Artigo

A SOCIAL-DEMOCRACIA E O FUTURO

UM DEBATE NECESSÁRIO. 
A propósito de um pequeno Ensaio 
de Pedro Nuno Santos

JOÃO DE ALMEIDA SANTOS

Third Way2

Li com atenção um pequeno ensaio de Pedro Nuno Santos (PNS), publicado no “Público” de 04.05.2018, sobre “A social-democracia para além da terceira via” e verifiquei que há nele a pretensão de repensar a posição da social-democracia e do socialismo democrático face aos desafios do futuro.

A terceira via e os seus inimigos

E começo por dizer que não compreendi bem como uma estratégia discursiva desta natureza possa ancorar-se mais na crítica a uma experiência passada, a da terceira via, do que num diagnóstico directo da sociedade actual. Mas também porque PNS não se refere ao essencial do que era a terceira via, quase a confundindo com as receitas do neoliberalismo. Leitura que se tornou demasiado frequente. Diz que a social-democracia se tem concentrado quase exclusivamente nas classes médias mais qualificadas, esquecendo o vasto sector dos serviços e a sua progressiva proletarização. PNS põe em dialéctica viciosa populistas e centristas para os irmanar em erros simétricos. Afirma que a terceira via se rendeu ao poder regulador dos mercados, deixando-lhes a condução dos destinos da sociedade. Que apostou nos sectores imobiliário e financeiro e que, com a crise destes, entrou ela própria em crise. Mais disse que os socialistas portugueses se salvaram do destino dos outros partidos congéneres porque adoptaram a política de abrir à sua esquerda, derrotando assim a direita. E mais algumas coisas que não vem ao caso referir.

Soube-me a muito pouco este ensaio e até vi nele uma errada compreensão do que foi realmente a terceira via, que começou em 1985, com Neil Kinnock, continuou com John Smith e acabou com Tony Blair, em direcção ao New Labour. Numa palavra, o que os trabalhistas ingleses quiseram fazer foi evoluir para um catch-all party, libertando-se, finalmente, do peso dos sindicatos, da tradicional “classe gardée” e da hipoteca da quarta cláusula que postulava, em cada cartão de militante, a “propriedade comum dos meios de produção, de distribuição e de troca”. Ou seja, a grande palavra de ordem da terceira internacional. Procurou, por isso, fazer aquilo que já Hugh Gaitskell tentara, não conseguindo, em finais dos anos ’50. E, curiosamente, ao contrário do que diz PNS, abrir precisamente à “middle class”, maioritária na sociedade inglesa, libertando-se do maximalismo e do classismo de inspiração marxista que tradicionalmente condicionara a mundividência social-democrata. Os alemães já o tinham feito em 1959, em Bad Godesberg. Ou seja, tratava-se de uma operação de alinhamento com as tendências europeias dos governos que há muito partilhavam responsabilidades de governo e com uma novidade: já não basta falar de liberdades, direitos e garantias, mas deve-se falar também de deveres e de responsabilidade, apelando ao cidadão como um stakeholder que partilha a gestão do poder e recebe os dividendos em bens públicos fornecidos pelo Estado, como forma de redistribuição da riqueza acumulada – um novo contrato de cidadania, numa stakeholder society. Como disse Stuart White, da Universidade de Oxford: “it is no old-fashioned ‘statist social democracy’ and it is not free-market neoliberalism”. Esta operação levou Blair a várias vitórias eleitorais consecutivas.

A social-democracia na Europa

Mas, sinceramente, o que eu acho é que não é com discursos deste tipo que vamos lá, ou seja, que se prepara o futuro. Porque, na verdade, o futuro já está entre nós e não ri aos partidos socialistas nem sociais-democratas, com ou sem terceira via: Pasok, PD italiano, PSF, PSOE, SPD, PvdA holandês. E não devemos esquecer que o PS não ganhou as últimas eleições legislativas, depois de quatro anos de tremendos sacrifícios dos portugueses, a cargo do governo do PSD e do CDS. E isto há-de significar alguma coisa… ou não? E também que o Senhor Jeremy Corbyn continua na oposição, avançou à arrecuas e não se opôs com firmeza ao Brexit, para não falar de uma cumplicidade matreira com os seus defensores. E, ao que parece, tornando-se usufrutuário silencioso da Cambridge Analytica. E, ainda, que na Áustria governa a direita aliada à extrema direita. E que na Holanda os sociais-democratas quase desapareceram, perdendo quase 20 pontos percentuais nas eleições de 2017. O que significa que há um problema de identidade política, para não dizer, como o PCP uma vez disse do PCUS (falando da URSS), que os outros partidos socialistas e sociais-democratas, afinal, andaram a aplicar mal o modelo social-democrata. E também é verdade que já não basta repetir os valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade e de uma justa redistribuição da riqueza colectiva para resolver o problema.

O discurso, a meu ver, passa, isso sim, por olhar directamente para a sociedade, pelo reconhecimento do que está a mudar, que é muito, para depois encontrar as respostas. A questão é mais funda do que o tradicional discurso, feito por todos, do crescimento, da inovação, do emprego, da sustentabilidade e da justiça social.

A quem deve dirigir-se o PS?

E deve começar precisamente pela política. Que é do que menos se fala. A quem deve, pois, falar o PS? Já vi: aos deserdados. Ao terciário que se está a proletarizar, representando-o. Pois bem, eu acho que a conversa deve ser outra. O PS deve falar ao cidadão, ao indivíduo singular que exibe cada vez mais múltiplas pertenças e que hoje tem um acesso ilimitado à informação e a possibilidade de se protagonizar directamente, sem mediações, no espaço público deliberativo. Ou não é o indivíduo singular o verdadeiro referente social da representação política democrática? Ou seja, o PS deve ter a pretensão de representar o interesse geral, de todos, o interesse público, sabendo, todavia, que nem todos se reconhecerão nas suas leituras e soluções. Falar só para alguns – como parece sugerir PNS – não me parece ser a verdadeira vocação de um partido como o PS! E também deve falar, de forma talvez mais íntima, para os que se revêem nos grandes valores que o PS representa, mas que pensam pela própria cabeça, tendo abandonado há muito a exclusividade do “sentimento de pertença” que antes determinava totalmente as suas opções políticas. E este PS também deve, de uma vez por todas, superar a endogamia que, usando e abusando de uma lógica autogenerativa para a produção e a reprodução das elites dirigentes (com percentagens pouco entusiasmantes de ocupação familiar do sistema), o fecha em si próprio na gestão do poder. Este PS, se quer ser hegemónico (no sentido gramsciano) na sociedade, deve ser protagonista na frente científica, cultural, civilizacional e ideológica, não (exclusivamente) a partir dos aparelhos de Estado, mas de si próprio, como organismo político. E deve deixar de ter como única razão da sua existência a gestão do poder de Estado, ou seja, deve ter como centro da sua acção a sociedade civil, estar atento a ela, caminhar com ela, lutar com e por ela e com ideias claras. E não só nos períodos eleitorais. Ou seja, a “permanent campaigning” não deve ser meramente instrumental, mas deve representar uma sua resposta efectiva às expectativas deste novo cidadão que emergiu com a “digital and network society” e a que já chamam “prosumer”, produtor e consumidor de política e comunicação. Ou seja, deve crescer como organismo da sociedade civil, encontrando mais nela a sua vitalidade do que na administração do Estado. Este PS deve definir uma linha de rumo com uma ideia central, sim, uma ideia central, em torno da qual se alinharão todas as outras, sem cair nos clichés dos 2.0, 3.0, 4.0 ou até 5.0. Ou seja, o PS não pode hipotecar a sua existência à conquista do poder de Estado, assumindo-se como mero instrumento de gestão do poder, sem garantir todo um mundo que lhe está a montante e que representa a sua própria identidade, a sua origem e a sua razão de ser. A chegada ao poder deve ser consequência de uma prévia e robusta identidade e de uma existência rica de conteúdos e não o contrário, ou seja, reconstruir-se ciclicamente a partir da alavanca do Estado. Porque, na verdade, isso nunca aconteceu nem acontecerá. Melhor: o efeito tem sido e continuará a ser exactamente contrário, com os resultados que se conhece um pouco por toda a Europa.

Política: mudança de paradigma?

A política tem hoje uma nova natureza que os partidos tradicionais ainda não compreenderam. Ou seja, ela está a exigir cada vez mais que seja feita “bottom-up”, a partir de baixo, através de redes de conectividade e de mobilização da cidadania. Aquilo que vulgarmente se designa hoje por populismo tem esta característica que lhe dá força, vitalidade e protagonismo, além da crítica aos seus dois inimigos jurados: as duas castas, a política e a mediática. E a velocidade a que hoje se processa a política aumentou exponencialmente, superando a locomoção orgânica e territorial, devido à existência de poderosos meios de automobilização e de auto-organização que antes não existiam, rede, TICs, redes sociais. Há plataformas que mobilizam milhões de pessoas e que estão fora do sistema de partidos. Cito, por exemplo, a que deu vida ao Movimento5Stelle, em Itália, o Meetup, de proveniência americana e já accionada, em 2004, pelo democrata Howard Dean, ou a poderosa plataforma americana MoveOn.Org, que contribuiu para a vitória de Obama, apoiou Bernie Sanders e movimenta milhões de pessoas. Verifica-se, pois, que a política, em particular à esquerda, deve iniciar uma viragem que lhe permita reocupar a sua centralidade, primeiro, na sociedade e só depois no Estado… mas recomeçando da cidadania!

O discurso de PNS apresenta-se-me, pois, como discurso próprio do velho paradigma em crise. E excessivamente autocentrado na nossa experiência e no seu significado. Que não diminuo. Eu defendi e defendo esta solução porque fez cair um muro e trouxe, de facto, ao compromisso político os representantes de cerca de um milhão de portugueses. Mas não estou fascinado por ela, porque simplesmente representou um acto devido, corajoso e justo, mas devido. Por si, nada mais diz do que isto, porque a sociedade avançará e ditará mais tarde ou mais cedo a sua própria lei, a sua dinâmica e o seu ritmo. Uma política de alianças nunca pode pretender elevar-se a perfil identitário ou a horizonte programático, porque ela se confina à ética e à lógica da responsabilidade, quando do que se trata é de uma ética e de uma lógica da convicção, sim, mas também de uma verdadeira cartografia cognitiva que reconduza o povo da esquerda à política, à representação, à deliberação e aos valores do progresso.

Em suma

É certo que o poder local ainda constitui certamente uma base de apoio robusta, capaz de se constituir como corpo orgânico disseminado pelo território e pronto para uma longa guerra de posição em defesa dos dois grandes pilares do sistema de partidos. Sim! Mas, mesmo aí, se os movimentos políticos não-partidários se organizarem a nível regional e nacional e conseguirem alterar uma lei que é iníqua, acabarão por revelar que hoje também esta é uma base com um grau de mobilidade muito alto, podendo mudar em grande velocidade, como já se verificou em muitos municípios.

Muito falam de democracia deliberativa. E talvez seja um interessante terreno a explorar. Por uma razão: ela permita fazer entrar a cidadania no sistema sem cair da democracia directa, ou seja, mantendo o sistema representativo, mas enriquecendo, enrobustecendo e até integrando o processo decisional através da deliberação pública e resolvendo, assim, em parte, o problema da distância entre a classe política e a cidadania e contribuindo para qualificar o processo decisional e para revitalizar a legitimidade política.

Na verdade, o que se está a verificar é um forte movimento da cidadania e dos continentes sociais que já está a provocar reajustamentos superestruturais que representam uma alteração substantiva da geografia e da geometria política dos países desenvolvidos e que, em inúmeros casos, já representam o sacrifício das soluções tradicionais. O actual caso italiano é bem ilustrativo do que estou a dizer, com a provável formação de um governo centrado no MovimentoCinqueStelle.

É por tudo isto que o discurso de PNS não me convence e não me seduz. Claro, é preciso ir mais além da terceira via, mas também do discurso de PNS, excessivamente colado a uma narrativa que já não é capaz de contar o que está a acontecer nas nossas sociedades e na política. Os congressos constituem sempre boas oportunidades para discutir estes assuntos, mas eu creio que, cada vez mais, eles se celebram essencialmente como rituais de consagração do que como verdadeiras oportunidades de debate.

Sei bem que esta minha conversa ficará por aqui. Mas fica exposta – e não é a primeira vez (veja-se aqui, em joaodealmeidasantos.com, o meu longo Ensaio sobre “Un nuevo paradigma para el socialismo”) – para memória futura.

2 thoughts on “Artigo

  1. Bom dia, Professor!

    Excelente artigo, o qual tomei já a liberdade de partilhar com muita gente…

    De uma clareza e objetividade extremas, boas para os mais distraídos!

    Um beijinho, fp

  2. Pingback: Ensaio | João de Almeida Santos

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