trabalho sem condições materiais sustentáveis. Até já o fordismo (à sua maneira, claro) compreendera a relevância deste factor (veja-se Gramsci, A., Quaderni del Carcere, Torino, Einaudi, 1975, III, 2164-2169). Mas não serão somente as imprescindíveis condições materiais a gerar esta ética se não houver um esforço formativo estrutural, assente na educação, formal e informal, da cidadania ao longo da vida. E, todavia, o que se vê, em geral, ou seja, como discurso social dominante, é o das plataformas informativas a explorarem sistematicamente, em prime time, durante mais de uma hora, todos os dias, o negativo e a promoverem a imitação do que realmente não presta e é nocivo à própria auto-estima da comunidade. A hegemonia do irrelevante e do negativo parece ser a estratégia do poder mediático para promover o seu poder financeiro, funcionando à revelia da sua enorme responsabilidade social. Mas o que faz a esquerda perante esta autêntica e permanente intoxicação da opinião pública com o negativo e o irrelevante, para não dizer com estratégias de poder? Nada. Agacha-se, não vão os patrões dos canais televisivos retirar-lhe tempo de antena. O mesmo vale para o poder judicial, que se julga com legitimidade equivalente à do Parlamento e que age livremente sem qualquer tipo de controlo. O que faz a esquerda perante o estado calamitoso da justiça em Portugal? “À política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, como se a justiça não estivesse sujeita à soberania popular, através dos seus representantes. Parece terem esquecido que separação de poderes não equivale a igualdade de poderes. O poder legislativo tem legitimidade directa proveniente do soberano. O poder judicial tem a sua legitimidade assente no poder legislativo (a própria Constituição é aprovada pelo Parlamento, reunido como Assembleia Constituinte). A responsabilidade sobre o bom funcionamento do sistema social é da inteira responsabilidade do poder político, não do poder judicial.
IV.
OS PARTIDOS DE ESQUERDA, prenhes de tanto Estado, deveriam investir na sociedade civil de onde emanam e a que pertencem, “back to the basics”, assumindo-se como forças propulsoras de uma boa cidadania em vez de se servirem dela exclusivamente para fins eleitorais e como máquinas de puro acesso ao poder, de ocupação da máquina estatal, de distribuição de empregos e de lobbying sistémico. Como se se tratasse, nas eleições, de uma gigantesca OPA – a concurso para um número limitado de organizações – para a conquista de uma grande e sólida empresa de gestão de recursos humanos e de activos financeiros (Administração Pública e recursos financeiros do Estado). Pelo contrário, a sua função deveria ser a de, representando o interesse geral, se interporem na relação entre os oligopólios (que existem, nos sectores nevrálgicos da sociedade) e a cidadania, protegendo-a do seu imenso poder, exercido em cartel, gerido silenciosamente em back office e resguardado pelas muralhas intransponíveis dos call centers. Por outro lado, no plano da doutrina, continuo a não perceber como é que certos partidos sociais-democratas ou socialistas continuam a recusar o património liberal clássico, sobretudo hoje, que a centralidade do indivíduo/cidadão/eleitor/consumidor/produtor é um dado incontestável, vista a superação moderna da composição orgânica das sociedades, a globalização de processos e da comunicação e a centralidade da ciência e da tecnologia na economia. E por que razão a ideia de partido como órgão vivo da sociedade civil, e não como academia para iniciados e pura antecipação e prefiguração do Estado, continua fora dos horizontes dos partidos? E por que razão não apostam na eficiência do Estado, na sua regeneração, pondo fim ao funcionamento da máquina estatal somente por inércia (a não ser nos impostos)? Quem trabalha nele deveria compreender que são os cidadãos que, com os seus impostos, lhe pagam o ordenado e que o seu trabalho deve estar inscrito numa saudável ética pública. É urgente romper com o círculo infernal do crescimento da máquina estatal e do crescimento progressivo dos impostos que caem exclusivamente sobre cerca de metade da população activa.
V.
TUDO ISTO É URGENTE, ao mesmo tempo que é urgente compreender por que razão o PSF desapareceu, depois de o seu líder ter acabado de desempenhar as funções de Presidente da República; compreender por que razão o PASOK colapsou, cedendo o seu lugar à extrema-esquerda na dialéctica da alternância; compreender por que razão a subida do VOX está a acontecer de forma tão rápida e tão significativa, mesmo com o PP a crescer também; compreender por que razão a extrema-direita cresceu tanto e tão rapidamente também em Itália, a ponto de se poder prever que irá formar governo a partir do mês de Setembro, sendo certo que não é a primeira vez que este país é um significativo laboratório político europeu e não pelas melhores razões; e, finalmente, compreender as razões do rápido crescimento do CHEGA em Portugal. E não falo da Academia. Essa seria outra conversa, pois também ela parece estar mais preocupada em gerir carreiras do que em produzir pensamento e saber válidos socialmente. Falo dos partidos políticos que detêm a responsabilidade política directa sobre a sociedade.
VI.
NÃO SE TRATA de fenómenos conjunturais, mas de razões de fundo que se reforçarão se não houver um esforço de compreensão das mudanças estruturais que se estão a verificar e se não houver as correspondentes mudanças de fundo nas políticas essenciais do país. Por exemplo, nas políticas fiscais, que estão a empobrecer brutalmente os poucos (cerca de metade da população activa) que pagam impostos. Ainda continua válido o princípio de “no taxation without representation”, que associa “taxation” a “representation”, agora adaptado aos novos tempos nas sociedades pós-coloniais e, por isso, invertido na ordem dos seus termos, “no representation without taxation”? E se, em homenagem a este princípio e como símbolo de reconhecimento do valor comunitário pela cidadania, por toda a cidadania pagasse impostos, embora alguns de forma meramente simbólica? Não, não se trata da “flat tax”, mas de uma forma de expressão material do dever comunitário e de efectivo empenho social, ainda que simbólico nos casos em que isso se justifique. Aquilo a que se assiste em Portugal, do ponto de vista fiscal, é verdadeiramente pornográfico. Impostos directos, indirectos, taxas e taxinhas, sempre a somar. Apetece, a propósito, usar uma certeira expressão italiana: “chi più ne ha, più ne metta”. Basta, a título de exemplo, fazer a análise do que acontece a quem tem uma viatura e a usa: impostos e taxas sobre tudo, sobre a compra (imposto sobre veículo e IVA, dois impostos sobre o mesmo produto), sobre a posse (IUC), sobre os combustíveis (ISP e IVA), sobre auto-estradas, que já são de uso comum (preço de circulação e imposto de 23% sobre o respectivo preço), sobre o estacionamento (de 23% e mesmo em superfície), sem contar com a política sniper da polícia para encher, através das multas, os bolsos do Estado. Quase se poderia dizer que se está a assistir a uma captura e mercantilização ou privatização, pelo Estado e pelos privados, do espaço público. Ter um carro e usá-lo, hoje, representa um rombo enorme nas próprias finanças, como se fosse um luxo (ainda por cima poluidor). Junta-se o princípio do utilizador-pagador, tão “hosanado” pelo antigo ministro Mexia, a níveis incomportáveis de impostos e de taxas sobre tudo o que mexe, não sendo, ambos, assumidos como relativamente alternativos, mas como soma financeiramente virtuosa, para o Estado e arredores, claro está. Já nem sei mesmo se esta injunção excessiva do Estado (compreendidas as autarquias) não representa, de facto, uma autêntica estatização integral da vida social por via fiscal. Um ulterior alargamento do manto protector – mas também castigador (neste caso, fiscal), como acontece sempre com o paternalismo protector – do Pai-Estado. O que não parece ser muito compatível com a matriz da nossa própria civilização, aquela que continua válida e inspirada na célebre e genial Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de Agosto de 1789. Mas será que os nossos políticos do centro-esquerda (mas até do centro-direita) não têm mesmo um sobressalto e fazem alguma coisa para mudar isto, antes que a cidadania tome medidas mais drásticas, e não as melhores, para mudar as coisas? Será que estamos mesmo condenados a correr sempre atrás do prejuízo, como está a acontecer mais uma vez com os fogos florestais?
NOTA
ESCREVI este artigo antes de conhecer as medidas do governo anunciadas na Segunda-Feira, mas, numa primeira análise, não me parece que tenham vindo a alterar qualquer dos aspectos aqui referidos. Nenhuma medida de fundo, mas apenas medidas pontuais, limitadas no tempo, sendo a medida relativa aos pensionistas uma mera antecipação de valores, compensada depois pela redução dos valores de actualização anual das pensões. Mantém-se a resistência a alterar os impostos em matérias fundamentais (por exemplo, combustíveis e gás, sendo que o da electricidade também é limitado no tempo, até final de 2023, e refere-se somente à taxa de 13% e não à de 23%). #Jas@09-2022

“S/Título”. Detalhe
MIKHAIL GORBATCHOV
Perestroika ou o princípio do fim
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 08-2022
COM A MORTE DE MIKHAIL GORBATCHOV creio ser necessário dizer o que representou verdadeiramente a Perestroika e o seu esforço para salvar a URSS do seu declínio, em vez de julgar unicamente o seu legado à luz do que hoje sabemos e conhecemos. Uma coisa é certa: com ele, o mundo mudou radicalmente sem que tenha havido derramamento de sangue.
Mas vejamos, então, como é que, no coração do sistema dos países socialistas, a URSS procurou resolver o impasse estrutural que o sistema estava a viver, em meados dos anos oitenta, quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista político. A via é conhecida com o nome de Perestroika. Esta reflexão poderá ajudar-nos a compreender melhor a própria natureza do sistema socialista, em todas as suas variáveis, os seus limites, as razões profundas da sua origem e evolução e, finalmente, a tentativa de evitar o seu inexorável declínio.
URSS: Da Europa ao Oceano Pacífico. Cerca de 280 milhões de Habitantes. Mais de 22 milhões de KM2s. 15 Repúblicas Federais. Cerca de 200 línguas faladas. De 1917 a 1991: regime soviético.
I.
Em meados do século XIX, o populista A. I. Herzen, numa carta a Linton, fazia uma pergunta, e dava logo a respectiva resposta, sobre a evolução histórica da Rússia. Dizia ele:
«Deve a Rússia atravessar todas as fases do desenvolvimento europeu ou a sua vida desenvolver-se-á segundo outras leis? (…) Ao povo russo não é preciso começar do princípio este pesado trabalho».
Esta foi sempre a questão que se pôs quando se discutia a natureza do regime soviético. Um universo que nunca conheceu a experiência da democracia representativa. Por isso, a questão que se punha, durante a Perestroika, era a seguinte: para que, na URSS, pudesse realizar-se uma autêntica reforma global do sistema, seria necessário introduzir ex-abrupto ou a longo prazo um sistema pluripartidário de tipo ocidental? Ou bastaria que organismos sociais verdadeiramente autónomos, quer em relação ao Estado quer em relação ao PCUS, pudessem vir a ser decisivos para (a) a constituição material e formal dos sovietes, para (b) a formação de uma opinião pública e para (c) a constituição de um poder económico de novo tipo, uma vez libertadas as instituições do Estado da sua captura decisional pelos órgãos e pelos membros do PCUS?
Provavelmente, teria sido difícil introduzir ex-abrupto, num sistema com aquelas características e com a centralidade política internacional de que dispunha no sistema dos países socialistas, uma democracia representativa de tipo ocidental; a isso nem sequer ajudava a ausência de uma tradição histórica que se fundasse na emancipação individual ou em qualquer forma de democracia formal. As dificuldades por que passou a primeira tentativa de abertura do sistema, no período entre 1956 e 1964, e que levaria ao poder Brezhnev, desaconselhavam tal opção. De resto, não foi por acaso que, no XXVII Congresso do PCUS, a Perestroika arrancou como reforma económica, adquirindo características políticas mais inovadoras somente mais tarde.
II.
De facto, o Congresso de Fevereiro-Março de 1986 colocara a questão central da reforma económica no pressuposto de que se concluíra a fase de desenvolvimento económico extensivo ou quantitativo, isto é, virado exclusivamente para a plena satisfação e estabilidade das necessidades consideradas vitais. Exemplares a tal respeito são, segundo Otto Lazis, redactor da Revista teórica do PCUS, «Kommunist», os seguintes dados:
- o preço da carne e da manteiga não sofria alterações há 25 anos;
- o do pão há quase 40 anos;
- e o das rendas de casa há quase 60 anos.
Lazis, sugeria, por isso, na óptica da Perestroika, a necessidade urgente de alterar este sistema de preços, por se afastar demasiadamente dos seus custos sociais e do equilíbrio entre a procura e a oferta e, em última análise, por acabar por violar o próprio princípio da justiça social (AAVV, Il progetto Gorbaciov, Roma, 1987, p. 66) (PG). Tal reforma deveria conduzir ao impulso enérgico de uma nova fase de desenvolvimento económico intensivo ou qualitativo, baseado na modernização, no emprego maciço de tecnologia científica avançada e na eficiência, com o objectivo, como então afirmou o influente economista gorbatchoviano Aganbejian, de «substituir os métodos administrativos pelos métodos económicos», deixando a vida das empresas
«de ser determinada por ordens e índices detalhados ditados do alto, mas por encomendas, pelos preços, pelo crédito, pelos estímulos» e contribuindo, deste modo, para «liquidar a ditadura do produtor sobre o consumidor».
Zdenek Mlynar, ex-dirigente dubchekiano do PC checo, projectava, então, a reforma a uma escala mais ampla e radical:
«uma direcção que se funde em factores intensivos de desenvolvimento rege-se pelo princípio de que “o que não é proibido é permitido”, enquanto uma direcção que trava e sufoca o desenvolvimento intensivo age segundo um outro princípio: “o que não é permitido é proibido”» (PG, p. 29).
Trata-se de uma passagem fundamental uma vez que na ideologia oficial soviética, na opinião de Mlynar, «o sistema que favorece o desenvolvimento intensivo da sociedade foi [antes] definido a priori como algo que convém somente ao capitalismo» (PG, p. 30).
A urgência desta passagem tinha origem numa situação económica deteriorada, como então dizia Boris Krotkov:
«as tendências desfavoráveis que se manifestaram no desenvolvimento da economia na década de ’70 acentuaram-se no início dos anos ’80, quando caíram os ritmos da produção. Agravaram-se os índices qualitativos da gestão económica (…). As causas principais de tal situação residem no facto de, na actividade prática, não ter sido levada em conta oportunamente a modificação da situação económica, relacionada com o esgotamento das possibilidades do crescimento extensivo» (XXVII Congresso do PCUS: discussões e decisões, Moscovo, Nóvosti, 1986, p. 13).
E, de facto, na economia soviética verificou-se uma tão «grave queda dos ritmos de desenvolvimento que levou o incremento quinquenal do rendimento nacional de 41% (1966-1970) para 16,5% (1981-1985) com uma linha descendente constante» (U. Cerroni, Implicazioni e prospettive del nuovo corso soviético, intervenção num seminário do «Centro di Studi di Politica Internazionale», Roma, 1987). Tal situação não poderia, pois, deixar de, uma vez por todas, exigir uma promoção «do processo de intensificação da economia com base na aceleração do progresso técnico-científico, no aperfeiçoamento multilateral e na melhoria da forma e dos métodos da gestão económica socialista» (Krotkov, cit., p. 21).
Mas em que é que consistia um tal desenvolvimento económico intensivo ou qualitativo considerado pelo Congresso como meta fundamental da Perestroika e a que a própria reestruturação política se deveria subordinar, como afirmava Lazis (PG, pp. 62)?
Umberto Cerroni (1987) e Giuseppe Boffa (“Socialismi in movimento”, PG, pp. 83-90), dois autores profundamente conhecedores da realidade soviética, apontavam as seguintes traves-mestras do projecto reformador pretendido com a passagem da fase extensiva para a fase intensiva de desenvolvimento:
- planificação soft baseada na previsão científica a longo prazo (Cerroni);
- autofinanciamento das unidades produtivas e sua gestão com base num cálculo de rendimento (Boffa);
- centralidade do lucro empresarial (Cerroni);
- avaliação, não por índices brutos, mas por índices de mercado do produto (Cerroni);
- autonomia das empresas e sua relação directa com o mercado (Boffa);
- concorrência interempresarial filtrada por comissões de aceitação do produto (Cerroni);
- centralidade das tecnologias de processo e de produto (Cerroni);
- comércio de bens instrumentais em vez da sua dotação administrativa (Boffa);
- função estimuladora e selectiva dos preços, das remunerações e do crédito (Boffa);
- diversificação dos rendimentos segundo critérios de produtividade colectiva, além de individual (Boffa).
III.
Não será difícil intuir que uma tal passagem ao desenvolvimento intensivo exigiria uma transformação mais global e radical de todo o edifício social. Foi assim que o princípio de que «tudo o que não é proibido é permitido» se constituiu também, de algum modo, como princípio de ordem social e não só económica, não obstante ele estivesse intimamente ligado à rejeição da aplicação generalizada dos métodos administrativos na economia e à necessária liberdade económica das empresas do ponto de vista do financiamento, dos mercados, dos preços e dos estímulos, exprimindo também a possibilidade de expansão qualitativa do consumo por oposição ao império dos critérios quantitativos e administrativos aplicados directamente à esfera da produção.
Mas a verdade é que ele indicava uma tendência mais geral para a relativa inversão da lógica da relação entre o Estado-sistema e o cidadão-indivíduo. Este último era, aliás, considerado por Mlynar (“Quanto pode contar o indivíduo”, PG, pp. 42-49) como um dos pilares centrais de uma reestruturação que quisesse vingar, precisamente porque «a política reformadora da URSS se confronta[va] e se confrontará[ria], durante muito tempo, com aquele emaranhado de contradições constituído pelas relações, mediadas pelo direito, entre poder político e indivíduo singular» (PG, p. 42). Mas esta não era uma questão pacífica nem fácil porquanto o conceito de cidadão-indivíduo, enquanto sujeito principal de direitos civis e políticos, foi sempre identificado, pela tradição socialista, com a concepção formalista dos direitos humanos, onde se reconhece somente relações de «igualdade formal abstracta» entre indivíduos que, afinal, para esta tradição doutrinária, vivem em sociedades divididas em classes reciprocamente hostis e onde às classes subalternas não são garantidos os direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais. O que não acontecia na mundividência socialista, onde o sujeito dos direitos políticos era um sujeito colectivo (o grupo social, a classe, o colectivo de trabalho, etc.), através do qual eram garantidos a cada indivíduo, antes de mais, os direitos sociais fundamentais (ao trabalho, à instrução, à assistência na saúde, etc.).
Esta concepção em relação ao cidadão-indivíduo não era, de modo nenhum, um artifício ideológico do sistema que visasse um maior enquadramento e uma maior docilidade da sociedade civil em relação ao poder constituído. Ela tinha raízes históricas mais profundas:
«antes de mais», afirma Mlynar, «encontramo-nos perante o facto de que na Rússia pré-revolucionária não existia uma sociedade civil derivada, como no Ocidente, das grandes revoluções burguesas do séc. XVIII. Além do mais, a Rússia não viveu a evolução ideal que no Ocidente precedeu a formação da sociedade civil, do Renascimento e da Reforma protestante até ao iluminismo».
Não existia, portanto, como muito bem viu Gramsci, «uma robusta estrutura da sociedade civil» que fundasse um moderno individualismo de tipo ocidental e, por consequência, a centralidade dessa figura político-jurídica do indivíduo-cidadão.
“O atraso económico, social e cultural», continua Mlynar, «o analfabetismo das massas populares e sobretudo dos camponeses que viviam em situação de relações semi-feudais e em formas de colectivismo pré-capitalista (a ‘obscina’): esta era a base real sobre a qual se começou a edificar o sistema soviético em 1917”.
Inúmeras vezes, Lenine sublinhou que tudo isto influenciava decisiva e negativamente o sistema soviético. Ao mesmo tempo, e embora a Rússia ainda não tivesse conhecido a igualdade formal dos cidadãos, tão criticada por Marx (por exemplo, em Sobre a Questão Hebraica), a ideologia soviética partia precisamente
«dessa crítica marxista à sociedade burguesa do século XIX e dos inícios do século XX. Ponto fixo desta crítica era ainda a polémica com as ideias iluministas sobre os direitos humanos naturais. A este respeito, o marxismo defendia que o resultado da concepção jusnaturalista é, na realidade, somente um cidadão abstracto, formalmente livre, enquanto o homem socialmente determinado está submetido à desigualdade social e à opressão, mesmo num sistema de direitos e liberdades civis» (PG, 47-48).
Portanto, com a Perestroika tratava-se de recuperar a importância económico-social e política desse sujeito individual de direitos que via diluída a sua individualidade não só nos sujeitos colectivos em que estava integrado, mas também nos organismos do sistema institucional soviético, sem, com isso, perder de vista a importância deste sistema para assegurar esses direitos substanciais que estavam constitucionalmente garantidos (Constituição de 1977) na URSS (direito ao trabalho, a remuneração, ao repouso, à assistência na saúde, à instrução, à casa).
Mas a verdade é que esta recuperação do papel activo do cidadão-indivíduo não poderia, todavia, acontecer se não fosse acompanhada por uma reestruturação radical dessa principal fonte de distorção do sistema que eram as relações entre o partido e o Estado, as relações destes com os organismos sociais e do indivíduo com todos eles.
IV.
Já no XXVII Congresso estes aspectos eram, segundo a síntese feita por Otto Lazis (Dezembro de 1986), para além da reforma económica, também objecto de análise como objectivos estratégicos da reestruturação:
«modificação da práxis eleitoral e renovação sistemática da composição dos sovietes dos deputados do povo, alargamento das funções e dos poderes dos sovietes locais, melhoramento do controlo exercido pelos eleitos sobre o aparelho estatal com o objectivo de reduzir o burocratismo dos aparelhos, maior empenho dos sindicatos», acções tendentes a reforçar a vida democrática nas empresas, no debate público e nos métodos de votação, defesa da autogestão kolkhoziana [cooperativas; sovkozes: fazenda estatal] e crescimento do papel das diversas organizações sociais (PG, p. 63).
Aqui estavam contidas medidas que poderiam vir a transformar profundamente o sistema se fossem aplicadas radicalmente: desde a apresentação de várias candidaturas concorrentes em cada colégio eleitoral para os sovietes como condição essencial não só para o seu renovamento sistemático e a aplicação do originário e leniniano princípio rotativo, mas também para a consecução de uma real autonomia e capacidade de efectivo controlo dos actos do aparelho estatal, passando pelo reforço, crescimento e autonomia dos organismos sociais como contraponto do peso da organização partidária, até à expansão da publicidade, da transparência (Glasnost) da vida político-institucional.
Com o reforço dos sovietes visava-se repor a centralidade dos sovietes locais no complexo institucional do Estado, elevando-os a células organizativas fundamentais de todo o sistema de poder. Como, afinal, pretendia Lenine ao considerar o sistema soviético como a forma autêntica onde se funde a autogestão e o Estado.
Mas o que, entretanto, aconteceu, e aqui sigo a análise de Mlynar (“Além dos sovietes”), foi que, havendo sempre órgãos que escapavam ao controlo dos sovietes (no campo da economia, nas estruturas militares e de segurança), sobretudo após a morte de Lenine (1924), todos os campos decisivos da vida social passaram a ser dirigidos pelos aparelhos centrais que, concretamente, não estavam subordinados aos sovietes, mas sim a um PCUS cujo sistema de controlo e de direcção se desenvolveu fora do alcance daqueles. E, de facto, com a Constituição de 1936 – aquela que haveria de inspirar todas as outras Constituições dos países do sistema socialista do pós-guerra -, os sovietes passaram a ser mais instâncias representativas de tipo parlamentar do que do tipo «Comuna de Paris», mas com uma diferença importante: o candidato a deputado era único no respectivo colégio eleitoral, acabando por ser escolhido pelo partido. Deste modo, era o partido que determinava a constituição material das instituições do Estado, desaparecendo o princípio rotativo que Lenine tinha previsto e que garantia um efectivo controlo do poder pela sociedade (PG, pp. 50-57). Princípio este que, aliado à NEP, poderia efectivamente ter constituído um poderoso pilar para o forte enrobustecimento da sociedade civil.
V.
A entrada em vigor de uma Lei sobre o trabalho privado veio, entretanto, completar a revalorização do papel dos sovietes e reforçar, de facto, a ideia, defendida por muitos, dentro e fora da URSS, de que existia uma profunda ligação da Perestroika com a Nova Política Económica (NEP) de Lenine. Só que, ao contrário do que aconteceu nos anos ’20, era cada vez mais claro que se tornava necessário promover também uma «NEP política» para que o projecto reformador não só não sucumbisse às mãos da burocracia administrativa do partido e dos ministérios, mas pudesse, pelo contrário, consolidar-se e aprofundar-se (veja-se Adriano Guerra, In attesa di una «NEP politica», in «Rinascita», nº 47, Roma 1986). É verdade que esta lei vinha legalizar finalmente uma economia submersa privada e ilegal de grandes proporções que há muito florescia na URSS, mas também não é menos verdade que, por um lado, ela vinha pôr em crise a ideia «de que o trabalho individual, isto é, o que é efectuado fora das estruturas da economia de Estado» fosse «inconciliável com um ordenamento de tipo socialista» (Guerra) e que, por outro lado, nela se exprimia explicitamente o desejo do último Congresso de ver vigorosamente incrementado o «sector B» (artigos de consumo) em cerca de 22-25% (superior ao incremento do «sector A», meios de produção) até 1990, ou seja, um objectivo virado para o aspecto qualitativo da vida individual do cidadão soviético.
A reposição da validade social do sector privado da economia e da centralidade dos sovietes (em particular, dos sovietes locais) tornava-se fundamental para a revitalização do sistema naquilo que era sem dúvida a sua principal distorção: a sobreposição difusa dos órgãos do PCUS às instituições do Estado, tanto mais grave quanto ela se verificava num sistema monopartidário. Mas, no fundo, o problema não era tão original como isso já que ele equivalia ao que hoje se põe aos sistemas democráticos representativos ocidentais, isto é, à questão do império das elites partidocráticas e burocráticas modernas e de ilegítima confiscação do papel das instituições. Tal como nestas democracias – mas, claro, de forma mais radical, visto que não existia pluripartidarismo -, na URSS o problema de fundo consistia em separar eficazmente o Estado do partido para garantir que as decisões importantes não fossem tomadas fora e sem o controlo das instâncias electivas, fontes legitimadoras imprescindíveis para o exercício do poder. Numa palavra, a reposição do poder do único soberano legítimo: o povo.
Foi neste sentido que se moveu Gorbatchov, procurando reformar um sistema que dava sinais de profunda decadência, aproximando-o dos sistemas políticos ocidentais naquilo que eles têm de melhor, mas garantindo níveis de iniciativa e de protecção social que o legitimavam como sistema socialista.
VI.
Sabemos como terminou a Perestroika. O projecto de Gorbatchov ficou pelo caminho, com o contributo decisivo de Boris Yeltsin. A URSS deu origem à Comunidade dos Estados Independentes. O sistema socialista ruiu, não só na União Soviética, mas em toda a Europa. Grande parte das repúblicas socialistas vive hoje em sistema de democracia representativa e está integrado na União Europeia. O projecto de construção de democracia orgânicas europeias de inspiração socialista ficou irremediavelmente comprometido. A Europa é cada vez mais um sistema único política e institucionalmente enquadrado pela moldura institucional da União Europeia. Finalmente, a experiência que estamos a viver na era Putin tem o sabor antigo de uma tentativa de reposição imperial cujo destino será exactamente o mesmo que tiveram todos os impérios e muito mais o daqueles que se procuraram afirmar fora do seu próprio tempo. #Jas@08-2022.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE
Por João de Almeida Santos

“Espanto”. JAS. 2021. Pintura que integra a Exposição “Luz na Montanha” (n.º18 do Catálogo, 91×115), aberta ao público no Centro Cultural de Cascais até 25 de Setembro.
QUANDO PUBLIQUEI o meu livro Os Intelectuais e o Poder (Lisboa, Fenda, 1999) pus-me a questão do estatuto do filósofo. Quem se pode considerar filósofo? Licenciado em Filosofia, Professor de Filosofia ou Filósofo? Não é, de facto, a mesma coisa. Saber sobre filosofia não é a mesma coisa que filosofar. E acabava dizendo que a condição de filósofo só pode ser atribuída por outros, não pelo próprio. Não é como nos casos do economista, do médico, do sociólogo ou do jurista. É coisa mais grave porque toca algo de difícil comprovação: não através de um diploma, mas da sabedoria sobre os nexos essenciais ou constituintes da existência, da vida, da história. Numa palavra: ver para além dos particularismos ou especialismos. Mover-se numa ontologia do ser. O mesmo poderia ser aplicado ao poeta. Não basta fazer versos ou boa rima. É preciso sentir, exprimir e tocar as almas por dentro, em palavras com poder performativo. Mas talvez menos ao pintor, embora o passo que leva a esta condição só possa ser dado quando se verificar a condição referida pelo fundador da história da arte, Johann Winckelmann: um desenhador não é um pintor porque imita o belo, não o cria. Artista é o que cria beleza, não o que a copia. O mesmo vale, em geral, para a condição do artista, o que cria o belo, mesmo que seja o belo horrível.
I.
Os gregos diziam que a filosofia nascia com o espanto, que dava origem à interrogação sobre as causas primeiras do ser (em particular os chamados pré-socráticos, Parménides ou Heráclito, por exemplo). E a arte, a que não procura reproduzir o real, simplesmente descontaminando-o das imperfeições próprias da vida, mas recriá-lo a partir de uma visão interior do mundo e da vida? A música, a poesia, a pintura, o romance? Cada artista dará certamente a sua resposta, com a própria obra ou mesmo com palavras sobre ela. E já se sabe que as respostas são inúmeras, sobretudo nesta época de relativismo universal, de pós-modernismo, onde não há lugar para as grandes narrativas e para a profundidade temporal, de civilização da imagem e de triunfo do simulacro e de perda de aura da obra de arte, onde até uma banana colada com adesivo vale milhões pela sua qualidade estética ou onde o crítico, explicando o absurdo, acha que o que vale mesmo é a assinatura e nada mais. A assinatura como arte, onde o conteúdo nada importa. Uma visão notarial da obra de arte. Pois é. Se em tudo já é assim, relativo, na arte ainda é mais. Cada um parece ter a sua bússola estética com diferentes localizações para um mesmo lugar, seja ele o norte ou o sul. Um relativismo que desorienta e desresponsabiliza.
II.
Pois também eu tenho a minha ideia sobre o assunto, procurando cruzar a estética com a própria experiência de produção de arte (do romance à poesia, à pintura). E, a partir daqui, desenvolver uma reflexão que tenha um único sentido e um único valor: dar testemunho de como nasce a obra de arte (se for mesmo obra de arte, assim considerada, que não seja pelo próprio ou pelo que considera que a assinatura é tudo, seja uma banana, seja um mictório). O risco é grande, mas acho que vale a pena.
Digo muitas vezes que a poesia nasce de um estremecimento e desenvolve-se como solução para a própria vida, até pela sua altíssima performatividade, o seu valor como acção existencial com valor metalinguístico ou meta-semântico. Como acto sublime do viver. Fixei bem a ideia do Nietszche e do carácter primordial da experiência dionisíaca na criação estética. Uma espécie de libação existencial, de onde a poesia nasce quase como imperativo e como solução para resolver a “ressaca”, também ela existencial. Em palavras triviais, para concretizar melhor a ideia, diria que a poesia (ou a arte) funciona como uma espécie de remédio, um guronsan espiritual de fabrico próprio, de design sofisticado, prolongado no tempo e proposto aos outros que de algum modo também vivem em “ressaca”. Um remédio para a alma feito de palavras em composição melódica. O García Lorca dizia que a poesia não quer adeptos, mas sim amantes. Não se entra nela como se olha para uma montra ou para uma disputa desportiva. Entra-se nela como numa oficina onde se lapidam minerais. Alquimia, sim, alquimia. A arte quer envolvimento, sofrimento, dor, paixão, amor, pulsões, vibração existencial. E elevação. Não quer mãos limpas, distância, medo, relação puramente analítica com a realidade ou puro pragmatismo. A arte é um em-si (sich selbst) que prescinde do seu próprio exterior, embora nasça para ser comunicada, sim, mas de forma desinteressada. Desinteressada, sim, mas não para o próprio artista que a cria, porque algo interior lhe impôs a criação, requerendo-a mesmo como solução para a sua inquietação, o desassossego, capturando e resolvendo o estremecimento com a beleza das formas.
III.
Pediram-me, numa entrevista para a RTP, para escolher uma frase que me tenha influenciado ou que tenha sido importante na minha caminhada estética. Escolhi uma frase de Marguerite Yourcenar/Michelangelo Buonarroti, em “Le Temps, Ce Grand Sculpteur” (1983), para sublinhar o registo em que me movo no plano artístico: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”.
Esta frase sintetiza toda uma teoria estética, em que me reconheço integralmente, exposta em poucas linhas pela grande escritora. Esta frase é atribuída a Michelangelo Buonarroti, no segundo capítulo do livro, “Sistina”, e tem-me acompanhado no processo de construção da minha poesia e da minha pintura. Como confirmação de uma intuição prévia e real sobre a vida. Claro, não é a frase em si, mas o que ela indicia e que, de resto, está bem explícito, e de forma certeira, neste curto e profundíssimo texto sobre Gherardo Perini. Resumo, pois, o que a Yourcenar, através do monólogo que Michelangelo dirige ao seu amante, propõe como variáveis essenciais da arte:
- A arte recria em ausência. A ausência do ser amado ou do objecto de atenção estética deve acontecer enquanto a relação ainda não se desgastou (que a partida aconteça enquanto ainda for possível chorá-la). O artista sublima o que lhe sobrou do que teve.
- O silêncio é o seu ambiente natural e as cores são como acordes sobre este silêncio. E eu acrescentaria que também as palavras o são, talvez mesmo de forma mais intensa, quando dão corpo à poesia e vibram como as notas de uma pauta.
- A recriação é uma imobilização da alma do ser que se tornou objecto de atenção estética. O Stendhal chamava-lhe, em relação ao amor, “cristalização”.
- A visão do artista não se confunde com a dos outros que observam a mesma figura exterior porque ele extrai dela o essencial, que é invisível e que os outros não poderão conhecer. O artista “mira più alto”, como diria Galileo Galilei, referindo-se à filosofia.
- A recriação é, por isso, algo semelhante ao processo alquímico, que separa o subtil da matéria em bruto, só sendo acessível aos iniciados, ou seja, aos artistas. O artista vê a nudez da alma para além das roupas e do próprio corpo, que é, afinal, como os santos vêem as almas. Mas o artista é mais um alquimista do que um santo.
- A recriação é uma eternização do objecto estético, precisamente porque extrai dele o que não é simplesmente acessível ao olhar distraído do ser humano comum.
- A beleza é, por isso, algo que é grave e solitário (e único), como a dor. Não há beleza quando não há gravitas, densidade existencial.
- A arte é a única forma de verdadeira posse. Isto também o dizia o Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego”. Possuir (no sentido material) é perder porque, possuindo, também se é possuído. Outra coisa é sentir sem possuir e dar corpo ao sentir pela arte. Só a renúncia permite a posse total (pela arte). Se não te possuo, não te perco. “Sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero”, diria o Pessoa. A pergunta que fica é, pois, a seguinte: não tem porque não quis ou não tem porque não pôde ter? E que tipo de artista é: o que exprime o que não tem ou o que exprime o que sobrou do que teve? (Porto, Assírio e Alvim, 2015, 207-209). Pessoa é do tipo que não tem.
- A arte exige separação, diferença, um intervalo onde o artista se posiciona. Só ela permite a posse eterna: “só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos”. Para a Yourcenar o artista é o que exprime o que sobrou do que teve. É o que resulta da relação estética e de amor entre Michelangelo e Gherardo Perini.
IV.
Poderia quase dizer que estes são os princípios que me inspiram quer na poesia quer na pintura a partir de um momento fundacional: o estímulo sensorial sobre a sensibilidade que leva a uma inevitabilidade, a um imperativo: a sua conversão em arte.
Aqui, a pulsão do amor (de Michelangelo por Gherardo Perini) é evidentemente a que desencadeia o impulso estético, a (re)solução para a dolorosa partida, a necessidade de recriação estética do ser que ia partir como forma sublime de posse em ausência, a única possível. Posse de algo que é único porque não partilhável a não ser como contemplação já sob a forma de obra de arte.
A este momento pulsional e de partida Nietzsche chamava momento dionisíaco, libação existencial. Eu diria, então, da arte: no princípio (da arte) não é o verbo (como se diz na Bíblia: João 1:1) nem são sequer as coisas (como queria o Galileu: “prima furon le cose, e poi i nomi”), mas sim o estremecimento por via sensitiva. O que distingue o filósofo do ser humano comum é, segundo Galileo Galilei, a sua capacidade de ler o livro da natureza, de o decifrar (“il volgersi al gran libro della natura”, como diz logo no início do Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo – Torino, Einaudi, 1970, 2). E eu diria que o que distingue o poeta do ser humano comum é o seu (de “chi mira più alto”) poder de ler no livro das almas. E que começa por ser um estremecimento com força propulsiva, que sintoniza o poeta com o universo do sentir e se constitui como mola que desencadeia a sua resposta e que instala o ambiente estético em que se desenvolverá ulteriormente a criação. Só depois vêm os nomes, as palavras, as cores e os traços e a sua colocação num intervalo entre si próprio e a realidade. Uma separação metodológica. Um espaço intermédio onde se inicia o momento apolíneo. A partir deste intervalo vem a sinestesia, a abordagem dupla, poética e plástica, em convergência para a expansão e o desenvolvimento formal que se segue ao estremecimento primordial, sensitivo. Aqui intervém a técnica e a racionalidade, a dimensão formal. O espírito apolíneo, sim. E a exigência de muito trabalho e muito estudo. E só então a obra de arte ganha vida, desprendendo-se do autor, seguindo o seu percurso, levada pelo vento para destinos imprevistos e até para junto de quem partiu e deixou um rasto intacto de si mesmo na memória sensitiva do poeta. A não ser que, como dizia Kafka, a obra seja bebida pelos fantasmas durante a viagem. Mas esses são os riscos naturais da arte viva e do voo poético.
V.
Para mim, não há arte sem estremecimento, sem abalo telúrico. O resto é somente profissão ou pura habilidade de quem não cria, mas simplesmente reproduz. É por isso que a arte é grave e é também por isso que ela é solitária. E livre. E autopoiética, obedecendo à sua própria dinâmica interna. Sim, mas sob uma remota pulsão que exige resposta e que o artista sente dever acolher como forma de relacionamento primordial com o mundo. A arte é alquímica porque extrai o subtil e o sublime da matéria bruta de que são feitas a vida e as coisas. Só assim ela pode eternizar, imobilizando e separando-se do que é simplesmente ôntico para o tornar ontológico. O resto é virtuosismo ou mera luta pela sobrevivência, não pela arte, mas pelo que de material um exercício sobre a arte pode dar. A arte é uma enorme fonte de pudor e o artista sente uma enorme timidez perante o mundo sobre o qual se pronuncia com as categorias da arte. Embora, em certos casos, pareça que não. Mas a razão de fundo, o que o trava, é a delicadeza da sua aproximação ao mundo. Enquanto depender dos frutos materiais que ela possa dar, ele não é livre e o seu exercício não atinge a essência da arte. A sobrevivência e a solução de vida pela arte não se confunde com os frutos materiais que ela pode permitir, mas sim com a realização interior que o artista consegue através dela. Tudo o resto vem por acréscimo.
Esta conversa tem mais sentido do que parece se assumirmos esse posicionamento em intervalo do artista, distante de si e do mundo e criando uma relação entre eles puramente estética, embora remota e pulsionalmente comprometida. Só a partir daqui procede o espírito apolíneo e a arte se desenvolve seguindo as suas próprias regras, a sua própria gramática.
VI.
Não pretendo, com estas considerações, fazer doutrina sobre a arte ou sequer ditar regras sobre o exercício estético, mas tão-só evidenciar uma das dimensões fundamentais do exercício artístico, referindo-me naturalmente a vultos da cultura mundial, mas sobretudo referindo-as à minha própria experiência, nos três campos em que me pus à prova: no romance, na poesia e na pintura. Não pretendo também que estas considerações tenham valor académico nem sequer qualificar outras experiências estéticas que se movam noutras direcções. E há muitas. A mim, serve-me, todavia, como conforto e consolidação do meu próprio percurso. Que tenciono prosseguir.

“Espanto”. Detalhe.
DÓI-ME A ALMA LÁ NO ALTO DA MONTANHA
Por João de Almeida Santos

“A Montanha Encantada”. Jas. 2022. Pintura que integra a Exposição “Luz na Montanha” (n.º 36, 94×119), aberta ao público no Centro Cultural de Cascais até 25 de Setembro.
OUVI, quando seguia pela televisão o avanço imparável do segundo acto deste drama que atingiu a Serra da Estrela e as suas gentes, e que viria a atingir fortemente também a minha aldeia natal, as palavras atribuídas a um habitante de uma das aldeias, Fernão Joanes, se não erro: “o incêndio já não é só no território, ele já está dentro de nós. Também nós já ardemos por dentro”. Foram mais ou menos estas as palavras referidas pelo repórter. Eu senti isso mesmo quando assisti ao desenrolar da primeira fase dos incêndios, sentimento reforçado, depois, quando atravessei por duas vezes o maciço central, em particular o Vale Glaciar. Para ver o que aconteceu e para trazer para casa alguma água pura daquela generosa e belíssima fonte Paulo Luís Martins, que vaza para o Vale e alimenta o Rio Zêzere. E apesar de nem ter podido ver o que estava a acontecer na zona do Sameiro, em Vale de Amoreira ou em Verdelhos, nessa belíssima e densa mancha verde de que nos apropriamos com todos os sentidos quando viajamos para o Vale Glaciar. Parece que já só é uma recordação, uma dolorosa recordação. É lá que mora o meu Amigo, e génio da construção, Joaquim, que, triste, me confessou ter perdido 33 oliveiras do seu amado olival. Foi uma semana de aperto anímico, de sofrimento, com um persistente receio de ver os incêndios chegarem a uma fase de descontrolo total. Mas, não, tudo parecia controlado passados oito longos dias, no passado Domingo, o dia em que, mais tranquilo, regressei a Cascais. Estava em paz e até experimentei uma belíssima sensação ao reencontrar, na Praia da Poça, o meu velho amigo Rui, que já não via há umas dezenas de anos. Mas foi sol de pouca dura porque logo recebi um telefonema do Luís, o proprietário daquele belíssimo restaurante Vallecula, ali na praça do pelourinho de Valhelhas, a pedir ajuda, pois os incêndios tinham regressado em força, estando a ameaçar as nossas aldeias. Era o renovar de uma antiga experiência que vinha dos tempos em que eu podia mesmo ajudar a resolver situações de emergência. Mas agora já não podia. E, triste e desolado, o Luís por lá ficou numa aflição que não há palavras que a possam descrever.
I.
E REACENDEU-SE o incêndio dentro de mim, impotente para ajudar o meu Amigo e os meus conterrâneos e até impossibilitado de agarrar no carro e ir para lá. Já não seria possível entrar na minha aldeia ou em qualquer outra daquele vasto território nos contrafortes da Serra da Estrela. Foram isoladas e as populações evacuadas. Só já podia seguir os incêndios através das televisões, pois nem sequer conseguia comunicar com os meus amigos e conterrâneos por as comunicações terem colapsado. Foi nesse momento que as palavras desse habitante de Fernão Joanes ressoaram fundo em mim. Na verdade, já todos ardíamos por dentro. Não bastaram os primeiros incêndios, que agora regressavam com mais força destrutiva. Como se um outro Putin incendiário nos estivesse a bombardear implacavelmente com ímpetos destrutivos e sem sentido. A noite de segunda para terça foi um inferno, sobretudo para os que lá estavam, mas também para nós, os que têm a alma ancorada naquelas terras. Felizmente, no momento em que escrevo, a situação parece estar mais controlada, mas alguns pontos críticos nos concelhos da Guarda e da Covilhã e o perigo dos reacendimentos continuam a preocupar-nos.
II.
A MONTANHA não só é o lugar primordial da minha própria identidade, o lugar do retorno cíclico, o chão onde afundam as minhas raízes, mas é também a minha principal fonte de inspiração, na poesia, mas sobretudo na pintura, como se vê pela pintura ilustrativa que já aqui publico. Ontem de manhã vi no Facebook uma imagem publicada pelo meu Amigo Delfim que retomava a paisagem que se avista do meu terraço e do meu Jardim Encantado, e que tantas vezes pintei, de ângulos diferentes, mas agora, nesta foto, essa mesma imagem já aparecia projectada numa densa e imensa nuvem de fumo escuro. Fiquei destroçado e apeteceu-me apagá-la com o pincel, repondo a sua moldura de céu limpo e profundo. Soube depois que também a Quinta de um querido Amigo, o Tó, de que existe um quadro de grandes dimensões pintado por mim, foi atingida, tendo-se, felizmente, salvado os animais, as casas de granito e uma parte cultivada. O fogo já me atingiu por dentro, como se tivesse entrado pela pintura da Quinta, “Ketrof”, e reduzisse a cinzas aquele verdor que com tanta dedicação, carinho e empenho quis enaltecer esteticamente. E nem o facto de há muito ter promovido a criação de uma corporação de bombeiros para defesa da nossa floresta e das nossas aldeias serviu de barreira à progressão do fogo, tal foi a sua dimensão e a sua velocidade a partir da martirizada Valhelhas. Mas mesmo que tudo passe e não haja vidas perdidas a destruição deste fogo vai ficar ali à vista para alimentar o fogo que continua a arder dentro de nós.
III.
CONHEÇO BEM este fenómeno porque lidei com ele à escala nacional durante vários anos e poderia desatar aqui a criticar a ausência de prevenção e planificação estratégica que se constata quer a nível nacional quer a nível municipal. Mas não o farei, sobretudo neste momento de tragédia e de desolação. Do que mais precisamos é de retomar a normalidade das nossas vidas e proceder à recuperação do que for possível recuperar. É essa a única maneira de apagar o fogo que nos queima o peito e a alma.
IV.
SEMPRE que, nos meus cada vez mais frequentes regressos a estas terras, passava a aldeia de Vale Formoso em direcção a Valhelhas, através da agora devastada Quinta do Brejo, sistematicamente comentava, quase vaidoso, a beleza daquela exuberante mancha verde que a vista alcançava num raio de 180 graus, quase a desdizer o que o arguto Bernardo Soares disse no “Livro do Desassossego”: «os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor» (Porto, Assírio&Alvim, 2015: 55). Podem ser mais verdes, podem. Mas este verde era tão verde que cheguei a suspeitar de que nem um poeta qualificado seria capaz de acrescentar verdor àquele verdor natural, com palavras. Ou até mesmo um pintor que tivesse a ambição de ir mais além daquela mancha verde-escuro, elevando-a, em tela, ao reino do sublime. Não sei. Os caminhos da arte são insondáveis e talvez o Bernardo Soares tenha razão. O que sei é que nunca me conseguia conter perante tanto verdor e tinha, como um irresistível impulso, de verbalizar o meu espanto de prazer. Mas também já nem sei se poderei continuar a dizer do meu Vale o que sempre dizia quando chegava ao seu extremo norte, vindo da Guarda: “que beleza extraordinária e que perfeição a geometria deste Vale!”. O Vale ficou lá, o desenho continua perfeito, mas o verdor, esse, só fica para as palavras do poeta ou para o pincel do pintor. Valha-nos ao menos isso. E até acho que se o pintarmos com palavras e com cores (e com a alma, claro) ele se regenerará mais depressa, como que a desafiar a fantasia do artista. Se assim for, ponho mãos à obra rapidamente, logo que ultrapasse a estupefacção perante tão inesperada e velocíssima tragédia.
V.
AINDA CONTINUO a arder por dentro, depois de ter ardido por fora. Aguardo, pois, que me deixem entrar no meu Vale, para o sentir assim, para sintonizar o que sinto por dentro com o que verei por fora, para que a dor, sempre a dor, me leve a torná-lo mais belo do que era, através da arte, a forma de o salvar da fealdade ardente que o capturou, de o redimir de uma culpa que não é sua, de o elevar ao topo da Montanha que sobreviveu ao incêndio, mantendo-se intacto.
Mas hei-de habituar-me e esperar que renasça. Levando tempo, demasiado tempo, fá-lo-ei renascer eu já, ainda não sei bem como. Mas, sim, hei-de voltar a pintá-lo para que o seu verde fique já mais verde que o seu perdido verdor. #JAS@08-2022
OS NOVOS PROGRESSISTAS
Por João de Almeida Santos

“Horizonte”. JAS. 08-2022
HÁ ALGUM TEMPO publiquei aqui um pequeno ensaio sobre “A Esquerda e a natureza Humana” (https://joaodealmeidasantos.com/2021/04/). A questão era mais ou menos a mesma que hoje aqui me traz, embora o ângulo de abordagem fosse diferente porque se centrava sobretudo na esquerda clássica e nos seus desafios. Mas o que hoje me interessa, com a crise da esquerda clássica e do seu paradigma, é saber como está ela a ser representada pelos novos movimentos. A clarificação é delicada e um pouco complexa, mas oportuna e necessária, sobretudo quando nos defrontamos com uma tendência que, supostamente à esquerda, está a tentar impor a sua hegemonia no terreno da sociedade civil, estando a conseguir bons resultados até nos chamados “aparelhos de hegemonia” ou mesmo nas próprias instituições. Refiro-me ao multiculturalismo, à chamada política identitária e aos paladinos do politicamente correcto. Não há, no meu entendimento, uma linha clara de evolução da esquerda clássica para estas formas de esquerda ou progressismo de tipo civilizacional, apesar de algumas afinidades, designadamente no seu organicismo antiliberal.
Tradicionalmente, os progressistas identificavam-se com “grandes narrativas” que propunham uma visão articulada, com profundidade temporal, da história como horizonte a partir do qual era assumido o compromisso político. Estas “grandes narrativas” estavam ancoradas em classes sociais, propunham uma utopia como objectivo último da sociedade, promoviam a transformação social através da vontade política das classes sociais e das elites (através de partidos ou movimentos) e centravam em clivagens estruturais (como, por exemplo, o antagonismo entre capital e trabalho) o funcionamento da sociedade, propondo-se intervir sobre elas rumo à utopia, situada no futuro. Eram animadas por um optimismo histórico com profundidade temporal que dava alento à esperança em dias melhores, para todos. A revolução (ou a reforma, nas tendências mais moderadas) era a solução e a chave do progresso.
I.
ESTAS “GRANDES NARRATIVAS” políticas perderam a centralidade, dando lugar àquilo a que Jean-François Lyotard, em “La Condition Postmoderne” (1979), chamou a sociedade pós-moderna. A “grande narrativa” ancorada no industrialismo e em classes sociais antagonistas tornou-se residual, sendo substituída por outras formas mais ancoradas na “superestrutura” do que nas fracturas estruturais. E é aqui que nos encontramos. Num mundo sem profundidade temporal e fragmentário, mas globalizado e de alta mobilidade migratória a caminho de um melting pot global. E é neste mundo fragmentário que nasce o discurso multiculturalista, o identitarismo comunitário e o politicamente correcto, ou seja, uma linguagem asséptica para a identificação das identidades comunitárias politicamente emergentes, sejam elas de género, de raça, de orientação sexual, de cultura ou de língua. Um desvio e uma significativa mudança na natureza das novas fracturas relativamente às clássicas fracturas estruturais. Por exemplo, a identidade de género e a sua dialéctica interna não têm características que possam ser identificadas com as da dialéctica entre classes. A sociedade é vista não como um complexo integrativo de indivíduos singulares, qualquer que seja a sua identidade (a visão liberal) nem como resultado de um antagonismo estrutural entre duas classes fundamentais (o marxismo), mas como um complexo de comunidades diferenciadas, cada uma com a sua identidade e a sua densidade histórica e social, a que é preciso dar voz, emancipar, autonomizar e protagonizar, reconhecendo-a na linguagem dos novos direitos emergentes ancorados numa sociedade multicultural, sem centro nem periferia e onde o direito à diferença rivaliza com o direito à igualdade, podendo até sobrepor-se-lhe. Mas a falta de uma “grande narrativa” deu lugar à busca de um colante que permitisse repor a hegemonia ético-política e cultural progressista. Encontraram-na numa leitura focada e extensiva das grandes cartas universais de direitos e deram início a uma tentativa em larga escala de transformar certos direitos nelas consignados não só em normas de comportamento universais obrigatórias e moralmente vinculativas, mas também em mundividências ancoradas em concretas comunidades sociais que passaram a funcionar como ordens de valor absoluto e com pregnância social formal e linguisticamente reconhecida e formalizada. Do que se trata, então, é de promover essas comunidades a eixo decisivo das sociedades modernas, considerado condição nuclear da harmonia social e do progresso civilizacional. Essas comunidades são os novos sujeitos (ainda) subalternos a que é necessário e justo dar voz. As linhas de fractura situam-se todas elas entre a sedimentação histórica resultante do processo evolutivo das sociedades desenvolvidas e o presente reconfigurado à luz dos novos direitos. Elas não só aspiram à igualdade universal de direitos como também aspiram ao direito à diferença, a uma identidade própria não subsumível na totalidade social e ao alargamento do espectro das diferenças no interior do sistema social plasmadas numa linguagem limpa das conotações negativas ou discriminatórias do legado histórico, ao reconhecimento social e formal da própria identidade e até a um poder socialmente reparador e sancionatório. O objectivo é o da igualdade de reconhecimento colectivo, mas inscrita no direito à diferença. Atingir a igualdade através do reconhecimento do direito substantivo à diferença. Estas comunidades vêem assim as suas identidades ser catapultadas a modelos a partir dos quais juízos de moralidade poderão ser pronunciados em função da medida dos novos direitos identitários. Identidades de género, de raça, de orientação sexual, de cultura e de língua tratadas historicamente, no passado, como comunidades subalternas e discriminadas a exigirem, agora, reconhecimento através de uma nova visão do mundo e da história centrada nos direitos multiculturais e às quais a linguagem comum se deve adaptar para não carrear consigo a marca e a mancha da sua génese histórica e das respectivas contingências ao longo do martirizado processo histórico. Linguagem expurgada das sedimentações históricas que se foram depositando nela e que são testemunho da iniquidade histórica.
Vejamos um pequeno exemplo de resgate da iniquidade histórica. Bia Ferreira, conhecida cantora negra, brasileira, activista da comunidade LGBT: “Eu vou”, à festa do Avante, “ para denunciar os estragos que o povo português deixou aqui no Brasil”; “O que incomoda mesmo é a denúncia que eu faço: que o seu antepassado escravizou o meu povo, aqui no Brasil, e que a gente paga essa conta até hoje” (Expresso, 26.07.2022). Os portugueses considerados como causa remota dos males que hoje atravessam a sociedade brasileira, isto dito por uma militante orgânica e qualificada de uma (ou mesmo de várias) destas comunidades. Ditadura, Bolsonaro, qual quê? Portugueses. Está tudo dito. Agigantar uma causa, ainda que remota e explicável pelo tempo histórico em que aconteceu, cobre outras causas, mais próximas, mais reais e mais activas. Trata-se de um perigoso desvio anacrónico que polariza a atenção para uma falsa explicação, encobrindo e deixando por explicar a realidade efectiva. Um exemplo concreto muito elucidativo.
II.
COMO EM TODAS AS IDEOLOGIAS a carga semântica destas identidades elevou-se a absoluto, dando vida àquilo que Max Weber um dia designou como wertrational, racional em relação ao valor, substitutivo quer do zweckrational (próprio do capitalismo e da sociedade mercantil) quer do traditional (próprio das sociedades onde impera a tradição). O valor passou a ocupar, em linguagem weberiana, o centro do discurso identitário, alcandorando-se a politicamente correcto. Nada havendo contra a elevação do valor a critério comportamental, como é óbvio, o que não é defensável é que ele se torne absoluto e exclusivo polarizador do comportamento social, como nas religiões ou em certas grandes narrativas políticas. A identidade comunitária passou a ocupar o centro do discurso progressista, num registo totalmente diferente da ideia de comunidade defendida pela esquerda clássica, porque agora se trata de múltiplas comunidades, novas identidades ou novos sujeitos sociais multiculturais, sem centro nem periferia e não subsumíveis numa qualquer ordem ou unidade superior nem remissíveis a uma fractura socialmente estruturante. Do que se trata é de uma luta pelo reconhecimento ancorada no direito à diferença e no valor da diferença. Uma lógica que contrasta com a matriz liberal da nossa civilização, como de resto acontecia com a visão marxista, mas que se diferencia do organicismo da esquerda clássica, ancorado na centralidade de classe. As comunidades são agora os sujeitos para onde remete a vida societária. A igualdade tem agora na diferença o seu contraponto reconhecido e validado pela sociedade, no direito, na língua, na política, na economia e na cultura. Em todas estas instâncias as identidades comunitárias devem ver garantido o reconhecimento institucional e social em formas substantivas. Uma dinâmica que tem demonstrado capacidade de imposição hegemónica na sociedade civil e até nas instituições.
III.
E É AQUI QUE ESTAMOS. As tradicionais classes sociais do marxismo deram lugar ao multiculturalismo e às identidades comunitárias, que se elevaram a alfa e omega do progresso social e da linguagem societária, num processo que só poderia evoluir mediante uma filosofia organicista de novo tipo e uma crítica do universalismo iluminista e liberal. As comunidades integram a sociedade de forma orgânica. Se o centro era o indivíduo ou, então, a classe, agora não há centro porque há multiculturalismo, múltiplas identidades diferenciadas sem centro nem periferia. Tudo se esbate perante o emergir das comunidades e da diferença que aspira a tornar-se a regra número um das sociedades. É o multiculturalismo pós-nacional que resiste a um melting pot tendencial, à cultura dominante, à matriz nacional do Estado, a qualquer tipo de integração superior, que é vista sempre como ameaça. O Estado passa a ser um conglomerado de comunidades e o garante da diversidade multicultural e das identidades comunitárias. O indivíduo cede o lugar à comunidade e a classe fragmenta-se em microcomunidades. As fracturas estruturais tornam-se “superestruturais” e a dialéctica é a da luta pelo reconhecimento e pela afirmação da identidade comunitária, seja étnica, de género, de orientação sexual, de língua ou de cultura. Assim se dilui a matriz e o património liberal, emergindo mesmo o problema da unidade nacional, da universalidade da lei e do Estado e da língua como colante nacional. Esta passa a ter como função a promoção identitária das comunidades erradicando (de si própria) todos os vestígios que possam evidenciar marcas e manchas do passado, sedimentações consideradas impróprias à luz dos supremos critérios da nova visão multicultural e da novilíngua que a exprime. O revisionismo histórico e linguístico passou a ser a marca de água da nova mundividência. Nada é mais importante do que a identidade comunitária. Tudo o resto fica na sombra, de tão intensa ser a luz multicultural e identitária e de tão imperativa ser a sua moralidade. O reconhecimento comunitário e identitário passou a ser a nova palavra de ordem em nome dos novos direitos, do progresso e da moralidade social. A assepsia linguística é a garantia visível e palpável do reconhecimento e equivale ao triunfo do presente sobre a profundidade temporal e os desvarios da história e da contingência própria do tempo histórico.
Nem a esquerda clássica aqui cabe, tal como não cabe a sua leitura acerca da fractura estrutural da sociedade capitalista, nem a visão liberal, com o seu universalismo e a promoção da centralidade do indivíduo e direitos correlativos, é com esta visão compatível. Findas as grandes narrativas irrompem os movimentos por causas centradas nas identidades comunitárias. Renasce um organicismo de novo tipo agora ancorado no direito pleno à diferença em nome da afirmação da identidade das comunidades que passaram a ocupar o centro discursivo da sociedade como forma única de emancipação numa sociedade entendida como conglomerado multicultural, onde a diferença é a lei que domina. Uma inversão relativamente à conquista liberal da igualdade contra o privilégio. Mas também uma regressão nos próprios conceitos de Estado e de sociedade.
É aqui que se inscreve o politicamente correcto com pretensões de poder sancionatório e de reconfiguração “superestrutural” da sociedade, pondo na sombra, nesta luta, as questões que antes a esquerda punha no centro do combate político, a classe ou o povo oprimido, os sujeitos onde se ancorava a revolução. Mas pondo também em causa o universalismo liberal e a defesa dos direitos individuais. A comunidade orgânica, não a sociedade, é o lugar deputado onde se pode afirmar a individualidade. É através dela que o indivíduo se pode afirmar na sociedade. A lógica societária já não pode prescindir da lógica comunitária, acabando por lhe ficar subordinada. A centralidade do indivíduo passa a ser uma ficção que a nova mundividência nega e combate em nome da identidade comunitária e da sua pregnância social.
IV.
SERÁ, PORTANTO, ESTE PROGRESSISMO aceitável na forma como se tem vindo a exprimir, ou seja, nas suas pretensões hegemónicas e na sua vocação totalizadora, para a social-democracia ou para o socialismo democrático? No meu entendimento, não. Logo a começar pela sua característica como movimento orgânico e fragmentário que ilude fracturas que são essenciais para o progresso dos povos, mas também porque é um movimento sem densidade e profundidade temporal ao querer resolver no presente toda a temporalidade histórica, chegando ao extremo de querer anular radicalmente a diferença histórica, extirpando-a da própria linguagem comum e das formas de expressão pública (da arte pública, por exemplo, ou dos livros de ensino público) do tempo histórico. Por outro lado, o organicismo é tão inimigo da democracia representativa como amigo do corporativismo. E aqui a ideia de liberdade sofre uma contracção inadmissível para quem se revê na nossa matriz civilizacional e na própria razão de ser da social-democracia. A ideia de contingência histórica é recusada por imposição dos valores do presente como valores absolutos, como fim da história, triunfo do wertrational – a orientação menos conforme à lógica inscrita nas democracias representativas e na sua matriz liberal. É claro que a própria social-democracia deverá reinventar-se para além das clássicas formas que foi assumindo ao longo do tempo, designadamente do Estado social e de um certo comunitarismo tradicional radicado num classismo residual que nunca foi plenamente extirpado. Mas deverá também, et pour cause, rever a sua resistência espontânea e matricial à filiação no primeiro liberalismo anti-absolutista e anti-privilégio que determinou a matriz da nossa actual civilização e das mais avançadas formas de gestão política das nossas sociedades: a democracia representativa, o Estado de direito e a racionalidade do mercado. Basta ler a Declaração dos Direitos do Homem (palavra que na novilíngua acabará substituída por ser humano ou por Direitos Humanos) e do Cidadão. É certo que esta tendência teria sentido e seria até desejável se absorvida por uma política progressista que fosse capaz de a reposicionar no seu devido lugar histórico, limitando a sua pretensão hegemónica em vez de a promover no interior das suas fileiras sem compreender que esta hegemonia que vai avançando assume cada vez mais a forma de uma inaceitável opressão simbólica, de vigilância policial da história, da palavra e do pensamento incompatíveis com a vida democrática e com a liberdade que lhe está na raiz. Parecendo constituir um progresso, esta mundividência, com as pretensões hegemónicas que tem vindo a revelar e com o seu organicismo, na realidade é um profundo recuo relativamente à matriz liberal da nossa civilização e um grave atentado à liberdade.
#JAS@08-2022
A CENSURA NO PARLAMENTO – UM OXÍMORO
Por João de Almeida Santos
O MEU ESPANTO começou quando o então Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, censurou o deputado André Ventura por ter usado a palavra “vergonha” num discurso parlamentar. Fiquei atónito e incrédulo sobre a natureza das funções do Presidente da Assembleia da República (AR) e muito mais sobre as prerrogativas discursivas dos deputados no legítimo exercício das suas funções. Mas não escrevi sobre o assunto, tendo-o tomado como um mero episódio circunstancial. O que, agora, tomando em consideração o que se seguiu, já me parece não ter sido m episódio isolado. Vou, pois, ao assunto por dever de cidadania.
I.
“O SENHOR DEPUTADO usa a palavra vergonha e vergonhoso com demasiada facilidade, o que ofende todo o Parlamento e ofende-o a si também”, afirmou o Presidente da Assembleia, em Dezembro de 2019, a propósito de uma crítica de André Ventura a um projecto de linha de crédito do Governo. O deputado ainda quis ripostar, em defesa da honra, invocando “a liberdade de expressão”, mas o Presidente impediu-o: “não há liberdade de expressão quando se ultrapassa a liberdade dos outros, que é aquilo que o senhor faz demasiadas vezes. Não tem a palavra“. Mais claro do que isto não é possível. Não é uma norma regulamentar que impede o deputado de falar. É um castigo pelo alegado comportamento verbal do deputado. Castigo infligido por uma paternidade moral: não tens liberdade porque te excedes, o que até a ti envergonha (“ofende-o a si também”). Este episódio mais parece ter acontecido numa escola primária do que num Parlamento de representação nacional.
II.
ESTA ATITUDE do Presidente da AR ultrapassou de longe o código de comportamento linguístico exigível a um deputado pelo bom senso, se é que é admissível algum código que não seja o que lhe dita a consciência e as superiores funções de exercício da soberania em nome da Nação. Na verdade, os deputados são titulares de soberania em nome da Nação (e não do círculo eleitoral que os elegeu, do partido que os propôs ou do Presidente da Assembleia da República) e, por isso, possuem prerrogativas de carácter verdadeiramente excepcional, como, por exemplo, o não poderem ser removidos da função, excepto nos casos previstos pela lei (mandato não imperativo) ou pela constituição (como é o caso da incrível alínea c) do art. 160) e possuírem imunidade, ou seja, não poderem ser perseguidos pela justiça pelo uso da palavra no exercício da suas funções (n.1 do art. 157 da CPR: “Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções”). De resto, a constituição fundacional do sistema representativo, a francesa de 1791, já prescrevia o seguinte sobre a natureza do mandato:
“Les représentants de la Nation sont inviolables: ils ne pourront être recherchés, accusés ni jugés en aucun temps pour ce qu’ils auront dit, écrit ou fait dans l’exercice de leurs functions de représentants” (Art. 7, Section V, Cap. I, Título III).
Se combinado, este artigo, com o artigo 10 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aplicável aos cidadãos em geral, note-se (“Nul ne doit être inquieté pour ses opinions, même religieuses, pourvu que leur manifestation ne trouble pas l’ordre public établi par la loi”), o lugar do deputado fica ainda mais blindado no que respeita à liberdade de opinião. “Même religieuses” – atente-se no complemento, vista a importância que a religião tinha na altura em que a Declaração foi redigida, para indicar a insindicabilidade da opinião, não já dos deputados, mas tão-somente dos cidadãos. Pois não parece ser este o entendimento de dois Presidentes da AR, o actual e o anterior, tão empenhados em vigiar o comportamento linguístico dos deputados. Entendimento profundamente errado porque fere gravemente a liberdade e a função de representação.
III.
O TERRENO PRIMORDIAL do combate político é o da sociedade civil, o confronto entre partidos (organismos privados) nas competições eleitorais, em campanha eleitoral ou em “permanent campaigning”, ou seja, na afirmação regular das diferenças em matéria de valores, de protagonistas e de programas, e, depois, já no parlamento, entre os deputados e os grupos parlamentares, num plano onde o estatuto dos protagonistas se alterou em upgrade porque, uma vez eleitos, passaram a ser portadores de um mandato não imperativo e a serem titulares de soberania nacional (a soberania reside na nação – ou no povo, consoante a constituição se aproxime mais ou menos da originária matriz liberal – e o Parlamento é o principal órgão de soberania). O Presidente da Assembleia da República, que é também deputado, o que deve fazer é garantir a regularidade, a normalidade e a eficácia dos debates e o funcionamento do princípio da maioria para a produção de deliberações válidas universalmente. O seu não é um papel de censor moral ou de vigilante da argumentação parlamentar, que é livre. No parlamento, as posições políticas devem ser afirmadas ou rebatidas pelos deputados e pelo grupos parlamentares e não pelo Presidente da AR, que deve ser supra partes, garantindo a sua autoridade por via da isenção e não enquanto paladino de causas ou apóstolo da moralidade parlamentar. Ser eleito Presidente do Parlamento não o investe de uma condição oracular que se sobreponha à moralidade que cada grupo parlamentar exiba, procurando dar voz ao próprio eleitorado e, assim, juntamente com outras e diferentes vozes, cooperar para que o parlamento exprima realmente na sua totalidade o país que representa.
IV.
MAS O QUE SE TEM VINDO A VERIFICAR é uma escalada de controlo sobre a linguagem usada em geral pela cidadania (a cavalgada do politicamente correcto) e agora, ao que parece, pelos próprios deputados, a ponto de já nem poderem usar a palavra “vergonha”, banida da linguagem parlamentar, ou de defenderem livremente os seus próprios programas políticos, os mesmos que propuseram ao eleitorado e qu