O TUTOR DA REPÚBLICA
E OS SEUS AMIGOS
Por João de Almeida Santos
“No Princípio era o Verbo…”. JAS. 05-2023
O TUTOR DA REPÚBLICA
E OS SEUS AMIGOS
Por João de Almeida Santos
“No Princípio era o Verbo…”. JAS. 05-2023
NÃO ME RESTAM DÚVIDAS de que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), se tornou líder da oposição política e da oposição mediática. Pelo que diz e pelo que não diz. Sim, duas oposições para um mesmo fim: a queda do governo do PS. Uma reviravolta completa. Uma convergência total da oposição política com o sistema mediático, construída, neste caso, em torno de nada, de episódios sem densidade política. Poderia ser uma convergência substantiva sobre grandes questões com impacto na vida do País, mas não.
1.
A oposição mediática e a oposição política estão agora concentradas num folhetim com cenas muito picantes em torno do portátil de um Adjunto do Gabinete de um Ministro. Algo cujo conteúdo se desconhece e que, mantendo-se a ignorância sobre ele, em nada afectaria a nossa vida colectiva. O que lá possa estar é menos relevante do que o que dele se possa dizer: o que interessa verdadeiramente são as eventuais incoerências, silêncios ou contradições de altos responsáveis sobre tão mísero assunto. No Parlamento ou fora dele. Discurso sobre o discurso. Mentiu? Contradisse-se? Omitiu? É problema de verdade ou de mentira. Problema ético e político, num país tão puritano como Portugal! Isso, sim, é o que interessa.
2.
O Parlamento subiu ao palco e os media adoraram porque o palco é o seu húmus, o seu “locus classicus”, a sua vocação. Vaudeville à portuguesa. Ou, então, a política e a informação como dramaturgias ao estilo pirandelliano: personagens à procura de autor. Sim, embora o segundo acto da peça tenha sido escrito e encenado por autor bem conhecido, pondo os personagens no palco, um pouco desorientados, e ficando a observar da plateia o desenrolar da interpretação. Um Pirandello à portuguesa.
3.
Mas se se compreende que os media relatem o que se está a passar no palco parlamentar, já não se compreende o espectáculo permanente trazido para o palco electrónico e os excessos acerca de uma peça teatral de pouco valor dramatúrgico, mas de muito valor “comercial”. A exploração delirante e aumentada da desorientação das personagens. A não ser que também eles, os media, sintonizem com o dramaturgo e com as personagens “in cerca d’autore” para que aconteça um “gran finale”, com intervenção de um “deus ex-machina”, o povo, a pôr ordem no caos.
4.
Muito bem, mas não deixa de ser um desvio na sua função de informar: um desvio de agenda e também em relação ao próprio código ético. Na agenda, por explorarem até à náusea episódios menores (e foi menor, quase ridícula, a ideia de fazer esta CPI) que nada de substantivo representam para a vida do país. Querem um claro exemplo de exagero mediático, fora do universo da política? No sábado, a SIC e a TVI dedicaram, cada uma, duas horas do telejornal, em prime time (19:57/21:57 e 19:50/21:51, respectivamente, incluída a publicidade de 13 minutos, na SIC, e de 15 minutos, na TV) à vitória do Benfica, como se o mundo se resumisse, nesse dia, a isso (e declaro que sou e sempre fui simpatizante do Benfica). Algo absolutamente chocante e incompreensível num país civilizado. Mas também desvio relativamente ao código ético porque, ao contrário do que muitos pensam e praticam, os media não são contrapoder e têm o dever cultivar a imparcialidade, a objectividade e a relevância, princípios maiores dos códigos éticos a que os jornalistas estão obrigados, mesmo quando, mantendo-se na condição de jornalistas, emitem opinião nos seus meios de comunicação. Por uma simples razão: estão obrigados a fornecer informação e análise objectiva (não idiossincrasias pessoais) para que, depois, seja o cidadão a decidir, a avaliar. Não é aceitável fornecer decisões já pré-confeccionadas à cidadania. Isso é um exercício inaceitável de poder e um abuso de função. Cito a resolução 1003 do Conselho da Europa, “Ethics of Journalism”, de 1993:
“19. It would be wrong to infer from the importance of this role that the media actually represent public opinion”; e “20. This would amount to transforming the media and journalism into authorities or counter-authorities (“mediocracy”), even though they would not be representative of the citizens or subject to the same democratic controls as the public authorities”.
Os media não representam a opinião pública nem são poderes ou contra-poderes porque não estão sujeitos ao mesmo controlo democrático que os poderes públicos. E regem-se por princípios que eles próprios subscreveram nos inúmeros códigos éticos disponíveis, ao longo de séculos (veja-se sobre este assunto, o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 22-29). Creio que isto deveria ser claro. Nem de outro modo os media poderiam corresponder aos referidos princípios da Ética do Jornalismo, enquanto mediadores, não enquanto parte. E, todavia, não é isso que está a acontecer. Os media aspiram a ter um poder que exorbita das suas funções e põe em causa, não só o próprio princípio electivo em que se funda a democracia representativa, mas também os próprios princípios que subscreveram, desde finais do século XVII (desde o Código Harris).
5.
Depois, o seguidismo cúmplice em relação à agenda do PR, mas também o desvirtuamento total da função deste, transformado em tutor vigilante, constante e omnipresente, da acção do governo, confundindo papéis, a ponto de usurpar permanentemente funções de outros órgãos de soberania. Mas, na realidade, o que acontece é que este mesmo poder mediático, por interposto e informal seu agente orgânico, nascido, criado e sempre alimentado por si (desde os tempos do jornal “Expresso”), chegou ao poder, ao mais alto cargo político do país. Sim, foi através de eleições, mas ganhas por omissão do PS e sobretudo por obra e graça da sua presença permanente (uma autêntica “permanent campaigning”) nos media. O que explica, em grande parte, esta simbiose integral e (quase) orgânica entre MRS e o establishment mediático. Esta convergência poderá, pois, dever-se, por um lado, a uma espécie de solidariedade corporativa (o PR é um dos “nossos”) e, por outro, àquela que eles julgam ser a sua função, a de contrapoder, ao mesmo tempo que abraçam definitivamente a orientação tablóide, a informação-espectáculo e a política-espectáculo. Mas, como diz Guy Debord, em “La Société du Spectacle”, ”Le spectacle ne veut en venir à rien d’autre qu’à lui-même” (Paris, Gallimard, 1992, n. 14, pág. 21). O espectáculo como fim de si próprio e valor supremo – o que atrai público, dinheiro e poder.
6.
O que é o tabloidismo? É a elevação da categoria do negativo a princípio constituinte da informação, em todos os seus géneros, incluído o político. Orientação que garante uma forte atractividade, decisiva não só para captação de recursos financeiros através da publicidade, mas também para a obtenção de poder sobre agentes políticos que precisam, eles próprios, de atrair consenso para a conquista do poder. O tabloidismo como filosofia de poder. Por isso, a oposição política segue-lhe caninamente os passos sem se aperceber de que também ela está a converter a política em política tablóide, em despudorada exploração do negativo para a conquista do poder, e de que no futuro também ela passará a estar à mercê do mesmo mecanismo triturador.
7.
Não é nova esta orientação. Quem conhecer a história das campanhas eleitorais nos Estados Unidos poderá encontrar em todas elas as chamadas campanhas negativas. Vejamos alguns casos. Em 1980, Jimmy Carter, no interior do mesmo partido, contra Edward Kennedy: no «caucus» do Iowa e nas primárias de New Hampshire, sobre o incidente onde morreu a acompanhante de E. Kennedy; em 1988, George Bush (Pai) contra Michael Dukakis, candidato e governador de Massachusets: facilitismo com prisioneiros (a propósito do caso Horton e do homicídio por este praticado durante uma saída temporária da prisão) e desleixo com o ambiente – foram usadas imagens que nem sequer eram de Massachusets; em 1992, de novo, o mesmo G. Bush, mas agora sem sucesso, contra Bill Clinton, acusado de desleadade nacional por não ter feito o serviço militar, de deslealdade com a mulher e de ter consumido droga em juventude; em 2004, Bush, filho, seguiu as pegados do Pai, atacando John Kerry, através dos seus «grupos 527» de apoio, com mentiras sobre as suas prestações no Vietnam (ele que, graças à influência do Pai, se pusera a reparo da guerra e fora dispensado muitos meses antes de terminar o serviço militar), sobre a mulher ou até sobre a sua roupa interior; em 2000, Bush introduzira o negativo por via de imagens subliminares, inserindo num spot onde eram usadas as palavras «democrats»/«burocrats» a palavra isolada «rats» durante 1/24 de segundo; em 2008, nas primárias e na campanha eleitoral de 2008, voltou o estilo negativo de campanha, desta vez na figura de Obama. Como se sabe, o mais perigoso dos ataques, além do que, insistentemente, o identificava como muçulmano, foi desferido a propósito da sua relação com o pastor Jeremiah A. Wright, seu inspirador espiritual, por este assumir posições inaceitáveis aos olhos dos americanos. Uma amostra muito interessante destes ataques está relatada no livro de Castells Comunicación y Poder (Madrid, Alianza Editorial, 201, pp. 601-606). Das campanhas de Donald Trump nem é preciso falar.
Campanhas negativas, em estilo tablóide, visando desqualificar o adversário e pondo o negativo como categoria central do discurso, vêm ao de cima sempre que se disputam campanhas presidenciais nos USA, chegando ao pormenor de até se usar a roupa interior como argumento.
8.
Não é, pois, coisa só nossa, mas lembro a campanha orquestrada por Santana Lopes, em 2005, sobre uma putativa homossexualidade do adversário, na competição eleitoral que o opunha a José Sócrates. E, todavia, o que hoje temos entre nós tem características muito próprias. Diria que, tendo características diferentes, mas sendo também centrada no negativo, a orientação portuguesa assumiu já uma natureza sistémica, fundindo-se com a prática dominante da informação e funcionando como “permanent campaigning”. E, mais, encontrou uma liderança política saída das suas próprias fileiras. Não é um caso como o de Berlusconi, como o de Ross Perot ou como o de Stanislav Tyminski. É mais parecido com os casos de Schwarzenegger, de Ronald Reagan ou de Donald Trump, pois todos eles ganharam notoriedade como protagonistas no cinema ou nos media. Donald Trump teve sucesso e ganhou notoriedade no programa televisivo “The Apprentice” (da NBC). Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi um orgânico dos media nas três plataformas (jornais, rádio e televisão) e nem a função presidencial o desviou dessa sua matriz. Não sai dela um momento que seja. Refiro, a título de exemplo muito significativo, somente o episódio de 2004 em que MRS se demitiu de comentador da TVI, por suposta interferência do governo nos critérios editoriais deste canal, e o gigantesco e absurdo impacto que isso teve no establishment mediático: “em quatro dias, 7 jornais dedicaram ao assunto 347 artigos, 101 páginas, 22 editoriais e 17 manchetes” (Santos, J. A., 2012, Media e Poder, Lisboa, Vega, 128; mas veja pp. 127-132). O governo e a maioria absoluta de direita existente na AR resistiram pouco tempo até à dissolução do Parlamento por Jorge Sampaio. Isto diz tudo sobre a relação de MRS com o establishment mediático, já há cerca de 20 anos. Não é, pois, assim tão estranha esta convergência entre os media e alguém que já não é comentador (ou talvez seja ainda mais), mas Presidente da República, quando volta a apontar o dedo ao poder executivo, agora a partir da sua própria função presidencial. Acresce que ele sempre foi um activista político e que esse activismo o exerceu, sobretudo, a partir do sistema mediático, onde sempre ocupou posições de grande relevo. E a verdade é que nas duas campanhas presidenciais o PS não apresentou qualquer alternativa, na esperança de, apesar de pertencer a uma família política adversária, vir a ter nele um aliado, valorizando claramente as funções executiva e legislativa e desvalorizando a função presidencial. Acontece que esta última só é menor se o ocupante não a usar como arma de arremesso contra o executivo, que é o que agora está a acontecer.
9.
Mas se esta estratégia funcionou durante alguns anos, neste momento está a transformar-se num sério problema para o governo e a maioria que o apoia. O PS deveria, pois, abrir uma frente de leal combate político na qual fosse também enquadrado o PR, não através da sua desqualificação ou de falta de respeito institucional, mas sim através da exigência de reposição do correcto funcionamento do sistema político, de acordo com o texto constitucional. Porque, na verdade, o PR tem vindo exorbitar das suas funções constitucional e até a alterar a própria natureza da função presidencial, ao imiscuir-se constantemente em assuntos onde ele deveria manter uma espécie de pudor institucional, tão necessário a um bom exercício da função.
10.
O combate político não parece ser uma vocação própria do cargo de Presidente da República, no modelo português, enquanto poder moderador, e o governo não responde politicamente perante ele. Mas a verdade é que a sua está a revelar-se claramente como uma orientação de inspiração populista: uma vocação de carismática interpretação do “Volkgeist” e sua permanente ritualização, numa identificação, quase que por osmose física, com as massas, nesse deambular interlocutório obsessivo e físico pelos quatro cantos do país e da cidade e a que, diariamente, a cidadania pode assistir, através do palco electrónico. Quase uma diluição da sua corporeidade na do povo, ritualizada e consignada em selfies, e convertida, depois, em verbo, em discurso em seu nome, numa clara transfiguração da função presidencial. Do que se trata, realmente, é da emergência de uma dimensão carismática do sistema. Uma perigosa rampa se a personagem fosse outra e com tiques ditatoriais (o que, felizmente, não parece ser o caso).
11.
Lembro-me que alguém a seu tempo apelidou um PM de “picareta falante”. Pois bem, hoje temos uma picareta falante hiperactiva, de muito maior dimensão, de presença quotidiana e muito nociva para o exercício governativo, uma vez que mina constantemente a sua própria autoridade. Não tendo responsabilidades executivas, dispondo de um microfone e de uma câmara a cada passo que dá, pode tornar a imagem do executivo numa espécie de creche tutelada por um todo-poderoso tutor, capaz de a qualquer momento a fechar, mandando todos para casa. O anúncio prematuro de um Conselho de Estado para finais de Julho, e a esta distância, pode ser interpretado como mais uma variável disruptiva para o sistema, ao deixar, virtualmente, todas as possibilidades em aberto e deixando no ar, uma vez mais, fumos de velada ameaça, como tem vindo a fazer ao longo dos últimos tempos… Um insidioso calendário porque, dadas as circunstâncias, deveria ser anunciado em tempo mais próximo da reunião. Sinais de fumo, é o que mais parece. Em síntese, agiganta-se uma onda destrutiva que, em vez de ser insuflada pelo Presidente, devia por ele, enquanto poder moderador, ser travada, poupando o país à degradação progressiva da imagem do governo e seguramente a novas eleições antecipadas.
OLHAR
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “Teu Rosto”. Original de minha autoria. Maio de 2023.
“Olhar”. JAS.05-2023
POEMA – “OLHAR”
QUE ME DIZES, Tão frontal, Olhar fixo, Penetrante, É chamamento, Sinal? NO SILÊNCIO, A tua voz É murmúrio, Melodia Seminal, Sinto-a Cá dentro De mim Como ponto Cardeal. E SÃO BELOS Os teus olhos, Sabem-me Sempre A mar, São ondas Do teu encanto Como cristais A brilhar. NÃO É AZUL Sua cor Mas de sol Que ilumina, Olhas pra mim, Meu amor, Quando navego À bolina. ÉS SEREIA, Vou-te ouvindo Em sinfonia De cor, Melodia Que me aquece Como fonte De calor. CABELOS Castanhos, Sopra aragem Sobre ti, Um suave Respirar, E eu tão Longe daqui Como a montanha Do mar. QUE PROCURAM Os teus olhos? Tua boca Balbucia Palavras Que me resistem Quando nelas Eu já sinto O que nunca Te diria... DIZES, SIM, Que não me Sentes? Dizes que Do poema Não és? De saudades Esmoreço Se não te vejo Chegar Quando chegam As marés. OLHOS Húmidos Que fascinam, Uma boca Que seduz, Teus cabelos Desafiam E eu, Poeta d’outono, Na mais pura Contraluz. OLHAS-ME, POIS, Inquieta, Sem estar À tua frente, Numa dorida Distância Que no silêncio Se sente E por isso Eu te digo Que o teu olhar Não me mente...
THE SHOW MUST GO ON
Por João de Almeida Santos
“S/Título”. JAS. 05-2023
NUNCA CONSIDEREI que as chamadas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) dessem um contributo positivo para o bom funcionamento da democracia representativa, hoje a conhecer grandes dificuldades no seu correcto funcionamento, até pela profunda mudança que se tem vindo a verificar nos sistemas sociais. Não é por acaso que há muito se fala de crise de representação, de democracia pós-representativa ou de democracia deliberativa. As CPI têm degradado a imagem do Parlamento e reforçado a crise de representação. É o que se está passar também com esta. Ainda insatisfeitos com o espectáculo a que temos vindo a assistir, já querem fazer outra, desta vez sobre os serviços de informações.
1.
Por um lado, elas tendem sempre a funcionar na fronteira da separação de poderes, entrando prepotentemente na esfera reservada dos dois outros poderes: o poder executivo e o poder judicial; por outro lado, tendem a deslizar frequentemente para um público “lavar de roupa suja”, dando abundante alimento ao tabloidismo informativo e contribuindo, deste modo, para que a política se transforme, ela própria, em política tablóide. As CPI são um excelente ambiente de culto destas tendências, até porque permitem à oposição não só submeter o executivo a julgamentos de praça pública, fundados na mesma lógica tablóide dos pelourinhos electrónicos que abundam por aí, mas também a ocupar ela própria o topo da agenda mediática e da agenda pública, dada a grande exposição a que normalmente são sujeitas. Daí a sua atractividade. Poder-se-ia até dizer que o excesso de CPI, mas também os seus excessos, muitas vezes fundados na própria impreparação dos deputados e na ânsia de protagonismo público, para não dizer numa inconfessada vocação inquisitorial, colaboram intensamente para mudar a própria natureza do regime, ao invadirem grosseiramente o campo dos outros poderes, contribuindo, deste modo, para uma parlamentarização excessiva do regime, alimentada pela informação tablóide e por uma política tablóide em crescimento acelerado. Perante o novo e imenso espaço público, permanentemente on line, onde pontificam media e redes sociais, o clássico mecanismo de legitimação dos mandatos, o voto, está a ceder perante um novo tipo de legitimidade, a legitimidade flutuante, que é de outra natureza, tem fundamento e temporalidade próprios e corresponde às flutuações da opinião pública, onde, afinal, os media e as redes sociais são determinantes. Conhecendo-se a orientação que os media estão a seguir e a tendência dominante das redes sociais é fácil reconhecer que estamos perante um destino pouco democrático da própria democracia.
2.
É a isto que estamos a assistir nesta CPI sobre a TAP, que, como era expectável, já está a extravasar o próprio objecto para que, inapropriadamente, foi criada: investigar a atribuição de uma indemnização de 500.000 euros a uma gestora da companhia aérea nacional. Quanto a mim, e revertida a indemnização atribuída com as consequências que, depois, se verificaram ao nível da administração da empresa, essa matéria perdeu, de vez, a pouca densidade que já possuía para justificar uma CPI. Por isso, nunca entendi a razão de o PS ter aceitado a sua constituição. E ainda entenderei menos a constituição de uma nova CPI sobre os serviços secretos a propósito de um assunto cujo conteúdo é absolutamente irrelevante, apenas servindo para, mais uma vez, desqualificar os próprios serviços de informações. É o triunfo dos “aprendizes de feiticeiro”!
3.
E, todavia, inesperadamente, esta CPI ganhou uma outra dimensão, essa sim, politicamente mais relevante. Ou seja, transformou-se no lugar de combate entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, por interposta pessoa: a do Ministro que esteve na origem do dissídio entre ambos, motivado, como se sabe, por uma questão de reserva de competências. O motivo? Uma confusão interna entre um Adjunto e outros membros do Gabinete que acabaria por gerar uma tal tempestade política que vários partidos até já estão a exigir, depois da presença do Ministro das Infraestruturas, da Chefe de Gabinete e do Adjunto, a presença do Primeiro-Ministro, dando, assim, sequência política à pública exigência do PR de demissão do referido Ministro. O PR deu o mote, os “aprendizes de feiticeiro” agitam fortemente o caldeirão até que a magia se cumpra.
4.
Quem assistiu às inquirições que já ocorreram, o que constatou foi a devassa total, ao minuto e ao pormenor mais insignificante, do executivo, através do gabinete ministerial onde se verificou o incidente. O incidente – um desentendimento gerido sem ponta de bom senso quer pelo Ministro quer pelos membros do Gabinete – não tem dimensão de assunto de Estado, ainda que tenha sido insistentemente chamada a debate a intervenção dos serviços secretos no processo, matéria agora reforçada pela eventualidade de uma nova CPI, para lhe conferir a necessária gravidade institucional e, deste modo, justificar a intervenção do Presidente e do Parlamento. Na verdade, o assunto não passa de matéria sem qualquer relevo ou significado, não se apercebendo os senhores deputados de que toda esta dramaturgia em crescendo acabará por produzir um efeito devastador sobre a imagem da política e das instituições, do governo e do próprio Parlamento. A gestão da TAP, a sua privatização, os recursos nela investidos pelo accionista Estado, a questão do aeroporto, nada disto parece ter relevância ao lado do mísero, ridículo e rocambolesco incidente. Poder-se-ia mesmo dizer, acerca do que está a acontecer, que a emenda está a ser pior, muito pior, do que o soneto. Mas a verdade é que nada mais interessa à CPI e ao establishment mediático do que o espectáculo e a dramatização da situação até ao seu limite extremo. The show must go on, numa convergência total que parece ter como único fim, para além da política espectáculo, um valor em si, a criação de um ambiente que leve, mais cedo ou mais tarde, à dissolução do Parlamento e à convocação de eleições antecipadas. É esta a suposta gota de água que fez transbordar o copo, a um ano e dois meses da tomada de posse deste governo e a um ano e quatro meses da conquista da maioria absoluta pelo PS. Sim, mas o tabloidismo mediático é disto que gosta e é disto que vive, porque é isto que lhe dá audiências e poder. Na verdade, se a legitimidade flutuante é a que mais se adequa funcionalmente ao poder dos media, ela também interessa conjunturalmente aos que anseiam chegar rapidamente ao poder. Verdadeiramente é disto que se trata. Nada mais, por mais expressivos e compungentes que se mostrem, em prime time e fora dele, os seráficos rostos dos habituais performers televisivos, a começar pelos próprios pivots, a quem se exigiria um pouco mais de contenção e de respeito pela vontade política dos eleitores. Uma democracia cada vez mais tablóide – na informação e na política – é o que infelizmente se está a impor, sem que haja o mínimo sobressalto de quem teria o dever de a impedir.
5.
Esta CPI está pois, por um lado, a interpretar, em directo, um papel que o establishment mediático depois converte em coerente e apimentada dramaturgia para consumo do público e, por outro lado, a desenvolver, pelos seus próprios meios, o discurso do Presidente acerca da substituição de um Ministro e da reposição da “dignidade das instituições”, mediante eleições antecipadas. Nunca o livrinho do Guy Debord esteve tão actual como agora: “Dans le monde réellement renversé, le vrai est un moment du faux” (La Société du Spectacle, Paris, Gallimard, 1992, pág. 19). O que sobra, realmente? Um gigantesco aviltamento da política, das instituições e da própria democracia, transformada em “Democracia Tablóide”, onde pontifica a categoria do negativo e onde a política se reduz cada vez mais a espectáculo. A sensação que fica é que nas inquirições os deputados já nem sabem bem a razão por que estão ali a fazer perguntas. Ou talvez saibam: o espectáculo vale por si.
6.
É claro que, a montante, há uma causa à qual pode ser imputada uma parte do que está a acontecer. E essa causa reside na perda de gravitas dos partidos políticos, de todos eles, na insuficiência do processo de selecção do seu pessoal político e, em geral, naquilo em que eles próprios se tornaram. Sim, os partidos políticos estão transformados em meras máquinas de conquista e apropriação do aparelho de Estado e em espaços de convergência de múltiplos interesses puramente pessoais e alheios ao interesse público, tendo perdido a característica de organizações que tinham como finalidade a promoção da política como esfera de culto activo da ética pública e do interesse geral, de uma visão estruturada sobre a sociedade e sobre as funções e a natureza do Estado, de uma ideia de progresso social e de futuro e, finalmente, da vontade de tornar hegemónicas cultural e politicamente as suas ideias acerca do bem comum. Ou seja, desapareceu a ideia de partido como escola de formação política e doutrinária para passar a ser uma agência de empregos, um mero instrumento de promoção pessoal sobretudo daqueles que nunca conheceram grande autonomia e sucesso na sua vida profissional privada. Muitos dos agentes políticos que hoje pululam nos partidos, sobretudo nos partidos da alternância, nunca exerceram uma profissão na sociedade civil, saltando directamente das juventudes partidárias ou da máquina partidária para as instâncias do poder, seja ele o poder autárquico, a administração pública ou o próprio Parlamento.
7.
A isto acresce, como já referi, a evolução do establishment mediático no sentido do tabloidismo mais radical e a enorme contaminação que existe entre ele e a política. Duas faces de uma mesma moeda a contribuírem, elas sim, para a degradação da democracia representativa e para o crescimento das formações políticas que não gostam mesmo dela. Pois com esta CPI Portugal está a dar mais um passo em frente na tabloidização integral da política e da democracia, transformando-as em apetitoso pasto para as forças mais radicais, sobretudo a extrema-direita. Faz, pois, falta uma séria reflexão sobre a política e a democracia pelas forças políticas mais responsáveis se quiserem evitar o pior e a sua própria sobrevivência política enquanto forças que pretendam continuar a assumir o governo deste país. Em vez disso, infelizmente, o que se vê é um deslize permanente na rampa inclinada da política tablóide e da degradação institucional. E, permita-se-me a ousadia, não me parece que o PR esteja fora desta rampa. Bem pelo contrário, o que nem é de estranhar visto o percurso de vida da personagem e a sua notória dependência das câmaras de televisão. Acresce ainda a recente e inopinada injunção de um antigo PR e PM no processo com uma linguagem absolutamente desbragada, ofensiva, inapropriada e inaceitável para quem desempenhou durante vinte anos tão altas funções. O que parece, de facto, é que já nada limita o clima de guerra aberta que se instalou na democracia portuguesa, a ponto de já nem ser sequer o partido que sustenta o governo a estar em causa, mas sim a decência política, o ódio e a insensibilidade relativamente à preservação do próprio regime político em que vivemos. Parece valer tudo e até mesmo “tirar olhos”. Isto diz muito da nossa classe política e de todo o establishment mediático. JAS@05-2023
A PORTA
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Porta”.
Original de minha autoria.
Maio de 2023.
POEMA – “A PORTA”
OLHO A MONTANHA
Da porta
E o granito
Amarelo
Com inúmeros
Cristais,
Olho o ocre
De um telhado
Como se estivesse
À janela
De um palácio
Encantado
Que do sonho
Fosse cais.
CONTEMPLO
A linha do horizonte,
Mas é diferente
A visão:
Antes, eu via futuro,
Agora, vejo passado,
Essa tão bela
Ilusão
De a ter sempre
A meu lado.
ENTRE PASSADO
E FUTURO,
É a minha
Identidade,
Ficou quieta
À minha espera
Quando dela
Eu parti
Ao encontro
Da cidade.
ELA É PORTO
De abrigo
E é lugar de
Partida,
É, pois, mais
Que uma porta,
É fronteira
Que eu passo
No desafio
Da vida.
E É ETERNO
Retorno,
Um regresso
Renovado
Onde posso
Renascer
Quando visito
A memória
Do que não
Quero perder,
Vendo a vida
Desse lado.
ESTA PORTA
É magia,
Viajo sempre
Por ela
Porque é uma
Janela
De onde voa
A fantasia.
DELA ALCANCEI
O mundo
E o mundo veio
Até mim,
Ao passar por
Esta porta
Sinto o meu
Horizonte
Como fronteira
Sem fim...
POR ISSO REGRESSO
A ela,
Esse pilar
Do meu ser,
Quando chego,
Logo amanhece,
E quando estou
De partida
Sinto que
O mundo
Acontece
Como a montanha
Da vida.
“A CULPA É DO SISTEMA”
Por João de Almeida Santos
“O Sistema”. JAS. 05-2023
ESTA FRASE, “A culpa é do sistema”, era normalmente atribuída à esquerda radical, onde por “sistema” se entendia o capitalismo ou o imperialismo. Mas ela também é aplicável ao populismo, onde por “sistema” se pode entender um sistema político centrado na ideia de representação e governado pelas elites. Mas, em geral, ela também serve para atribuir à governação as culpas de todos os males da sociedade, a começar pela pobreza. A culpa, nestes casos, surge como resultado da acção da comunidade politicamente organizada e nunca referida ao indivíduo singular. Este surge sempre como vítima, nunca partilhando a responsabilidade pelo que acontece, numa autêntica inversão da famosa frase atribuída a John Kennedy: não perguntes sobre o que a América pode fazer por ti, mas sobre o que tu podes fazer pela América. Emerge sempre naquela frase o domínio total da comunidade sobre o cidadão singular, constituindo-se esta, por isso, como titular da culpa.
1.
O assunto merece uma reflexão profunda porque a tendência a elevar a fórmula a centro dos discursos políticos é também própria dos partidos de oposição (supostamente ao lado das vítimas), que atribuem a culpa de tudo o que de mau acontece nas sociedades a quem está no poder, gerando, com isso, uma correspondente predisposição nos que sofrem (no desemprego, na habitação, na saúde, na educação, etc., etc.): nunca atribuírem uma parte da culpa a si próprios. É o triunfo da tríade “liberdades, direitos e garantias” (da parte do sistema) e o obscurecimento da díade “responsabilidade e deveres” (da parte dos indivíduos singulares).
2.
A primeira posição tende a ser promovida, directa ou indirectamente, por aqueles que encontram no Estado a solução para todos os problemas; a segunda tende a ser promovida pelos que se filiam no pensamento liberal mais radical, em particular os que reconhecem que o Estado apenas deve garantir aquilo que comummente se designa por funções de soberania, excluindo outras funções, hoje sobretudo concentradas no chamado Estado Social. Uns defendem a justiça distributiva, outros defendem a justiça comutativa, ou seja, a igualdade de condições no fim ou a igualdade de condições apenas no princípio. Neste último caso, aplicar-se-ia o prosaico princípio de que “quem tem unhas toca viola”, valorizando, assim, o esforço pessoal, a inteligência e o saber no próprio percurso de vida, complemento indispensável das condições igualitárias que lhe foram oferecidas no início do seu ciclo de vida.
3.
Estas diferenças devem estar sempre presentes no espírito de quem faz política a sério porque elas marcam substantivamente opções de política muito diferentes. São ambas respeitáveis, mas são diferentes e têm consequências diferentes. E hoje, em Portugal, elas ainda fazem mais sentido se tivermos em conta a situação de crise económica e social que vivemos, favorecendo naturalmente a crítica radical ao sistema e à correspondente culpa, imputável ao governo do momento ou ao próprio sistema político. E o governo do momento, se tiver como matriz uma visão mais comunitária do que societária da vida social, tenderá a responder neste mesmo registo e a reforçar o Estado Social até níveis que aqui já apelidei de Estado-Caritas (hoje muito bem representado pelo actual Chefe de Estado). Mas a crítica será promovida não só pelos populistas, imputando a culpa às elites que nos governam e ao sistema que as alimenta, mas também pelos liberais, que consideram que há Estado a mais e que uma parte substancial da responsabilidade deve recair sobre os indivíduos singulares. Outros há (e não são assim tão poucos, dirá seguramente Luís Montenegro) que, sem se definirem muito bem, sublinham a crise na esperança de que o poder lhes caia rapidamente nas mãos, sem exigência de grandes definições. Quando à esquerda radical, também essa continuará a dizer que a culpa é mesmo do sistema.
4.
No meio de tudo isto, e por todas estas razões, o discurso absolutamente dominante em Portugal tem sido o que atribui a culpa ao sistema, tendendo a ilibar o indivíduo singular da culpa e silenciando o discurso da responsabilidade e do dever. É hoje absolutamente dominante no discurso político português a tríade das liberdades, direitos e garantias e o princípio da “caridade” institucional, que se inscreve numa visão estatizante da vida colectiva. Um discurso que, naturalmente, se acentua nos períodos de crise.
5.
Lamentavelmente, eu creio que esta é mesmo a situação que estamos a viver, com o cidadão a manter-se confortavelmente na própria comodidade ou na indiferença, só se levantando para exigir ao “sistema” a resolução dos seus problemas, mesmo quando eles são imputáveis exclusivamente a si próprio. É por isso que se tem vindo a manter uma grande estabilidade nas grandes opções políticas da cidadania, abrindo-se somente brechas lá onde o Estado se revela incapaz de dar solução aos problemas que o próprio establishment político e mediático (com o seu enorme poder de agendamento público) chama ao topo da agenda. O que quero dizer é que estamos perante uma enorme falta de clareza nas opções de fundo dos partidos, sobretudo naqueles que têm vindo a governar alternadamente o país. Clareza nas alternativas relativamente às questões de fundo. Ou seja, falta clarificação sobre a própria identidade politica, sobretudo ao nível dos partidos da alternância, para não dizer que a tendência de fundo tem sido a de assumirem, ambos, espontaneamente, a vocação totalizante do Estado, diluindo as próprias diferenças. Por exemplo, li hoje um artigo de opinião num jornal onde a articulista instava veementemente o PSD a assumir-se como social-democrata e de esquerda, seguindo a orientação referida por Francisco Pinto Balsemão e atribuída a Francisco Sá Carneiro. Tenho as maiores dúvidas de que o PSD seja social-democrata ou que deva sê-lo, uma vez que social-democrata é o PS. Verificar-se-ia assim uma autêntica sobreposição política e ideológica. O PSD de Sá Carneiro era PPD, partido popular democrático, interclassista, e isso diferenciava-o do PS, ideologicamente mais alinhado com as classes subalternas. Na verdade, no meu entendimento, e em termos doutrinários, o PSD sempre foi um partido de tendência liberal-democrática. Mas o próprio PS nunca clarificou muito bem uma questão de extrema importância: sendo um partido socialista ou social-democrata um dia terá de esclarecer a sua relação com o pensamento liberal e com o iluminismo, a filosofia que lhe corresponde. Porque é nesta clarificação que a questão com que iniciei este artigo pode ser clarificada: o papel do indivíduo singular na sociedade, para que não continue refém dessa visão dominantemente comunitária, e de inspiração marxista. O SPD fê-lo em 1959, em Bad Godesberg. O Labour fê-lo ao longo de cerca de dez anos (entre 1985, com Neil Kinnock, John Smith e Tony Blair, e 1995/96). Só esta clarificação poderá também clarificar a sua ideia de Estado, das suas funções e o âmbito que elas abrangem. Por exemplo, para referir um caso muito actual – proposta de lei do governo -, deve o Estado legislar ao pormenor sobre a venda e o consumo de tabaco na via pública, promovendo uma lógica de progressiva higienização da vida colectiva? Ou a injunção sobre o direito de propriedade em matéria de habitação em nome de um mais que vago direito à habitação, onde mais parece que “se não tenho casa própria, a culpa”, lá está, “é do sistema”. O direito de habitação limita-se a ser direito a comprar casa ou a arrendá-la. A função do Estado, neste caso, deve ser a de promover, sem ferir os direitos individuais (como, por exemplo, o direito de propriedade), o mercado de arrendamento (por exemplo, através de uma drástica redução fiscal e burocrática) e não ser ele próprio o arrendatário ou até, em última instância, o garante da posse de habitação. A habitação é um bem essencial disponível no mercado como tantos outros, incluídos os bens alimentares.
6.
É claro que o sistema tem muitas culpas, embora tenha possibilitado avanços civilizacionais e materiais enormes. Sim, é verdade. Mas o que não se pode dizer sempre é que a culpa é do sistema e o sistema, assumindo a culpa, começar a fazer injunções na sociedade civil que não lhe competem. Ou, mais ainda, indo aos bolsos dos contribuintes (3 milhões em 5,4 milhões de agregados) que alimentam o sistema para se redimir da culpa de, por dever inscrito na sua matriz, dar tudo à chamada vítima do sistema. Sabemos bem a que é que esta filosofia levou.
7.
E se isto me incomoda na área política em que me revejo (mas talvez pertença à sua ala direita), também me incomoda ouvir dizer ao actual líder do PSD que este partido não tem problemas existenciais, apesar de ter um bem grande mesmo ali ao lado, provocado por um antigo militante do seu próprio partido. Na verdade, o grande problema existencial do PSD é precisamente a sua permanente indefinição de identidade. Melhor, a manutenção de uma equívoca identidade: pretender representar a direita, mas, ao mesmo tempo, declarar-se de esquerda ou social-democrata.
Não, a culpa não é só do sistema. Também é dos cidadãos, mas sobretudo dos que, abrigados no sistema, se sentem demasiado acarinhados por ele para mudar, nem que seja apenas numa lógica simplesmente transformista. O que seria muito pouco, mas, pelo menos, melhor do que a importação de uma lógica de higienização integral da vida colectiva, desde a linguagem até à saúde. JAS@05-2023
“O Sistema”. Detalhe.
ORÁCULO
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “Luz”. Original de minha autoria. Maio de 2023.
“Luz”. JAS. 05-2023
POEMA – “ORÁCULO”
NO ORÁCULO Há uma árvore Iluminada Nos dias de ritual. Essa árvore és tu E eu a luz Que alumia Com o ceptro De cristal Do templo sagrado De Athena, Da arte A catedral. ÀS VEZES BRILHAS, Sim, Incendeias-me O estro No poema Em construção, Outras convocas A sombra E o silêncio, A árvore Entristece E também eu Me apago Em infausta Comoção. É BELA A ÁRVORE, Mas não dá frutos, Só beleza Luminosa E fugidia Quando em dias De ritual Te canto Com vigor E fantasia E o brilho Dos teus olhos Me acende Esta paixão Como pura Energia. SE NÃO TE VEJO, Apago-me Em submissa Tristeza, Falta-me o teu Olhar, De cada poema A luz, Do afecto A Incerteza. FLUI O TEMPO, Gasta-se a vida, Fogem de nós As palavras, O olhar Empalidece, Esmorece A alegria, O oráculo Já não acolhe O meu canto E, depois, Ah, depois, Regressa A rotina De cada dia... MAS A DEUSA Aguarda-me Impaciente E eu hesito Em chamar-te Ao ritual Com medo Que não me ouças E eu perca, Do oráculo, A magia Do seu ceptro De cristal... MAS EU TENHO-TE Dentro de mim E convoco-te Ao poema Para acender, Com a luz Do teu olhar, A árvore Inspiradora, Enquanto o canto Durar. NÃO RECUSES O chamamento, Não apagues Essa luz Que quer sempre Renascer, Deixa que eu Te cante E celebre Em cada amanhecer, Te acenda Na fantasia Nem que seja Por um instante Ou na voragem De um dia.
“Luz”. Detalhe
O PRESIDENTE E A FUNÇÃO PRESIDENCIAL
Um Erro de Paralaxe?
Por João de Almeida Santos
“S/Título”. JAS. 05-2023
ORA AQUI ESTÁ. Talvez se trate mesmo de um erro de paralaxe. O Presidente-Comentador, que tudo comenta, chama, de forma nem tanto subtil, publicamente irresponsável ao Primeiro-Ministro e dá ele próprio, sem se dar conta, exemplo do que é ser pública e politicamente irresponsável. Não se trata de um juízo moral, entenda-se, mas de um juízo relativo ao comportamento político e institucional. De tanto falar, o Presidente parece atropelar-se com as suas próprias palavras. Poder-nos-íamos perguntar pela razão que o levou a fazer esta declaração quando já tinha tornado pública, num curioso e intempestivo comunicado oficial, a sua discordância da decisão do Primeiro-Ministro. A primeira razão que me vem à mente é esta: não consegue ficar em silêncio em nenhuma circunstância, tendo de se manter permanentemente ligado à máquina mediática; a segunda razão foi a de mostrar que não “enfiou a viola no saco”, depois de o PM não ter correspondido à sua, já publicamente anunciada e enunciada, vontade; em terceiro lugar, foi a de dar seguimento institucional à vontade expressa pelo establishment mediático de querer exonerar o Ministro João Galamba, confirmando, assim, a sua remota e carinhosa filiação neste universo. Nada mais vejo que possa justificar este atropelo grosseiro à própria constituição, às relações institucionais entre poderes soberanos e à própria lógica da separação de poderes, para não dizer à ética institucional ou constitucional. Afinal, trata-se de um poder moderador, não de uma instância avaliadora da acção política governativa. A avaliação compete, isso sim, ao Parlamento, à oposição, aos partidos políticos e à cidadania. Pelo contrário, uma instância moderadora ( “último fusível de segurança”, como disse o próprio PR) não pode tornar-se parte porque, desse modo, perde a capacidade de moderar. Não por acaso, em relação à acção política da Presidência, se tem usado regularmente, e bem, a expressão “magistratura de influência”, baseada na “auctoritas”, na “virtus”, não na coacção simbólica, na reprimenda pública e na ameaça. De resto, a intervenção política do Presidente está bem expressa na Constituição: dissolução do Parlamento, promulgação dos diplomas legais, mensagens ao Parlamento, pronúncia sobre emergências graves (além dos actos formais de nomeação, demissão e exoneração do PM e dos membros do governo, estes sob proposta do PM).
1.
O direito de propor a exoneração de um membro do governo não pertence constitucionalmente ao PR e, assim sendo, este deveria, mesmo discordando, ter respeitado a decisão de quem tem esse poder, o PM, abstendo-se de a qualificar publicamente e deixando a tarefa crítica para quem tem essa competência política: a oposição partidária e parlamentar e a própria cidadania.
As palavras publicamente usadas para comentar a decisão são absolutamente inaceitáveis. E, pior, ao condenar publicamente, por duas vezes e solenemente, a decisão do PM, o Presidente está a substituir-se ao Parlamento e à oposição política, entrando até, e mais uma vez, no campo das ameaças, agora mais claramente expressas. O Presidente tornou-se, assim, o líder da oposição e a projecção institucional do establishment mediático. Assim sendo, não resta à maioria e ao PS outro caminho que não seja o de responder politicamente a esta novíssima figura institucional do Presidente. Pelo contrário, o PM e o governo devem, ao contrário do Presidente, manter a compostura institucional e o respeito pela função presidencial, ao mesmo tempo que devem redobrar esforços para governar o melhor possível. O problema, dirão alguns, é que, vendo realisticamente as coisas, Marcelo Rebelo de Sousa tem todo o establishment mediático e (quase) toda a oposição com ele e, por isso, tornou-se um problema muito sério para o governo e para a maioria que o sustenta. Sem dúvida. Mas a verdade é que, com esta intervenção, o PR demonstrou ter uma visão enviesada da função presidencial e da separação dos poderes, pelo que, no mínimo, o PS deverá lutar pela reposição da função presidencial no devido lugar para que não acabe por acontecer uma autêntica subordinação do poder executivo à vontade e ao arbítrio do Presidente, subalternizando o poder executivo e subvertendo a própria constituição da República. De ministro em ministro, as remodelações governamentais passariam a ficar nas mãos do Presidente e, já agora, do establishment mediático. A correcção deste enviesamento constitucional da função deveria, por isso, constituir o primeiro passo para a necessária correcção de trajecto.
2.
Em boa verdade, este já é o segundo nível em que Marcelo Rebelo de Sousa contribui para a degradação da função presidencial. O primeiro consistiu na confusão da função presidencial com a de comentador permanente de tudo o que acontece no país (incluída a acção governativa), do mais irrelevante ao mais relevante, num activismo opinativo verdadeiramente alucinante; o segundo consistiu em transformar a função presidencial em oposição política declarada ao governo e à maioria parlamentar. O que, na realidade, parece é que o Presidente tem vindo a transpor para a função presidencial as suas idiossincrasias e até os seus humores pessoais, não se atendo às funções que a Constituição da República lhe confere.
3.
E qual é, então, a resposta política perante este aviltamento da função presidencial? Simples: combate político, pois do que se trata é de um adversário político confesso. Uma luta dura, mas que tem de ser travada, para que o gesto de António Costa tenha consequências políticas substantivas e a honorabilidade política do PS seja preservada. Se não for travada, o PS pagará caro, caríssimo, o preço deste embate. A democracia é amiga das diferenças políticas, do debate argumentativo e, naturalmente, do combate político, desde que tudo ocorra no respeito pelas regras, o que, notoriamente, neste caso, não aconteceu. Assim sendo, e porque o PR se colocou voluntária e publicamente nessa posição, o PS deve retirar daí as consequências e lutar politicamente para que se remeta rapidamente à sua condição, à sua função constitucional e política, deixando que o Parlamento, a oposição política partidária e a cidadania controlem, critiquem ou até apoiem, se for caso disso, a acção do governo. Se não for travado este combate será a democracia representativa a sair fragilizada de todo este processo. A verdade é que o governo e o parlamento não podem estar permanentemente reféns da vontade do Presidente sob o cutelo ameaçador da dissolução da AR.
4.
Sendo um acto eminentemente político e devendo assim ser considerado, mesmo assim, na Constituição só dois artigos poderiam conferir razoabilidade a esta intervenção política do PR . O primeiro é o art. 133, alínea d): “dirigir mensagens à Assembleia da República”; o outro é o art. 134, alínea e): “pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República”.
O primeiro não foi accionado e talvez fosse o único aceitável como modo de devolver à AR a função de controlo e de crítica dos actos do governo, protagonizando a iniciativa de uma pronúncia em sede parlamentar sobre o facto. O segundo não parece, de facto, configurar-se como “emergência grave para a vida da República”.
O que acabo de dizer torna ainda mais delicada a intervenção directa do PR junto dos portugueses (através das televisões), subalternizando o papel da Assembleia da República e da própria oposição. O que mais parece é que o PR quis cavalgar a onda mediática em curso, reforçando deste modo um consenso de tipo tablóide em torno da sua pessoa e dos seus actos, algo disruptivos. Ou seja, com esta intervenção o PR contribuiu ele próprio para descredibilizar as instituições (presidencial e governativa), cometendo ele próprio o pecado de que acusa outros, na verdade pecado bem pior do que o da situação rocambolesca da demissão de um simples adjunto de gabinete ministerial. E bem pior porque não só afecta gravemente as relações entre a Presidência e o governo, alterando o próprio modelo constitucional, mas também porque se configura como um grave atentado à imagem do PM e do governo praticado pelo mais alto magistrado da Nação. A hipocrisia política tem sido um dos factores que tem contribuído para a crise de representação que persiste e se avoluma, mas tanta e inorportuna exposição institucional do PR (e, por essa via, do governo) também pode produzir o mesmo resultado. Pois bem, aqui está o momento para dizer e fazer o que a política exige: clareza política nas regras e nas posições, frontalidade e determinação. Foi disto que gostei na decisão e na posição de António Costa: mostrar ao Presidente que as funções e competências de cada um devem ser respeitadas.
5.
O mal está feito e como o próprio Presidente disse, não se apagará “dizendo que já passou. Não passou. Nunca passa”. Reaparecerá “todos os dias, todos os meses, todos os anos. Porque tem de existir para que os Portugueses se não convençam de que ninguém responde por nada, nem manda em nada”. Trata-se, sim, de uma atitude que não tem retorno e o PS deve tirar daí todas as consequências políticas, não concentrando as atenções sobre o Ministro Galamba, como alguns ilustres socialistas já estão lamentavelmente a fazer, mas manifestando sem tibiezas o seu entendimento sobre as regras e sobre a atitude do presidente, demarcando-se desta interpretação absolutamente enviesada do que são os poderes presidenciais, ao mesmo tempo que deve declarar que não permitirá que sejam os media a governar o país, mas sim os que, mediante eleições livres, representam a cidadania. Na verdade, mais do que a questão do Ministro, o que verdadeiramente esteve em causa foi a usurpação de funções e competências. E, por isso, é a própria democracia representativa – regime onde as regras ocupam o centro do sistema – que exige clareza, mas também o necessário afastamento de qualquer tendência que promova o tabloidismo político, filho directo e dilecto do tabloidismo mediático, há muito em curso no nosso panorama editorial e cujo representante máximo parece ser cada vez mais o Presidente da República. Só assim o PS reconquistará a gravitas que tem vindo paulatinamente a perder e promoverá a sua posição virtuosa de força política ao mesmo tempo moderada, respeitadora das regras da democracia e progressista nos seus ideais. Neste caso, muito em particular, como em tantos outros, o PS não se deve remeter à condição de mero ventríloquo sem alma do governo ou de cúmplice do enviesamento da função presidencial. Bem pelo contrário, deve ter voz própria e lutar activamente pelo respeito das regras da democracia e pela dignidade da política.
PERFIL
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “Espanto” (2021, 91x115, em papel de algodão Hahnemuehle, 310 gr). Original de minha autoria. Maio de 2023
“Espanto”. JAS. (2021, 91×115, em papel de algodão Hahnemuehle, 310 gr). 05-2023
POEMA – “PERFIL”
AS LINHAS Do teu perfil, Tão singelas Ao olhar, Lembram-me A tua voz Quando te Ouvia falar. POETA, Logo pintava Essa tua silhueta Com um secreto Pincel, Os traços eram Palavras Desenhadas A caneta Na brancura Do papel. PALAVRAS Leva-as O vento (Era o que eu Te dizia), Mas ditas Por um poeta Gentil (E eu nunca te Mentia) Ficam gravadas Na alma Se pintar O teu perfil. CRESCESTE Como camélia, Flor branca Nas folhagens Do Jardim, E sempre que Tu me olhas Iluminas De alvura, Brilho intenso, Cintilante, Essa imagem Que perdura Mesmo quando Estás distante, Mas sempre Tão perto De mim... PORQUE VIVES No Jardim Em ciclo De natureza, Regressas Em cada ano Para afastar A tristeza... DEPOIS PARTES, Mas fica sempre O teu perfil Que me fala Ao olhar... .......... A ausência Já não pesa E as saudades Esmorecem Porque tenho A certeza Que um dia Vais voltar.
POR QUE RAZÃO ANDRÉ VENTURA É TÃO DISRUPTIVO?
Por João de Almeida Santos
“S/Título”. JAS. 05-2023
QUANDO OUÇO André Ventura dizer aquelas coisas tão fora da caixa, tão politicamente incorrectas ou até mesmo tão pouco aceitáveis numa lógica de simples sensatez, interrogo-me sempre, para além das óbvias razões ideológicas de fundo, sobre o sentido oculto ou a estratégia oculta que existe no seu discurso. Ou seja, não tomo em consideração directamente o valor semântico do seu discurso, o seu conteúdo ideológico, mas sim os seus efeitos sobre a mecânica da opinião pública. Melhor ainda: não me preocupo em avaliar política, moral ou cognitivamente o seu discurso, por ser demasiado óbvia a sua matriz e a sua semântica, mas sim os seus efeitos sobre a dialéctica da atenção social e, em primeiro lugar, a que é polarizada pelo establishment mediático. É assim que me vêm sempre à mente quer a teoria do “agenda-setting” (McCombs e Shaw) quer a teoria do “agendamento” (Niklas Luhmann).
1.
O que dizem, no essencial, estas teorias? Dizem, acerca dos efeitos cognitivos e sociais dos mass media (que reportam o que o sujeito do discurso diz), que o essencial é a polarização da atenção social sobre o discurso e o agente do discurso. A entrada em agenda dos temas e dos agentes do discurso e o grau e a intensidade com que entram. Não é, pois, tanto o valor semântico do que é dito, mas o seu poder de se impor no processo de agendamento mediático, político e público (por esta ordem) e, consequentemente, na dinâmica da atenção social. É uma prática usada há muito. Berlusconi usou-a abundantemente, quando conquistou (em 1994) e exerceu o poder como primeiro-ministro. Donald Trump também. Comunicar coisas disruptivas, insensatas, brutais, insólitas, negativas, corresponde àquela que hoje é a prática dominante dos media na comunicação pública, ou seja, corresponde ao domínio da categoria do negativo, transversalmente, em todos os géneros discursivos (política, desporto, sociedade, etc., etc.), no discurso público. Alguém dizia que notícia, notícia, não é o cão morder o homem, mas o homem morder o cão. Ou, então: “good news, no news”. É algo muito experimentado na comunicação pública, ao lado das famosas campanhas negras. Esta técnica, que não é nova, tem dado bons resultados: o importante é que falem de ti, não importa se bem ou mal. A semântica terá sempre, nesta lógica, uma importância secundária. O importante é entrar na agenda pública, se possível chegar mesmo ao topo.
2.
Mesmo que, do ponto de vista ideológico, haja diferenças muito grandes e que cada partido ou movimento as afirme de forma mais ou menos intensa, como é natural, o essencial não está, todavia, na posição ideológica do discurso, mas sim na capacidade que ele tiver de atrair e polarizar a atenção social, independentemente do valor semântico da mensagem, dos seus conteúdos políticos, programáticos e ideológicos, que sempre implicam um nível mais exigente de descodificação. Só assim se compreende a razão de certos discursos ou de certas atitudes aparentemente sem sentido. Por exemplo, eu enquadro, entre tantas outras suas posições discursivas e disruptivas, as manifestações do CHEGA durante a visita oficial do Presidente da República Federativa do Brasil, Lula da Silva, a Portugal, nesta estratégia. É evidente que este partido passou das marcas minimamente aceitáveis (pelo menos, as da educação), mas a verdade é que o que subjaz a estas acções discursivas é o desejo absoluto, a qualquer custo, de polarizar a atenção social, ocupando as agendas mediática, política e pública e aumentando, deste modo, a notoriedade e, consequentemente, o impacto eleitoral. O disruptivo e o negativo como categorias comunicacionais supremas. Ou o triunfo esmagador do tabloidismo comunicacional e político, que se alimenta destas categorias. Quem vir os telejornais das oito, de todos os canais, facilmente compreenderá o que estou a dizer. M. McCombs e D. Shaw diziam, em 1972, em “A função de agenda-setting dos mass media”, acerca da agenda-setting, citando Bernard Cohen: “a imprensa ‘pode, na maior parte dos casos, não ser capaz de sugerir às pessoas o que pensar, mas ela tem um poder surpreendente de sugeriraos leitores sobre o que pensar’ ” (itálico meu). Conquistar a agenda mediática e a agenda pública significa ganhar notoriedade política. O importante não é, pois, o conteúdo específico da comunicação (a sua descodificação exige, como disse, sempre um esforço suplementar), mas sim o lugar que a acção discursiva virá a ocupar na hierarquia das notícias e do debate público. A posição que se alcançar neste plano condicionará o impacto político, o reconhecimento implícito do poder de agenda da força política promotora e, naturalmente, a sua posição na relação de forças política. Esta influência implicará seguramente significativos dividendos eleitorais.
3.
É esta a principal razão dos discursos políticos altamente disruptivos e fortemente negativos. Trata-se de uma opção consciente. E de qualquer modo as forças radicais ou populistas encaixam-se melhor do que as outras forças políticas naquela que é a estratégia discursiva dominante dos mass media, onde o tabloidismo já ocupou o centro da estratégia de conquista das audiências. Berlusconi conseguiu, na pré-campanha e na campanha de 1994, fazer de si próprio o centro de todo o debate nacional no processo que conduziu às eleições que ocorreram em Março: em nove meses criou um partido de raiz e venceu as eleições. Matteo Salvini, a partir do Ministério do Interior, pôs no centro do discurso a questão da imigração e os seus perigos para a sociedade italiana, dominando totalmente a agenda mediática, política e pública, com os efeitos que se conhece nas eleições europeias de 2019 (cerca de 34%). O discurso de Trump era, todo ele, permanentemente disruptivo, negativo e “unusual”. O mesmo vale para o BREXIT em relação à imigração.
4.
Estas forças, porque são radicais, populistas, anti-sistema e promotoras de um discurso negativo e de rejeição, adoptam este tipo de elocução com maior naturalidade, conseguindo, deste modo, aproveitar melhor a dinâmica do discurso mediático e, deste modo, polarizar a atenção social, aumentando a notoriedade, com significativos ganhos eleitorais. Sobretudo num momento em que as forças da alternância e do establishment estão em fase de progressivo desgaste, motivando distância e até irritação por parte dos cidadãos. Papel não despiciendo neste desgaste tem sido desempenhado, não só pela atmosfera de crise que se tem vivido, mas também pela onda de politicamente correcto que se tem abatido sobre o centro-direita e o centro-esquerda e que tem sido habilmente aproveitada pelo populismo de direita, atribuindo-a, em geral, e já com alguma razão, ao establishment. O que se tem vindo a traduzir na fragmentação dos sistemas de partidos e no fim do clássico bipolarismo partidário que se fora afirmando progressivamente desde o fim da segunda guerra mundial até aos anos noventa.
5.
Mas isto não parece estar a ser compreendido pelas forças políticas moderadas e mais identificadas com a matriz do sistema político e institucional, acabando por acarinhar a sua estratégia ao transformarem estes radicais em objecto central do seu discurso, contribuindo, deste modo, para os colocar permanentemente no centro da agenda pública. Que os media lhes dêem protagonismo, isso parece resultar naturalmente da sua própria estratégia discursiva tablóide, mas que os partidos da alternância e os da própria extrema-esquerda caiam com tanta facilidade na teia discursiva destas forças é que não se compreende lá muito bem. Os resultados estão à vista. JAS@05-2023
NOTA
JÁ TINHA ESCRITO O ARTIGO quando se deu, ontem (02.05.2023), aquele extraordinário episódio que vai ficar nos anais da política em Portugal. Quando se assistia a uma intensa e total convergência de todo o establishment mediático e da própria Presidência da República que parecia conduzir inevitavelmente à demissão do Ministro das Infraestruturas, tendo tido, inclusivamente, como resultado uma carta de demissão do próprio, pudemos assistir, durante cerca de meia hora, em directo, a uma comunicação ao país do Primeiro-Ministro em que recusava liminarmente a demissão do Ministro, explicando minuciosamente a razão da sua decisão e atribuindo-a a um imperativo de consciência. Ainda estava o PM em directo e já a Presidência emitia uma comunicação em que dava conta da discordância do Presidente em relação à decisão do PM. Esta nota foi como que o selo institucional da Presidência aposto sobre a narrativa mediática que antecedera a corajosa decisão do PM. Também aqui já não interessam as razões concretas, mas sim o facto de o PM ter decidido rapidamente e em contraciclo, não só em relação ao establishment mediático, mas também àquele que cada vez mais parece ser o seu mais alto representante, o próprio Presidente. Uma dramaturgia onde o PM fez, inesperadamente, e de forma brilhante, um pirandelliano jogo das partes, elevando-se na cena como actor principal e ditando inesperadamente o próprio desfecho deste acto da complexa e delicada dramaturgia em curso. The show must go on…
OÁSIS
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “Sonho”. Original de minha autoria. Abril de 2023.
“Sonho”. JAS. 04-2023
POEMA – “OÁSIS”
SONHEI-TE. Atravessava o deserto Há muito, Nada via À minha frente, Areia, só areia No caminho... ............. E uma miragem Ardente. NEM SABIA SE Encontraria Um oásis Onde molhar As palavras E os lábios Já gretados Da aridez Do deserto. MAS HOJE SONHEI-TE, De novo, E reencontrei O oásis perdido... .................... Nas pupilas dos teus Olhos. TIVE-TE ASSIM A meu lado, Ofereci-te Uma história Onde conto Como te perdi E te conservei No meu fio De memória. FALÁMOS DE ARTE, Imagina, E de como a vida Nela se resolve E se lê Quando na força Do sonho Se confia E absolutamente Se crê. SONHEI-TE Esta noite E acordei de ti Embriagado, Mesmo sem te ter Comigo, Ali mesmo, A meu lado. AH, HABITUEI-ME A estar contigo Em sonho E em palavras, A dizer-te Em poemas, A ouvir O teu silêncio, A procurar-te Com o vento Que te sopra Na alma Meus poéticos Murmúrios... TENHO-TE Em palavras Um pouco Já gastas E nem sei O que seria Encontrar-te, Olhar de perto Teus olhos Negros E profundos, Sentir O teu perfume, Perdido No mistério Insondável De tão enigmático Rosto. TALVEZ TE VOLTASSE A perder, Nesse instante, Nesse dia, Por excesso de ti Ou por só já Te reconhecer Nas estrofes Da minha confessada E melancólica Nostalgia.