O “GRILLO” CANTA SEMPRE AO CREPÚSCULO…
João de Almeida Santos

Palazzo del Quirinale, Roma, residência do Presidente da República.
Aqui se decidirá o futuro político de Itália, após eleições
legislativas que deixaram o país político mais uma vez fragmentado
e sem uma clara solução de governo. A palavra ao Presidente Sergio
Mattarella.
RECUPERO O TÍTULO de um livro de Beppe Grillo, Gianroberto Casaleggio
e Dario Fo ("Il Grillo Canta Sempre al Tramonto", Milano,
Chiarelettere, 2013) em forma de diálogo inspirado num livro de
Luciano de Samósata, “A nau, ou seja, os desejos”, escrito no
II Século d. C., uma viagem, em forma de diálogo, ao futuro como
solução dos males do presente.
Os dados relevantes
Grillo e Casaleggio, naquele momento, já estavam a caminho do futuro.
Em 2013. E em marcha acelerada. Nas eleições desse ano foram a
primeira força política, com 25.5% e 8 milhões e 689 mil votos,
para a Câmara dos Deputados. E, agora, em 2018, são de novo a maior
força política, mas desta vez com 10 milhões e 617 mil votos, a cerca
de 14 pontos de diferença do Partido Democrático. Um triunfo
esmagador, a outra face da esmagadora derrota do Partido Democrático
(PD).
Vale a pena ver alguns números comparativos (relativamente às
eleições de 2013): o Movimento5Stelle (M5S) aumentou em cerca de
2 milhões de votos o score eleitoral, tal como a direita, que obteve
mais 2 milhões e duzentos mil votos. O Partido democrático perdeu
cerca de 2 milhões e meio de votos. E se, com toda a probabilidade,
um milhão foi para Liberi e Uguali - os que, inspirados por Massimo
D’Alema, saindo do PD, acabaram por acentuar a espiral negativa que
começou com a desastrada iniciativa do referendo constitucional de
Renzi -, para onde foi um milhão e meio de votos? A resposta parece
não ser difícil.
A novidade
Mas a grande novidade para que há que olhar é, de facto, a
consistência eleitoral do M5S e o seu triunfo esmagador sobre o seu
directo concorrente, o PD. As sondagens, ao longo de anos, davam o PD
à frente, embora com uma pequena percentual de avanço. A coligação
de direita não é uma novidade porque os governos Berlusconi sempre
resultaram desta mesma fórmula (FI, Lega Nord e Alleanza Nazionale).
Nem os seus resultados foram muito significativos, apesar da forte
subida em relação a 2013. A ala mais de direita, diria mesmo,
de extrema direita (Lega + Fratelli d’Italia, os legítimos herdeiros
de Alleanza Nazionale), essa sim, é que garantiu uma boa performance
ao conseguir quase 22% do eleitorado. Ao mesmo tempo, o PD entraria
numa espiral negativa que não se sabe como acabará, vista,
por um lado, a sua tendência reiteradamente suicida e, por outro,
a progressiva perda de identidade político-ideal que tem, como tantos
outros partidos partidos socialistas e sociais-democratas, vindo a
sofrer.
O MoVimento5Stelle
Uma coisa é certa. Os grandes vencedores foram os partidos
anti-sistema e as várias frentes temáticas que fazem deles partidos
vencedores: contra o establishment, político e mediático; contra a
imigração; contra a União Europeia; devolução do poder ao povo,
contra a “casta” que tem vindo a governar Itália. Destes partidos,
aquele que representa a maior novidade é o M5S, um partido digital
que quer uma república digital, uma cidadania digital e uma
democracia digital directa, que tem como sua base de apoio o povo
da rede, que pensa o poder numa lógica “bottom-up”, o contrário da
lógica vertical e unidirecional com que o establishment tem exercido
a política. O exercício de uma democracia directa de matriz digital
é permanente através do portal do M5S e do Blog de Beppe Grilo,
transformando, curiosamente, o sistema representativo em simples
instrumento do verdadeiro meio digital onde se processa a decisão
política, a Rede. Numa palavra, a alternativa aos partidos
tradicionais não só já está formulada como já está criada, sendo já
politicamente maioritária e vencedora em Itália. Coisa que, de resto,
já se previa. Ao mesmo tempo, assistimos à débâcle do Partido
Democrático. E não só pelas proverbiais tendências suicidas da
esquerda italiana, mas sobretudo pela evolução estrutural da
sociedade italiana e da cidadania. (Sobre o M5S veja o meu ensaio:
A Política e a Rede: os casos italiano e chinês)
O que está a mudar
Gostaria, pois, de dizer algumas palavras sobre esta questão.
Tradicionalmente, os partidos de esquerda viam a participação
política ancorada sobretudo no “sentimento de pertença” e na “ética
da convicção”. A decisão política era motivada sobretudo por este
sentimento. A partir dos anos cinquenta do século passado, mas
sobretudo dos anos noventa, com a expansão dos media, começou a
impor-se a tendência para a emergência de um indivíduo informado
e portador de múltiplas pertenças, que não só da partidária.
Com a rede, esta tendência não só evoluiu como tornou este indivíduo
ainda mais autónomo. Viria a ser designado como “prosumer”, como
consumidor e produtor de informação e de política, capaz de se
auto-organizar e de se automobilizar, rapidamente, de modo flexível
e de forma temática. Este indivíduo ainda não foi devidamente
reconhecido pelo tradicional sistema de partidos, que se continuou
a reproduzir de forma orgânica e endogâmica, perdendo cada vez mais
o contacto com uma cidadania que, entretanto, se transformou
radicalmente. As novas plataformas de auto-organização e de
automobilização já estão no terreno e chamam-se, por exemplo,
MoveOn.org ou Meetup e já conhecem um poderoso desenvolvimento
nos Estados Unidos. Ora o M5S – que utilizou a plataforma Meetup -
trabalha sobretudo neste registo e faz-se intérprete da literacia
digital, em particular daqueles que serão os futuros dirigentes,
os jovens de hoje e, em parte, já os de ontem.
Esta mudança já está em curso em todo o mundo, sobretudo se tomarmos
em consideração dois dados muito simples: mais de metade da população
mundial é user na Rede e cerca de dois biliões de pessoas têm
Facebook.
A Itália representa, assim, uma fase avançada desta tendência
estrutural, estando já a operacionalizá-la politicamente, atendendo
à expressividade da votação conseguida pelo M5S. E esta é, sim, a
grande novidade do caso italiano.
E agora, Presidente Mattarella?
Acontece que o sistema eleitoral italiano, uma combinação de
maioritário simples para 37% dos mandatos com 61% de proporcional
levou, como era de esperar, à fragmentação partidária, impedindo
o vencedor de governar por falta de mandatos que garantam a aprovação
do programa de governo e a estabilidade governativa. Mesmo assim, é
dever do Presidente da República, Sergio Mattarella, indigitar ou um
expoente da coligação de direita vencedora (mas somente com 35,8%)
ou Luigi di Maio, do M5S (com 32,7%). De qualquer modo, nenhum terá
condições para formar governo se não conseguir uma coligação que
sustente estavelmente o governo. E não creio que possa haver uma
coligação entre a coligação vencedora e o M5S. Assim, a única
coligação que poderia garantir numericamente uma maioria absoluta
seria a do M5S com o PD, estando esta possibilidade já em cima da
mesa e começando a provocar fortes fricções no interior do PD,
onde uns querem ir para a oposição e outros experimentar a aliança,
embora a esmagadora maioria dos dirigentes pareça preferir ir para
a oposição. O que se compreende, perante o risco de o PD poder vir
a ser fagocitado pelo M5S e reduzido a partido insignificante.
De resto esta solução até poderia vir a provocar outras cisões,
a acrescentar à que já se verificou, com os resultados que conhecemos.
A Itália, por outro lado, tem uma longa tradição de governos
institucionais e uma pequena tradição de governos minoritários,
por isso, a solução parece inclinar-se mais para um governo de tipo
institucional do que para uma solução estritamente política, de
difícil concretização.
Conclusão
De qualquer modo, estamos perante três factos que devem fazer pensar
as forças políticas que têm vindo a assegurar a governação na maior
parte dos países da União Europeia, sendo também certo que, aqui,
algumas forças de governo actuais já manifestam claras tendências
anti-sistémicas: (a) reforço claro da extrema direita, com um score
eleitoral de cerca de 22%; (b) forte afirmação de uma força política
de novo tipo claramente alternativa aos partidos tradicionais; (c)
queda dos partidos tradicionais. Acresce ainda o reforço
significativo da tendência anti-imigração e a ruptura da tradicional
posição pró-União da Itália.
A Itália sempre foi politicamente muito complexa e, algumas vezes,
pioneira. É um caso a seguir com muito interesse, precisamente pela
consistência que o neopopulismo digital italiano tem vindo a
demonstrar e que nestas eleições (já dera sinais evidentes nas
anteriores eleições locais, ao conquistar Roma e Turim) reforçou
ao ponto de se tornar inequivocamente o primeiro partido político
italiano, seja na Câmara dos Deputados seja no Senado. E,
naturalmente, no País.