Artigo

O POETA E OS FANTASMAS

Conversando com T. S. Eliot

Por João de Almeida Santos

Jas_FOZ_1_2023

“Fantasmas”. JAS. 03-2023

“TENNYSON e Browning são poetas, e pensam; mas não sentem o pensamento tão imediatamente como o perfume de uma rosa” (Eliot, 2019: 30). Na sua aparente simplicidade, esta frase de Thomas Stearns Eliot (1888-1965) encerra em si toda uma concepção acerca da poesia: a que se define pela relação assimétrica entre a sensibilidade e o pensamento. Uma questão antiga, mas central.

I.

A SENSIBILIDADE do poeta regista de imediato, nessa zona indefinida e vasta que é a alma, os dados sensíveis, ao estabelecer uma relação sensorial com o mundo, enquanto o pensamento os representa e os compõe idealmente. A primeira situa-se no plano da génese e o segundo procede à recomposição simbólica dos dados registados pela sensibilidade. Uma inscreve-se na alma e o outro no espírito. A arte resulta da composição de ambos ou, para o dizer com Kant, do livre jogo das faculdades: a da imaginação e a do intelecto. Na construção de um poema, uma vez registados pela sensibilidade os aromas, mais acres ou mais doces, mais intensos ou mais leves, com os quais a realidade perfuma a sensibilidade e a alma do poeta, desenvolve-se precisamente este livre jogo entre o sentimento e a razão, entre a alma e o espírito. Inalar espiritualmente esses perfumes para depois os devolver recriados, como pauta, compostos de acordo com uma gramática poética, é a vocação do poeta. Sobretudo daqueles perfumes que embriagam. Como o perfume do jasmim, por exemplo. Ou o da alma de uma mulher sedutora a quem o poeta desastradamente quis confiar a alma, mas falhando a relação. As suas asas são demasiado grandes, qual albatroz em terra (Baudelaire), para poder mover-se nas estreitas vielas de uma infausta vida. Mas sempre de perfume se trata. De um diálogo do real com a sensibilidade, com a alma do poeta. Só o perfume, acre ou doce, talvez mais acre do que doce, pode gerar poesia e fazer levantar voo ao poeta. E é precisamente sobre ele que o poeta se eleva, encontrando nas palavras a correspondência, a leveza e a melodia que não foi capaz de metabolizar fisicamente perante a rugosidade concreta de uma mundana relação sensorial com tentadores perfumes. Ou talvez por isso mesmo. Uma relação que desencadeia, como imperativo, um processo de transfiguração.  A poesia, de certo modo, é a continuação do eros falhado, da pulsão de vida, por outros meios. Ela tem a sua própria gramática, embora talvez não tenha uma sua própria lógica, que é mais vasta, porque se inscreve na humanidade mais profunda do poeta, e que, por isso, o transcende, enquanto tal, enquanto poeta. Talvez seja isto que Eliot quer significar quando diz, a propósito de Yeats, que ”maturar como poeta, contudo, significa maturar como homem no seu todo” (2019: 119), ou a poesia como projecção e sublimação de uma experiência emocional profundamente humana, magmática, pulsional. Isto, mesmo que se considere que a poesia tem como fim ela própria, obedece exclusivamente à sua gramática, declinando-se internamente. Mas é esta sua inscrição matricial no humano que a torna existencialmente densa e lhe dá uma alta performatividade (com a ajuda da música). Ela é, sim, a continuação, por outros meios, da relação sensorial e anímica do poeta com o mundo, com os outros ou com os deuses. Só assim ele poderá levantar voo, com as suas asas de gigante, de albatroz, sobre o vasto e encrespado mar da vida.

II.

NIETZSCHE falava, em “A Origem da Tragédia”, de uma relação harmoniosa entre o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo na tragédia grega, a mais alta expressão do sublime. Do registo sensível dos estímulos e do seu tratamento racional. Enquanto no ser humano comum, vulgar, a experiência é caótica, irregular, fragmentária, no poeta ela acontece unificada numa síntese ordenada. Nessa mesma a que se dá o nome de poesia (2019: 30). E esta é autónoma e específica, e não é, para Eliot, uma meditação em forma poética. Aqui está outra distinção que considero importante. A poesia não é um instrumento ao serviço de interesses que lhe sejam estranhos, por mais importantes e sofisticados que sejam. Inscrevendo-se na esfera do pulsional, do emocional, ela vale pelo que é. Recebe estímulos, mas, depois, metaboliza-os poeticamente, dotando-os de uma gramática interna, de uma poética própria. Como ele diz, a poesia procura equivalentes verbais para estados de alma e sentimentos. E a lei não é ditada pela natureza dos estímulos, mas, sim, pelo próprio discurso poético. Os equivalentes verbais têm a sua própria gramática. “A palavra”, diz Italo Calvino. “liga as marcas visíveis à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte de acaso (di fortuna) lançada sobre o vazio” (Calvino, 1988: 74). A palavra como ponte entre o visível e o invisível em estado de levitação sobre um gigantesco vazio.

III.

A POESIA tem, por isso, uma consistente autonomia, mas também possui uma densidade talvez superior à das outras artes, mesmo à da música, graças à combinação dos dois elementos estruturais que a compõem, a sonoridade própria dos equivalentes verbais e o sentido, o valor semântico. Vejamos o que Eliot diz, no capítulo “De Poe a Valéry”, sobre a relação entre sentido e sonoridade na poesia:

A poesia, de diferentes espécies, pode dizer-se que oscila entre aquela em que a atenção do leitor se dirige primariamente para o som e aquela em que se dirige primariamente para o sentido. Com a primeira espécie, o sentido pode apreender-se quase inconscientemente; com a última espécie – nestes dois extremos – é o som de cuja acção nós estamos inconscientes. Todavia, em cada tipo, som e sentido devem cooperar; até no poema mais puramente dominado pela encantação, não se pode ignorar com impunidade o significado das palavras que os dicionários registam” (redondo meu; 2019: 166).

Podemos aqui traduzir som por sonoridade e sonoridade por musicalidade e constatar que Eliot defende a harmonia entre musicalidade (rima, toada, melodia) e sentido. Ou seja, a poesia incorpora a música como seu elemento natural na mesma proporção da semântica, do significado, do sentido. Esta componente musical confere à poesia um poder de influência sensitiva tal que incide directamente sobre a sua performatividade, o poder de dar às palavras o valor de uma acção, uma sua maior fisicidade, logo, uma maior pregnância sensitiva. Eliot fala de encantamento poético na poesia com maior densidade musical, onde a sonoridade domina e, consequentemente, onde maior é o apelo sensitivo ou sensorial. Mas mesmo aqui reconhece que não é possível esquecer a dimensão semântica do poema, o sentido. Sem dúvida, mas na minha própria experiência poética, quando tenho de usar uma palavra e decidir sobre a sua maior ou menor adequação ao verso relativamente a outra equivalente, mas não tão pregnante do ponto de vista da sua musicalidade, do seu valor musical, eu opto sempre por aquela, pela que melhor se adequa à toada do poema. Ainda que ela diminua o valor cognitivo do próprio verso. Ou seja, dou primazia à sonoridade. É claro que a harmonia é o equilíbrio desejável, mas no meu entendimento o poder da poesia deriva mais da musicalidade do que da semântica. Mas também é verdade que Eliot critica Edgar Allan Poe precisamente por também ele dar primazia à métrica, à rimática, à musicalidade. Por exemplo, no caso do uso da palavra “(no) craven”, no poema “The Raven”:

  “Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no craven,/ Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore— / Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!” / Quoth the Raven “Nevermore.” (redondo meu; Poe, 1845).

Aqui “no craven” surge, no entendimento de Eliot, somente para responder a uma exigência rimática. O sentido foi subordinado à sonoridade (2019: 166-167).  Mas a verdade é que, no meu entendimento, a sonoridade é decisiva pelo seu poder performativo, por ser a forma mais eficaz e directa de envolvimento sensitivo, de interpelação, de conversão física do acto poético, de transfiguração sensitiva do que se passa na alma do poeta. O que, todavia, não diminui o valor da semântica. Por outro lado, o momento apolíneo é importante porque é nele que a rugosidade, a aspereza do emocional é espiritualmente lapidada, como as pedras preciosas ou os cristais o são. Diz, Italo Calvino em Lezioni Americane:

Il cristallo, com la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce, è il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema” (1988: 69).

De literatura falava Calvino, mas tendo presente o que acontece na poesia e, mais concretamente, no exemplo de Paul Valéry (ou do próprio Mallarmé): “la personalità del nostro secolo che meglio ha definito la poesia come una tensione verso l’esattezza” (1988: 66). Tensão orientada para a exactidão. Para a perfeição. Mas acrescenta, um pouco à frente, uma ideia que pode resumir de forma extraordinária o que acontece na poesia: “cristallo e fiamma, due forme di bellezza perfetta da cui lo sguardo non sa staccarsi” (1988: 70). Cristal e chama, as duas dimensões essenciais que formam a poética, a génese e a forma. Exactidão, refracção e fogo – os elementos que fazem da poesia uma arte bela e existencialmente densa e intensa.

IV.

NO CAPÍTULO sobre Baudelaire, referindo-se ao poeta francês, Eliot diz:

tendo grande génio não tinha nem a paciência, nem a inclinação, tivesse ele tido o poder, para dominar a sua fraqueza; pelo contrário, explorava-a com fins especulativos” (2019: 62).

Palavras que fazem lembrar o que Nietzsche disse dos poetas, em “Para Além do Bem e do Mal”:

Os poetas são impudentes em relação às suas próprias experiências: eles exploram-nas” (“Die Dichter sind gegen ihre Erlebnis schamlos: sie beuten sie aus” – Aforismo 161; Nietzsche, 1924).

Poderia parecer que o poeta pura e simplesmente instrumentaliza os sentimentos, as relações, como matéria-prima para fazer poesia. Uma relação de produção como qualquer outra. Mas não é assim, porque essa relação é sofrida, vivida, experimentada como fracasso, como perda, como naufrágio. Usaria as palavras que Calvino usou em geral para a literatura: “credo che sia una costante antropologica questo nesso tra levitazione desiderata e privazione sofferta. È questo dispositivo antropologico che la letteratura perpetua” (1988: 28; itálico meu). Privação sofrida – a condição da levitação poética. O modo de produção poético é de natureza existencial e está ligado à própria génese da poesia. Ela nasce de uma perda e como imperativo, como exigência, tendo como destino a redenção. Pecado e redenção, diz Eliot, referindo-se a Baudelaire. E acrescenta, um pouco à frente: Baudelaire “foi um daqueles que têm grande força, mas força meramente para sofrer. Não conseguia fugir ao sofrimento e não conseguia transcendê-lo, portanto, atraía a dor” (2019: 62). Sim, instalado num permanente desconforto que não conseguia superar. Talvez ele próprio também fosse genuinamente como o poeta a que se refere, em Les Fleurs du Mal, no capítulo “O Albatroz”:

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher

(Baudelaire, 1857-1861)

As suas asas de gigante impedem-no de caminhar. Uma bela figura de estilo, esta. A referência ao albatroz. O desconforto do poeta em relação à realidade, que o agride (“sur le sol au milieu des huées”), talvez se deva, sim, à dimensão da sua personalidade como poeta, feito, como o albatroz, mais para voar alto do que para responder confortavelmente às asperezas da vida. Talvez o poeta seja mesmo desajeitado no palco da vida. Sofra, nela. Talvez o seu mundo seja de outra dimensão. E, talvez por isso, ele sofra de acedia, de uma melancolia profunda que o enfraquece e lhe causa uma dor de que não pode libertar-se. A condição de poeta, diria: ele está condenado a viver em estado de “danação”, a única forma de se libertar “do ennui da vida moderna” (2019: 66). “L’enfer c’est les autres”, como dizia Sartre em Huis Clos? Pecado, sim, mas também, ou por isso mesmo, redenção. Baudelaire, diz Elliot, “compreendeu que o que realmente importa é o pecado e a redenção”. E a poesia, filha da fraqueza, da dor e da acedia, redime. Ela é também filha da nostalgia, é “poésie des départs”, “poésie des salles d’attente”. Poesia de evasão, do que não se pode alcançar nas relações pessoais, mas que se pode obter através das relações pessoais (2019: 67). Porque através delas, da sua irredutibilidade à vontade do poeta, ele se eleva mais alto, metabolizando-as metaforicamente por um processo de transfiguração fantasmagórica e onírica. A “vocação superior” da “danação” talvez fosse o seu maior poder. E dele, deste poder, resultava o superior exercício da vocação poética (2019: 68).

V.

NO CAPÍTULO sobre Wordworth e Coleridge, texto de 1932, Eliot, falando de S. T. Coleridge (1772-1834), faz uma declaração fatal para os poetas. Diz ele:

“durante alguns anos fora visitado pela musa (…) e desde então foi um homem perseguido por fantasmas; porque seja quem for que alguma vez tenha sido visitado pela Musa é daí em diante perseguido por fantasmas (…). “O autor de Biographia Literaria era já um homem destruído. Por vezes, contudo, ser um ‘homem destruído’ é em si uma vocação” (2019: 86-87; itálicos meus).

Também aqui não poderia deixar de relembrar o que Franz Kafka disse, numa das Cartas a Milena, de Março de 1922,  acerca das cartas, do beijo e, precisamente, dos fantasmas:

“Mas escrever cartas significa desnudar-se perante os fantasmas, o que eles avidamente esperam. Beijos escritos não chegam ao seu destino, mas são bebidos pelos fantasmas ao longo do trajecto. Através deste abundante alimento multiplicam-se, assim, de forma incrível” (itálicos meus; Briefe schreiben aber heisst, sich vor den Gespenstern entbloessen, worauf, sie gierig warten. Geschriebene Kuesse kommen nicht an ihren Ort, sondern werden von den Gespenstern auf dem Wege ausgetrunken. Durch diese reichliche Nahrung vermehren sie sich ja so unerhoert – Kafka, 1922).

Mas o que são os poemas senão encontros com a musa? Cartas de amor? E o amor não é um mundo de fantasmas que atormenta os seres humanos e muito mais ainda os poetas, por eles perseguidos desde que a musa os visitou? E se há musa há eros. Eliot sintoniza plenamente com Kafka e colhe uma das dimensões essenciais da poesia, precisamente a do seu destino. Por princípio os poemas não chegam à musa que os inspira. Aquela que, um dia, visitou o poeta. Dessa visita, nasceu o poeta e surgiram os fantasmas. Ou seja, eles surgiram já em ambiente poético e, por isso, alimentam-se e reproduzem-se através da poesia, bebendo os poemas ao longo do trajecto que tem como destino inalcançável a musa do poético pecado, o invisível, o que se perdeu. Os fantasmas cumprem a função que o destino lhes reservou. Só assim se podem reproduzir. Poeta e fantasmas, todos eles filhos do encantamento da musa. Pecado mortal. Como se ela fosse a fonte inesgotável da fantasia e da fuga e ao mesmo tempo o seu trágico destino. E é isso que, de algum modo, “destrói” o poeta, porque não vê as suas cartas de poético amor chegarem ao destino. Mas é esse precisamente o seu destino, serem os poemas bebidos pelos fantasmas ao longo do seu percurso, naufragando durante a viagem. Sim, e até Giacomo Leopardi, no poema “L’Infinito”, viu “dolcezza” neste naufragar: “e il naufragar m’è dolce in questo mare”. A doçura que a melodia do poema transmite mesmo quando se trata de “experiências de angústia”, como diz Calvino (1988: 62-63), de naufrágio, de perda, de fracasso, de impossibilidade. A poesia é filha da melancolia, da nostalgia e da impossibilidade, por perda irreparável ou por fracasso.

VI.

NA INTRODUÇÃO a The Waste Land é referida uma curiosa declaração de Eliot numa entrevista que deu sobre este seu poema e sobre as intenções que tinha ao escrevê-lo:

Eu sei lá o que é que ‘intenção’ quer dizer! Uma pessoa quer é ver-se livre de alguma coisa que lhe pesa no peito. Não sabemos que coisa nos pesa no peito antes de a conseguirmos tirar de lá” (Eliot, 2016: 65).

Também se pode ler nesta introdução o seguinte: “a crítica foi incapaz, ao longo de muitos anos, de ver em The Waste Land a expressão de um profundo conflito subjectivo que, contextualizando-se na crise psicológica vivida por Eliot no período em que escreveu o poema, foi neste elevado à representação artística do confronto entre a grandeza das aspirações da alma e a prosaica mediocridade do mundo” (Eliot, 2016: 66). Aqui está. De uma coisa tinha Eliot a certeza: queria libertar-se do que lhe pesava no peito, sendo certo que só essa libertação lhe poderia identificar a natureza dessa opressão. A verbalização poética como efeito reparador e redentor porque traz à consciência o que oprime, o que provoca infelicidade. Não estamos no mundo dos confessionários para o pecado nem no dos divãs psicanalíticos para acesso ao que está recalcado, mas, sim, numa arte que liberta e redime. Uma dialéctica virtuosa entre a mediocridade do mundo e a grandeza de alma que ganha corpo no discurso poético, embora, que se saiba, Eliot passava, de facto, nesses tempos por uma grave depressão psicológica (que, de resto, teve de ser tratada por meios médicos). Na verdade, não importa que essa “depressão” seja psicológica ou existencial. Ou até mesmo metafísica. Ou religiosa. O que importa verdadeiramente é o sentimento de impossibilidade que agita o poeta e o seu desejo de caminhar sobre uma ponte de palavras levantada sobre um imenso vazio e que une o visível e o invisível, o sensível e o desejo de sobre ele levitar.

VII.

ESTES SÃO, no meu entendimento, aspectos com que uma reflexão sobre a arte poética tem necessariamente de se confrontar. E fazê-lo com poetas que reflectiram sobre a sua própria arte e, neste caso, com alguém considerado também, além de grande poeta, um grande crítico literário, laureado com o Prémio Nobel, em 1948, é não só reconfortante para quem lida diariamente com esta difícil e delicada arte, mas também tecnicamente muito útil para o próprio exercício poético. É claro que se trata de duas dimensões muito diferentes, mas de algum modo tem razão Edgar Allan Poe quando valoriza mais, na sua Poética (2016: 5), as reflexões dos próprios poetas sobre a arte que praticam do que as reflexões dos que, não a praticando, sobre ela se debruçam.

NOTA (LATERAL) SOBRE T.S.ELIOT

PARA um enquadramento ideológico e político do Nobel T. S. Eliot (as suas idiossincrasias sobre os negros, os hebreus e as mulheres) veja-se o pequeno e interessante ensaio do Professor Dario Calimano, Full Professor da Universidade Ca’Foscari, de Veneza: “Le Oscenità di T. S. Eliot” (Calimano, s/d).

REFERÊNCIAS

BAUDELAIRE, Ch. (1857 e 1861). Les Fleurs du Mal. Dedicado ao “Poète Impeccable”, Théophile Gautier. Link: http://elg0001.free.fr/pub/pdf/baudelaire_les_fleurs_du_mal.pdf)

CALIMANO, D. (S/d). “Le Oscenità di T. S. Eliot”. In https://iris.unive.it/retrieve/handle/10278/18882/19740/Oscenità%20di%20Eliot.pdf

CALVINO, I. (1988). Lezioni Americane. Milano: Garzanti.

ELIOT, T. S. (2019). Ensaios Escolhidos. Lisboa: Relógio d’Água.

ELIOT, T. S. (2016). Poemas Escolhidos. Lisboa: Relógio d’Agua.

KAFKA, F. (1922). Briefe an Milena. In https://docplayer.org/54278-Franz-kafka-briefe-an-milena.html

KANT, I. (1790). Kritik der Urteilskraft. In: https://www.pdfdrive.com/kritik-der-urteilskraft-d184363523.html

NIETZSCHE, F. (1924). Jenseits von Gut und Böse. Leipzig: Alfred Kroener Verlag. In https://www.bard.edu/library/arendt/pdfs/Nietzche_JenseitsvonGutundBose.pdf

NIETZSCHE, F. (1872). Geburt der Tragödie. Leipzig: Verlag von E.W. Fritzsch.

POE, E. A. (2016). Poética. Lisboa: FCG, 2.ª Edição.

POE, E. A., (1845). “The Raven”. First published by Wiley and Putnam, 1845, in The Raven and Other Poems ​​​​​​​by Edgar Allan Poe. Poetry Foundation: https://www.poetryfoundation.org/poems/48860/the-raven). Jas@03-2023

Jas_FOZ_1_2023Rec

 

Poesia-Pintura

A VELHA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Pintora e
o Tempo”. Original de
minha autoria.
Poema inspirado numa frase 
atribuída a Clint Eastwood: 
"Don't Let The Old Man In".
Fevereiro de 2023.
JAS_Pintora_Pub_2602_1

“A Poetisa e o Tempo”. JAS. 02-2023

POEMA – “A VELHA”

DISSESTE-ME UM DIA:
“Não deixo
A velha entrar,
Da arte,
É o segredo,
Pois se a intrusa
Chegar
Vai o estro
Declinar
E eu entro
Em degredo”.

E ATÉ PODE SER
 Teimosa,
Bater à porta
As vezes que ela
Quiser,
Mas eu nunca 
Abrirei,
Nem quando o sol
Se puser.

É ARTE
A minha vida,
E é cedo demais,
É cedo,
Pra ver
A velha cantar
O fado
Da despedida. 

QUANDO O TEMPO
Te captura
Com a tenaz
Da velhice,
Pode tornar-se
Sombrio
E caíres
Em solidão,
Morte lenta,
Indiferença,
Uma implacável
Descrença
E não haver
Redenção.

A PENUMBRA
É sempre lenta
E dói,
O tempo
Não te socorre,
Na sombra
Ele corrói
E quando os olhos
Não choram
É o futuro
Que morre.

A VIDA
É movimento,
Poesia,
É canto,
É choro,
É melodia,
Namoro,
É ver pássaros
Voar,
É sentir “vento
No rosto”,
É receber
E é dar,
É construir
O futuro
Para nele
Viajar
Com asas
De fantasia
Para nos céus
Navegar.

MAS A VELHA
Está cansada,
Já só pensa
No passado,
Nada mais
Lhe dá prazer,
Só vê na vida
Doença,
Só vê na vida
Pecado,
Já nem sabe
O que é viver.

FICO VELHA
Como ela
Se a deixo
Em casa
Entrar,
Recuso 
A atimia,
Pois há vida
Pra fruir,
Há futuro
Em cada dia
E há tanto
Para dar...

E QUANDO
Um dia
Partir
Para nunca
Mais voltar,
Parto jovem,
Com a vida,
E deixo
A velha ficar.

JAS_Pintora_Pub_2602Rec

Artigo

A POLÍTICA TABLÓIDE

E a Crise da Democracia

Por João de Almeida Santos

Ballot box

“S/Título”. JAS. 02-2023

NORMALMENTE, A CATEGORIA “TABLÓIDE” aplica-se ao universo da comunicação mediática. O nome tem a ver com o formato dos jornais e com o tipo de imprensa que antes se designava por imprensa amarela, já nos finais do século XIX, nos Estados Unidos. Imprensa popular. Uma imprensa que sempre explorou o básico da natureza humana. Eu defino-a através de uma simples palavra: o negativo (embora nesta categoria caibam outras características mais concretas, o drama, a catástrofe, o emocional, o íntimo, o sexo, entre outras). A exploração do negativo em todas as suas variantes, em todos os seus géneros. A exploração dos instintos primários do ser humano. O objectivo é claro: atrair a atenção, aumentar a audiência e vender publicidade para ganhar poder junto dos consumidores e, naturalmente, reforçar o poder financeiro. Comércio puro, lá onde um importante bem público desce à categoria de mera mercadoria. E, naturalmente, deste modo, também ganhar poder e influência junto do poder político, de forma cada vez mais intensa, numa espiral mercantil que se afasta cada vez mais dos códigos éticos. Em geral, do que se trata é simplesmente de obter sempre mais poder, em todas as dimensões. À imprensa tablóide (quase) nada interessam os chamados códigos éticos ou a função social dos media. Nada interessam normas que já vêm do século XVII, desde o chamado Código Harris, de 1690, passando, depois, pelo da famosa Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (1751-1772), e que haveriam de se consolidar naquele que é considerado o primeiro código, em 1910, o chamado Código de Kansas, expandindo-se, depois, numa multiplicidade de códigos, de que destaco, pela sua importância, a resolução 1003, de 1993, sobre a “Ética do jornalismo”, do Conselho da Europa. O que, no final do processo, interessa a esta imprensa é a dimensão da audiência nem que para isso faça do mexerico a única razão da sua existência e da sua actividade. Ainda por cima, a coberto da chamada liberdade de imprensa, da sagrada liberdade de imprensa, consignada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e na, tão exibida, I Emenda da Constituição dos Estados Unidos, de 1791.

I.

 EM BOA VERDADE, os géneros do tablóide são muitos. Tantos como os géneros informativos. E os media que os praticam podem ser divididos em dois tipos: os que são abertamente tablóides e o assumem; e os que, praticando um tabloidismo mais sofisticado, o disfarçam, exibindo uma folha de serviços prestados à cidadania, normalmente denunciando os abusos de poder (e bem) e reivindicando até o poder de oposição ao poder democrático instalado e legitimidade para isso (e mal, como dito na referida “Ética do Jornalismo”, com Conselho da Europa). Mas o verdadeiro problema começa quando a missão estratégica dos media se converte exclusivamente em informação sobre o negativo (desastres, corrupção, escândalos, etc.). Quando a ideologia do negativo se torna sistémica. Isto, num poder que já na segunda metade dos anos 30 do século XIX, em “Da Democracia na América”, Alexis de Tocqueville o considerava, além do poder soberano do povo, o primeiro poder. Um poder que, na sua matriz, acolheu espontaneamente a ideia liberal de liberdade: a liberdade negativa. O que nos inícios fazia sentido, perante o absolutismo e os regimes censitários, com a liberdade cerceada pelo poder invasivo e exclusivo do monarca e do Estado, mas que, hoje, já não se adequa às sociedades plenamente democráticas. Até porque, a partir de Bismarck, se desenvolveu, paulatinamente, o próprio Estado Social.  Na história da imprensa, esta concepção pode ser considerada dominante e, hoje, ainda mais, pois alia a esta concepção negativa de liberdade (perante o poder invasivo do Estado) o culto da categoria do negativo como princípio informativo dominante, por razões de audiência, de publicidade e de autofinanciamento, numa época em que o Estado já se retirou da área da informação (e bem), enquanto proprietário. Ou seja, dois em um. O que torna os media, e em particular a televisão, “príncipe dos media”, na expressão de Denis McQuail,  poderosos centros de poder. E uma espécie de justiceiros electrónicos ou digitais (em todos os géneros informativos) com a respectiva componente punitiva e pública: o pelourinho electrónico. Condenam e castigam, vigiam e punem. Ou seja, os media que, substituindo-se ao povo soberano, se assumem como o seu autêntico intérprete ou oráculo (“os espectadores gostariam de saber…”, dizem entrevistadores sem mandato) em aberto e permanente antagonismo ao poder político, o ponto de, paradoxalmente, se tornarem a sua outra face. Há neste fenómeno um processo de identificação: os media são o negativo lógico do poder e por isso partilham da mesma natureza ou identidade, do mesmo género. Duas espécies do mesmo género – o poder. Até que, por fim, cheguem – já chegaram, mais uma vez – os apóstolos militantes da política tablóide, os que assumem e metabolizam essa identidade: esses que reivindicam o poder para o devolverem simbolicamente ao povo através da mediação do oráculo que, dirão, ouve directamente a sua voz. Uns e outros ao serviço do povo soberano na gestão do poder, o seu género comum, com o povo a desaparecer de cena perante a nova dialéctica entre os mediadores – política e media. Este processo foi brilhantemente desmontado por Karl Marx na “Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito Público” (Kritik des Hegelschen Staatsrechts), de 1843, e sobre ele haveria de se afirmar a famosa escola dellavolpiana, em Itália.

II.

BEM SEI, porque a frequento, que há boa imprensa (sobretudo imprensa escrita), mas a tendência mais frequente, transformando-se em tendência sistémica, sobretudo no audiovisual, é esta. O ambiente mediático português é um exemplo muito ilustrativo, em particular o dos telejornais em canal aberto. Ora eu creio que, seja ou não o poder mediático a outra face da moeda do poder, irmão gémeo do poder político, também a política, talvez por clonagem, se tem vindo a tornar sobretudo política tablóide, como se vê pelo fenómeno populista em crescimento na Europa e por esse mundo fora. Também esta política se alimenta sobretudo (ou exclusivamente) do negativo, neste caso, denunciando as elites dirigentes, os intermediários institucionais, seja na política seja na comunicação (os inimigos de Trump eram as elites de Washington e os media), e reivindicando o direito de devolver o poder e o saber confiscados ao povo soberano, nem que seja através de tweets ou de publicidade 4.0. Mas não é só aqui que este género político acontece. Ele acontece quando os protagonistas pretendem afirmar-se politicamente usando exclusivamente a arma do negativo, da denúncia, do dedo apontado, confiantes de que essa arma lhes dará notoriedade, capacidade de polarização da atenção social sobre eles e de que, consequentemente, a notoriedade lhes dará força social, eleitoral e política. Um processo em tudo igual ao da imprensa tablóide. Esta técnica tem vindo crescentemente a ser usada em todos os géneros, incluindo até nos personagens que, por uma razão ou por outra, ocupam os interfaces da comunicação, usando-os com esta categoria para reforçarem a sua presença no espaço público e, consequentemente, o seu próprio poder e notoriedade pessoal. Hoje usa-se, nas plataformas digitais, essa palavra miraculosa que até passou a designar uma profissão: “influencers”. Os “maîtres à penser”, primeiro, deram lugar aos “opinion makers” que, agora, com as redes sociais, se tornaram “influencers”. Dos filósofos aos idiotas de serviço. Muitos deles, sejam eles “opinion makers” ou “influencers”, aplicando o negativo às suas próprias famílias políticas, na convicção de que, assim, o “produto” se revelará mais apetecível e até mais credível. Roupa suja lavada na praça pública pelos membros da família. Exemplos em Portugal não faltam. Em todas as tendências políticas.

Na verdade, desde que a televisão ocupou, a partir dos anos cinquenta, sobretudo nos Estados Unidos, o centro da comunicação social, este processo de tabloidização da política tem vindo a crescer, na própria medida do crescimento dos media. É um fenómeno bem conhecido de todos os que estudam as relações entre a comunicação, os media e a política. As teorias dos efeitos sociais e cognitivos dos media. Mas talvez nunca como hoje se tenha verificado um uso tão despudorado desta categoria, o tabloidismo, na comunicação e na política, sem ninguém que consiga pôr cobro a isto, apesar de a enxurrada tablóide pôr o país em depressão e de o fenómeno do mimetismo alastrar, em grande escala.

III.

NA VERDADE, estamos já perante uma poderosa ideologia que, aliada à ideia de liberdade negativa, à ideia de que os media são contrapoder e à protecção constitucional e legal de que dispõem, tem uma eficácia e um impacto difíceis de combater. Porque, munida destas características, apela aos instintos mais básicos da natureza humana para polarizar a atenção social. E não serve de distracção sobre o que vai mal na informação mediática invocar as redes sociais como o império do mal e do vulgar porque basta abrir os telejornais das oito para constatar até à náusea o que é o tabloidismo mais desbragado. Os populismos também são filhos directos desta ideologia, tal como todos aqueles que, vivendo em democracia, reduzem a sua vida e a razão da sua existência à procura do negativo, sob as mais variadas formas, para logo o exibirem publicamente sem se preocuparem (ou, pelo contrário, alimentando-se deles) com os efeitos que essa exibição sistemática pode ter quer sobre a sociedade em geral quer sobre os indivíduos singulares objecto de atenção. Seja nos media seja nas redes sociais. Castigadores justiceiros com a missão de resgatar o povo oprimido. Política-espectáculo e  comunicação-espectáculo, fazendo-nos recordar sempre o célebre livrinho do Guy Debord, La société du Spectacle (1967). O justicialismo político entra directamente nesta categoria, sendo certo que ele possui as mesmas características do tabloidismo mediático.

IV.

ESTA DEGENERESCÊNCIA é o que vamos tendo cada vez mais, num abraço infeliz da política com este tipo de comunicação, em nome do povo e das audiências. Se, depois, a isso se juntar essa aliança espúria da comunicação e da política com o poder judicial teremos a receita perfeita para uma ruptura democrática. Lawfare. O caso brasileiro e o percurso do juiz Sérgio Moro podem servir de exemplo. E o que acaba por sobrar em tabloidismo vai faltar em ideias para a governação e para a construção do futuro, para a devolução à política da ética pública, para a mobilização política e comunicacional da cidadania, para o seu crescimento civilizacional e cultural, para a promoção da cidadania activa. Numa palavra, faltará uma concepção de política em linha com o que de melhor a democracia representativa ou deliberativa, tem para nos dar.

V.

ESTE TIPO DE COMUNICAÇÃO E DE POLÍTICA representa uma visão essencialmente instrumental de ambas: mero meio para aumentar as audiências ou o eleitorado e, em nome deles, intervir na sociedade. A política e a comunicação como instrumentos para alcançar um poder que, no fundo, acabará por tender a conceber-se como impolítico. Isto representa o triunfo do pior maquiavelismo, a negação da ética pública, mesmo quando se fala dela à exaustão e dela se serve para alcançar o poder, a política reduzida a pura retórica instrumental ao serviço da fria conquista do poder e não autogoverno da cidadania e instrumento para a transformação da sociedade. Esta política corresponde, pois, à fusão integral da comunicação e da política naquilo que ambas têm de pior, completando a fase em que a política adoptou as categorias, os tempos e a organização da comunicação mediática para atingir e conservar o poder. Há um exemplo muito elucidativo desta fusão e da forma mais avançada de política tablóide: Berlusconi, em 1993-1994. Ou seja, a captura integral da política pelo poder mediático, não só no plano da factualidade, mas também no plano da sua subordinação integral ao poder comunicacional, à sua organização, à sua lógica e à sua relação com a cidadania. Em palavras simples: Berlusconi geriu a política com as mesmas categorias com que geriu o seu império mediático, transferindo armas e bagagens da holding televisiva para o aparelho do partido (incluídos os especialistas em sondagens sobre as audiências, por exemplo, o sondagista Gianni Pilo). Afinal, as audiências (espectadores e eleitores), neste sentido, correspondem-se quase integralmente, podendo-se sobrepor, até mesmo nos targets com que se trabalha (jovens – Italia Uno; reformados e domésticas – Retequattro; classe média – Canale 5). Houve até quem definisse o acesso de Berlusconi ao poder como um “golpe de Estado mediático” (Paul Virilio). Ou a política como continuação do poder mediático por outros meios. Apesar do crescimento da rede, a política clássica, sobretudo a que ainda continua metabolizada pelos partidos da alternância e pelo establishment, continua de braço dado com o poder mediático, usando a rede com as mesmas categorias com que usa as velhas plataformas do broadcasting, fazendo jus ao seu próprio conceito de política puramente instrumental e de pura gestão do poder, como “governance”, como tecnogestão, como puro “management” ou gestão asséptica do poder, numa nova versão ideológica da política.

VI.

EM SÍNTESE, é possível afirmar que a evolução das relações entre política e comunicação levou, numa primeira fase, a uma progressiva adequação da política às categorias da comunicação, em particular, às da comunicação televisiva, e, numa segunda fase, à própria metabolização política das categorias da comunicação, a ponto de o género tablóide passar a ser transversal a ambas as esferas, lá onde se reduz a política a mera técnica retórica de captação de audiências para o espectáculo da política em dois géneros que acabam por se confundir, convertendo a cidadania em mera audiência e a política em “Jogo das Partes”, para glosar o título de uma peça do grande Luigi Pirandello. A política não passa, neste caso, de mero marketing político, que agora, com a rede, ainda ganha mais substância participativa, sobretudo no chamado Marketing 4.0, de Philip Kotler.

Hoje, todavia, as coisas, com as redes sociais, estão mesmo a mudar, para o bem e para o mal, mas este é um outro e mais complexo discurso que, todavia, pode explicar muito bem a guerra sem quartel que os velhos poderes lançaram às redes sociais. Jas@02-2023

Ballot box

Poesia-Pintura

TEMPO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Musa”.
Original de minha autoria,
Apud Gustav Klimt
(Jovem Mulher, 1885).
Fevereiro de 2023.
JAS_Klimt2023Sepia

“Musa”. JAS. 02-2023

POEMA – “TEMPO”

QUE FARIA
Se te encontrasse,
Olhos nos olhos,
Numa margem
Deserta
Do nosso passado?
Que te diria
Se te visse
Caminhar,
Airosa,
Mas circunspecta,
Ali mesmo
A meu lado,
Com esse rosto
Tão belo,
Tão brilhante,
Acetinado?

NÃO SEI,
Porque não sei
O que o tempo
Fez de nós,
Se petrificou
Nas encostas
Da memória
A tua tão bela
Imagem,
Ficando
Ainda mais sós
Nesta já longa
Viagem.

TALVEZ ENCONTRO
Impossível,
Porque o tempo
Transbordou
E apagou
As margens
Do rio que
Navegámos
Entre escolhos
Perigosos,
Rápidos
Sempre, sempre
Imprevistos
E como tu
Revoltosos.

MAS O RIO
Já não tem água
Nem murmúrios
De corpos
Por ela abaixo
A vagar
Até à foz
Quente do mar,
Melodia
Do desejo
A clamar
Por um simples
Lampejo
Pra iluminar
A viagem.

E SE UMA FOZ
Encontrasse
Seria de um rio
De palavras
Em turbilhão
A entrar
Nesse teu mar
Com a força
Da paixão.

MAS O NOSSO
Já é um barco
Fantasma
Sem foz
À vista
E sem mar,
Sem leito
Pra navegar,
Sem água
Nem margens
Para onde
Transbordar.

POR ISSO,
Se te encontrasse
Numa margem
Deserta
Desse tempo
Já perdido
Ou num porto
De abrigo
Do passado
Que persigo
Talvez eu
Estremecesse,
Mas seguiria
Caminho,
Com palavras
E com contigo,
Mesmo que fosse
Sozinho.

JAS_Klimt2023SepiaRec

Ensaio

A POÉTICA DO FRACASSO

Conversando com Emil Cioran

Por João de Almeida Santos

Jas_AutoR2022

“Perfil de um Poeta”. Jas. 02-2023

LEMBRAM-SE do que disse Nietzsche acerca dos ideais, a que ele chamava ídolos (“idola”), em Ecce Homo? Pois Emil Cioran (1911-1995) não lhe fica atrás. Vejam o que ele diz na sua bela e disruptiva obra de 1949, Précis de Décomposition (Cioran, 2022):

Basta-me ouvir alguém falar de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer ‘nós’ com uma inflexão de segurança, invocar ‘os outros’, e considerar-se o intérprete deles, para que o considere meu inimigo” (Cioran, 2022: 13; redondo meu).

IDEAIS, SALVAÇÃO E FILOSOFIA

CLARO, lembramo-nos logo de Nietzsche, da “mentira do ideal”, da “maldição sobre a realidade”, que ele sempre quis abater como se isso fosse a missão da sua vida. Mas também nos lembramos de certos políticos e da proclamação retórica da grandiosidade dos ideais que supostamente guiam a sua (falhada) acção. Ou dos padres: “Faz o que eu digo, não o que eu faço. No que digo estão os ideais e a salvação das almas, no que faço está a reles realidade, a vida, a tentação, o vício, o pecado, a que, pobre mortal, também eu não sou imune”. Sim, sim, pode ser, mas a perspectiva de Cioran é bem mais profunda, vai bem mais lá ao fundo da existência humana. A sua é uma posição ontológica, uma visão comprometida de quem fala da impura realidade (“só a impureza é sinal de realidade” – 2022: 32) e não foge para as nuvens brancas e celestiais dos ideais ou da fé. E também não foge, insisto, já não digo para a retórica política, mas para a própria filosofia, esse reino da decadência anunciada. Diz ele que “só começamos a viver depois da filosofia, sobre as suas ruínas” (2022: 63). Sobre as suas ruínas, sim: o caos mundano e frágil dos sentidos e das erráticas pulsões atrás das quais corre a poesia. “Além do mais,” diz, “a filosofia – inquietude impessoal, refúgio junto de ideias anémicas – é o recurso de todos aqueles que se esquivam à exuberância corruptora da vida” (2022: 62). Se não erro, é esse mesmo “triunfante” racionalismo filosófico que Nietzsche também execrava. Essa anemia que é preciso combater com a poesia para que o sangue se revitalize – no poeta e em quem o acompanha para, com ele, melhor se afundar na vida e nos seus pântanos sensoriais. Nos ideais, dizem por aí, encontramos a salvação. E os ideais, além de celestiais, também habitam a casa da filosofia, esse reino da anemia. Pois é, mas estes são mundos pouco humanos, ou mesmo inumanos, porque a vida é infelicidade e “todos os seres humanos são infelizes”, embora poucos saibam que o são (2022: 41). Diz ele:

O erro de todas as doutrinas da salvação é suprimir a poesia, atmosfera do inacabado. O poeta trair-se-ia se aspirasse a salvar-se: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito” (2022: 40).

O ESPÍRITO

BOM, a negação do espírito talvez não, caro Cioran, pois ele, o espírito, é “amante das vertigens puras, é inimigo das intensidades”. É liquefacção. É vida em estado gasoso. Mas as intensidades são vitais, pulsionais, alimentam a vida e a poesia.  Na verdade, elas pertencem mais ao reino da alma do que ao reino do espírito:

Cobrir com normas a impureza de todos os sentimentos e de todas as sensações é uma procura de elegância necessária ao espírito, ao pé do qual a alma – essa hiena patética – é somente profunda e sinistra” (2022: 40).

É por isso que o espírito “em si mesmo não pode deixar de ser superficial” e se mostra incapaz de exprimir a melancolia, “que emana das nossas vísceras”, se não for depurada daquilo que a liga à fragilidade dos sentidos. Essa melancolia que se mostra incurável e que é alimento do poeta. O que acontece, verdadeiramente, é, pois, uma autêntica degradação de cima para baixo, com o espírito a liquefazer as intensidades, a alma, a vida, os sentidos, as sensações, o impuro, numa palavra, a realidade. Melhor ainda:

L’Esprit est le grand profiteur des défaites de la chair. Il s’enrichit à ses dépens, la saccage, exulte à ses misères; il vit de banditisme” (1952: 6).

Oportunista, saqueador, bandido – são estes os louvores que Cioran concede ao espírito, aquele que se aproveita das derrotas da carne, que o mesmo é dizer da vida. É por isso que, por ser espiritual, “a salvação acaba com tudo; e acaba connosco”. “Quem é que, uma vez salvo, ousa considerar-se ainda vivo?”, diz Cioran (2022: 39-40). E se calhar tem razão: uma vez salvo já nada haverá para fazer. Até porque haveria sempre o risco de voltar a cair na vida, na corrupção dos sentidos, na carne, na decomposição. Voltar a perder-se nesse mundo pecaminoso da vida. Felizmente que há a poesia para nos resgatar, sim, mas sem acabar connosco, porque, depois de “chafurdar” na impureza e na dor, conserva o sofrimento no baú da memória sensitiva para o trazer à consciência quando for preciso, quando a dor mais apertar. A poesia não sai daí, não se eleva ao reino celestial dos ideais, mas somente ao da beleza, que é sensível, mesmo quando é universal. Universal subjectivo, diria o Kant da “Crítica do Juízo”. Assim é que é. Se Cioran não vai lá muito à bola com a filosofia, o mesmo não acontece com a poesia, com a arte. Porque ela verdadeiramente não tem ponto de chegada e por isso anda sempre por ali, como eterna transeunte em perda, até porque “o nosso capital de infelicidade” se mantém “intacto ao longo das épocas” (2022: 190):

é impossível haver ponto de chegada para a vida de um poeta. É de tudo quanto não empreendeu, de todos os instantes alimentados pelo inacessível, que lhe vem o poder” (2022: 118).

O NASCIMENTO DA POESIA

É VERDADE. A poesia nasce de um sentimento de perda. Foi para suprir a vida que não tiveram que foram inventadas as biografias dos poetas” (2022: 119). Que não são como esses imbecis que a herdaram, a vida, mas não sabem o que ela é. E que, quando julgam saber, se perdem nessa inutilidade que é a filosofia. Querem a prova irrefutável? Pois “quase todos os filósofos acabaram bem”. Salvaram-se. Aqui está. Mas alguma razão haverá para isso – resistiram ao apelo dionisíaco da vida, à eterna errância, ao caos criativo. São todos exclusivamente apolíneos, poderia ter dito Nietzsche. E fugiram para o reino dos assépticos conceitos e dos ideais, para poderem inalar o agradável “perfume do espírito”. Pois. Mas o Nietzsche afundou-se. Sim, mas isso aconteceu, não porque era filósofo, mas porque era “poeta e visionário: expiou os seus êxtases e não os seus raciocínios”. E Sócrates? O seu fim “não teve nada de trágico”, diz Cioran. Foi simplesmente “um mal-entendido”. Estão a ver? A verdade é que “é sempre impunemente que se é filósofo: um ofício sem destino” (2022: 62-63), a não ser o da salvação. A linha de demarcação entre o lado de lá e o lado de cá está, pois, bem definida. E a poesia, que está do lado de cá, tem lugar de destaque pelo que representa. Veja-se o que ele diz num artigo de Janeiro de 1943 sobre o poeta romeno Mihail Eminesco:

La quantité de résistance que la vie oppose à la soif de vivre détermine la qualité du souffle poétique” (Cioran, 1943).

A dinâmica entre a vida e a sede de viver a determinar a qualidade do sopro, da “allure”, da inspiração poética. Mesmo quando Cioran não a refere, percebe-se que ela, a poesia, está sempre presente na sua mente. Que ela anda por ali. Aliás, até poderia dizer que este livro é poesia em forma de prosa. Ou, utilizando as palavras de Cristina Campo, Cioran traduz “na aridez impessoal da prosa” as “fulgurantes visões” dos poetas (Cioran: 1943). É só ler o “Précis” para verificar a justeza desta afirmação.Ou os “Syllogismes de l’Amertume”.

O MILAGRE NEGATIVO

CIORAN não é homem de meias medidas. Atira-se ao real e navega por lá, sem barco e sem remos, à deriva, pelas suas ruas escuras, pelos seus “bas-fonds”, como os existencialistas, também, por isso, conhecidos como “rats des caves”. E até diria que também para ele “l’enfer c’est les autres”, todos, tudo e até ele próprio, outro de si. O diabo anda à solta, por aí, a alimentar-se de realidade. E não é “aborrecido” e “tão mediocremente pitoresco” como Deus. Está cheio de vida e os homens reconhecem-se demasiado nele para o celebrarem em altares (2023: 32-33). Ele é daqui, não é lá do alto, e não é portador de ideais de salvação, de azuis infinitos onde possamos navegar com a nossa alma em paz, salvos e… mortos. Não. O inferno é aqui. E é por isso que a poesia é importante, porque nasce desse lado mais subterrâneo da vida, menos luminoso, mas em fogo ardente, como o inferno. Nasce da dor, do sofrimento, do sentimento de perda. O “poeta é vítima de uma ardente decomposição”, no aprazível inferno da vida. Ele pode ser trânsfuga, até pode, mas na sua fuga tem de levar “consigo a sua infelicidade”, para não se perder. Porque, digamo-lo sem tibiezas, se a infelicidade é um nosso património incancelável já “a alegria não é um sentimento poético” (2022: 119).  Bem pelo contrário, ele, o poeta, anda por aí a verter “lágrimas, vergonhas, êxtases – e, sobretudo, queixumes” (2022: 120). Um infeliz. “Só existimos quando sofremos”, diz Cioran. E “sofrer é aceitar a invasão das maleitas (…) como um milagre negativo” (2022: 40-41). Aqui está, a poesia é um milagre negativo. Negativo, sim, mas milagre. É neste negativo – filha da dor – que reside a sua própria beleza, mas também a sua necessidade neste imenso reino da contingência que é a vida.

DIGAM O QUE DISSEREM....

PODEM, pois, vir com conversas mais ou menos cultas, com a exibição de improváveis intertextualidades, com teorias abstractas, académicas e revistas por pares acerca da poesia, podem mesmo levá-la para o Pantheon, que de nada serve se não a forem procurar lá, nas vielas estreitas e escuras da vida, nos desencontros desejados ou inventados, nas silhuetas fugidias que se esgueiram, como neblina levada pelo vento, nas esquinas da sofrida existência, na infelicidade aprazível dos que a sabem cantar e a cantam para evitar que almas piedosas venham salvá-los. A poesia salva, sim, mas salva da salvação, porque se mantém ancorada na melancolia do viver incompleto e inacabado. É assim que ela redime, através da beleza, cantando o contingente fungível da multiplicidade caótica da vida. A poesia evita sempre ser trânsfuga da realidade, procura resistir ao apelo dos ideais e à busca de salvação e, por isso, é tão minimalista, tão musical e, não tendo pretensões de fugir da realidade, também não tem pretensões de dizer algo sobre ela. Nem sequer de a “corrigir”, como diz num dos aforismos de “Syllogismes de l’Amertume” (1952: 8). Simplesmente porque quer ser ela própria realidade, confundir-se com ela, casar-se com ela, não cortar o cordão umbilical no momento (nem nunca) do seu próprio nascimento, simplesmente para que possa existir. O poeta, nela, quer ser mais infeliz, mais encantadoramente infeliz do que na infelicidade que lhe bateu à porta quando teve de nascer, fruto das circunstâncias, fruto do fracasso.

O FRACASSO, O SUCESSO E A POESIA

Radicalizando talvez demasiado, se é que se pode radicalizar sem ser excessivo, Cioran, no meu entendimento, coloca-se no centro de uma interrogação primordial sobre a poesia. Ela surge como exigência, como resposta à experiência originária da impossibilidade, do fracasso, da perda. Mas é resposta, não fuga para o reino da formas puras, dos conceitos redondos, dos ideais salvíficos. E também não é salvação da impureza da vida, do caos existencial, do pecado da carne. Nada disto, precisamente porque não é fuga, mas vivo confronto com a rugosidade da contingência, imersão no que há de mais impuro na existência humana. Falho, naturalmente, a vida e fracasso – então, ainda a vou falhar mais com os meus meios, precisamente através de uma poética do fracasso.. Só que o faço com uma alegre melancolia, com o prazer de estar a navegar no caos, na turbulência, sentindo o prazer dos poços de ar existenciais. Um prazer infeliz. E, ainda por cima, o faço agitando a vida com o frenesim induzido pela melodia e pela toada poética com que vou ao confronto. E dá-se o venturoso caso de os meios de que disponho serem esteticamente performativos, poderosos, capazes de mobilizar outros para um confronto que é uma convivência infeliz. Na verdade, do que se trata é de um corpo-a-corpo, de uma tentativa de nos substituirmos à falhada contingência com outra contingência mais convincente, mais bela e até contagiante. Acabamos por acrescentar fracasso ao fracasso, só que este é mais íntimo, menos rugoso e até mais alegre e quente. Mais belo, portanto – a poética do fracasso.

Nesta frase fica tudo dito, porque não há poética do sucesso. Seria um oxímoro. Esses, os que se julgam prenhes de sucesso, não percebem que isso é uma ilusão. O Vinicius não mandou embora o passarinho e a poesia só porque julgava ter tido sucesso no amor? Sucesso no amor é insucesso na poesia. Mas logo outras janelas se abriram ao passarinho e ao seu canto. O que é isso do sucesso? É mais rápido a ruir do que a construir. Castelo de areia, tem as fundações instáveis. Só que não parece, de tão “perfeita” ser a construção. Um dia, lá mais para a frente, o homem de sucesso dirá: consegui tudo. Depois, mais clarividente, dirá ainda: quanto mais conseguia mais me faltava. E agora, que o ciclo se fechou, dirá: falta-me tudo. Alguns acabam por se render à poesia para se resgatarem da caverna e compreender que o que faltou será a medida da sua exigência e da sua própria existência (poética): o sentimento de perda e de fracasso é a medida de todas as coisas. E põem mãos à obra para, quais falhados ou vencidos da vida, tentarem a redenção… sem saírem dela. Oh, mas isso será tão doloroso como é a vida autêntica e, pior, nunca mais poderão olhá-la que não seja na óptica do fracasso, para não sucumbirem poeticamente. Rater la vie c’est mon destin, diria o poeta. Voilà.

ALGUNS AFORISMOS

Traduzo alguns aforismos de Cioran (de Syllogismes de l’Amertume, de 1952) que reforçam o sentido geral do seu pensamento e ajudam a  melhor compreender a estratégia do meu artigo sobre a “Poética do Fracasso”, neste diálogo com o escritor romeno.

1. “Falhar a prória vida é aceder à poesia – sem o suporte do talento”; “O ‘talento’é o meio mais seguro de tudo falsificar, de desfigurarar coisas e de se enganar a si próprio”; (“Rater sa vie, c’est accéder à la poésie — sans le support du talent”; “Le « talent» est le moyen le plus sûr de fausser tout, de défigurer les choses et de se tromper sur soi”); (1952: 3 e 6).


2. “Uma poesia digna deste nome começa pela experiência da fatalidade. Só os maus poetas são livres”;“Une poésie digne de ce nom commence par l’expérience de la fatalité. Il n’y a que les mauvais poètes qui soient libres”); (1952:10).


3. “Quando estamos a mil léguas da poesia, ainda participamos nela por essa súbita necessidade de gritar – último grau do lirismo” (“Quand nous sommes à mille lieues de la poésie, nous y participons encore par ce besoin subit de hurler, — dernier stade du lyrisme”); (1952: 4).

 

4. “Com Baudelaire, a fisiologia entrou na poesia; com Nietzsche na filosofia: Para eles, as perturbações dos órgãos foram elevadas a canto e a conceito. Proscritos da saúde, tinham o dever de garantir uma carreira à doença”. (“Avec Baudelaire, la physiologie est entrée dans la poésie; avec Nietzsche dans la philosophie. Par eux, les troubles des organes furent élevés au chant et au concept. Proscrits de la santé, il leur incombait d’assurer une carrière à la maladie”); (1952: 5).


5. “O público precipita-se sobre os autores considerados ‘humanos’; ele sabe que, deles, nada tem a temer: parados, como ele, a meio do caminho, eles propor-lhe-ão um acordo com o Impossível, uma visão coerente do Caos”; (“Le public se précipite sur les auteurs dits « humains »; il sait qu’il n’a rien à en craindre : arrêtés comme lui à mi-chemin, ils lui proposeront un arrangement avec l’Impossible, une vision cohérente du Chaos”); (1952: 6).


6. “Nada de salvação, a não ser na imitação do silêncio. Mas a nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozóides palavrosos, nós estamos quimicamente ligados à Palavra”;(“Point de salut, sinon dans l’imitation du silence. Mais notre loquacité est prénatale. Race de phraseurs, de spermatozoïdes verbeux, nous sommes chimiquement liés au Mot”); (1952: 6).


7. “A poesia (…) tinha ido mais longe do que eu na negação, ela fez-me perder até as minhas incertezas”; (“La Poésie (…) était allée plus avant que moi dans la négation, elle me fit perdre jusqu’à mes incertitudes…”); (1952: 7).


8. “Mais do que ser um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte nem mesmo a poesia conseguem corrigir”; (“Avant d’être une erreur de fond, la vie est une faute de goût que la mort ni même la poésie ne parviennent à corriger”); (1952: 8).


9. “Quem receia perder a sua melancolia, quem tem medo de se curar dela, com que alívio ele constata que os seus temores não têm fundamento, que ela é incurável”; (“Qui tremble pour sa mélancolie, qui a peur d’en guérir, avec quel soulagement il constate que ses craintes sont mal fondées, qu’elle est incurable!“); (1952: 56).

REFERÊNCIAS

CIORAN, E. (2022). Breviário de Decomposição. Lisboa: Edições 70.

CIORAN, E. (1952). Syllogismes de l’Amertume. In https://www.rodoni.ch/cioran/8338994-Cioran-Syllogismes-de-lamertume.pdf

CIORAN, E. (1943). “Mihail Eminesco”. In https://www.pangea.news/cioran-un-testo-inedito-in-italia-sulla- poesia/ – com uma introdução de Cristina Campo. Jas@02-2023

Jas_AutoR2022Rec

Poesia-Pintura

O POETA E A MÁSCARA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Transfiguração”.
Original de minha autoria
para este poema.
Fevereiro de 2023.
Transfiguração3

“Transfiguração”. JAS. 02-2023

POEMA – “O POETA E A MÁSCARA”

ENCONTREI UMA MÁSCARA
Numa esquina
Da minha vida,
Pu-la no rosto
Do poeta
E ele não a
Enjeitou.
Ainda por cima
Me disse:
“Sou eu, sou,
Como nas palavras
Que digo
Também meu corpo
Mudou”.

“NÃO ESPERAVAS
Ver-me assim...
É grande o teu
Espanto,
Vá, confessa!
Ganhei um corpo
De rosa,
Tanta cor
(A que apeteça),
Um rosto
Dissimulado
Pra me curar
Desta dor
Sempre que ela
Apareça
A pedir o meu
Cuidado”.

“ADOPTEI
Esta figura,
Agora
Mostro-me assim,
As outras
Nada te dizem,
Com esta,
Olhas pra mim”.

“PALHAÇO
É o que sou,
Falo a
Surdos e mudos
Que não ouvem
O que digo
Nem respondem
Ao que quero,
Tratam-me como
Mendigo
Do que, afinal,
Nem espero”.

“VALHA-ME, POIS,
Esta máscara,
Assim rio
Desta vida,
Rio de ti
E de mim,
Da chegada
Ou da partida,
Dos abraços,
Das palavras
E, por fim,
Da despedida”.

“SOU PALHAÇO,
É o que sou,
Entretenho-me
A cantar
E se ouvires
Este meu canto
É poeta
O seu autor,
Por isso, tu
Não t’importes,
O que diz
É, de certeza,
Pra espantar
Sua dor”.

A MÁSCARA
É o seu rosto,
Colou-se-lhe
Logo à pele
Com a cola
Do desgosto
E por isso
Já nem sabe
Se esse rosto
É o dele.

ENCONTREI 
Uma máscara
Vermelha
No mercado
Da minha vida,
Ponho-lha sempre
Que posso,
À chegada
E à partida,
E se puder
Não lha tiro
Pra não lhe rasgar
A alma
Pois se o canto
O liberta
É a máscara
Que o salva.

TransfiguraçãoRec

Artigo-Ensaio

A POESIA

Conversando com Edgar Allan Poe

Por João de Almeida Santos

Transfiguração_1

“Transfiguração”. JAS. 02-2023

HÁ UMA PASSAGEM no livro Poética, de Edgar Allan Poe (Poe,1848-1850; e Poe 2016), acerca do que ele entende por Poesia e que diz o seguinte:

“De modo breve, definiria a Poesia de palavras como The Rhythmical Creation of Beauty. O seu único árbitro é o Gosto. Com o Intelecto ou com a Consciência só tem relações colaterais. A não ser incidentalmente, não tem qualquer relação com o Dever ou com a Verdade” (1948-1950: 343; 2016: 155).

Sim, poesia de palavras, com palavras, porque o sentimento poético pode manifestar-se, desenvolver-se por outros meios: pela pintura, pela escultura, pela arquitectura ou pela dança, mas sobretudo pela música (1848-1840: 342; 2016:154). A música com lugar de destaque na expressão estética do sentimento poético. É verdade.

I.

“CRIAÇÃO RÍTMICA DA BELEZA”, diz Poe da poesia. Ela não se confunde, pois, com o dever ou com a verdade. Não é, portanto, só o amor que está para além do bem e do mal, como diria Nietzsche, mas também a poesia. E não só para além da moral. Também para além da esfera cognitiva, da verdade. Afinal, não tem a poesia no amor o seu alimento primordial, estando-lhe profundamente ligada? Diz Poe:

“O amor, pelo contrário, o amor, o verdadeiro, o divino Eros (…) é sem dúvida o mais puro e  o mais verdadeiro de todos os temas poéticos” (1848-1840: 366; 2016: 190).

O amor e a poesia – afinidades electivas, sem margem para qualquer dúvida. A centralidade do amor na poesia que arrasta outra centralidade que lhe está profundamente ligada: a da dor e a da melancolia, melhor, a da dor melancólica. É ele que o diz:

“Regarding, then, Beauty as my province, my next question referred to the tone of its highest manifestation – and all experience has shown that this tone is one of sadness. Beauty of whatever kind, in its supreme development, invariably excites the sensitive soul to tears. Melancholy is thus the most legitimate of all the poetical tones” (1848-1850: 375; 2016: 40; itálico meu).

Sim, a beleza excita a alma até às lágrimas, suscita tristeza, melancolia, dor. Arrasa, tal como o amor autêntico, porque toca o mais profundo do que na alma acontece. E é aqui que a poesia sobretudo navega, nas águas profundas da melancolia, para, depois, se elevar ao sublime e, assim, sintonizar com as almas sensíveis que a partilham. A poesia, sim, e a música, também. Mas é verdade que o sentimento poético também é expresso pelas outras artes, pois o seu objecto é a beleza. E as vias da beleza, não sendo infinitas, são muitas. Mas a maior afinidade, a maior proximidade, a maior cumplicidade encontram-se na música, que faz parte dela. Vejamos o que diz Poe:

“a música, quando combinada com uma ideia aprazível, é poesia; a música, sem a ideia, é apenas música; a ideia, sem a música, é prosa por causa da sua própria qualidade de definição” (2016: 27); “na construção do verso a melodia nunca deveria ser deixada longe da vista” (2016: 63); “na união da Poesia com a Música, no seu sentido popular, encontramos o campo mais vasto para o desenvolvimento poético” (1848-1850: 342-343; 2016: 155).

E a mim parece que o forte poder performativo da poesia passa necessariamente pela música, se é verdade que, como diz Poe, “os sentimentos são subjugados pelos sentidos” (2016: 73). Na verdade, a música talvez seja a arte que mais directamente interpela os sentidos, os excita, os arrebata, trazendo até si todos os tipos de sentimentos, claro, não para os subjugar, no sentido literal, mas para lhes dar voz no corpo e na alma dos que a fruem:

“E assim, quando pela Poesia, ou pela música, o mais arrebatador de todos os modos poéticos, nos encontramos desfeitos em lágrimas, então choramos, não (…) por um excesso de prazer, mas por uma certa dor petulante, impaciente perante a nossa inabilidade em agarrarmos, agora, aqui, na terra, de uma vez e para sempre, essas alegrias divinas e arrebatadoras, das quais, através do poema, ou através da música, alcançamos apenas breves e indeterminados vislumbres” (1848-1850: 341-342; 2016: 154).

Música e poesia, duas artes que, conjugadas, podem ser a mais elevada expressão, e com máxima performatividade, da beleza sensível. Só elas, em situação de dor e de choro, de melancolia, nos permitem aceder ao divino e ao arrebatador, embora de forma breve e insuficiente. O absoluto não está ao alcance do ser humano. Sim, claro, mas a haver uma aproximação ela acontece sobretudo através da poesia e da música.

II.

A INCORPORAÇÃO DA MÚSICA, com a rítmica e a melodia, no interior da poesia torna-a mais poderosa porque pode atingir com maior eficácia os sentidos, como estímulo físico, sonoro, transportando consigo a ideia, a semântica, o sentido. Este encontro faz dela uma arte peculiar, poderosa, capaz de atingir algo que parece ser impossível alcançar porque aparentemente paradoxal: a universalidade sensível. Quando o estímulo estético é enviado, impulsionado pela pulsão primordial e reconfigurado pela poesia, para o espaço poético e provoca no receptor individual as sensações que estão inscritas, como mensagem, no poema, quer na dimensão sonora e sensitiva quer na dimensão semântica, como significado, fica declarado o valor universal do discurso poético. Na partilha é possível confirmar a universalidade daquilo que só pode ser sentido singularmente. Para isso, a musicalidade colabora de forma determinante, transportando, expandindo e intensificando ao mesmo tempo o conteúdo semântico. Não é uma ficção, a universalidade da beleza sensível. Ela confirma-se na partilha e na inscrição sensitiva de uma mesma mensagem estética… universal.

III.

DIZ EDGAR ALLAN POE que a poesia é estranha à verdade e à moral, sendo seu único fim a beleza. Não é uma novidade, pois já Kant o dissera e o teorizara nas suas três Críticas, a da Razão Pura, a da Razão Prática e a do Juízo, ou da Faculdade de Julgar. Esta última, aquela em que Kant analisa o juízo estético. E, glosando Nietzsche, até poderíamos dizer que a poesia está para além do bem, do mal e da verdade. Alguns aforismos de Nietzsche indirectamente também nos dão conta desse universo em que se move a poesia. Por exemplo, este: “os poetas não têm pudor das suas aventuras; eles exploram-nas – “die Dichter sind gegen ihre Erlebnisse schamlos: sie beuten sie aus” (Aforismo 161, Nietzsche, 1924). Eles, os poetas, servem-se delas, das suas experiências, para irem mais longe e não para as degradarem, as fustigarem com o poder da palavra. Vêem cair sobre elas uma profunda melancolia, para depois se elevarem ao sublime. Não se trata, pois, de um uso instrumental das suas experiências de vida, experiências que não procuram (isso é certo) como mera matéria-prima para o seu exercício poético, mas como experiências que fazem parte da sua própria vida, algo que lhes sobrou de uma vida vivida com suficiente intensidade para permanecerem na memória, tantas vezes como melancolia, como dor, como sentimento sofrido de perda, de inacabado, de imperfeito. E daqui partem poeticamente para as elevar ao plano universal da beleza sensível. E é verdade que também não se trata de descrever o que viveram e sentiram. Não. Do que se trata é de uma sua livre recriação, de uma “rítmica da beleza” construída com o que foi vivido de forma única. O modo que eles têm para resolver o que não foi resolvido, acabado, completado. Quando Michelangelo Buonarroti, no livro da Yourcenar (“Le temps ce grand sculpteur” – Yourcenar, 2020), se dirige a Gherardo Perini, o seu amante, diz-lhe que irá recriar o que nele outros já não conseguirão ver e, por isso, ele tornar-se-á (na sua obra) mais belo do que ele próprio. Não sei se falava da poesia (ele era também poeta), de pintura ou de escultura. O que sei é que um artista desta dimensão só poderia oferecer o sublime poético fosse através de que meio fosse, como diz Poe. Mas também aqui o choro, a dor, a melancolia têm o seu lugar. Michelangelo diz a Gherardo que os amigos só podem ser imortalizados se partirem enquanto ainda for possível chorá-los. Ou seja, desde que fique com o criador um melancólico sentimento de perda, de algo que ficou incompleto e que a arte completará, recriando-o.

IV.

A ARTE TEM SEMPRE REFERENTES, centrados no artista ou exteriores, mas quando eles são recriados nunca é na mesma dimensão, como retrato, fotografia, descrição, porque existe a mediação estética executada com as categorias da arte, com a linguagem e a lógica da arte. A arte não é a reprodução do real, não só porque transporta consigo a subjectividade activa do artista, mas também porque os instrumentos da reconstrução obedecem a uma lógica autónoma que só tem um fim: o da beleza sensível. A substância, a matéria-prima estará lá, a pulsão que o move é alimentada por uma relação originária intensa, mas o voo é apolíneo e o resultado é algo menos contingente do que o referente que possa ter-lhe servido de estímulo. É por isso que a arte não responde às exigências da moral nem às da verdade, porque responde essencialmente a si própria, aos seus critérios. Porque é, digamos, autopoiética.

Há nisto, evidentemente, uma conjugação entre uma pulsão originária que é propulsora da arte e uma lógica e uma instrumentação próprias que são exteriores ao estímulo e que estão inscritas numa transtemporalidade e numa intertextualidade que lhes preexiste, por exemplo, como história do gosto e da arte ou como tecnologia estética que evoluiu no tempo.

Poe fala do Princípio Poético que se manifesta como excitação que eleva a alma: “an elevating excitement of the soul” (1848-1850: 365; 2016: 190). A alma, sempre a alma que a poesia eleva, em voo apolíneo, a uma dimensão espiritual inscrita num registo sensível precisamente como beleza sensível, mas partilhada universalmente como experiência singular e sensível. É aquilo a que Kant chamou, na Crítica do Juízo, a universalidade subjectiva na contemplação desinteressada da beleza, mediante acordo entre a imaginação e o intelecto. Ou seja, mediante o jogo de faculdades próprio da contemplação desinteressada da beleza, esfera bem distinta da esfera moral ou da esfera cognitiva. E é aqui que estamos, no universo da beleza que a poesia e a música procuram atingir com o olhar sempre apontado ao desejo de partilha universal.

REFERÊNCIAS

YOURCENAR, M. (2020). O Tempo Esse Grande Escultor. Lisboa: Relógio D’Água.

NIETZSCHE, F. (1924). Jenseits von Gut und Boese. Leipzig: Alfred Kroener Verlag.

POE, E. A. (1848-1850). The Poetic Principle & The Philosophy of Composition.

In Edgar Allan Poe’s Complete Poetical Works: https://freeclassicebooks.com/Edgar%20Poe/Edgar%20Allan%20Poe’s%20Complete%20Poetical%20Works.pdf

POE, E. A. (2016). Poética. Textos Teóricos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 2.ª Edição.

TransfiguraçãoRec

Poesia-Pintura

OCASO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Rasto de Luz”.
Original de minha autoria.
Fevereiro de 2023.
EstradadeLuz4_2023

“Rasto de Luz”. JAS. 02-2023

POEMA – “OCASO”

CAMINHAVA SÓ
No paredão
E sentei-me,
À tardinha,
A olhar 
A solidão,
O oceano
E o sol
Lá ao fundo
A brilhar
Sobre a linha
Do horizonte,
Em tempo de
Baixa-mar.

O SOL CRIARA
Um caminho
De luz,
Mar fora,
A entrar
P'los olhos
Dentro
Nessa já
Tardia hora.

E CONVIDAVA-ME
A segui-lo
Com o olhar
Em gesto
De despedida.
Era hora
De sol-posto,
Era hora
De partida.

A LUZ INTENSA
Do sol,
Longo rasto
Luminoso,
Incendiava
O olhar
De tão forte
Ser a luz
A refractar-se
No mar.

FIXEI
Esse caminho
E ouvi
Da sua água
Um suave
Marulhar,
Murmúrio
Terno
Das ondas,
Melodia
Luminosa
Criada
Para embalar.

ERGUI DE NOVO
O olhar
Para o sol
Que s’esvaía,
Respirei
E voltei 
A respirar
Uma intensa
Maresia.

RUA DE LUZ
Marinha
A levar-me
Ao horizonte
Por círculo
De fogo
Aceso
Em urgente
Despedida,
Ocaso
Que anuncia
Noites 
Passadas
De sonho, 
Estranhas
Formas
De vida.

ASSIM ME PARECE
Ter sido
A história breve
Que contigo
Eu vivi,
A mesma faixa
De luz,
O mesmo círculo
De fogo
Que o horizonte
Engoliu,
O serpenteio
De corpos
No luminoso
Caminho
Que a ti
Me conduziu...

ATÉ QUE O SOL
Se pôs
Pra regressar
De manhã,
Metáfora
Luminosa
Do nosso encontro
Fugaz
Já tão perdido
No tempo,
Esse tempo
Tão voraz.

E O SOL
Lá regressou,
Mas vinha
De outro lado,
Sem suave
Marulhar,
Sem ondas
Pra navegar
Nesse brilho
Ondulante
Que um dia
Me encantou
A lembrar-me
O teu mar,
Esse ondear
Cativante.

EstradadeLuz4_2023Rec