Reflexões em torno do Belo, do Infinito e da Linha Elíptica

Por Filipa Oliveira Antunes (Ilustrações e texto) 
& João de Almeida Santos (Texto)
  1. ESTAS REFLEXÕES que aqui propomos decorrem da leitura de um livro de Johann J. Winckelmann, “O belo na arte”, e das longas conversas que tivemos acerca de uma afirmação do fundador da História da Arte (1717-1768; 1755-1768 – os anos em que viveu em Roma) que transcrevemos:
“A linha que descreve o belo é elíptica 
e nela está inscrita a simplicidade 
juntamente com uma permanente mudança. 
A linha elíptica não pode ser desenhada 
com o compasso e muda em cada ponto a 
sua direcção”[1]. 

Aqui está. Trata-se de uma observação feita num escrito de 1759: “Advertências sobre a maneira de observar as obras de arte antigas”. Na arte grega, Winckelmann encontrava a passagem obrigatória do percurso estético e do verdadeiro saber acerca do belo (1953: 65). E nas obras de arte gregas esta linha elíptica está bem presente (1953: 62). Depois, também sabemos que nas igrejas barrocas, como, por exemplo, em San Carlo alle Quattro Fontane, de Borromini – elipse longitudinal como fundamento do barroco, que prolonga o espaço para o infinito -, está inscrita, como sua nervura central, a curva elíptica. Também a Praça de S. Pedro, de Bernini, foi desenhada em elipse transversal, própria do barroco clássico. O símbolo do infinito é, como sabemos, elíptico e está bem ilustrado pela famosa Fita de Möbius.

Filipa.Borromini

Desenho da planta (elipse longitudinal, inscrita em duas 
circunferências de raio igual, cujos centros – dois - organizam 
o espaço simetricamente) e fachada da Igreja San Carlo alle 
Quattro Fontane, 1641, de Borromini. Roma, Itália. 
A linha elíptica insere-se no conceito linear. 
A elipse barroca é representada na longitudinal ou sentido vertical. 
 Este posicionamento potencia a convergência do espaço, alongando-o 
(para o infinito).
  1. QUE MISTÉRIO É ESTE? Por que razão a linha elíptica exprime, por um lado, o infinito e, por outro lado, o belo? Que relação há entre a linha elíptica, o belo e o infinito? Que o belo tenda para o infinito compreende-se porque, como este (a-peírôn, em grego, precisamente: infinito, sem fim, sem fronteiras), é indeterminado, no sentido em que não é capturável no interior de formas fechadas ou como qualidade emergente do objecto ou obra[2]. Em Kant, por exemplo, na “Crítica do Juízo”, o belo que se exprime no juízo do gosto “deve pretender a universalidade subjectiva”[3], porque está para além quer da dimensão conceptual quer da dimensão meramente sensorial, não tendo limites que o encerrem ou capturem numa forma ou conceito ou numa mera representação. Galvano della Volpe sintetiza muito bem a mecânica do juízo estético e o sentido da chamada “universalidade subjectiva” de Kant: o juízo estético é “a priori porque universal e necessário (a sua universalidade “subjectiva” estando fundada na presença, idêntica em todos os sujeitos, das condições subjectivas das faculdades da imaginação e do intelecto) (1973: 27).
  2. LINHA ELÍPTICA, Belo, Infinito. Regressando aos gregos – a referência central de Winckelmann – encontramos lá a dimensão ontológica do belo, como diz Hans-George Gadamer, em “Wahrheit und Methode” (1960: 456)[4]: na “função anagógica do belo, que Platão fixou de maneira inesquecível, torna-se manifesto um aspecto estrutural ontológico do belo e, portanto, uma estrutura universal do próprio ser”. Mas também já na modernidade, como vimos, o belo não seria confinável num conceito ou numa simples representação sensorial, já que ele transcende a dimensão do pragmático, do útil ou do interesse, como mera projecção da vontade, porque remete precisamente para essa “subjectividade universal” que o diferencia do simplesmente agradável, como defendem o Kant da “Crítica do Juízo” (1790) ou o Schopenhauer de “O Mundo como Vontade e Representação” (1819)[5]. Kant refere-se ao belo como a algo “desinteressado” (veja-se também della Volpe, 1973: 26-29) e Schopenhauer a algo que está para além do princípio da vontade. A contemplação do belo situa-se para além do concreto e do singular, porque os transcende: “no objecto (da contemplação) não reconhecemos a coisa singular, mas a sua ideia”, diz Schopenhauer; mas também para além do indivíduo concreto: este, como fruidor, situa-se num plano ideal como “sujeito puro do conhecimento” estético (Schopenhauer, 1965: III, 37, 53, 57, §§ 38, 41 e 42). Nem vontade, nem representação, nem conceito, nem qualidade emergente do objecto ou da obra, portanto. É a impossibilidade de captura em formas fechadas que define o belo. E por isso não é o círculo que o descreve, mas a linha elíptica que, como diz Winckelmann, “muda em cada ponto a direcção”. O belo como que se desprende da obra de arte para uma zona indeterminada onde só a subjectividade estética o pode captar, reflectir, para usarmos a expressão kantiana, lá onde na interpretação sensorial do juízo estético o sujeito se eleva a uma condição ideal e universal. E daqui ao infinito não há intervalo!
  3. A RELAÇÃO ENTRE BELO E INFINITO pode ser verificada nos gregos – Winckelmann, como dissemos, é para lá que nos remete, na sua obra e no seu conceito de beleza – se nela inscrevermos, com Hans-Georg Gadamer, em “Wahrheit und Methode” (1960: 454), a tradição pitagórico-platónica: “a base da estreita ligação da ideia de belo com a do ordenamento teleológico do ser é o conceito pitagórico-platónico de medida. Platão define o belo através dos conceitos de medida, adequação, proporção; Aristóteles refere como momentos do belo a ordem (táxis), a simetria (sumetría) e a definição (ôrisménon) e encontra-os realizados de modo exemplar na matemática”. E continua: “a estreita ligação entre a ordem matemática do belo e a ordem dos céus significa, afinal, que o kosmos, o modelo de todas as ordens visíveis, é ao mesmo tempo o mais alto exemplo de beleza no âmbito do visível. A medida, a simetria, é a condição decisiva da beleza”. Simetria perfeita é o que encontramos no símbolo do infinito, na fita de Möbius, uma forma elíptica, que é linguagem matemática, como veremos mais à frente. Não se exprime também o infinito naquele ponto para onde convergem duas linhas paralelas (simétricas) que o nosso olhar projecte no horizonte? Não é na matemática que se exprime com maior exactidão a linguagem do infinito?
  4. O CONCEITO de “belo” (tò kalón) é irmão do conceito de bem (tò agathón) e é a sua face visível, lugar intermédio entre o conceito e o fenómeno, sendo ambos e nenhum, ao mesmo tempo, na medida em que resulta de um livre jogo entre as duas faculdades: imaginação e intelecto. Por outro lado, a simetria – tão importante para os gregos como elemento do belo – é o que encontramos no símbolo do infinito, composto por uma fita elíptica fechada e sobreponível, sem verso nem reverso. Winckelmann via na arte grega e na linha elíptica (não no círculo), nos vasos e nas linhas dos rostos, a geometria que descreve o belo. Nos gregos o círculo era estranho à estética. E o belo era também algo de uma dimensão superior ao mundo fenoménico, apesar de também se exprimir com esta forma, sendo mesmo a forma visível do bom (tò agathón), que não tem outro modo de se exprimir: “In der Suche nach der Guten, zeigt sich das Schoene”, diz Gadamer[6]. O bom como belo, na sua dimensão sensível!
  5. O BELO É FUGA para o infinito cujo símbolo é uma figura elíptica. A ausência de fronteiras no infinito (a-peírôn) também se verifica no belo… Ou seja, se o belo fosse delimitável e capturável pela sensibilidade ou pelo conceito (Kant), confinando-se nas suas fronteiras ou limites formais, deixaria de ser belo. Porque é indeterminado. É projecção do nosso sentido interno até à universalidade (subjectiva) sob estímulo sensorial (sentido externo). É por isso que, sendo subjectivo, extravasa, todavia, a subjectividade singular e se constitui como horizonte de “acordo” meta-subjectivo, de coincidência não pré-ordenada de subjectividades, de encontro de sensibilidades singulares e diferentes num horizonte ideal mais vasto que as supera, a elas, e ao objecto contemplado… em direcção à universalidade (subjectiva). E o acordo resulta, como bem sublinhou della Volpe, da existência de um dispositivo comum no ser humano centrado no livre jogo ou dinâmica das faculdades (imaginação e intelecto). Para o Kant da “Crítica do Juízo” a universalidade é condição necessária do belo: “Schön ist das, was ohne Begriff allgemein gefällt” (Kant, s.d: 134)[7]!
  6. O BELO decorre de um lugar no infinito, na dimensão matemática, geométrica e… poética! Curiosamente, será numa descoberta matemática, mais tarde aplicada à geometria e à estética, que o conceito se desenha na forma que aqui queremos evidenciar. Materializar-se-á na superfície de Möbius[8] – fita sem frente nem verso, sem princípio nem fim – que, mais tarde, irá inspirar Escher[9], nas propriedades descritivas da perspectiva impossível, de valor renascentista. Na superfície de Möbius representa-se o símbolo do infinito. O matemático desvendou o espaço configurado por uma fita de duas faces cuja união das extremidades, depois de meia volta de uma delas, resulta num sistema único que anula a noção de frente/verso e de princípio/fim. Uma viagem que nunca começa nem acaba, não tem começo nem fim. Como o belo! E o infinito!

Filipa.MoebiusInfinito (1)

Representação da Superfície de Möbius, inscrita na planta de elipse
barroca. Fita de Möbius é uma descoberta matemática e insere-se na
ideia de superfície em curva elíptica.  As duas faces unem-se sem
princípio nem fim. Representa o símbolo universal do infinito.
  1. ESCHER desenvolve esta noção matemática num princípio artístico. Na narrativa plástica que criou, os seus desenhos (litografias e xilografias) são construções impossíveis, onde as figuras se confundem com o fundo e o fundo com as figuras. Os desenhos são infinitos. Não têm fronteiras. Mais uma vez o a-peírôn grego, a ausência de fronteiras. Crescem tridimensionalmente na direção da profundidade e na direção do observador, para além do primeiro plano. São perspectivas inspiradas em metamorfoses padronizadas no símbolo do infinito. A geometria renascentista foi a base para que Escher, no domínio inequívoco das regras técnicas, arriscasse em transgressões cirúrgicas, com resultados desconcertantes para a percepção visual.

Em certas obras parece que o sujeito contemplativo se dissolve perante a proposta de Escher. Parece que é a figura proposta que produz o sujeito que contempla, numa inversão da visão clássica: a mão que pinta o quadro está dentro do quadro, num movimento sem princípio nem fim; a mão que, de fora, segura a esfera espelhada sai da própria esfera; os lagartos pintados saem da pintura e voltam a entrar nela… onde o real se confunde com a sua representação e onde a noção de indeterminação parece dominar a obra, num movimento infinito, sem princípio nem fim e que exprime o belo…

Na escada onde aparentemente se sobe e desce as personagens desenhadas não chegam a lado nenhum. Andam na fita de Möbius, infinitamente em curva elíptica.

 ESCHER.Moebius.FA

M.C. Escher, Rind (“Casca”), 1955.
Escher explora o conceito da Fita de Moebius inserindo-a na narrativa
 criativa, na arte. O objecto é configurado pela superfície e pelo 
espaço que o define. A fita assume uma forma (como por exemplo o rosto
 humano) mostrando os dois lados, a frente, o verso e o espaço vazio 
e infinito, que a envolve. O objecto auto-representa-se. O objecto 
dá-se a conhecer sem existir na configuração, mas sim na representação
 reflectida ou condicionada.
  1. FOI UMA DESCOBERTA EXTRAORDINÁRIA para a estética. Na tridimensionalidade da Superfície de Möbius revelam-se-nos mistérios, subtilezas visuais baseadas na noção de orientabilidade[10] e percepção visual, ou seja, a caracterização de um elemento (a fita ou superfície) altera-se no impulso de um movimento que une dois pontos. A linha descrita passa a encerrar um espaço que evolui na continuidade, sem começo nem fim, até ao infinito… e não só como ponto inscrito no nosso olhar quando fixamos o horizonte. O sentido de orientação/referência é alterado.

Neste movimento em curva – elíptico -, a ausência de cúspides é não singular, ou seja, é regular. Assim, a derivada da curva elíptica associa-se ao comprimento do arco que, por definição científica, é o supremo (o menor dos majorantes) de todos comprimentos de um dado caminho polinomial.

Mais simplesmente, o que queremos dizer é que, associado ao princípio matemático e geométrico, o dimensionamento do movimento descrito resulta do somatório de pontos cuja distância menor, sem vértices, se desenha por linha contínua e curva.

O belo estará, assim, no lugar que resulta da convergência de um percurso infinito cujo movimento no tempo se define pela união de dois extremos – a curva elíptica.

  1. O BELO estará lá onde a subjectividade estética se eleva enquanto tal à universalidade subjectiva… porque não se trata de sujeitos empíricos, com todas as suas concretas determinações, mas sim de puros sujeitos estéticos, contemplativos, desinteressados, livres, reflexivos que, no livre jogo entre a imaginação e o intelecto aspiram legitimamente ao “consenso universal” (Kant, s.d.: 113-134). Uma subjectividade que se pretende mover como se move o sujeito da lei moral de Kant: contempla o belo como se a máxima da tua sensibilidade pudesse valer ao mesmo tempo e sempre como princípio de beleza universal. Gadamer, seguindo Schiller, diria assim, se tivesse que resumir, como de resto faz, a sua posição sobre o belo: “comporta-te esteticamente!”. Ou seja, no juízo estético, eleva-te à universalidade!

E possível, pois, dizer que, sendo a universalidade, como quer Kant, uma sua dimensão necessária, o belo como ideia se associa à ideia de infinito porque é universal, indeterminado e sem limites, fronteiras, pontas, exprimindo um movimento sem fim nem princípio. O belo não se deixa agarrar, porque não tem pontas, princípio nem fim, mas tem fugas (convergências), como na senda do infinito e do nosso próprio olhar, na convergência cónica…

  1. A INVESTIGAÇÃO SOBRE O BELO tem preconizado modelos conceptuais e ergonómicos icónicos. No ideal clássico de beleza descrito por Vitrúvio, nos “Dez Livros sobre Arquitetura” (“De architectura libri decem”) a natureza está na ordem de proporção áurea[11] aplicada ao corpo humano, perante o objeto construído – O Homem de Vitrúvio. A descrição Vitruviana inspirou diversos artistas para a sua representação, como, por exemplo, Albrecht Dürer, sendo, todavia, a mais conhecida a de Leonardo Da Vinci, de 1490. Leonardo desenha o Homem de Vitrúvio circunscrito num quadrado, de braços e pernas afastados. Ora este conceito foi mais tarde trabalhado por Le Corbusier[12], que o formaliza no ideal moderno de beleza, na medida harmónica – o Modulor. Aplica na Arquitectura e no Urbanismo a proporção da Escala Humana, em módulos pela secção dourada, na sequência de números inteiros de Fibonacci[13], partindo de duas dimensões tipo (homem com 1.78m e outro com 1.83m de altura).

Fibonacci.FA

A sequência de Fibonacci é um conceito matemático que padroniza a 
dimensão da matéria no desenvolvimento da natureza. Uma determinada  
dimensão é a soma das duas anteriores. O crescimento é progressivo 
seguindo uma lógica numérica e em curva.

A centralidade contida no modelo circunscrito do Homem de Vitrúvio dá lugar à dinâmica helicoidal do Modulor. À procura de um modelo ergonómico, Le Corbusier concebe uma sequência métrica baseada na proporcionalidade elíptica, colocando-a lado a lado com a figura de um homem com o braço levantado. Numa convergência crescente e decrescente, define a relação com objectivos claros sobre harmonia estética – o belo, na arquitectura e em todos os objectos de uso quotidiano.

FA.Modulor

MODULOR. Le Corbusier desenvolve o conceito de Fibonacci na concepção
do espaço arquitectónico e nos objetos do quotidiano. Utiliza uma 
altura humana média e proporciona uma fita de dimensões-padrão, com 
objetivos de conforto ergonómico.

Esse dimensionamento ainda hoje se revela inspirador. No entanto, a fórmula está longe de ser apenas de ordem numérica ou geométrica. O princípio é conceptual e poético. O belo encontra-se na ordem, na grandeza e na proporção, na dimensão sensitiva e interpretativa, no ponto geométrico projectivo ancorado no infinito e na curva elíptica.

  1. ESTAS SÃO APENAS reflexões livres sobre um tema altamente complexo, discutível e apaixonante. Este ensaio tem, além disso, ilustrações referidas directamente ao texto, construídas a partir dos artistas e autores em referência e inscritas na planta da Igreja de San Carlo alle Quattro Fontane, de Borromini. A definição de Belo é difícil se não mesmo impossível. Não é por acaso que as escolas são inúmeras e a dificuldade em encontrar uma consenso intersubjectivo para definir o belo é quase impossível tantas e tão diferentes são as aproximações a esta dimensão estética. Tentámos, todavia, viajar em torno daquelas dimensões que, no nosso entendimento, mais nos podem aproximar do belo, socorrendo-nos de autores e criadores que são unanimemente considerados referências obrigatórias nesta matéria. Não ficaremos por aqui. E deixamos o texto aberto para debate.
Filipa Oliveira Antunes
Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação ECATI.
ULHT
João de Almeida Santos
Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração.
ULHT

NOTAS

[1] Winckelmann, J. (1953). Il bello nell’arte. Torino: Einaudi; p. 61.
[2] della Volpe, G. (1973). Opere V. Roma: Riuniti; p. 30
[3] Kant, I. (s.d.). Kritik der Uteilskraft. Reclam. Digitale Bibliothek. Band 2., §6, p. 124.
[4] Gadamer, H. G. (1975). Wahrheit und Methode. Tuebingen: Mohr (Paul Siebeck).
[5] Schopenhauer, A. (1965). Il mondo come volontà e rappresentazione. Torino: Paravia.
[6] Gadamer, 1975: 456: “Na procura do bom, o que se mostra é o belo”!
[7] “É belo o que agrada universalmente sem conceito”
[8] August Ferdinand Möbius, matemático alemão, 1790-1868.
[9] Maurits Cornelis Escher, artista gráfico holandês, 1898-1972.
[10] Princípio matemático ligado à topologia (extensão da geometria focada no estudo do lugar).
[11] Conhecida como “número de ouro”, é a sequência métrica do crescimento da natureza. Foi utilizada em inúmeras obras de arte renascentistas e na arquitectura como, por exemplo, na composição geométrica do Pharthenon.
[12] Charles-Edouard Jeanneret-Gris, Le Corbusier: arquitecto, urbanista, escultor, artista plástico franco-suíço (1887-1965).
[13] Sequência matemática cujo número seguinte corresponde à soma dos dois anteriores (exemplo: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21…).

Poesia

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: Almada Negreiros - “Viento. Blanco y Negro". N.º 2.017.
21 de enero de 1931. In Pessoa. 
Todo arte es una forma de literatura. 
Catálogo. Museo Reina Sofía. Madrid, 2018, p. 262.
Exposição sobre Fernando Pessoa aberta até 07 de Maio de 2018.

DESPEDIDA

Almada2

“Tu prima m’inviasti verso Parnaso a ber ne le sue grotte, e prima 
appresso Dio m’alluminasti”. 
Dante Alighieri. Purgatorio. Canto XXII.

 

PERDI-TE
Porque nunca
Te encontrei.
Numa rua, 
Numa praça,
Num café.
Em lado nenhum.
Não sei!

ENCONTREI-TE
No Parnaso.
Lá em cima.
Intangível.
Sem poder
Tocar-te
A não ser com
Palavras.
Em forma de poema.
Sensível às cores 
Da tua alma.

DE REPENTE,
Vestiste-me
Com elas, 
As palavras.
E eu senti-me 
Quente,
Afagado
No meu Canto,
Às vezes, 
Amargurado,
Outras, 
Em pranto,
Sufocado.

SIM, ENCONTREI-TE 
No Parnaso.
Lá em cima. 
No Monte.
Através de ti 
Eu vi a costa, 
Eu vi o mar 
E o meu mundo 
Interior
Com nitidez,
A sonhar-te,
De cada vez,
Em azul...
......... 
A tua cor.

A NEBLINA
Cobria-te
Para te revestir
E refrescar
A alma
Como chuva
De palavras
Húmidas
Caídas do meu
Céu.

EU NÃO ERA MAIS
Do que espelho
Que te devolvia
Fantasia
Contra a
Petrificação
Que espreita sempre
Nos olhares 
Indiscretos.
Mas tu não me vias. 
Em mim, 
Especulavas,
Dizias...

E DE TANTO TE
VERES
E dizeres
Decidiste declinar
O espelho que
Começava 
A embaciar-te.

E NÃO ERA DA
NEBLINA
Que te envolvia,
Mas dos desenhos
Que tuas mãos
Esboçavam 
Timidamente
Nesse espelho 
Já húmido 
De ti.

E DESPEDISTE-TE.
Do Monte.
Desceste para ti
Vertiginosamente,
Em desconforto,
Sob os olhares 
Das mil górgonas
Que sempre ameaçam
Petrificar-te.
E sucumbiste.
Ou talvez não...

NO MONTE, O ESPELHO
Disse para si:
- De tanto te veres 
Em mim,
Ficou-me, de ti,
O repetido reflexo.
E sabes o que 
Brotava
Quando te olhavas
Com palavras
Na minha superfície?
Beleza! 
Toda a que me sobrou
Quando, triste,
Desceste o Monte.

MAS ESTA NÃO
PETRIFICARÁ
Porque ficou 
Guardada 
No meu corpo
Vítreo 
Onde todos 
Se revêem
Sem saber 
Que no reflexo
Levam, gravada
Em transparência,
A tua imagem...
.........
Embaciada.

E EU POR CÁ FIQUEI,
Espelho do mundo,
A olhar para 
O escuro espaço 
Sideral
À espera que um cometa
Me alumie o caminho
Para to devolver como
Teu reflexo 
Original...

 

 

 

Poesia

A CAMINHO DE PASÁRGADA…

Poema de João de Almeida Santos, à desgarrada com Manuel Bandeira (1886-1968), a caminho de Pasárgada, inspirado em três poemas seus: Desencanto, 1912; Versos escritos na água, s.d.; Renúncia, 1906. Obras Poéticas – 1956. Lisboa: Minerva, pp. 33, 40, 101. Ilustração: pormenor de uma obra do Mestre Guilherme Camarinha (1912-1994).

 

JAS_Camarinha2

 

“OS POUCOS VERSOS QUE AÍ VÃO,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.”

OS MUITOS VERSOS 
Que te dei
Deixam claro 
O que sou.
Se tu me leres, 
Eu não pequei.
É pouco do muito 
Que te dou.

“NELES PORÁS TUA TRISTEZA
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...”

TALVEZ BELEZA
E algum sentido,
Tristeza, dor, 
Como castigo...
Eu canto 
O que perdi
P’ra que o verso
Vá ter contigo
Lá onde estejas...
.............. 
Queira o vento
Ser meu amigo. 

“QUEM OS OUVIU NÃO OS AMOU
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.”

NÃO OS AMOU
Por ser verdade
Este amor 
Que aqui nasceu
E que cantei 
Em liberdade
Em versos 
Que o vento
Já me levou
Aos muros 
Dessa cidade.

OUTROS FARIA
Se pudesse
Para os pôr 
Na tua mão,
Não pediria que 
Os sonhasses,
Olhos cerrados,
Mas que os lesses 
Com afeição!

AH!, MANUEL,
Que bem me sabe
Pôr a dor 
Em poesia,
Em versos
A emoção,
No cantar 
Triste alegria
E muito intensa
Uma paixão,
Mesmo que seja
Utopia!

DIZES TU,
Em poesia,
Que só a dor
Te enobrece.
É bem verdade, 
Meu bom poeta,
Alma dorida 
Logo aquece
E com seus versos 
Entretece
O que a paixão
Já tanto afecta.

“A VIDA É VÃ COMO A SOMBRA QUE PASSA...
Sofre sereno e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer tua desgraça.

ENCERRA EM TI TUA TRISTEZA INTEIRA.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...”

POIS TENHO MEDO,
Ah!, meu irmão, 
Que a dor 
Me passe,
Perca o poema 
Sua raiz,
Essa, sim, 
A verdadeira, 
E eu fique só 
Já sem palavras
E caiam secas 
Todas as rosas
Que me povoam
Esta roseira.

SOBRAM ESPINHOS
Ferem-me a alma
E saem versos
E cai o sangue
“Gota a gota,
Do coração”,
“Volúpia ardente” 
Já sem remédio
“Eu faço versos 
Como quem chora”
E chamo a dor
Naquela hora
E ela vem
Por compaixão!

AH!, POETA,
Ah!, meu irmão,
Tu fazes versos 
“Como quem morre”
E eu procuro
Neste meu canto...
.............
O seu perdão!

TU, MANUEL,
És a bandeira
E ela o meu refrão,
P’ra mim és verso
No meu poema
E ela é...
............. 
Minha paixão!

POESIA

POEMA EM AGUARELA…

À desgarrada com Manuel Bandeira. (1886 -1968), a caminho de Pasárgada, inspirado em três poemas do Vate: “Desencanto”, 1912; “Versos escritos na água”, s.d.; “Renúncia”, 1906. In Obras Poéticas. 1956. Lisboa: Minerva, pp. 33, 40, 101. Ilustração: pormenor de uma obra do Mestre Guilherme Camarinha (1912-1994).

JAS_Camarinha2

 

“OS POUCOS VERSOS QUE AÍ VÃO,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.”

OS MUITOS VERSOS 
Que te dei
Deixam claro 
O que sou
Se tu me leres 
Eu não pequei
É pouco do muito 
Que te dou.

“NELES PORÁS TUA TRISTEZA
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...”

TALVEZ BELEZA
E algum sentido,
Tristeza, dor, 
Como castigo...
Eu canto 
O que perdi
P’ra que o verso
Vá ter contigo
Lá onde estejas...
.............. 
Queira o vento
Ser meu amigo. 

“QUEM OS OUVIU NÃO OS AMOU
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.”

NÃO OS AMOU
Por ser verdade
Este amor 
Que aqui nasceu
E que cantei 
Em liberdade
Em versos 
Que o vento
Já me levou
Às muralhas 
Dessa cidade.

OUTROS FARIA
Se pudesse
Para os pôr 
Na tua mão,
Não pediria que 
Os sonhasses,
Olhos cerrados,
Mas que os lesses 
Com afeição!

AH!, MANUEL
Que bem me sabe
Pôr a dor 
Em poesia,
Em versos
A emoção,
No cantar 
Triste alegria
E muito intensa
Uma paixão,
Mesmo que seja
Com’ utopia!

DIZES TU,
Em poesia,
Que só a dor
Te enobrece.
É bem verdade, 
Meu bom poeta,
Alma dorida 
Logo aquece
E com seus versos 
Entretece
O que a paixão
Já tanto afecta.

“A VIDA É VÃ COMO A SOMBRA QUE PASSA...
Sofre sereno e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer tua desgraça.

ENCERRA EM TI TUA TRISTEZA INTEIRA.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...”

POIS TENHO MEDO,
Ah!, meu irmão, 
Que a dor 
Me passe,
Perca o poema 
Sua raiz,
Essa, sim, 
A verdadeira, 
E eu fique só 
Já sem palavras
E caiam secas 
Todas as rosas
Que me povoam
Esta roseira.

SOBRAM ESPINHOS
Ferem-me a alma
E saem versos
E cai o sangue
“Gota a gota,
Do coração”,
“Volúpia ardente” 
Já sem remédio
“Eu faço versos 
Como quem chora”
E chamo a dor
Naquela hora
E ela vem
Por compaixão!

AH!, POETA
Ah!, meu irmão,
Tu fazes versos 
“Como quem morre”
E eu procuro
Neste meu canto
O seu perdão!

TU, MANUEL
És a bandeira
E ela o meu refrão,
P’ra mim és verso
No meu poema
E ela é 
Minha paixão!

Poesia

A PALAVRA PROIBIDA…

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: Intervenção 
digital (cor) de JAS
sobre “O Rio” (1950), do 
artista italiano
Alberto Savinio (1891-1952).

Alberto Savinio-cópia

“L’amour est la poésie des sens”
Honoré de Balzac
OS GUARDIÕES
Do sagrado templo
Emitiram Edital:
“O amor em poesia
Fica assim proibido
Porque pode ser 
Fatal.
Os versos 
E as estrofes
Pintados 
A luz e cor
Ficam p’ra sempre 
Banidos
Da Arte 
E do Amor!”

DIZ O AMIGO
Honoré,
Certeiro
Como poeta,
Que o Amor
É poesia, 
É a arte 
Dos sentidos,
É perfume
Qu’inebria
E nos faz sentir
Perdidos...
.............
Se não houver
Guardião que
Impenitente
Decrete: 
“Também eles 
São proibidos!”

PROIBIDOS?
Ah!, esses, 
Não!
Poesia
É emoção, 
É enlevo
Dos sentidos...
...........
Que resiste
Ao edital
Mesmo que seja
Cantado
Pelo mais
Belo jogral!

TENTA, POR ISSO,
Levá-los
Aos píncaros
Da fantasia,
Sobem lá alto
Os sentidos
Com asas
De poesia!

MAS É DIFÍCIL
Senti-los,
Ouvi-los 
Em verso, 
Com alegria,
Pois há sempre
Alguém
Que me rouba
A brisa
Dessa tua 
Maresia...
..............
A que respiras
Bem cedo,
Logo ao 
Amanhecer,
Em cada dia
Que sentes
Como, feliz,
Eu te canto
Para nunca 
Te perder!

OLHAS O MAR,
Sentes
As ondas
Dentro de ti
A cantar
Com versos
Que o vento 
Sopra
De mansinho
P’ra te poder
Ciciar
O que por ti
Eu já sinto
Apesar de tão
Sozinho!

POESIA
Dos sentidos?
O amor também 
É isso
Porque, queiras 
Ou não queiras,
Tem a força 
De feitiço.
Encontro-a
Sempre em ti
E mesmo que 
Proibidos
Desenho sempre
Poemas
Desde o dia
Em que te vi...
............
Exaltaram-se 
Os sentidos
E para o poema
Parti...

DECRETARAM
Edital?
Ah!, que o façam, 
Pois, cumprir!
Mas poesia
É como vento,
Sopra-me 
Tão forte
Na alma
Que o teu silêncio
É alento 
Para sempre 
Te esculpir...
...................
Na palavra proibida
Encontrará o poeta
O seu próprio
Porvir...

Diversidade cultural e democracia

João de Almeida Santos

 

Occhi nell'arte

PROPONHO UMA REFLEXÃO sobre o tema diversidade cultural e democracia, porque a «moldura» democrática é aquela que melhor faz emergir o tema da diversidade cultural em toda a sua complexidade e delicadeza, sabendo-se que nos regimes não democráticos a diversidade cultural nunca é garantida ou, pelo menos, nunca se exprime de forma livre e igual. Entendo, naturalmente, a diversidade cultural no seu sentido mais amplo, incluindo religiões, costumes, estilos de vida, tradições, cultura reflexiva. Diversidade que pode ou não exprimir pertenças etnográficas e territoriais, mas que certamente exprime identidades histórico-sociais, que são também diferenças sociológicas e formas expressivas diferenciadas, lá onde, paradoxalmente, afinal, a cultura surge como forma privilegiada de convergência para a universalidade. Isto é, a diversidade cultural exprime diversos modos de acesso à universalidade, quando entendemos a cultura como via de acesso aos nexos primordiais da existência humana. Esses nexos que a arte, a filosofia ou a própria ciência procuram captar de forma diferente, mas sempre sob o signo da universalidade.

 

O APARENTE PARADOXO tem, todavia, resolução quando se verifica que é possível traduzir uma cultura na linguagem de outra, reconduzindo ambas à ideia comum de género, lá onde reside o núcleo distintivo da ideia de humanidade, onde estão ancoradas as grandes tensões que comandam a vida: a tensão erótica, a angústia perante a morte, a justiça, a beleza, a bondade, a guerra.

Mas se o problema existe ele deriva, em meu entender, mais da enorme amplitude que assumem as formas culturais (do folclore, em sentido gramsciano, à alta cultura, passando pela cultura de massas) do que daquilo que poderíamos designar por «núcleo duro» da cultura, ou seja, da sua dimensão reflexiva, aquela que descodifica esse complexo que envolve simbolicamente os nexos fundamentais da existência. É a grande amplitude da forma cultural que torna possível a sua historicização, a sua transformação em força material, fluxo vital, prática simbólica quotidiana. Mas é também por isso que as formas culturais, na sua expressão mais difusa, ou popular, surgem como realidades fragmentárias, caóticas e desordenadas (Gramsci). Deste modo, só a sua dimensão reflexiva permite reconduzir as formas heterogéneas de expressão cultural ao seu significado originário, removendo roupagens simbólicas puramente locais. «Uma grande cultura», diz Gramsci, «pode traduzir-se na língua de uma outra grande cultura (…). Mas um dialecto não pode fazer a mesma coisa» (Gramsci, 1975: 1377). Há uma grande diferença entre uma reflexão teológica sobre a graça ou a predestinação e os concretos rituais religiosos quotidianos que tornam viva uma crença religiosa. São estes que conferem força vital ao fenómeno religioso, mas é aquela que pode evidenciar a dimensão universal de uma religião, tornando-a compatível e traduzível nos termos de outra religião.

A universalidade das formas culturais reconduz-se ao seu núcleo íntimo, essencial, já que é nele que está inscrita uma matriz existencial, uma relação originária, ontológica, primordial do homem com o ser, seja ele natural ou divino. Nas religiões, por exemplo, a relação primordial é a que nos coloca perante a fronteira última da vida. Como nalgumas filosofias, a da existência, por exemplo. Mas pode tratar-se também do horizonte supremo do amor. De qualquer modo, trata-se sempre de uma relação originária exemplar, por exemplo, encarnada na figura de um profeta, capaz de gerar, eventualmente por imitação, como diria Gabriel Tarde, comportamentos colectivos perduráveis no tempo, institucionalizando-os, normalizando-os, ritualizando-os. Na origem da cultura científica mais complexa está uma relação física do homem com a natureza. «Prima furon le cose, e poi i nomi», dizia Galileu. E se é verdade que a universalidade do pensamento técnico-científico reside na univocidade da linguagem numérica com que opera, também é verdade que ela não deixa de residir primordialmente numa simples relação física e pragmática do homem com a natureza, logo, numa relação verificável universalmente, porque repetível. Os nomes, por mais abstractos que sejam, remetem originariamente para as coisas, como queria Galileu.

É na presença de uma dimensão universal no núcleo originário das diversas formas culturais que reside a possibilidade da sua traduzibilidade. O que é diferente dos ritos, das práticas sociais e comportamentais que essas formas culturais assumem ao longo do tempo, isto é, no processo da sua progressiva socialização. Nem o espírito do cristianismo pode decorrer da forma que assumiu no séc. XVI com a Inquisição, nem o islamismo das práticas concretas que assumiu com o domínio da cultura talibã, no Afeganistão. Mas são acessíveis através da exegese das Sagradas Escrituras e do Corão. Isto é, quando as formas culturais se exprimem, por um lado, com a linguagem metamorfoseada e mecânica do agir quotidiano e, por outro, com a linguagem do poder elas tendem, enquanto tais, a perder universalidade e, por conseguinte, tendem a perder traduzibilidade. Por um lado, porque estão contaminadas por lógicas que lhes são externas e, por outro, porque, como se compreende, é destes dois fenómenos – o agir simbólíco quotidiano e o poder – que deriva a sua concreta possibilidade de historicização ou individualização, a sua transmutação em forças materiais. Devendo-se, por isso, no caso do agir quotidiano ou dos rituais difusos, fazer um esforço de redução do complexo de práticas aos seus nexos essenciais, formulados, por exemplo, no Corão. Que, de resto, por um lado, contém repetidas alusões àsSagradas Escrituras e, por outro, se distancia, em muitos aspectos, por exemplo, no caso da poligamia (veja-se Bausani, 1988: LVI), das concretas práticas seguidas no mundo islâmico em geral. As grandes fontes inspiradoras possuem sempre uma dimensão universal, logo partilhável.

É, por isso, necessário executar uma espécie de «epochê» fenomenológica, um esforço de redução das práticas rituais aos princípios constituintes fundamentais. No caso da contaminação política das formas culturais tratar-se-ia também de suspender a lógica de poder que se lhes sobrepôs para compreender a sua profunda razão de ser, o seu sentido originário. Não é difícil compreender quanto digo se pensarmos no integralismo islâmico ou então no famoso zdanovismo soviético.

No primeiro caso, a diversidade das formas culturais é rejeitada em nome de um monismo religioso que exclui à partida a hipótese de traduzibilidade, logo, a própria pluralidade de vivências universais. A própria tradução em línguas estrangeiras do Corão conheceu graves dificuldades nos ambientes muçulmanos tal era o conceito de unicidade, de inimitabilidade do texto sagrado. A universalidade só seria atingível através da imposição política dessa concreta mundividência, entendida como única, no sentido de que só ela continha a chave interpretativa da recta via para a salvação. A leitura teocrática da história admite uma só forma de expressão cultural, logo, anula a própria ideia de diversidade cultural.

No segundo caso, também se verifica uma indevida injunção política no campo cultural, designadamente no próprio plano da ciência, com o famoso zdanovismo ou com a doutrina do biólogo Lyssenko: a ciência, designadamente a biologia, só poderia ser instituída a partir das leis do materialismo dialéctico. Uma visão monista e antagonista do real e da história impedia a intercambiabilidade das formas culturais, lá onde a diferença era considerada erro, engano ou mentira intencional (da burguesia). Também aqui a universalidade só pode emanar de um único centro, o comunismo, não sendo admitidas formas plurais de acesso à universalidade, reciprocamente traduzíveis, e, portanto, intercambiáveis. Uma fórmula lapidar, extremamente eficaz, de Joseph Roth, pode servir de contraponto exemplar a esta visão do mundo que tudo reduzia a um dualismo incomponível. Diz Roth, a propósito de uma dança de origem afro-americana tão em voga na Europa dos anos vinte: «não se dança o charleston porque o mundo é capitalista. Dança-se o charleston porque ele é uma das formas de expressão da sociabilidade da nossa época».

Interacção cultural, laicidade do Estado e laicidade do debate

A questão da diversidade cultural inicia-se verdadeiramente quando as diversas formas de poder se relativizam, perdem a vocação totalizante, se autonomizam e diferenciam no interior dos sistemas sociais. E quando a nação deixa de fundar o Estado sob um pressuposto pré-político de carácter étnico (Habermas, 1991: 123-146). Quando a cidadania deixa de ser prisioneira do jus solis e do jus sanguinis, porque passa a ser admitido o contraponto da emigração e da renúncia à nacionalidade. É assim com a democracia moderna. Nela a diferença já não é entendida no sentido absoluto, até porque se trata de um sistema que institucionaliza a diferença no seu próprio interior e que a relativiza em relação ao exterior. Diz Rawls que as verdadeiras sociedades democráticas não fazem (ou não deveriam fazer) a guerra entre si, porque, compreende-se, o princípio do antagonismo absoluto não faz parte da sua gramática (Rawls, 1995). A diferenciação interna dos sistemas sociais, a desvinculação do Estado do seu fundamento étnico-natural e a emergência do cosmopolitismovieram relativizar a diferença e a descomprimir o espaço da afirmação da diversidade.

As democracias tendem, por isso, cada vez mais, a incorporar nas suas constituições os grandes princípios cosmopolitas que definem uma pertença não naturalística nem tradicional de cada um à Nação e, por esta via, ao género humano. A cidadania inscreve-se cada vez mais neste registo cosmopolita que enquadra os direitos políticos de viver sob regime democrático e segundo um princípio semelhante ao que foi formulado por Kant com a lei fundamental da razão pura prática: «age de tal modo que a máxima da tua vontade [política] possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, 1966: 30). O Estado desvinculou-se – já com os contratualistas assim era – do fundamento étnico-natural da Nação para se ancorar aos grandes princípios cosmopolitas, consignados na Declaração universal dos direitos do homem. Ele passou de um registo naturalista a um registo cosmopolita, por entreposta Nação. Neste sentido, não tem fronteiras nem uma identidade substancial pré-determinada. Por isso, constitui-se mais como espaço aberto de afirmação de identidades culturais múltiplas. Que não contradizem a sua vocação universal, por um lado, porque elas próprias, como vimos, possuem dimensão universal, logo, mantêm com ele um virtual ponto de contacto, por outro, porque se exprimem no plano do privado, do não público, constituindo-se como variáveis independentes de um sistema cuja constante é a Lei constitucional. Pelo contrário, é a própria universalidade do Estado que garante a diversidade cultural, já que essa é uma universalidade laica, garante dos grandes princípios, mas que não impõe à sociedade civil concretas opções culturais.

Num debate de há anos entre Michel Rocard e Paul Ricoeur falava-se precisamente da laicidade do Estado, a laicidade neutra, mas Ricoeur juntava-lhe a necessidade de promover uma laicidade do debate, que é a da sociedade civil. Entre uma e outra Rocard colocou a escola, lá onde se joga de forma mais complexa o encontro entre a laicidade do Estadoe a diversidade cultural interventiva da sociedade civil. Ricoeur critica o excessivo asseptismo da escola, como resultado de uma projecção, nela, do laicismo radical do Estado francês. De onde resulta, no seu entendimento, um enfraquecimento de convicções da própria sociedade civil (Ricoeur/Rocard, 1991: 207-223). Mas esta é que é a questão. Não intervindo directamente, o Estado tem a obrigação de promover a laicidade do debate, criando canais para que as diversas culturas presentes na sociedade civil possam surgir como verdadeiras propriedades emergentes do sistema social. O Estado, ao não impor uma identidade substancial, está a criar condições para que cada cidadão escolha ou construa livremente a sua própria identidade cultural, se construa livremente, para além do paternalismo de um Estado-nação que já nem sequer se identifica com um fundamento étnico-natural ou mesmo com um concreto território. É que as fronteiras vão perdendo significado confrontadas que estão com fluxos globais que já não têm de exibir passaporte: fluxos financeiros, comunicacionais, culturais. O que significa que o Estado não pode deixar de integrar na sua lógica estratégica interna este movimento de interacção universal. É neste quadro amplo que deve ser entendida a diversidade cultural.

Chador, laicidade e lealdade constitucional

Em 1989, em França, Creil, três jovens muçulmanas apresentaram-se na escola com chador e recusaram-se a frequentar as aulas de biologia e de educação física. Foram expulsas. Depois de um longo braço de ferro, Lionel Jospin, então ministro da educação, consultado previamente o Conselho de Estado, ordenou a sua readmissão. Mais tarde, François Bayrou, ministro da educação, emitiu uma circular que proibia o uso de «símbolos ostensivos que constituam em si mesmos factor de proselitismo e discriminação». A circular usava quase os mesmos termos do parecer do Conselho de Estado.
Trata-se de uma questão altamente sensível e a sua resolução depende da posição que se tomar em relação ao carácter laico do espaço institucional da escola pública. A questão seria simples se alguém se apresentasse na escola com a suástica: estaria em causa a própria ordem constitucional e esse alguém seria expulso. O mesmo não vale para o chadorenquanto a religião não se assumir como alternativa política ao Estado laico. E mesmo assim as jovens foram expulsas. A questão pôs-se precisamente porque a escola pública ocupa um lugar intermédio, logo ambíguo, entre um Estado laico e uma sociedade civil culturalmente multifacetada. A expulsão deve-se, pois, a uma leitura excessivamente asséptica – ou a um radicalismo laicista – do espaço escolar como instituição estatal. A reintegração deve-se a uma assunção da escola pública como organismo híbrido, no sentido em que o definia Rocard. Os conteúdos são laicos, mas os estudantes não são funcionários do Estado, são livres e iguais. Em meu entender, a opção de Jospin é a mais conforme ao sentido da democracia. Só o Estado não deve exibir opções culturais específicas, reservando a sua intervenção para os princípios constitucionais, mas garantindo e promovendo espaço público para a afirmação das diversas culturas, de forma livre e igual. É claro que a exibição de um chador, ou, em caso mais extremo, de uma burka (mas esta põe, pelo menos, mais problemas de identificação pessoal), pode ser interpretada como exibição da amputação de um direito consagrado constitucionalmente, a subalternidade explícita da mulher. E proibi-lo tal como se proíbe a consumação legal da bigamia.

A questão do chador foi reduzida pelo Conselho de Estado à proibição de uso indevido das instituições estatais para fins de propaganda, neste caso, do islamismo, que não para a livre expressão de convicções íntimas e singulares. Elisabetta Galleotti põe a questão da seguinte maneira. Ir à escola comchador pode significar: a) expressão da própria fé privada (o que deveria ser tolerado); b) exibição agressiva do fundamentalismo islâmico (o que deveria ser proibido); c)símbolo da subordinação feminina (o que é problemático já que a liberdade não se pode impor coercitivamente). Mas, conclui a autora,d) o chador pode significar, por parte de uma minoria cultural, linguística e religiosa, a reivindicação do reconhecimento público das próprias diferenças e identidades colectivas, socialmente marginais e facilmente objecto de preconceitos e de intolerância. A autora inclina-se para esta leitura entendida como mais congenial à democracia.

Uma abertura inclusiva deste tipo, em vez de dar espaço ao fundamentalismo islãmico, pelo contrário, reforça, para o Estado, a possibilidade de exigir efectiva lealdade constitucional às diversas formas de expressão cultural ou religiosa (Galeotti, 1994: 58).

Conclusão

Este caso inclui exemplarmente todas as grandes questões que se põem à relação entre democracia e diversidade cultural, já que toca num elemento central do sistema democrático, a escola pública, onde se cruza a exigência de laicidade integral do Estado moderno com a emergência multicultural da sociedade civil, numa livre interacção de culturas que se exprimem no interior daquilo a que Habermas chama «patriotismo constitucional» (Verfassungspatriotismus). Se a escola pública não pode ser um lugar de culto, ela deve, todavia, constituir-se como canal de acesso cognitivo às diversas formas de expressão cultural. O uso do chador na escola, enquanto mera atitude existencial individual, ao lado de outras formas de representação externa de assunçõesinteriores, até pode representar o exemplo vivo da equidistância cultural do próprio Estado, mas também o exemplo de como o Estado pode abrir o espaço público às interacções culturais. Ou seja, fazer o contrário do integralismo religioso.
É claro que muitas formas culturais nas suas concretas articulações históricas, nos seus rituais socialmente assumidos – e, por exemplo, aquestão da poligamia até noCorão é problemática – poderão conter elementos não totalmente aderentes às disposições constitucionais. Mas aí intervém o direito positivo quando um sujeito jurídico em causa reivindicar os direitos e garantias consagrados na lei ou, então, quando a esfera pública não comportar desequilíbrios que possam pôr em causa a ordem constitucional, os princípios da liberdade e da igualdade. O Estado tem o dever de promover todas as condições necessárias à plena emancipação do cidadão, para que este possa exercer a liberdade com todas as consequências. Uma cidadã francesa pode optar pelos princípios corânicos da religião islâmica mantendo-se leal aos princípios constitucionais. Ela pode, no plano político, optar pelo voto nos partidos que melhor representam a laicidade do Estado, enquanto é esta que lhe permite abraçar a religião islâmica. Numa palavra, porque este sistema é o que melhor se adequa ao exercício da sua liberdade interior.
Uma sociedade multicultural pode constituir o contraponto construtivo a um Estado que cada vez mais tende a evoluir para formas de cosmopolitismo constitucional. O exemplo europeu bem pode servir de ponto de partida para uma reflexão em torno desta questão. Se é interessante seguir as reflexões de um Federico Chabod acerca da ideia de Europa (Chabod, 1984), de uma identidade político-cultural europeia, é ainda mais interessante reflectir sobre a recomposição multicultural que esta mesma Europa está hoje a sofrer. A universalidade de que a Europa se reivindica, quer no plano político-constitucional quer no plano ideal, é perfeitamente componível com culturas que exprimem também uma universalidade que está inscrita nos seus nexos doutrinários primordiais ou originários mais profundos. E, se assim for, isso significa que a interacção produtiva e criativa é possível e desejável no quadro do moderno Estado democrático. Concluiria dizendo que a cultura é a verdadeira condição da tolerância.

Referências Bibliográficas

BAUSANI, Alessandro (1988) Introduzione a «Il Corano», Milano, Rizzoli.
CHABOD, Federico (1984) Storia dell’idea d’Europa [1961], Roma-Bari.
GALEOTTI, Elisabetta (1994) Il fascino discreto di un chador, in Reset, Roma, n.º 10, Outubro de 1994.
GRAMSCI, Antonio (1975), Quaderni del Carcere, Torino, Einaudi.
HABERMAS, Jürgen (1991) Cittadinanza e Identità Nazionale, in MicroMega, Roma, 5/91.
KANT, Emmanuel (1966) Critique de la Raison Pratique, Paris, PUF.
RICOEUR, Paul/ ROCARD, Michel (1991) Giustizia e mercato, in MicroMega, Roma, 2/91.
RAWLS, John (1995) Hiroxima cinquant’anni dopo, perché non dovevamo, in Vários, 1995.
VÁRIOS (1995) Hiroxima, non dovevamo, Roma, Reset.