Pintura

ARTE AO VIVO – 6

NO MEU JARDIM ENCANTADO

Partilho a imagem de mais um quadro já pronto para a Exposição em preparação, 90×126, em papel de algodão Hahnemuhle e com vidro de museu (70%). Este quadro pode ser adquirido, mediante comunicação de eventual interesse via E-mail, WhatsApp ou Messenger.

JAS – “Entardece no Jardim”, 2021

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JAS – “Entardece no Jardim”, 2021

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Artigo

O MUNDO COMO GALERIA DE ARTE

Por João de Almeida Santos

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“Desassossego”. Jas. 06-2021

ESTA FIGURA parece ser, pelo menos por fora, a de um conhecido desassossegado. Estes óculos exprimem toda uma filosofia, toda uma visão do mundo. Óculos a mais para rosto a menos. Eles, apesar de tudo, reflectem um certo verdor com que o mundo se exprime. Mas um verdor mais verde do que o verde deste mundo. Ah, sim, o verdor espiritual, o que é pintado com palavras. Bem poderia ser, pois, o indivíduo que leva sempre a renúncia a peito e que se identifica com um tal Bernardo Soares. Sim, esse, o do desassossego. Um tipo muito cerebral. Talvez até demais. Personagem estranho e pouco dado às cedências da vida vivida, que não à vida pintada com palavras, seja de que forma for. O tal que, estranhamente, não se ajeita com a poesia. O que é, de facto, estranho, porque filho de peixe deveria saber nadar. Ou que nem sequer se ajeita com a vida, o que já seria mais natural. Há por aí tantos que não se ajeitam com ela (mas não sabem)! Um indivíduo, este, que tem o espírito e a alma franzidos pela aspereza e pela contingência do existir. E que o levam a reiterar teimosamente a sua militante dissidência. A sua dissidência estética da vida. À sua maneira, um insurgente existencial que tem como única arma de combate a palavra. Ele move-se a partir da superfície plana da existência (é assim que a assume) para dentro, fala de si para si e o seu olhar é como que devolvido pelos óculos, que se lhe colam ao rosto como sua pele. Óculos como espelho da alma mais do que espelho do mundo, trabalhados a cinzel como se quer a um filósofo que goste de poesia, embora não se ajeite com ela. Como se o meio fosse a mensagem – uma mensagem “ocular”, com uma estranha cor, a dos óculos, que lhe devolve um real já pré-representado por si. Os óculos como terminal de um cérebro autocentrado. Digamos a verdade: não há existência tão verde como o verde que se reflecte nos seus óculos. Talvez nem sequer haja existências verdes, mas somente existências com algum verdor. E talvez nem sequer a sua alma reflicta tanto verdor. Eles, os óculos, na verdade, são mais um espelho do espírito do que da alma. Nem espelho do mundo nem da alma, mas do espírito.  É este, o espírito, que pinta o verdor com palavras. Afinal, alma e espírito não são a mesma coisa, pois este é culto e aquela, a alma, pode não ser. Falo no plano transcendental, claro, embora um espírito que não seja culto é mais alma do que espírito. A alma não tem de ser culta. Ela sente e o espírito pensa. Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz… e doloroso. O amor é mais da ordem da alma do que da do espírito. É por isso que se diz “dor de alma” e não “dor de espírito”. O espírito é realmente perigoso para o amor. E ele, o Bernardo, afinal, vê sempre o amor com o filtro espiritual dos seus óculos. E desenha-o com palavras, isto é, neutraliza-o ou, pelo menos, relativiza-o. Ou seja, anula-o, porque o amor tem de ser incondicionado, não pode ficar engavetado em palavras.

HOMEM COLORIDO, 
MAS CINZENTO NA ALMA

Pois, com estas cores que o tornam aparentemente mais irreal e, por isso, mais perdurável, é mesmo ele, o homem da renúncia, o que nunca se deixa ir para não se perder, ao sair de si, o que quer perdurar… à força de sentimentos desvitalizados e transfigurados. O que olha – o olhar deveria ser tudo – para a vida como para uma galeria de arte. Aquele que olha para um rosto como se fosse uma fotografia ou um retrato pendurado numa parede. E que não toca nele sequer com a ponta dos dedos. Tudo parece ser, para ele, um pretexto para redesenhar o mundo no seu estirador mental. Como fazem os melancólicos profundos quando se sentem impotentes para o mudar. Desenham-no com as cores da utopia. Sim, sim, apesar de eu ter dúvidas de que o Bernardo alguma vez tenha querido mudá-lo na sua mundana escala. Ele não se mistura com essa irrelevância da vida vivida. Porque ela é banal, andam por lá todos…

Na verdade, este homem colorido tem o corpo confundido mais com o espírito do que com a alma. Só se lhe vê a parte de cima, o sítio onde está o espírito, de propósito, o que não aconteceria se tivesse jeito para a poesia e andasse por aí aos trambolhões, dorido de alma. Neste caso, haveria de se lhe ver o peito. Mas não, porque também tem a alma confundida com o espírito, numa progressiva redução de planos, ou camadas. Ele, afinal, é um desdobramento do seu artífice, esse espírito voraz, capaz de (in)digerir o mundo. Uma bela operação, diga-se. As palavras viram-se para dentro dele, dobradas sobre si, e o bigode (que está lá, mas não se vê) é a porta fechada da sua fala. Uma fala espiritual. Resistente e fechada, à força, não vá a tentação abri-la e deixar escapar um reles sentimento carnal ou uma comprometida e ridícula declaração de amor. Não. Para renunciar é preciso força de vontade e alguma crispação. Lábios apertados até se anularem na superfície lisa do rosto. A boca, tal como os olhos com os óculos, está protegida pelo bigode e pelos lábios apertados. O bigode é o arame farpado que lhe protege a alma tal como os óculos são o muro que o protege das vulgares insídias do real, do canto das sereias. Que mais se poderia imaginar senão isto, quando olhamos para os seus óculos e para esse chapéu amarelo de tanto sol apanhar? A verdade é que o espírito, mais do que a alma, precisa de sol, mas que não seja em demasia, para não o encandear ou mesmo incendiar.

INDIFERENÇA SENTIMENTAL

“INDIFERENÇA SENTIMENTAL” – dizes. Essa eu até a reconverto em palavras ao rubro com a alma aos pulos, livremente, à minha vontade e até contra mim e tudo o que eu próprio planeei para ser eventualmente feliz. Ah, como é bela a indiferença, se for minha e a puder converter em autêntica diferença. Ser indiferente de forma original é cultivar a diferença e afirmá-la perante iguais. Até a gravata me torna mais encrespado com o exterior de mim. Agarra-me pelo colarinho e não me deixa ir. Sou livre à força… quase à forca. Morrendo para fora à medida que vivo para dentro… de mim. E, depois destes óculos me terem protegido quando “uma rajada baça de sol turvo (quase) queimou nos meus olhos a sensação física de olhar”, passei a olhar quase só para dentro, olhando de través para fora, sem tirar os óculos. Hum… só o suficiente. Minimalismo visual, diria. Cedendo apenas um pouco à exigência desse objecto que tenho no meu rosto acastanhado e a que chamam “óculos”. Nome tão estranho como o de “olho”… esse nome que tem a sonoridade seca que tristemente exibe. Prótese quase supérflua porque não me serve para ver o essencial. Que está dentro de mim. Tudo o resto é puro pretexto e, portanto, só serve para ser visto de través. Os meus óculos são mais um muro do que uma prótese para ver o mundo. Quando falo para o mundo as palavras fazem sempre eco no muro e saem fazendo ricochete nele.

METAMORFOSE

“QUE OS TEUS ACTOS sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação” – é isso que sentes, ó rosto acastanhado, quando falas da vida? É isso, renúncia, indiferença e negação? Tudo pela negativa? A vida é só metamorfose espiritual? É metempsicose? Com a fixidez desse teu olhar escondido atrás dos óculos metabolizas e suspendes a vida, para a viveres interiormente de forma mais intensa? Está atento, que a vida ainda pode atropelar-te.

QUESTÃO DE LUZ

“UM AMARELO DE CALOR estagnou no verde preto das árvores”, dizes tu, com esse ar sisudo, de caso. Mas foi por baixo que estagnou. Sim, no teu rosto, quase te queimando para a vida. Estagnou em ti porque estavas sob esta copa pouco frondosa, mas suficiente, que é esse teu chapéu amarelo. Mas, mesmo assim, o teu rosto pintou-se de castanho, marca da passagem tangencial do sol por ele. Sim, sim, o castanho está perto de ti porque não é humanamente real e faz de ti um ser livre e solar. Foi o sol que te queimou a alma e te pôs castanho por fora. Questão de luz, meu caro. Sobrou-te o espírito, eu sei, e só com ele te debruças sobre o mundo. Sem alma ou com ela queimada, de tanto sol cair sobre ti. Queima-se a alma, liberta-se o espírito. Parece-te sensato? Não, não parece, mas não posso esquecer que tu és um insurgente existencial.

EM SUMA

ACHO, POIS, que te chamas mesmo Bernardo Soares e que gostarias de ter jeito para a poesia. Até porque o que tu vês é o mesmo mundo que vêem os poetas. Foi por isso que o teu pai te arranjou tantos irmãos poetas, sabendo muito bem que a poesia não é para todos. Sobretudo para os que fecham as portas ao real e ao embate da paixão. Às fraquezas da alma. Claro, a poesia está perto demais do sentimento, da emoção, da vida e correrias o risco de te deixares ir na onda da sua perigosa e lamentável fugacidade. Seres como os outros na sua triste corporeidade, sujeita à prisão do banal e corruptível sentimento. Oh, isso é que não. E o castanho ajuda à renúncia, pois ajuda. Logo, ajuda a procurar a beleza intemporal, a que não é corruptível, biodegradável. Castanho não é azul nem vermelho. Um é etéreo demais e o outro é demasiado emocional. Por isso, é melhor conservares-te assim e não saíres de ti a não ser o estritamente necessário, só para espreitares, de esguelha, a realidade. De qualquer modo, esse pouco de vida de que precisas estará sempre lá, não desaparece. E assim ainda serás maior (por dentro) do que o tamanho do que vês (por fora), se é que vês mesmo. Porque vês com os teus sentidos interiores, apesar do sinal enganador desses teus óculos aparentemente tão comprometedores e instrumentos de uma certa observação do exterior. Olha, se te deixasses ir um pouco até à vida achas que te tornarias banal? Ao menos toca-a com a ponta dos dedos e, se for o caso, depois desinfecta-a com palavras um pouco mais fortes ou até mesmo mais ácidas. Ah, bem sei. Não tens jeito para a poesia e achas que só ela é que te poderia salvar em caso de perigo, em caso de contágio. Mas tenta, meu caro, tenta, não sabes quanta metafísica pode haver na ponta dos dedos quando eles folheiam o real, sobretudo num poema, e o poder que têm de te resgatar dos fracassos da vida. Tens tanta poesia lá em casa! E da boa! Bom, mas não te quero convencer porque, como dizia o outro, o acto de convencer alguém é pura violência, é tentativa ilegítima de lhe colonizar a alma, de impor superioridade espiritual. E eu, que sou poeta, prezo muito a liberdade, a minha e a dos outros. E, portanto, também a tua.

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Poesia-Pintura

AUSÊNCIA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Silêncio”.
Original de minha autoria.
Junho de 2021.
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“Silêncio”. Jas. 06-2021.

POEMA – “AUSÊNCIA”

SINTO A TUA FALTA,
Ah, eu sinto,
Por isso canto e danço
Até cair exausto
No palco
De um poema.

SINTO O TEU SILÊNCIO,
Que já nem
Murmúrio é,
Um vazio cá
No fundo
De que o canto
É o eco
E sofrido
Contraponto.

RECORDO,
Mas já não sinto,
O veludo
Da tua pele
E, por isso,
Eu a pinto
Numa folha
De papel.

EU NÃO OUÇO
A tua melodia.
Caio, pois,
Sempre em silêncio
Para melhor
Te sentir
Cá dentro
Da fantasia.

FAZ-ME FALTA
A tua voz,
Faz-me falta
O teu sorriso
E como já nem
Me pintas
O nome
Eu canto-te
No meu poema
Pra que te possa
Inventar.

DA TUA FALTA
Nasceu em mim
Uma orquestra
Para uma
Sinfonia,
Contraponto
Do silêncio
Que teimas
Em desenhar
Como tua melodia.

NA TUA AUSÊNCIA
Eu vejo corpos
Que dançam
Abraçados
Ao sabor da
Fantasia
Em andamentos
Sem fim,
Vejo luzes,
Vejo cores,
Sinto aromas
De mil flores
Que me fazem
 Companhia
Neste palco
De um poema
Inacabado
Porque lhe falta
Alegria.

TU FALTAS-ME
E eu revivo-te
No canto e
Na cor,
Na dança
E no amor...
............
Em poesia.
São palavras
Que lanço
Ao vento,
Construindo
As pontes
Invisíveis
Desta minha
Utopia.

TUDO RECRIO
Pra te reencontrar
À distância
De um poema,
Cantar-te,
Dançar
Com as palavras,
Dizer-te
Em surdina
Para melhor
Ouvir
O que nunca
Me dirás.

VISITO-TE, ASSIM,
Das mil maneiras
Com que te
Procuro
E te digo,
Encerrado
Nesta torre
De marfim,
Numa teia
Enredado
Pra melhor
Te reviver
Com a leveza
Da arte
Cá bem mais
Dentro de mim.

JAS_4Deusa2021PubLUZRec

Pintura

ARTE AO VIVO – 5

No meu Jardim Encantado
“Pasárgada”, 2021

Partilho a imagem de mais um quadro já pronto para a Exposição em preparação, 108×138, em papel de algodão Hahnemuhle e com vidro de museu (70%). Este quadro pode ser adquirido, mediante comunicação de eventual interesse via E-mail, WhatsApp ou Messenger.

JAS – “PASÁRGADA”, 2021

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JAS – “PASÁRGADA”, 2021

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Artigo

O MUNDO COMO GALERIA DE ARTE

Por João de Almeida Santos

JAS_2906Desassossego2021

“Desassossego”. Jas. 06-2021

ESTA FIGURA parece ser, pelo menos por fora, a de um conhecido desassossegado. Estes óculos exprimem toda uma filosofia, toda uma visão do mundo. Óculos a mais para rosto a menos. Eles, apesar de tudo, reflectem um certo verdor com que o mundo se exprime. Mas um verdor mais verde do que o verde deste mundo. Ah, sim, o verdor espiritual, o que é pintado com palavras. Bem poderia ser, pois, o indivíduo que leva sempre a renúncia a peito e que se identifica com um tal Bernardo Soares. Sim, esse, o do desassossego. Um tipo muito cerebral. Talvez até demais. Personagem estranho e pouco dado às cedências da vida vivida, que não à vida pintada com palavras, seja de que forma for. O tal que, estranhamente, não se ajeita com a poesia. O que é estranho, porque filho de peixe deveria saber nadar. Ou que nem sequer se ajeita com a vida, o que já seria mais natural. Há por aí tantos que não se ajeitam com ela (mas não sabem)! Um indivíduo, este, que tem o espírito e a alma franzidos pela aspereza e pela contingência do existir. E que o levam a reiterar teimosamente a sua militante dissidência. A sua dissidência estética da vida. À sua maneira, um insurgente existencial que tem como única arma de combate a palavra. Ele move-se a partir da superfície plana da existência (é assim que a assume) para dentro, fala de si para si e o seu olhar é como que devolvido pelos óculos, que se lhe colam ao rosto como sua pele. Óculos como espelho da alma mais do que espelho do mundo, trabalhados a cinzel como se quer a um filósofo que goste de poesia, embora não se ajeite com ela. Como se o meio fosse a mensagem – uma mensagem “ocular”, com uma estranha cor, a dos óculos, que lhe devolve um real já pré-representado por si. Os óculos como terminal de um cérebro autocentrado. Digamos a verdade: não há existência tão verde como o verde que se reflecte nos seus óculos. Talvez nem sequer haja existências verdes, mas somente existências com algum verdor. E talvez nem sequer a sua alma reflicta tanto verdor. Eles, os óculos, na verdade, são mais um espelho do espírito do que da alma. Nem espelho do mundo nem da alma, mas do espírito.  É este, o espírito, que pinta o verdor com palavras. Afinal, alma e espírito não são a mesma coisa, pois este é culto e aquela, a alma, pode não ser. Falo no plano transcendental, claro, embora um espírito que não seja culto é mais alma do que espírito. A alma não tem de ser culta. A alma sente e o espírito pensa. Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz… e doloroso. O amor é mais da ordem da alma do que da do espírito. É por isso que se diz “dor de alma” e não “dor de espírito”. E, por isso, o espírito, é perigoso para o amor. E ele, o Bernardo, afinal, vê sempre o amor com o filtro espiritual dos seus óculos. E desenha-o com palavras, isto é, neutraliza-o ou, pelo menos, relativiza-o. Ou seja, anula-o, porque o amor tem de ser incondicionado, não pode ficar engavetado em palavras.

HOMEM COLORIDO, 
MAS CINZENTO NA ALMA

Pois, com estas cores que o tornam aparentemente mais irreal e, por isso, mais perdurável, é mesmo ele, o homem da renúncia, o que nunca se deixa ir para não se perder, ao sair de si, o que quer perdurar… à força de sentimentos desvitalizados e transfigurados. O que olha – o olhar deveria ser tudo – para a vida como para uma galeria de arte. Aquele que olha para um rosto como se fosse uma fotografia pendurada numa parede. E que não toca nele sequer com a ponta dos dedos. Tudo parece ser, para ele, um pretexto para redesenhar o mundo no seu estirador mental. Como fazem os melancólicos profundos quando se sentem impotentes para o mudar. Desenham-no com as cores da utopia. Sim, sim, apesar de eu ter dúvidas de que o Bernardo alguma vez tenha querido mudá-lo na sua mundana escala. Ele não se mistura com essa irrelevância da vida vivida. Porque ela é banal, andam por lá todos…

Na verdade, este homem colorido tem o corpo confundido mais com o espírito do que com a alma. Só se lhe vê a parte de cima, o sítio onde está o espírito, de propósito, o que não aconteceria se tivesse jeito para a poesia e andasse por aí aos trambolhões, dorido de alma. Neste caso, haveria de se lhe ver o peito. Mas não, porque também tem a alma confundida com o espírito, numa progressiva redução de planos, ou camadas. Ele, afinal, é um desdobramento do seu artífice, esse espírito voraz, capaz de (in)digerir o mundo. Uma bela operação, diga-se. As palavras viram-se para dentro dele, dobradas sobre si, e o bigode (que está lá, mas não se vê) é a porta fechada da sua fala. Uma fala espiritual. Resistente e fechada, à força, não vá a tentação abri-la e deixar escapar um reles sentimento carnal ou uma comprometida e ridícula declaração de amor. Não. Para renunciar é preciso força de vontade e alguma crispação. Lábios apertados até se anularem na superfície lisa do rosto. A boca, tal como os olhos com os óculos, está protegida pelo bigode e pelos lábios apertados. O bigode é o arame farpado que lhe protege a alma tal como os óculos são o muro que o protege das vulgares insídias do real, do canto das sereias. Que mais se poderia imaginar senão isto, quando olhamos para os seus óculos e para esse chapéu amarelo de tanto sol apanhar? A verdade é que o espírito, mais do que a alma, precisa de sol, mas que não seja em demasia, para não o encandear ou mesmo incendiar.

INDIFERENÇA SENTIMENTAL

“INDIFERENÇA SENTIMENTAL” – dizes. Essa eu até a reconverto em palavras ao rubro com a alma aos pulos, livremente, à minha vontade e até contra mim e tudo o que eu próprio planeei para ser eventualmente feliz. Ah, como é bela a indiferença, se for minha e a puder converter em autêntica diferença. Ser indiferente de forma original é cultivar a diferença e afirmá-la perante iguais. Até a gravata me torna mais encrespado com o exterior de mim. Agarra-me pelo colarinho e não me deixa ir. Sou livre à força… quase à forca. Morrendo para fora à medida que vivo para dentro… de mim. E, depois destes óculos me terem protegido quando “uma rajada baça de sol turvo (quase) queimou nos meus olhos a sensação física de olhar”, passei a olhar quase só para dentro, olhando de través para fora, sem tirar os óculos… Hum, só o suficiente. Minimalismo visual, diria. Cedendo apenas um pouco à exigência desse objecto que tenho no meu rosto acastanhado e a que chamam “óculos”. Nome tão estranho como o de “olho”… esse nome que tem essa sonoridade seca que tristemente exibe. Prótese quase supérflua porque não me serve para ver o essencial. Que está dentro de mim. Tudo o resto é puro pretexto e, portanto, só serve para ser visto de través. Os meus óculos são mais um muro do que uma prótese para ver o mundo. Quando falo para o mundo as palavras fazem sempre eco no muro e saem fazendo ricochete nele.

METAMORFOSE

“QUE OS TEUS ACTOS sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação” – é isso que sentes, ó rosto acastanhado, quando falas da vida? É isso, renúncia, indiferença e negação? Tudo pela negativa? A vida é só metamorfose espiritual? É metempsicose? Com a fixidez desse teu olhar escondido atrás dos óculos metabolizas e suspendes a vida, para a viveres interiormente de forma mais intensa? Está atento, que a vida ainda pode atropelar-te.

QUESTÃO DE LUZ

“UM AMARELO DE CALOR estagnou no verde preto das árvores”, dizes tu, com esse ar sisudo, de caso. Mas foi por baixo que estagnou… sim, no teu rosto, quase te queimando para a vida. Estagnou em ti porque estavas sob esta copa pouco frondosa, mas suficiente, que é esse teu chapéu amarelo. Mas, mesmo assim, o teu rosto pintou-se de castanho, marca da passagem tangencial do sol por ele. Sim, sim, o castanho está perto de ti porque não é humanamente real e faz de ti um ser livre e solar. Foi o sol que te queimou a alma e te pôs castanho por fora. Questão de luz, meu caro. Sobrou-te o espírito, eu sei, e só com ele te debruças sobre o mundo. Sem alma ou com ela queimada, de tanto sol cair sobre ti. Queima-se a alma, liberta-se o espírito. Parece-te sensato? Não, não parece, mas não posso esquecer que tu és um insurgente existencial.

EM SUMA

ACHO, POIS, que te chamas mesmo Bernardo Soares e que gostarias de ter jeito para a poesia. Até porque o que tu vês é o mesmo mundo que vêem os poetas. Foi por isso que o teu pai te arranjou tantos irmãos poetas, sabendo muito bem que a poesia não é para todos. Sobretudo para os que fecham as portas ao real e ao embate da paixão. Às fraquezas da alma. Claro, a poesia está perto demais do sentimento, da emoção, da vida e correrias o risco de te deixares ir na onda da sua perigosa e lamentável fugacidade. Seres como os outros na sua triste corporeidade sujeita à prisão do banal e corruptível sentimento. Oh, isso é que não. E o castanho ajuda à renúncia, pois ajuda. Logo, ajuda a procurar a beleza intemporal, a que não é corruptível, biodegradável. Castanho não é azul nem vermelho. Um é etéreo demais e o outro é demasiado emocional. Por isso, é melhor conservares-te assim e não saíres de ti a não ser o estritamente necessário, só para espreitares, de esguelha, a realidade. De qualquer modo, esse pouco de vida de que precisas estará sempre lá, não desaparece. E assim ainda serás maior (por dentro) do que o tamanho do que vês (por fora), se é que vês mesmo. Porque vês com os teus sentidos interiores, apesar do sinal enganador desses teus óculos aparentemente tão comprometedores e instrumentos de observação do exterior. Olha, se te deixasses ir um pouco até à vida achas que te tornarias banal? Ao menos toca-a com a ponta dos dedos e, se for o caso, depois desinfecta-a com palavras um pouco mais fortes ou até mesmo mais ácidas. Ah, bem sei! Não tens jeito para a poesia e achas que só ela é que te poderia salvar em caso de perigo, em caso de contágio. Mas tenta, meu caro, tenta, não sabes quanta metafísica pode haver na ponta dos dedos quando eles folheiam o real, sobretudo num poema, e o poder que têm de te resgatar dos fracassos da vida. Tens tanta poesia lá em casa! E da boa! Bom, mas não te quero convencer porque, como dizia o outro, o acto de convencer alguém é pura violência, é tentativa ilegítima de lhe colonizar a alma, de impor superioridade espiritual. E eu, que sou poeta, prezo muito a liberdade, a minha e a dos outros. E, portanto, também a tua.

JAS_2906Desassossego2021Rec

AS CATEGORIAS DA ARTE EM ITALO CALVINO

Por João de Almeida Santos

JAS_O Baile18112021

“S/Título”. Jas. 06-2021.

«CEUX qui sont accoutumés à juger 
par le sentiment ne comprennent 
rien aux choses de raisonnement, 
car ils veulent d’abord pénétrer 
d’une vue et ne sont point accoutumés 
à chercer les principes. Et les 
autres, au contraire, qui sont 
accoutumés à raisonner par principes, 
ne comprennet rien aux choses de 
sentiment, y cherchant des principes 
et ne pouvant voir d’une vue” ».

Pascal, Pensées, I. 3. 

ITALO CALVINO (1923-1985) fora convidado em 1984 a fazer um ciclo de conferências na Universidade de Harvard, as famosas «Charles Eliot Norton Poetry Lectures». Da preparação destas conferências resultou um livro, póstumo, que, sob a responsabilidade de sua mulher, Esther Calvino, foi publicado pela Garzanti, em 1988, com o título de «Lezioni Americane. Sei proposte per il prossimo millennio» – «Six memos for the next millennium» (Milano, Garzanti, 1988). Do livro constam cinco reflexões sobre os valores ou as categorias essenciais da literatura a salvaguardar para o milénio que já se iniciou há duas décadas: «leveza» (leggerezza; lightness), «rapidez» (rapidità; quickness), «exactidão» (esattezza; exactitude), «visibilidade» (visibilità; visibility), «multiplicidade» (molteplicità; multiplicity). A sexta seria a categoria da «consistência» (consistency) e referir-se-ia a Bartleby, de Melville.

São as categorias da arte com as quais o criador tem sempre de se confrontar, pois, como queria Pascal, a sensibilidade tem o seu próprio modo de relacionamento com o real, em particular no plano cognitivo. A arte fala do real e para o real, mas à sua maneira, com as suas categorias e a sua especial abertura ao mundo. Vejamos o que diz o autor de “Le Città Invisibili”.

 VISIBILIDADE

«Stiamo correndo il rischio 
di perdere una facoltà umana 
fondamentale»: «pensare per 
immagini».

Ponto de partida de Calvino é a questão do destino da literatura e dos seus valores fundamentais perante a emergência daquela civilização que é conhecida como civilização da imagem. O perigo, para ele, reside na perda de uma «faculdade humana fundamental», a de «pensar por imagens», perante o colossal dilúvio de imagens prefabricadas, produzidas por essa tão moderna quão sufocante «civilização da imagem», por uma incessante produção industrial de imagens para rápido consumo de massas.  Pelo contrário, “pensar por imagens” significa precisamente construí-las, significa activismo mental, activismo da imaginação, da fantasia. “Antigamente”, diz Calvino, “a memória visiva de um indivíduo estava limitada ao património das suas experiências directas e a um reduzido repertório de imagens reflectidas pela cultura: a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo como os fragmentos desta memória se combinavam entre eles em aproximações inesperadas e sugestivas» (Calvino, 1988: 91). Trabalho artesanal do criador em ambiente de escassez de imagens. Esta escassez aguçava o engenho mental que as reconstruía auxiliado por um património cultural também ele escasso e de limitado e difícil acesso. Hoje, o perigo reside na impossibilidade de continuar a poder «evocar imagens em ausência». Porque são elas a atropelar a nossa imaginação, de tão abundantes e acessíveis serem. Trata-se, pois, de defender a centralidade do valor da visibilidade, a genuinidade do «cinema mental» da nossa imaginação (1988: 83), contra essa «chuva ininterrupta de imagens» com que os mais potentes media inundam o mundo e o multiplicam através de um fantasmagórico jogo de espelhos (1988: 58), quase ao limite da violência simbólica. Trata-se, em suma, de salvaguardar essa capacidade de pensar por imagens e de pensar imagens, de evocar imagens em ausência e de as suscitar através da linguagem discursiva, num complexo processo de recriação. Pelo que a máxima é a do Dante da Divina Comédia: «poi piovve dentro a l’alta fantasia» (Alighieri, D., Tutte le Opere, Milano, Mursia, 1969, p. 181) e não a de uma videocracia em expansão universal: chove fantasia prefabricada, confeccionada em enlatados audiovisuais ao alcance de todos e de cada um. A imaginação literária é, bem pelo contrário, mais complexa e reflexiva, já que para a sua formação concorrem diversos e sofisticados elementos ou mecanismos que interagem criativamente com o mundo: a observação directa e partilhada do mundo real, o processo de abstracção, condensação e interiorização da experiência (de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento), o mundo figurativo transmitido pela cultura nos seus vários planos, a transfiguração fantasmática e onírica (Calvino, 1988: 94). Numa palavra, o confronto directo com a realidade, sem a mediação selectiva a acabada das centrais de informação. Calvino repristina o valor da experiência directa, da mediação selectiva e da recriação através de um processo que reactiva a imaginação e a sua composição discursiva.

 LEVEZA

«La mia operazione è stata 
il più delle volte una 
sottrazione di peso».

É claro que a visibilidade, no complexo processo discursivo de reconstrução da essencialidade do mundo da vida, está ligada por um fio directo a esse outro valor da leveza, aquela mesma que se tornava possível a Perseu pela visão indirecta, através do espelho de Atena, da cabeça petrificante da Górgone, da Medusa ou, se quisermos, desse fardo pesado que uma visão imediata, não mediada pela reflexão, das coisas, dos eventos, do mundo da vida arrasta necessariamente consigo. Recuperação da visibilidade, sim, mas com o filtro selectivo do pensamento e da imaginação. Ora a operação literária de Calvino consiste precisamente nisso: na subtracção de peso à opacidade do que se insinua imediatamente disponível, inerte e pesado num mundo condenado à petrificação, justamente por esse domínio do imediato, como a visão directa da cabeça da Medusa. A superação desta visão imediata é já por si mesma um acto de liberdade e, por isso, uma subtracção de peso à existência, uma oposição ao «inelutável peso do viver». Não residia a força de Perseu na sua recusa da visão directa? De que lhe serviriam as sandálias aladas se alguma vez olhasse directamente a cabeça da Medusa que sempre trazia consigo? A dádiva de Atena, deusa da sabedoria e da inteligência, o espelho, permite-lhe subtrair-se a essa visão directa petrificadora, portadora de peso, de opacidade, de inércia, afinal, características de um mundo que se oferece à visão ingénua e passiva do observador. Porquê Athena? Precisamente porque é a deusa da arte e da sabedoria. E porque o seu espelho é a cultura e a reflexão. O imediatamente acessível constringe e, por isso, acresce peso ao viver. Há, pois, que olhar para o mundo de forma indirecta, mediada, para aceder à sua dimensão mais essencial, como, afinal, faz a própria ciência: «hoje, cada ramo da ciência parece querer demonstrar que o mundo se funda sobre entidades subtilíssimas: como as mensagens do ADN, os impulsos dos neurónios, os quarks, os neutrinos vagantes no espaço desde o início dos tempos»; depois, a informática, o software, os bits sem peso de um fluxo de informação que corre em circuitos sob forma de impulsos electrónicos. O ideal estético da leveza parece, pois, encontrar um autêntico suporte científico e ontológico capaz de confirmar a sua essencialidade. E não só na era pós-industrial ou pós-moderna. Mesmo nas suas origens mais remotas, como no tempo de Lucrécio ou de Ovídio, a leveza era um modo poético e escrito de ver o mundo que se fundava quer na filosofia quer na ciência. Lucrécio (De rerum natura), em Epicuro. Ovídio, em Pitágoras (1988: 9-12). A leveza possui, pois, uma dimensão mais profunda do que o simples estilo narrativo, a textura verbal ou a pregnância das imagens figurativas. Possui uma dimensão ontológica onde se apoia mais profundamente esse «dispositivo antropológico que a literatura tende a perpetuar»: o nexo, qual constante antropológica, entre levitação desejada e privação sofrida (1988: 28). Daqui a «função existencial» da literatura: «a procura da leveza como reacção ao peso do viver», como na tristeza que se transforma em melancolia ou no cómico que se torna humour, quando se dissolvem os últimos resíduos da opacidade corpórea (1988: 21). Na dança, esta categoria é absolutamente decisiva, sendo até um dos passos da dança clássica designado por “Ballon”, suspensão no ar do bailarino, contrariando decisivamente a lei da gravidade dos corpos.

 RAPIDEZ

«Il discorrere è come il correre 
e non come il portare» (Galileu).

Valor gémeo da leveza é a rapidez. Ambas coexistem num Perseu de pés alados como um dos seus dois deuses protectores, Hermes (e Atena). Hermes-Mercúrio é, aliás, o patrono de Calvino: «Mercúrio, com as asas nos pés, leve e aéreo, hábil e ágil, versátil e desembaraçado, estabelece as relações dos deuses entre si e com os homens, entre as leis universais e os casos individuais, entre as forças da natureza e as formas da cultura, entre todos os objectos do mundo e todos os sujeitos pensantes. Que melhor patrono poderia escolher para a minha proposta de literatura?», conclui Calvino (1988: 50‑51). Como se compreende, a rapidez de Hermes-Mercúrio serve à leveza do discurso, porquanto exerce a função mediadora entre o universal e o individual sem acréscimo de meios, de modo instantâneo. «O meu trabalho de escritor, diz Calvino, foi orientado, desde o início, a seguir o fulmíneo percurso dos circuitos mentais que capturam e ligam pontos longínquos do espaço e do tempo» (1988: 47). O carácter fulmíneo, instantâneo, «sem passagens» de um circuito mental é, de facto, atributo divino. E não só do deus da mitologia greco-latina Hermes-Mercúrio. O raciocínio instantâneo é também, para o copernicano Salviati, no galileiano Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (1632), próprio da mente divina. De qualquer modo, a rapidez é, em Galileu (1564-1642), essencialmente um valor anti-académico-metafísico representado, sobretudo, por um Sagredo antiptolemaico e de «velocíssimo discurso». “Il discorrere”, diz Galileu em Il Saggiatore (1623), “è come il correre, e non come il portare». Correr sem pesos que acentuem a gravidade dos corpos. Rapidez, todavia, não se identifica com visão imediata, que é fonte de peso e opacidade, mas com processo lógico relacional que estabelece conexões essenciais entre elementos diversamente colocados no espaço e no tempo. Rapidez significa aceleração do tempo e das suas conexões. Tal como o discurso científico, mas com aspiração ao carácter absoluto e instantâneo da mente divina. E, depois, a rapidez não é modelada exclusivamente segundo os processos relacionais e dedutivos da ciência moderna e a dimensão fulmínea da mente divina. Ela não é só processual, mas também, como dizer, comportamental: «as fadas são muito rápidas nas suas tarefas»; e ôntica (ou mesmo ontológica): «a rapidez da sucessão dos factos dá uma sensação de inelutabilidade» (1988: 35).

A rapidez de que fala Calvino envolve duas ordens da narrativa: a ordem processual, no plano da captação discursiva da essencialidade das relações ‑ e nisto cruza-se com o valor da exactidão ‑ que alimentam a narrativa; a ordem da realidade, ôntica e ontológica, no plano do conteúdo, do evento propriamente dito, do «objecto» descrito. E aqui toca-se a essência dual deste valor: «o tema que aqui nos interessa”, diz Calvino, “não é a velocidade física, mas a relação entre velocidade física e velocidade mental» (1988: 42), ou seja, a relação entre o tempo do evento ou do objecto narrado e o tempo processual ou narrativo, ou, com Galileu, a relação entre o correr e o discorrer.

 MULTIPLICIDADE

«Quella che prende forma 
nei grandi romanzi del XX 
secolo è l’idea d’una 
enciclopedia aperta».

Que esta relação seja determinante na concepção de Calvino está a prová-lo o conceito interactivo da relação palavra-mundo: «seguimento perpétuo das coisas, adequação à sua variedade infinita» (1988: 28). Deste conceito resulta um outro valor essencial para o próximo milénio: o da multiplicidade. Um valor que está mais do lado da sensibilidade, da irracionalidade, do caos, da complexidade irredutível do mundo da vida, da diferença, das várias ordens do saber e dos vários códigos a que a literatura dará unidade «numa visão multíplice e facetada do mundo», em particular agora que «a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam sectoriais e especialísticas». Um valor que, de algum modo, sirva de contraponto à tendência homológica dos outros valores e introduza na obra de arte a diferença não só sensível, mas também lógica e, assim, evite a irrupção da unilateralidade narrativa, estilística e interpretativa. Calvino fala dos grandes romances do séc. XX ‑ A Montanha Mágica, de 1924, de Thomas Mann, considerada, não sem razão, «a mais completa introdução à cultura do nosso século» (1988: 113) ‑ como de enciclopédias abertas, múltiplas em métodos interpretativos, modos de pensar, estilos de expressão e animadas por uma força centrífuga interna que garante a sua irredutibilidade a um só centro e a uma potencial unilateralidade interpretativa. Mas já mesmo antes deste século era visível a vocação enciclopédica da literatura: Goethe (1749-1832) queria escrever um «romance sobre o universo»; Novalis (1772-1801) um «livro absoluto»; Alexander von Humboldt (1769-1859) escreveu «Kosmos» (4 vols., 1845-1858); Mallarmé (1842-1898) preparava «um livro absoluto como fim último do universo»; Flaubert (1821-1880), que queria escrever «un livre sur rien», afinal, acabou por escrever o «romance mais enciclopédico que jamais foi escrito», Bouvard et Pécuchet (publicado em 1881).

«O conhecimento como multiplicidade» diz Calvino, «é o fio que liga as obras maiores, tanto do que chamamos modernismo quanto do que chamamos postmodern, um fio que (…) gostaria que continuasse a desenvolver-se no próximo milénio» ( 1988: 113). Ou seja, a literatura procura incansavelmente traduzir o sincretismo do mundo da vida e a sua riqueza multifacetada. A arte tem uma vocação sincrética e não se compadece com visões especializadas do mundo da vida. E tem porque procura sempre desenhar e aceder aos nexos essenciais da existência, aqueles que são transversais ao ser humano na expressão sua humanidade.

EXACTIDÃO

«Il cristallo, con la sua 
esatta sfaccettatura e la 
sua capacità di rifrangere 
la luce, è il modello di 
perfezione che ho sempre 
tenuto come un emblema».

A multiplicidade temática, de estilo, interpretativa, a força centrífuga que anima o grande romance moderno ou pós-moderno não seriam, todavia, esteticamente realizáveis se não se conservasse um outro valor-guia fundamental: a exactidão. Valor tanto mais precioso quanto maior for a «perda de forma» que se constatar na vida. Esta exactidão literária, sob o pressuposto do valor estrutural da multiplicidade e da diferença, e precisamente por isso, define como normas imperativas: a) «um desenho bem definido e bem calculado da obra»; b) a precisão da linguagem como léxico e como realização das «nuances» do pensamento e da imaginação; c) «a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis», numa palavra, icásticas (1988: 57). Mesmo onde o tema, o objecto, seja o subtil sentimento do indefinido, do indeterminado, do vago, portanto, onde parece ser regra uma intencional indefinição ou indeterminação da linguagem, é precisamente aí que a exactidão se torna imperativa: «o poeta do vago só pode ser o poeta da precisão» (1988: 61). Da precisão como, por exemplo, Jorge Luís Borges: exacto na imaginação e na linguagem segundo a rigorosa geometria do cristal e a abstracção de um raciocínio dedutivo (1988: 115); ou como Georges Perec, para quem «a exactidão terminológica era a sua forma de posse» (1988: 119). De posse, obviamente não proprietária, mas originária e criativa, enquanto essa posse é vista não como apropriação, mas como descoberta, e não física, mas mental, precisamente no sentido em que «a palavra liga o indício visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte de acaso lançada sobre o vazio» (1988: 74). A aproximação simbólica é, assim, tanto mais forte ou significativa quanto mais exacto for o registo. Por isso mesmo, é a exactidão que melhor pode dar o sentido de uma forte presença do criador no mundo da vida, se essa exactidão estiver ao serviço da ordem multíplice do mundo da fantasia e da agilidade do «poeta-filósofo que se eleva sobre o peso do mundo, demonstrando que a sua gravidade contém o segredo da leveza» (1988: 13).

ESTAS SERIAM AS PALAVRAS QUE CALVINO escolheria se devesse formular um «símbolo augural» para o novo milénio que já começou. E, como se vê, nele teria um posto central a «leveza», qual valor libertador do peso, do ruído, da rispidez e rugosidade dos corpos opacos e dos resíduos «enferrujados» de uma civilização do consumo prisioneira do círculo vicioso e sedutor do imediato. A defesa deste e dos outros valores não implica, para Calvino, uma real desvalorização dos seus opostos. É, simplesmente, uma escolha claramente assumida e formulada. De resto, nesta escolha Calvino não está só. E não apenas na literatura, se é verdade que um dos mais famosos arquitectos italianos, Renzo Piano, o arquitecto do Beaubourg, dos espaços arquitectónicos da música de Luigi Nono e do fabuloso projecto do aeroporto insular de Osaka, põe no centro do seu conceito de arquitectura precisamente esse conceito calviniano de leveza, daquela leveza das suas «città invisibili», não só pela compreensível razão da funcionalidade ou pelas ilimitadas potencialidades do software, mas também, ou sobretudo, pelo valor estético intrínseco do conceito, no exacto sentido em que Calvino o definiu. @Jas2021

JAS_O Baile18112021REC

“S/Título”. Detalhe.

Poesia-Pintura

NA BRUMA DA MEMÓRIA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Magia”.
Original de minha autoria.
Junho de 2021.
MagiaFinal2021Ret

“Magia”. Jas. 06-2021.

POEMA – “NA BRUMA DA MEMÓRIA”

QUERIA LEVAR-TE
Uma rosa
Branca
Aos sete céus
Do meu afecto,
Desci fundo
Na memória
Onde ainda te
Guardava
Como se fosse
Teu tecto.

PROCUREI-TE
Na bruma
Espessa
Que caía
Sobre mim
E quase não te
Encontrei,
O tempo gastara
O passado,
Ficou uma saudade
Sem fim.

PERDERA-TE
O rasto
E o perfil,
Até teu nome
Perdeu cor,
Teu olhar
Luzia
Intermitente
Numa neblina
De dor.

NO MEIO DA NEBLINA
Esfumava-se
O teu rosto
De tanto eu
Te perder,
Era incerto
O cintilar
De teus olhos
Na vontade
De te ver.

ERAS BRUMA
Indefinida
Nos céus onde
Te quis encontrar,
Mas sobraste
Como imagem...
..............
A que eu soube
Desenhar.

PERDI-TE A VOZ
E a tua
Melodia,
Quase tudo,
Meu amor...
...............
Ah, mas, no fim,
Não te perdia...
Ficou-me de ti
O sabor.

PORQUE JÁ ERAS
Imagem
Que me sobrou
Desse afecto
Que por ti
Sempre senti,
Construção
De arquitecto
Para nunca
Te perder
Desde o dia
Em que te vi.

E VOLTEI.
(Eu volto sempre).
É desejo
De te ver,
Dar-te corpo
Nas palavras
Com que te quero
Dizer
Ainda que
Do poema
E dos céus
Do meu afecto
Acabe por
Te perder.

AGORA, DESENHO-TE
Com palavras e
Com cores,
Com paisagens
Que tenho dentro
De mim,
Com rostos,
Com aromas
E flores
Deste bendito
Jardim,
Um passeio
Com pavões,
Uma delicada
Utopia,
Gritos de alma,
Emoções...
................
Pra te recriar
Com magia
E contigo
Caminhar
No alto
Da fantasia,
Onde vive
Essa imagem
Que desejo
Encontrar.

VOO, POIS,
Com uma rosa,
Vestido como
Arcanjo,
Pra te ver
Ali ao perto,
Olhos negros,
Cintilantes,
Mas um pouco fugidios
Ao jogo da sedução
Numa noite
De luar...
............
Ou talvez
De perdição.

É UMA ROSA
De brancura
Transparente
Pra que sintas
Lá bem alto
O aroma
Desta minha fantasia.
Talvez assim
Te encontre
Envolta na neblina
Que nunca se dissipou
(Mas agora cristalina)
Desde aquele
Incerto dia
Em que o nosso
Olhar se cruzou.
MagiaFinal2021Ret_REC

“Magia”. Detalhe.

Pintura

ARTE AO VIVO – 4

NO MEU JARDIM ENCANTADO

Partilho a imagem de mais um  Quadro, dimensão 66×83, já pronto para a Exposição em preparação, em papel de algodão Hahnemuhle e vidro de museu (70%). Este quadro pode ser adquirido, mediante manifestação de interesse via E-mail, WhatsApp ou Messenger.

Título da Obra - “MARÇO” (2021)

Março2021

Março1 copiar

Poesia-Pintura

ELAS FOGEM, AS PALAVRAS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Letras”.
Original de minha autoria.
Junho de 2021.

Jas_Novo_Palavras0308

“Letras”. Jas. 06-2021.

POEMA – “ELAS FOGEM, AS PALAVRAS”

QUERIA FAZER-TE
Um poema,
Ser feliz,
Sentir nele
A liberdade
E as palavras
Endoidaram
Quando te queria
Cantar
Invocando
A saudade.

FUGIRAM
Numa revolta
Sentida
Sem conhecer
A verdade,
Deixando-me
Só
Nesta vida,
À deriva,
Sem dó
Nem piedade.

EU ESTAVA
A MENTIR
Sem pensar
Na crueldade
De as usar
Como queria
Só porque
Tinha saudade...

ESGUEIRARAM
Rua fora,
Cada uma
Por seu lado,
Espavoridas,
Em fuga
Deste poema
Tentado.

UMAS ESVOAÇAVAM
No fio
Do horizonte,
Outras
Aninhadas
No passeio
Desta rua
E eu a tentar
O versejo
Enredado
Num enleio
Para dar vida
Ao desejo.

PALAVRAS
em correria,
Letras
Perdendo forma
Como fios
De novelo
Já desfeito
De sentido
Como a água
Do gelo.

SÃO FIOS
Emaranhados,
Letras
Que se deslaçam
E procuram
Outras formas
Para lá da minha
Rima,
Como riscos
Numa tela
A subir
Por ela acima.

QUERIA FAZER-TE
UM POEMA
Com palavras
Desenhadas,
Mas as palavras
Fugiam
E corriam
Assustadas,
Não se viam
Alinhadas
Nesse recanto
Feliz
Onde resisto
À saudade.

ELAS GOSTAM
De cantar
Quando me sentem
Em dor,
Elas gostam
De vibrar
Se me assalta
A emoção,
Mas se me vêem
Feliz
Fogem de mim,
Dizem “Não”.

O POEMA
PASSARINHO
Procura-te
Pra cantar
Mas quando
A dor esvaece
É ele que foge
A voar.

E HOJE
É mesmo assim,
Fogem todas
As palavras
Sem procurar
Um destino,
Já não consigo
Agarrá-las
Num poema
Genuíno.

NÃO SABEM
Da minha dor
E por isso
Vão embora.
Estou sem palavras,
Amor,
Estou muito triste,
Agora.

Jas_Novo_Palavras0308Recort

“Letras”. Detalhe.

PINTURA

ARTE AO VIVO – 3

NO MEU JARDIM ENCANTADO

“AZUL NO PARQUE”, 2021

Partilho a imagem de mais um quadro já pronto para a Exposição em preparação, 92×124, em papel de algodão Hahnemuhle e com vidro de museu (70%). Este quadro pode ser adquirido, mediante comunicação de eventual interesse via E-mail, WhatsApp ou Messenger.

Título da Obra: "AZUL NO PARQUE", 2021

AzulNoParque2021Jas

AzulNo Parque

Artigo

UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

Verdade e Pós-verdade

Por João de Almeida Santos

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“A Pós-Verdade”. Jas. 06-2021.

A QUESTÃO que continua em debate é, pois, a do artigo 6.º da Lei 27/2021. Sobre ela, reflecti aqui na passada Quarta-Feira: “A agorá digital e a democracia”. O que causa perplexidade é a questão da desinformação e o modo como a lei a trata. E, pelos vistos, ainda mais o modo como o PS a pretende regulamentar com um projecto de lei. Mais concretamente, como quer regulamentar esse artigo n.º 6. Em palavras simples, o que parece é que o país vai assistir à criação de comités de combate à desinformaçãoque grassa nesse lamaçal digital que é a rede, e em particular as redes sociais. Comités de fact checking(que bem que fica esta expressão num projecto de lei português), de “verificação de factos”, apoiados pelo Estado, estarão aí, à esquina de cada rede social, como autênticos caça-fantasmas (ghostbusters, já agora, para rimar com fact checking), à espera de fake news, da pós-verdade (e que bonito também chamar assim a mentira), para a denunciar e a fustigar. Assistiremos a uma verdadeira competição entre agências especializadas de combate à desinformação para ver quem caça mais fake news, mais boatos digitais. Serão criados rankings de caça-fantasmas por especialidade e, no fim, até haverá condecorações atribuídas por um eventual Ministério da Verdade, o que terá a tutela da nova realidade, com os seus sacerdotes encartados, os “novos cães de guarda” do espaço público, como lhes chama Serge Halimi, num livrinho que glosa o famoso livro de Paul Nizan, “Les chiens de garde”, neste caso, os intelectuais iluministas. Os media, esses grandes defensores da verdade, da objectividade, da imparcialidade, da neutralidade e da relevância (princípios fundamentais dos códigos éticos), em particular as televisões generalistas, e ainda mais em particular, os telejornais de prime time, serão os Grandes Verificadores, os Arqui-Inimigos da pós-verdade, os caçadores de fake news, os ghostbusters, os Sacerdores do Templo de Alêtheia, e disso serão recompensados pela sociedade e pelo poder em exercício, como, mais prosaicamente, previsto no artigo 2.º do Projecto de Lei.

“INFODEMIA”

Eu não entendo bem o que se está a passar. Mas parece-me ver que há uma santa aliança entre o poder político e os media, duas faces da mesma moeda, a do poder. Agora, o inimigo público número um é o digital, as redes sociais, esse caótico mundo livre onde prolifera a pós-verdade, o boato digital, a gritaria e onde parece estar a germinar uma nova rebelião das massas que é preciso travar. Insurgência digital – o novo inimigo externo que nos deve unir no combate. E se o antídoto se faz da mesma matéria do veneno, então que sejam os media a combater, com a arma da verdade, a desinformação, entidade fetiche que espreita em cada esquina digital.  Mas a verdade – e passe a redundância – é que tudo isto mais parece branqueamento protector dos media, das suas responsabilidades (o tabloidismo desbragado, o justicialismo electrónico, a permanente transgressão dos códigos éticos e, já agora, a crise profunda por que estão a passar), cumplicidade interesseira e disfarçada, “piscar de olho”,  com o poder político a incitá-los a controlar o inimigo público através de polígrafos a fundo perdido, passando de praticantes da liberdade a vigilantes por conta do poder e também por nossa conta e à nossa conta. Com a chancela do poder político, Portugal vai mobilizar-se contra a pós-verdade, contra a “infodemia” digital como se mobilizou contra a COVID19, onde médicos e enfermeiros serão substituídos por jornalistas, free lancers, associações e outros que tais que se associarão nessa grande cruzada contra o inimigo “infodémico”, o invasor, o trapaceiro cognitivo.

Nesta mobilização não deixarão de estar presentes os apóstolos das boas práticas, das políticas identitárias e da linguagem neutra e inclusiva. Serão aprovados institucionalmente manuais anti-infodémicos e anti-pós-verdade e serão produzidos aos milhões kits de emergência para combater o inimigo. Haverá mesmo catedrais digitais onde será celebrada missa de corpo ausente por alma dos caídos da “infodemia”.

O POLÍGRAFO E SEUS AMIGOS

E eu a julgar que só se tratava de questões de fronteira que poderiam ser tratadas politicamente entre os Estados nacionais ou as instituições europeias e as grandes plataformas através de protocolos consensualizados para travar riscos e ameaças estruturais. Bastaria, para tal, aprofundar e melhorar a experiência já existente ao nível da União. Além disso, até já existe legislação que permite às autoridades judiciárias intervirem neste campo quando se trate de matéria de natureza penal. Mas não, Portugal quer assumir-se como pioneiro no combate à “infodemia” digital, mobilizando o país contra o inimigo público numero um: a pós-verdade. Quase se poderia dizer que o país se vai mobilizar para uma guerra filosófica. Uma denodada luta pela conquista da verdade entregue aos “novos filósofos”, aos guardiões do Templo de Alêtheia. A ser assim, até já nem sei se o que estou aqui a escrever criticamente sobre esta estratégia do poder público, sobre esta política pública e sobre o bem público ”verdade” não poderá ser considerado pós-verdade a ser desmascarada, desde já, pelo polígrafo da SIC e pelo seu timoneiro, o isento jornalista Bernardo Ferrão. Fico tranquilo, porque o Polígrafo, afinal, tem temas mais elevados para tratar em defesa da cidadania. Por exemplo: “José Castelo Branco é o mandatário da Cultura do PS para a Câmara do Barreiro nas autárquicas?” (Polígrafo SIC, 31.05.2021). Ou então: “Os centros de saúde oferecem estendais a enfermeiros?” (Idem, 31.05.2021). No vasto mundo da rede, material para investigar não faltará. Mas, se faltar, criam-se factos virtuais para investigar e, depois, denunciar. Haverá sempre um Castelo Branco à esquina de cada rede social. A pergunta que surge espontânea é a seguinte: quem os verifica a eles, aos media, aos “novos filósofos”, aos apóstolos da verdade, aos inimigos jurados da pós-verdade, se é verdade (passe a cacofonia, porque é mesmo verdade) que a ERC, essa fantasmagórica entidade reguladora, não verifica nada de nada?

UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

Teremos, pois, um exército de “polígrafos” a combater a pós-verdade, os boatos digitais, as fake news para tranquilidade da cidadania, que não precisará de exercer o seu espírito crítico e selectivo na procura de informação porque tudo lhe será oferecido pelos exércitos da info-salvação nacional. Viveremos, assim, no melhor dos mundos, o mundo da verdade com selo de garantia atribuído pelo Ministério da Verdade.

Uma pergunta, para finalizar: este cidadão, que não tem de exercer a crítica, que não tem de escolher entre a verdade e a mentira (alguém o faz por ele com ajuda do Estado), que não tem de selecionar notícias credíveis, recusando e refutando as que não têm fundamento, não correrá o risco de ficar pouco atento, intelectualmente preguiçoso, para não dizer totalmente acéfalo por falta de ginástica mental e de exercício crítico? Já lhe davam manuais para saber como comportar-se no uso da linguagem e agora até já lhe oferecem verdade certificada. Um admirável mundo novo, transparente, verdadeiro e linguisticamente certificado, de onde a mentira digital será erradicada (a outra não, porque mentir, tal como errar, é próprio do homem, perdão, do ser humano). A nova democracia que nos é oferecida. Obrigado, eu dispenso a oferta.

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“A Pós-Verdade”. Detalhe.