Poesia-Pintura

VEM COMIGO…

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Exaltação”.
Original de minha autoria
sobre foto (de autor 
anónimo) em contraluz.
(Quadro da minha colecção privada).
Fevereiro de 2022.
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“Exaltação”. Jas. 02-2022

POEMA – “VEM COMIGO…”

EU CANTO
E pinto
O meu destino,
Sonhos velados,
Minha vida,
Desatino... 

PERDI A CHAVE
Do futuro
E só me resta
A despedida, 
Por isso canto
Com as aves,
Voo mais longe
E com mais cor
Porque no céu
Há mais azul
E em meus sonhos
Tens mais sabor.

HÁ UM SEGREDO
Não revelado,
Dizê-lo
Eu não podia
Porque cantá-lo
Era pecado
E certamente
Mentiria.

E NÃO O DISSE,
Mas eu pequei
Com murmúrio
Apaixonado
Em poemas
Inocentes
Que levaram
O meu canto
A ouvidos
Impudentes
Que estão
Por todo o lado.

POR ISSO VOO
Sempre mais longe
Trepo nas cores
Pra lá chegar,
O céu azul
Dá-me alento
Para mais alto
Poder voar
E meus segredos
Pôr a reparo
Dos vigilantes
Do meu cantar.

LEVO PALAVRAS
Comigo,
Procuro inspiração.
Levo cor,
O meu abrigo,
Levo musas
E tudo o mais
E quando parto
Lá pra cima
É sempre festa
Neste meu cais.

EU CANTO
E PINTO
Por tudo isto,
Pra resgatar
O meu pecado
De exaltar
Esse teu corpo,
Pra projectar
Em aguarela
Este enleio
Do meu olhar
E por te ver
Na nossa rua
Debruçado
Na janela
Com vontade
De te pintar.

POR ISSO EU
CANTO,
Por isso voo,
Por isso subo
Lá para o alto,
Já não os vejo,
Já não os ouço
E já não vivo
Em sobressalto.

MAS VEM COMIGO
(Eu dou-te asas),
No infinito
Do céu azul
Juntos voamos
Ao mesmo tempo
E o nosso rumo
Será o Sul.

VÁ, VEM COMIGO,
Se tu vieres
Voaremos
No nosso céu,
Seremos livres
Lá bem no alto
E nossa arte
Será perfeita
Com tudo aquilo
Que Deus nos deu.

Artigo

A INFORMAÇÃO TELEVISIVA

Se o mundo já está 
pouco recomendável
ela ainda o torna pior

Por João de Almeida Santos

Jas_Televisão2022

UM JOVEM QUE NÃO PRECISAVA 
DE PUBLICIDADE

O ASSUNTO do alegado terrorista de 18 anos, natural de uma aldeia de Alcobaça, desapareceu de cena. Milagrosamente, depois de festivais informativos de arromba. Ainda bem, porque a prioridade deverá ser ajudar o jovem e não condená-lo e chicoteá-lo de imediato no pelourinho electrónico. Pelo menos, que seja garantida a velha presunção de inocência e o segredo de justiça, tão maltratados que têm sido (e, pasme-se, pelos próprios agentes da justiça). Bem sei que subiu ao palco um grave conflito global a propósito da ameaça russa de ocupação da Ucrânia. E que entre uma faca e o arsenal militar da Rússia vai bem um suspiro informativo das nossas televisões. Vai, sim. E até a COVID19 continua a dar que falar e a suscitar preocupações, apesar de o inefável bruxo de Fafe a ter dado como terminada. Mas o facto é que o jovem João desapareceu quase misteriosamente do circuito noticioso. Porque o bom senso imperou ou porque outros valores informativos mais altos se impuseram?  Mas suspeito que, em qualquer caso, não tenha sido por cuidado em preservar o jovem e a sua família. Se tivesse sido não teriam feito o arraial que fizeram. Se uma tragédia não acontece – e não aconteceu – não deve ser noticiada como se tivesse acontecido. Ou não?

THE SHOW MUST GO ON

O QUE SE PASSOU merece uma reflexão. E começo por dizer que achei muito curiosa, no meio daquele festival informativo, toda aquela preocupação do pivot José Alberto Carvalho sobre saber se a televisão deveria ou não ter noticiado o caso do falhado atentado do jovem de 18 anos. Fiquei quase enternecido com tanta responsabilidade e inquietação moral e noticiosa do jornalista, apesar de me saber a desculpa de mau pagador, a consciência pesada ou mesmo a hipocrisia.

Mas, e sem ponderar os danos que o jovem já sofreu e virá a sofrer depois de todo este espalhafato, o problema é real porque desde os tempos de Gabriel Tarde, o sociólogo francês tão esquecido pela Academia, que se sabe que o fenómeno da imitação é um importantíssimo factor de acção social, de comportamento social. E, todavia, a ilustre magistrada Maria José Morgado, especialista em efeitos dissuasores do tabloidismo em matéria penal, não tem dúvidas sobre o assunto, porque o medo guarda a vinha, diz. Tudo bate certo, portanto, e quanto mais as televisões falarem do assunto mais a vinha fica guardada, garantindo boas colheitas e bom vinho.  Oh, se fica bem guardada, a vinha… Prendem-te de imediato (e há sempre, pelo menos, um juiz que, por via das dúvidas, adora prender) e expõem-te publicamente no pelourinho electrónico, marcando-te para toda a vida. E assim salvam a vinha.  A verdade é que perante a auctoritas (no sentido romano de virtus) da ilustre figura moral do nosso Estado de Direito o jornalista ficou sereno e quase comovido pela justeza do critério informativo assumido e… fogo à peça. The show must go on.

O ADN DO TELEJORNAL

MAS A VERDADE é que esta questão acaba por ser pura e simplesmente ociosa se posta por um pivot, um anchorman ou uma anchorwoman de um telejornal português. Porquê? Porque a natureza da nossa informação televisiva é, ela própria, já na matriz, no ADN, desbragadamente tablóide. É como se o jornalista se perguntasse se o tabloidismo é moralmente aceitável e informativamente relevante, objectivo e imparcial em qualquer caso. Praticam-no à grande, mas sempre com uma réstia de pudor e até mesmo de candura. O que tem de ser tem muita força, já se vê. O mercado das audiências é implacável e há que sobreviver nesta guerra da informação.  Ainda por cima com a libertinagem das redes sociais à solta e em feroz competição com a virtude informativa. Às vezes custa-nos, parte-se-nos o coração… mas tem de ser.

A INFORMAÇÂO, O NEGATIVO E A FAMA

Não restam dúvidas de que o negativo é a marca de água da informação televisiva et pour cause mais uma vez fogo à peça… Querem lá saber do que possa acontecer ao jovem. Lá estarão depois os psicólogos de serviço – também eles amigos dos telejornais – para repararem o mal feito e levá-lo pelo caminho da salvação. Se até a PJ achou que sim, por que razão nós, que temos audiências a conquistar, haveríamos de não o fazer?

As televisões portuguesas têm, sim, o negativo colado à “pele”. É coisa mais do que comprovada. É o estigma do “Correio da Manhã” a fazer escola em versões envergonhadas do seu tabloidismo desbragado, instrumentos de delírio emocional a custo zero e ao serviço das audiências.

Mas é verdade, esta questão da informação televisiva sobre o atentado merece uma reflexão séria à luz do efeito mimético da informação, que mais não seja porque ela  abre janelas de oportunidade para que espíritos mais influenciáveis, mas (ou por isso) sedentos de notoriedade, possam seguir ou simular o exemplo do jovem. Como alguém dizia, basta que a uma psicopatologia latente se associem determinados factores exógenos de pressão (radicalismo ideológico ou religioso, vítimas de bullying ou mesmo reiterado insucesso  escolar, entre tantos outros factores) para que possa acontecer uma reacção explosiva. E, visto o tremendo sucesso televisivo do caso em apreço, aí vou também eu à procura dos meus cinco minutos de fama, nem que seja antecipando e simulando, nas redes sociais, um acto violento. Lá estará o FBI para alertar a nossa PJ, desencadeando o processo de denúncia da ameaça e de exposição pública no pelourinho electrónico. Quem sabe se, depois, quando for famoso, se abrem outras oportunidades num daqueles programas televisivos que exibem famosos que ficaram famosos por entrarem em programas para famosos. Da informação tablóide ao Big Brother. Toda uma ideologia. Ou o sucesso ao teu alcance.

A IMITAÇÃO 
O QUE DIZIA GABRIEL TARDE 
NO SÉCULO XIX?

O QUE DIZIA, em Les Lois de l’Imitation, de 1890, Gabriel Tarde (e note-se que as suas teses foram assumidas cerca de cinquenta anos depois por Elihu Katz e Paul Lazarsfeld, com a teoria do “Two-step flow of communication”, como reconhece o próprio E.K.)? Que a imitação é o princípio constitutivo das comunidades humanas, o “acto social elementar”, a “alma elementar da vida social”.  E o que dizem as teorias dos efeitos dos media, que ele antecipou em várias décadas (“Two-step flow of communication”, de Lazarsfeld e Katz, a “Espiral do Silêncio”, de Noelle-Neumann, ou o “Agenda-Setting”, de McCombs), em particular da televisão? Pelo menos uma coisa: que os efeitos dos media são fortes e influenciam o comportamento humano. Disso parece não haver dúvidas.

QUEREM LÁ ELES SABER...

POIS BEM, as nossas televisões e os nossos jornalistas, incluído o seráfico José Alberto Carvalho,  estão-se borrifando para tudo isto pois o que interessa são as audiências e a publicidade que daí decorre. Há sempre nos nossos telejornais um momento (cada vez mais longo) que eu classifico como “Relatório de Polícia”, uma aproximação, com aura, à filosofia espontânea do “Correio da Manhã”. Sim, estes pivots mais parecem os intelectuais (in)orgânicos do negativo, os seráficos apóstolos da desgraça, que exibem a todo o momento, mas com ar contristado e com gravitas. Ocasiões não faltam e a ocasião faz o… tablóide. E a informação maciça sobre a desgraça. Se o mundo já está pouco recomendável eles ainda o tornam pior. COVID19, Terrorismo, Guerra, tudo isto é filet mignon para estes artífices do maior telejornal do mundo.

ENFIM

O QUE HÁ A DIZER? Uma coisa muito simples: já que o poder político não quer ser acusado de limitar a sagrada “liberdade de imprensa” (esta, a imprensa, tem sido a outra face daquele), já que a pobre ERC continua a vegetar (com alimentos pagos por nós) como zombie sem alma (passe a dupla redundância), já que os directores de informação e os seráficos pivots não têm vergonha na cara e não mudam os critérios informativos, então que se organize um movimento com uma plataforma (há muitas e importantes plataformas cívicas digitais, por exemplo a poderosa MoveOn.Org, nos USA) para dar combate a esta vergonha da informação televisiva em Portugal. Se a rede e as redes sociais servem para alguma coisa pois que sirvam também para isto. E, já agora, que no combate estejam também incluídos os acólitos da missa televisiva. Tenho dito (muitas vezes).

NOTA SOBRE A CRISE INTERNACIONAL

NÃO SENDO EU ESPECIALISTA em política internacional, parece-me que, com tudo isto, o que Putin queria, depois de outras experiênciad de sucesso (na Geórgia e na Crimeiai), era consolidar a independência das duas Repúblicas, Donetsk e Lugansk (através do reconhecimento e do “apoio” militar). Esperemos que fique por aí. Agora começa a guerra económica com a Alemanha a romper com o Nord Stream II, o Reino Unido a aprovar sanções a 5 bancos russos, a EU a fechar o mercado financeiro da União à Rússia e os USA a bloquearem o Banco de Desenvolvimento Russo e o Banco Militar e a programarem o corte ao financiamento da dívida soberana russa. Esta guerra vai sobrar para todos nós. Apetece-me citar Lev Tolstoy, na “Guerra e Paz” (Lisboa, Inquérito, 1957, II, 407): “E, contudo, que vale a guerra que não exige completo êxito para o que a empreende?” (Palavras de André Bolkonski e a referência é a guerra de Napoleão com a Rússia, que na narrativa estava a decorrer). A questão agora consiste precisamente em saber o que, neste caso, é um “completo êxito” para Putin… #JAS@02-2022.

Jas_Televisão2022Rec

Poesia-Pintura

FUGAZ ENCONTRO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Travessia”
Original de minha autoria
Fevereiro de 2022
Jas_Atravessia2002Pub1

“Travessia”. Jas. 02-2022

POEMA – “FUGAZ ENCONTRO”

ÀS VEZES
Passas
Por mim
Como vento
Intangível,
Sonho
Espectral,
Impossível,
E voas
Por entre os dedos
Dessas mãos
Com que te pintas...

VOAS, SIM,
Mas eu não sei
Se vais
Para o pontão
Deste cais
Donde sempre
Nós partimos
Para viagens
Fatais
À procura
D’infinito.

SOPRA-TE
O vento
Na alma?
Desenhas
Com ele
O teu rosto?
Ah, pareces
Triste demais
E é disso
Que eu não gosto.

NA RUA
Do desencontro
Encontrei-te
Apressada...
Fiquei feliz
De te ver 
Embora por um 
Instante,
Um pouco mais
Do que nada.

FIZESTE-ME
Renascer
De vaga
Melancolia...
.......
Imagina
O que seria
Se te visse
Duas horas
Ou te tivesse
Um dia.

AH, QUE DOCE
Sensação
Sentir saudades
De ti...
..........
Prevendo
Que não virias
Mesmo assim
Eu não parti
Tão grande
Era o desejo
De te encontrar
Por ali...

E FALEI-TE
Da minha janela,
Olhei, fascinado,
Pra ti:
“Minh’amiga
Como és bela...”
...........
Nem sabes
O que senti...

MAS, NUM SÚBITO
Ímpeto,
Disse pra mim:
"Eu não canto 
Esta cantiga
De te ver 
Tão pouco assim.
Vou-me embora,
Pois se te 
Encontro
Logo me foges,
Se te quero,
Não te procuro...
........
Eu vivo
Num intervalo
Que mais me parece
Um muro”.

AH, SIM, 
Entre ti
E os teus riscos
Eu estou
Entrincheirado,
Caminho só,
Em poemas,
Nunca passo
Deste lado.

Jas_Atravessia172002PubREC

Ensaio

GLOBALIZAÇÃO, CAPITALISMO E DEMOCRACIA

A CRISE E O RISCO

Por João de Almeida Santos

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“Globalização”. Jas. 02.2022

NUM MOMENTO CONTURBADO como o que vivemos à escala global com a pandemia e, agora, com a ameaça de guerra entre a Rússia e a Ucrânia, com um ameaçador alarme comunicacional mundial, numa crise que representa um sério risco, por um lado, de perigosa escalada de uma guerra convencional, e por outro, de uma guerra económica e financeira global, atingindo não só a Rússia, mas também a União Europeia, faz todo o sentido reflectir sobre a ideia de globalização. De resto, na verdade, o que acontece é um diferendo entre a NATO e a Rússia de Putin (pode ou não entrar a Ucrânia na NATO?). A Ucrânia, por isso, é simplesmente o lugar onde está a acontecer este diferendo de dimensão global. Ou seja, a crise a que estamos a assistir parte do risco de uma guerra convencional localizada que, depois, se declare como guerra de novo tipo, um ataque económico e financeiro ao país invasor (a Rússia). Que responderá, atacando economicamente a União (através, por exemplo, do corte no fornecimento do gás). Duas guerras de tipo diferente em simultâneo, mas ancoradas num diferendo de dimensão global. Não aconteceu ainda, e esperemos que não aconteça, mas estamos em fase de crise com risco de catástrofe que não se sabe como poderá terminar.

Posto isto, começo por dizer que a ideia de globalização corresponde a um processo e só depois, consequentemente, se torna também um posicionamento cognitivo. É por isso que continua a ser muito importante clarificar o conceito de globalização. Segundo alguns o conceito estará a cair em desuso e com isso talvez a perder clareza conceptual, em parte certamente por ter caído na esfera da linguagem comum, da trivialidade discursiva. O que é verdade. Mas também por algum afunilamento que sofreu ao deslizar progressivamente para a esfera da economia, mais concretamente, confundindo-se com esses mesmos mercados financeiros globais que têm vindo a capturar irremediavelmente a política e a confiscar soberania ao cidadão. Mas esta crise militar veio lembrar-nos que a globalização também acontece no plano da segurança. De qualquer modo, e no plano financeiro, esta tendência até já conheceu uma sofisticada teorização por parte de um reputado académico alemão, Wolfgang Streeck, em Gekaufte Zeit. Die vertragte Krise des democratischen Kapitalismus (Suhrkamp Verlag: Berlin), uma obra de 2013, quando fala da emergência de uma segunda constituency ao lado da constituency da cidadania. Ou seja, da “constituency” dos credores. Credores que na maior parte dos casos são, de facto, players globais. Não partilho da visão de Streeck, um regresso à moeda nacional, mas reconheço pertinência e originalidade à sua sugestiva análise.

Mas antes de entrar directamente no mérito da questão permitam-me que faça um excursus e chame a atenção para a excelente obra de Naomi Klein, No Logo, a bíblia dos movimentos anti-globalização, publicada em 1999. Começo, citando, a este propósito, Ulrich Beck, na sua obra sobre “O que é a Globalização”:

«poder-se-ia dizer que aquilo que, para o movimento dos trabalhadores do século XIX, foi a questão de classe, no limiar do século XXI é, para as empresas que agem numa dimensão transnacional, a questão da globalização. Com a diferença essencial, todavia, de que o movimento dos trabalhadores agia como um contra-poder, enquanto as empresas globais até agora agem sem um contra-poder (transnacional)» (Beck, 1999: 13-14; itálico meu).

Estamos a falar de um mundo novo e de uma realidade que configurou o mercado de trabalho à escala mundial. Mais: um mundo que deslocalizou o processo produtivo de tal modo que também deslocalizou o emprego, fazendo recair o ónus, por um lado, sobre os trabalhadores do chamado primeiro mundo e, por outro, sobre os trabalhadores que vivem a sua situação laboral em regime de tipo militar. Estou a falar das famosas EPZ, referidas abundantemente por Naomi Klein.  Ou seja: as pessoas que trabalham nas cerca de 1000 EPZ (Export Processing Zones) são (ou eram, há mais de vinte anos) 27 milhões, em todo o mundo e em cerca de setenta países. Indonésia, China, Sri Lanka, México, Filipinas, Nigéria, Coreia do Sul (conhecida nos anos oitenta como a «capital mundial dos ténis para ginástica»), Hong Kong, Guatemala, etc., etc., para outras tantas marcas multinacionais, Nike, Reebok, Burger King, Disney, Levi’s, Wall-Mart, Champion, General Motors, Shell, McDonald’s, Coca-Cola, Starbucks, Pepsi-Cola, Microsoft. De resto, algumas destas multinacionais têm PIBs superiors aos de muitos Estados. Entre os cem melhores sistemas económicos do mundo 49 são países e 51 são empresas multinacionais (Klein, 2001).

GLOBALIZAÇÃO

VEJAMOS, então, este conceito-chave. Na verdade, a globalização não é propriamente uma doutrina ou uma teoria a partir da qual possamos compreender o mundo, como se se tratasse de uma alavanca cognitiva arquimediana. A globalização é, sim, antes de mais, um processo que está aí e perante o qual temos de nos posicionar, agir material e intelectualmente. A globalização é, antes de mais, a coisa anterior à teoria. Assunto diferente é o que diz respeito à lógica globalitária ou à mundividência globalitária, ou seja, por um lado, à dinâmica que está inscrita nela, por outro, ao modo como, a partir dela, olhamos para a realidade. Estas, sim, surgem como visões que tendem a impor comportamentos e chaves de leitura do mundo contemporâneo. Mas, no essencial, a ideia de globalização tem sido associada sobretudo à dimensão financeira. Esta dimensão, sendo global, está de tal modo no interior dos territórios nacionais que, como disse, já se fala de uma nova constituency (precisamente a nível nacional), a dos credores, ao lado da cidadania. Todos sabem do que falo, sobretudo se a explicitar referindo-me aos famosos mercados financeiros internacionais, essa estranha relação que se transformou num fetiche parecido com aquele que Marx identificava no primeiro livro de Das Kapital com a mercadoria, ou seja, um estranho sujeito relacional, mas também sensitivo, com qualidades e sensações humanas, ou, então, referindo-me aos globalitários fundos de pensões ou ainda às famosas agências de rating, sobretudo às três (Moody’s, Standard&Poors e Fitch) que detêm 96% do mercado de notação financeira e que em 2011 exibiram um volume de negócios de cerca de 46 mil milhões de dólares, sendo detidas sobretudo por especuladores financeiros. Falando de globalização, também todos sabem, pois, do que falo se me referir à rede, às lógicas e aos processos universais induzidos por ela (para o bem e para o mal), sendo certo que, no plano comunicacional, antes do boom das redes sociais já existia uma televisão global, sobretudo a partir da primeira guerra do Golfo, a CNN, havendo até quem considere que foram os portugueses a promover a primeira globalização, no século XV, na época dos descobrimentos. Se bem me recordo era o que dizia Holland Cotter, reputado crítico de arte do NYT, a propósito da exposição Encompassing the Globe, promovida por Portugal nos Estados Unidos, em 2007: “A little-known fact: A version of the Internet was invented in Portugal 500 years ago by a bunch of sailors with names like Pedro, Vasco and Bartolomeu (NYT, 29.06.2007). Ou, então, se me referir aos processos migratórios que, sobretudo a partir da presidência de George W. Bush, alastraram como mancha de óleo sobre os territórios nacionais, designadamente da União Europeia, por via marítima, aérea ou terrestre. Ou ainda se me referir, como já fiz, às famosas EPZ, Export Processing Zones, tão bem retratadas por Naomi Klein, em No Logo.

Uma globalização com estes ingredientes suscita certos requisitos críticos. Ou seja, trata-se, sim, de uma certa globalização. A mesma a que nos referimos quando falamos das lógicas neoliberais. E, já agora, também pode ser uma globalização que num certo momento parecia conhecer um único player com força para se impor hegemonicamente no mundo, o Império, de que falavam Michael Hardt e Antonio Negri, os Estados Unidos da América, sobretudo logo após a fracassada tentativa de Gorbatchov de reformar o sistema soviético e do fim do bipolarismo estratégico, político, económico e ideológico. Mas sendo certo que bem depressa se viu que o jogo internacional se estava a tornar bem mais complexo e que a lógica da guerra convencional já estava ultrapassada em grande medida por outras lógicas, sobretudo pela lógica financeira e pela lógica comunicacional. Como, de resto, já se está a verificar nesta crise, onde a dimensão global, do ponto de vista estratégico, comunicacional e económico-financeiro está a sobrepor-se já ao real conflito armado convencional e localizado.

COSMOPOLITISMO

NA VERDADE, embora a globalização tenha vindo a conhecer uma lógica sobretudo de tipo globalitário, ela também tem desenvolvimentos num sentido bem mais interessante e progressivo, ou seja, em sentido cosmopolítico. E a polémica em torno da globalização não pode também deixar de reconhecer este sentido preciso. O que se passou, verdadeiramente, foi o seguinte: 1. Na modernidade, a lógica comunitária fragmentou-se e deu lugar à lógica societária; 2. esta, por sua vez, expandiu-se e deu lugar a uma lógica cosmopolítica. Ou seja, da comunidade, à sociedade, à cosmopolis. O que, entretanto, aconteceu por via da afirmação e do triunfo do neoliberalismo foi que a lógica cosmopolítica de inspiração iluminista acabou por dar lugar a uma lógica globalitária centrada na financiarização da economia e num mercado financeiro mundial.

Esta expansão – e com estas características – provocou implosões internas e produziu, à maneira hegeliana, um efeito de superação, fragmentando e integrando numa unidade superior. O que acontece é que a extrema expansão do sistema o levou a afastar-se do seu núcleo duro, a lógica comunitária, tornando-se extremamente volátil. Isso implicou que o velho núcleo comunitário se tivesse fragmentado cada vez mais em microcomunidades e que a sua função aglutinadora originária fosse substituída por uma nova função de tipo mais superestrutural e volátil. Na nova cosmopolis, de forma reactiva, tendem, pois, a formar-se microcomunidades resistentes às novas funções globalitárias e superestruturais que acabaram por se impor. Foi esta evolução da cosmopolis que motivou os movimentos antiglobalização de vários matizes e expressões.

O que, com isto, pretendo dizer é que a nova cosmopolis global é favorável ao desenvolvimento de microcomunidades sectoriais, de natureza localista, mas também de natureza ético-política (os movimentos por causas), tendencialmente resistentes às novas funções globalitárias. É que elas pretendem exprimir a estrutura enquanto a nova função é essencialmente de tipo superestrutural. Uma função que inclui, como disse, uma dimensão essencialmente económica, mas sobretudo financeira (globalização), e uma dimensão essencialmente comunicacional (cosmopolita ou globalitária, quando ancorada nos colossos – grupos de media e plataformas digitais – da informação mundial).

função globalitária possui, pois, duas dimensões: a primeira é identificada com a expansão universal de um concentrado poder económico-financeiro; a segunda, com a lógica da comunicação global. A primeira é dominantemente intensiva (as concentrações mundiais de natureza económico-financeira, incluídas as do sector mediático), a segunda é dominantemente extensiva (a expansão universal e capilar da comunicação). Esta função tende a homogeneizar os conteúdos e a tudo transformar em mercadoria. Incluída a própria informação (como mercadoria). E para isso contribuem decisivamente as grandes concentrações de poder. A globalização, induzida pela lógica globalitária, nasce assim a partir dos vértices dos poderes económico-financeiro e mediático. Para se afirmar democraticamente, ela deveria, pelo contrário, partir das exigências concretas de vida, da base dos sistemas sociais, como parece já estar a acontecer, em parte, com a expansão da Rede, ao serviço do indivíduo singular. De qualquer modo, a rede possui uma virtualidade insurgente que não se verifica nos media tradicionais.  Assim não sendo, há que a considerar potencialmente perigosa para as próprias democracias nacionais. Só assim se explica a polémica em torno da globalização. Mesmo no plano da rede e das chamadas tecnologias da libertação aquilo a que também estamos a assistir é a uma excepcional concentração de poder por parte das grandes plataformas, dando lugar àquilo que Shoshana Zuboff  chama capitalismo da vigilância e ao seu poder preditivo do comportamento humano vertido, depois, em manipulação comercial e política (como se viu na eleição de Donald Trump) da cidadania mundial.

Esta tendência está a gerar contestações porque surge como uma imposição unilateral, sem base de legitimação e sem eficazes e legítimos controlos políticos, porque sem referentes políticos equivalentes. O conceito de função globalitária serve assim, apropriadamente, para designar a unificação forçada daquilo que se mantém substancialmente diferente. Outra coisa é a cosmopolis, legítima herdeira do iluminismo progressista. A construção progressiva de uma democracia europeia representa certamente esta herança, já que se funda num movimento ascensional que evolui para uma concreta forma de cosmopolitismo, bem radicado em exigências internas dos próprios Estados nacionais. Ela constitui, assim, exemplo virtuoso de um cosmopolitismo politicamente sustentado, bem diferente, pois, da globalização económico-financeira. O verdadeiro cosmopolitismo é incompatível com o «colonialismo» tendencial das funções globalitárias. Mas, felizmente, parece que começa a emergir um novo cosmopolitismo de natureza reticular muito resistente à natureza impositiva da lógica globalitária, porque orgânico ou funcional a uma dinâmica ascendente da livre expressão das expectativas individuais. Isto, apesar de também ele trazer consigo uma correspondente função globalitária, precisamente a das grandes plataformas e da gestão da informação acerca dos perfis dos utilizadores para efeitos de desenvolvimento de estratégias preditivas do comportamento humano com objectivos comerciais e políticos, oportunamente denunciados pela Zuboff e pela Netflix no seu documentário sobre as redes sociais. Duas dimensões presentes na rede, mas onde a componente libertária tem um papel que pode ser decisivo para esse novo cosmopolitismo antiglobalitário e que, por isso, aguarda, também ele, desenvolvimentos virtuosos que contrariem a evolução negativa do controlo mundial da informação pelas plataformas.

A CRISE ADIADA
DO CAPITALISMO DEMOCRÁTICO

A CRISE que teve início em 2008 é uma típica crise da globalização: das finanças à economia real, às dívidas soberanas, ao euro, à União Europeia. Insegurança, incerteza, volatilidade, retracção no investimento, desemprego, recessão, instabilidade social e política. Estas palavras traduzem-na bem. A solução passou por uma forte intervenção dos Estados com injecção de dinheiro nas economias, gerando aumentos insustentáveis da dívida pública em muitos países, com as agências de rating a sublinharem a incerteza acerca da capacidade dos países pagarem as suas dívidas. E com o consequente serviço da dívida a atingir níveis incomportáveis pelas brutais subidas de juros que se seguiram às notações das agências, criando-se um problema verdadeiramente novo nos processos críticos.

E é precisamente por estas razões que esta minha incursão no tema da globalização presta atenção às reflexões de Wolfgang Streeck sobre esse modelo que ele designa por “Estado democrático endividado”, (2013: 127-143), ou seja, daquele Estado que se seguiu ao “Estado democrático fiscal” e que passou a apresentar uma dupla e nova constituency: a dos cidadãos e a dos credores, que já enunciei antes. Entro, pois, agora, directamente neste tema, ou seja, na questão da dívida soberana e suas incidências na estrutura nuclear da democracia representativa e no modelo que, nas últimas décadas, lhe está associado, o modelo social europeu, que, como sabemos, se viria a tornar crucial na crise pandémica que ainda estamos a viver. Com este modelo, o do Estado endividado, sem dúvida muito sugestivo e, no meu entendimento, muito eficaz, na medida em que gera automaticamente um link entre economia e política, será possível compreender as principais variáveis envolvidas na crise que classifico como crise da globalização (1). Como diz Streeck, na obra já referida:

“Há muitos motivos para considerar que o surgimento do capital financeiro como um segundo povo – um povo do mercado, que rivaliza com o povo do Estado – constitui uma nova fase da relação entre o capitalismo e a democracia na qual o capital deixou de influenciar a política apenas indiretamente – através do investimento ou não em economias nacionais -, e passou a influenciá-la diretamente – através do financiamento ou não do próprio Estado” (2013: 134; itálico meu).

Quem tem prioridade, nesta equação, o povo do mercado ou o povo do Estado? Os credores internacionais ou os cidadãos? Deve-se evitar a “inquietação” dos mercados ou a dos pensionistas e dos cidadãos/clientes do Estado Social/contribuintes fiscais (2013: 137-138)? É por isso que, para responder com eficácia a este dilema, Streeck afirma que “o melhor Estado endividado é um Estado com uma grande coligação, pelo menos na política financeira e fiscal” (2013: 138-139). É que, deste modo, é possível garantir a confiança dos mercados, na medida em que desaparece a alternativa às políticas restritivas e de austeridade, ficando os eleitores impossibilitados de provocar mudanças políticas. Compreendem? Estão a ver bem por que razão muitos queriam o bloco central, aqui ou na Espanha? A verdade é que esta solução amputaria a democracia de um instrumento essencial: a possibilidade de escolha em alternativa. Confiscaria poder aos cidadãos. Por outro lado, como diz Streeck, “o facto de a governance internacional ter sido encarregada da supervisão e regulação orçamental de governos nacionais ameaça fazer com que o conflito entre o capitalismo e a democracia seja decidido durante muito tempo, se não para sempre, a favor do primeiro, dada a expropriação dos meios políticos de produção dos Estados” (2013: 144). A posição de Streeck é muito clara: o neoliberalismo tem vindo a impor, sobretudo a partir dos fins dos anos ’70, o triunfo da justiça de mercado sobre a justiça social (2), através da confiscação do poder da cidadania pelo poder dos mercados. O modelo de Streeck centra-se em três momentos essenciais na evolução do Estado: o Estado democrático fiscal, que alimentava o orçamento do Estado através dos impostos, deu origem ao Estado democrático endividado, através da dívida pública, que alimentava os orçamentos sobretudo através do endividamento externo, do recurso aos mercados financeiros internacionais (e não tanto do mercado interno); depois, segundo Streeck, passou-se à fase do Estado de Consolidação, que é o ponto em que nos encontramos. O modelo é assim formulado por Streeck:

“O Estado democrático governado pelos seus cidadãos e, enquanto Estado fiscal, alimentado pelos mesmos, transforma-se no Estado democrático endividado mal a sua subsistência deixa de depender exclusivamente das contribuições dos seus cidadãos para passar a depender, em grande parte, também da confiança dos credores. Ao contrário do povo do Estado fiscal, o povo do mercado do Estado endividado está integrado a nível transnacional. A única ligação que existe entre os membros do povo do mercado e os Estados nacionais é a dos contratos: estão ligados como investidores e não como cidadãos. Os seus direitos perante o Estado não são públicos, mas sim privados: não se baseiam numa constituição, mas no direito civil. Em vez de direitos civis difusos, passíveis de ser alargados do ponto de vista político, os membros do povo do mercado possuem direitos perante o Estado cuja aplicação pode ser exigida em tribunais cíveis e terminar através do cumprimento do contrato. Enquanto credores, não podem eleger outro governo em vez daquele que não lhes agrada; mas podem vender os seus títulos de dívida ou não participar nos leilões de novos títulos de dívida. O juro pago por estes títulos, que reflete o risco estimado pelos investidores de não recuperação total ou parcial dos seus investimentos, constitui a ‘opinião pública’ do povo do mercado – e uma vez que esta é expressa de forma quantificada, é muito mais precisa e legível do que a do povo do Estado. O Estado endividado pode esperar lealdade do seu povo, enquanto dever cívico, enquanto no que diz respeito ao povo do mercado tem de procurar conquistar a sua ‘confiança’, pagando devidamente as suas dívidas e provando que poderá e quererá fazê-lo também no futuro” (2013: 130-131).

Este modelo explica a crise através de uma mudança nas relações entre administração fiscal, cidadão, credor, eleições, mercado e Estado. É um modelo sugestivo e parece ter sido extraído directamente da crise de 2008, designadamente inspirando-se nos casos dos países intervencionados: Grécia, Irlanda e Portugal. É um modelo muito sugestivo, mas continua subsidiário do subsistema económico-financeiro. Nisto não se desvia dos modelos tradicionais de explicação da crise, sendo certo que a sua própria solução, a de Streeck, acaba por afunilar na proposta de reposição das moedas nacionais e na reintrodução do mecanismo da desvalorização. Neste sentido, não me revejo nele.

Com efeito, a perspectiva de Streeck, que vê na União monetária e na União política uma tentativa de coroamento do percurso neoliberal iniciado nos anos setenta, além de errada e, diria mesmo, injusta, resume-se, afinal, ao fim do euro (ou à sua conversão em simples moeda-referência) e à reposição das moedas nacionais para que possa ser repristinado o mecanismo de desvalorização, enquanto único meio que, a seu ver, poderá repor a liberdade e a autonomia nacionais, evitando a confiscação da democracia pelo sistema financeiro internacional, ou seja, pelo capitalismo, em face da tentativa totalizante (ou mesmo totalitária) de construção de um mercado mundial autorregulado e autorregulador, uma espécie de “mão invisível” mundial, para fazer jus aos diletos discípulos de Smith e de Hayek.. Como diz o próprio:

“Nas circunstâncias actuais, uma estratégia que aposta numa democracia pós-nacional, na sequência funcionalista do progresso capitalista, não serve senão os interesses dos engenheiros sociais de um capitalismo de mercado global e autorregulador; a crise de 2008 constituiu uma antevisão daquilo que este mercado pode provocar” (Streeck, 2013: 274).

Mas Streeck acaba por citar (favoravelmente) uma interessante resposta de Juergen Habermas relativa ao actual panorama crítico da União no sentido de uma abertura no plano do mercado, mas também de uma evolução política com um nível mais elevado e alargado de integração social:

Uma “dinâmica capitalista (…) que pode ser descrita como uma interação entre uma abertura forçada em termos funcionais e um fecho integrador do ponto de vista social a um nível cada vez mais alto”.

É claro que quem conhece a obra de Habermas sabe que se trata de fazer interagir de forma mais intensa a integração sistémica, no plano económico-financeiro, com a integração social, mas agora num plano pós-nacional (de cidadania e institucional), desencadeando um novo e mais alargado processo de relegitimação e integração social. Esta perspectiva é, no meu entendimento, a única que poderá responder à actual crise europeia. E, na verdade, Habermas, num ensaio publicado emMaio de 2013, na Revista alemã “Blätter für Deutsche und Internationale Politik” (Habermas, 2013), critica exaustivamente a posição de Streeck, acusando-o de querer, contraditoriamente, responder com soluções nacionais a uma crise que está centrada em mercados irreversivelmente globalizados:

 “não é o reforço democrático de uma união europeia até agora construída só a metade a dever recolocar num equilíbrio democrático a relação tresloucada entre política e mercado” – diz Habermas, criticamente, referindo-se à posição de Streeck. “Wolfgang Streek não se propõe completar a construção europeia, mas sim desmontá-la” – continua; “quer regressar às fortalezas nacionais dos anos sessenta e setenta, com o objectivo de ‘defender e reparar tanto quanto possível os restos daquelas instituições políticas graças às quais talvez se pudesse modificar e substituir a justiça do mercado com a justiça social’. Esta opção de nostálgico fechamento em concha na soberana impotência de nações já arrasadas é surpreendente se considerarmos as transformações epocais dos Estados nacionais que antes tinham os mercados territoriais ainda sob controlo e que, hoje, pelo contrário, estão reduzidos ao papel de autores enfraquecidos e inseridos, por sua vez, nos mercados globalizados” (Habermas, 2013).

A posição de Habermas é conhecida. E aqui parece haver um grande consenso: é preciso encontrar soluções políticas supranacionais para problemas globais. Romper com o desfasamento entre problemas globais e soluções nacionais. Esta é também a posição do neoconservador Fareed Zakaria, no seu famoso “Capitalist Manifesto: Greed is Good”. E a do francês e ex-colaborador de Pierre Mauroy, Jean Peyrelevade: “a política de que temos necessidade para regular a mundialização deve ser, ela própria, mundializada”  – (2008: 104; a obra é de 2005, muito anterior à crise de 2008) (3).

A posição de Habermas, no plano europeu, aponta, de facto, para um reforço da União política europeia, chegando a propor, por um lado, (a) “uma moldura institucional para uma política europeia fiscal, económica e social comum que pudesse criar as condições necessárias para a possível superação dos limites estruturais de uma união monetária imperfeita”; e, por outro,  (b) uma “participação paritária do Parlamento e do Conselho na legislação e uma Comissão que responda a ambas as instituições” (Habermas, 2013).

Os cidadãos, neste processo, desempenhariam um importante papel quer enquanto membros dos Estados nacionais quer enquanto membros da União Europeia. Esta posição, está bem de ver, não confina nem a explicação nem a solução da crise em mecanismos meramente sistémicos (de controlo) ou, mais especificamente, a puros mecanismos de carácter financeiro, ainda por cima centrados numa solução política e financeira nacional, como propõe Streeck. Ela não prescinde da política e da integração social, ou seja, na resolução da crise é imprescindível a intervenção da componente subjectiva das sociedades, seja no plano da cidadania seja no plano institucional. Teoricamente, Habermas considera que o conceito de crise engloba necessariamente uma componente subjectiva (4). De resto, sabemos que a crise de ’29 e a subsequente Grande Depressão não foram corrigidas somente com mecanismos sistémicos e financeiros, mas sim com um relançamento da capacidade política de intervenção do Estado, designadamente com o New Deal. Embora saibamos também que, pelo menos na interpretação de Peyrelevade, “os Estados Unidos chegaram mais cedo que nós a um capitalismo amplamente desintermediado”, graças precisamente à crise de 1929. “O desmoronar da Bolsa causou a falência de centenas de bancos que tinham considerado boa ideia investir nela as poupanças que lhes estavam confiadas e, depois, por ricochete, a ruína de milhões de depositantes”. As estruturas de intermediação falharam e, por isso, acabaram por antecipar o nascimento nos Estados Unidos do capitalismo directo, a entrada em cena no mercado financeiro dos detentores individuais de capital, que está na origem do actual modelo financeiro mundial (2008: 36-37).

De qualquer modo – e não obstante a solução proposta por Streeck, aqui criticada, por errada -, temos, portanto, um primeiro modelo explicativo da crise, o do Estado fiscal que se torna Estado endividado e que, assim, altera profundamente a estrutura de suporte do edifício democrático, transferindo soberania do cidadão para o credor e transformando, deste modo, os mandatos de natureza política em mandatos de natureza financeira. Sabemos bem o que é isso por via da entrada da Troika no nosso País onde o programa de governo pós-eleições, em Junho de 2011, ficou consignado em memorando de natureza financeira negociado com os credores. Houve eleições, sim, para os representantes, mas o programa de governo dos partidos candidatos ao executivo (PS e PSD) até poderia ter sido exactamente o mesmo memorando, porque seria esse a ser realmente executado.

Este modelo de análise tem a virtude de conjugar conceptualmente política e economia na óptica da tendência de confiscação daquela por esta, lá onde, como muito bem demonstra Peyrelevade (2008), a emergência dos mercados financeiros globalizados leva à confiscação da soberania de um cidadão doravante politicamente impotente perante a força sistémica dos mercados globais, pelo menos enquanto não dispuser de equivalentes alavancas políticas supranacionais com suficiente força para substituir, num plano mais elevado, aquela que foi a tradicional regulação centrada no poder dos velhos Estados nacionais territoriais. Peyrelevade expõe o problema de forma muito interessante e convincente:

“Assim, o cidadão, cuja existência está ligada ao território nacional, é vítima da sua própria esquizofrenia, dado que as suas escolhas, na qualidade de consumidor ou, se for esse o caso, de acionista, alimentam e reforçam um capitalismo mundializado que implica a diminuição da sua própria soberania. (…) Exemplo puro de dissociação individual, o desejo de enriquecimento que têm leva-os a repudiar a sua própria cidadania” (2008: 118; itálico meu).

 GREED IS GOOD

 FAREED ZAKARIA tem da crise uma visão optimista. Apesar de tudo, ainda iremos querer, no futuro, mais capitalismo. Mas não centrado no Estado-Nação. Porque a crise não se resolve regressando a uma soberania nacional que já acabou de fazer todo aquele percurso que iniciou com a construção dos Estados nacionais, no início da Modernidade. Na verdade, esta crise é também resultado de uma globalização que não conhece ainda meios (políticos e institucionais) de autorregulação e de governo, tal como ele defende no seu ensaio “A Capitalist Manifesto: Greed is Good” (2009). Diz-nos Zakaria:

“More, the fundamental crisis we face is of globalization itself. We have globalized the economies of nations. Trade, travel and tourism are bringing people together. Technology has created worldwide supply chains, companies and costumers. But our politics remains resolutely national. This tension is at the heart of the many crashes of this era – a mismatch between interconnected economies that are producing global problems but no matching political process that can effect global solutions”.

E esta ideia colhe uma das principais questões que se pode pôr hoje a propósito da própria ideia de crise. O desfasamento entre a dimensão do problema e a dimensão da solução. Ou o desfasamento entre o patamar da crise e o patamar da solução.

Em primeiro lugar, é importante perceber como uma crise que surgiu, tal como já foi referido, nos EUA, em 2008, acaba por ser uma crise que afecta ou implica o Mundo inteiro; em segundo lugar, é muito importante aquilo que Zakaria diz quanto ao facto de, apesar de ser uma crise global, apesar das “empresas e dos clientes” serem do mundo inteiro, a resolução política se manter a um nível nacional ou local; ou, então, como, paradoxalmente,  o próprio Streeck acaba por propor como solução aquilo que, na realidade, se configura como o problema. Na verdade, parece ser difícil resolver um problema global, e criado por todos, sem ser de uma forma igualmente forte e institucionalmente concertada, mas sobretudo sem ser através de mecanismos adequados, que só podem ser supranacionais. Um problema global exige uma solução global. Mas Zakaria avança mais na sua reflexão sobre esta crise no seu todo e toca em pontos fundamentais: a instabilidade como condição inerente ao capitalismo e/ou à evolução, logo, como condição inerente à crise; e a moralidade, ou a falta dela, como possível razão de escolhas que agravam a própria crise. Este último aspecto, mas também aquela dimensão subjectiva da crise, de que fala Habermas em Spaetkapitalismus, ficou bem patente na crise de ’29, tanto do lado dos economistas e dos jornalistas (muitos), como do lado dos políticos (que quiseram lavar as mãos deste processo, como se vê claramente na descrição milimétrica que nos oferece Galbraith na obra de 1954) ou do lado dos banqueiros, financeiros e especuladores. Zakaria acaba mesmo o seu ensaio com uma frase elucidativa em contexto de crise, ao dizer que “há muitas coisas para resolver, no sistema internacional, nos governos nacionais e nas próprias empresas, mas a maior mudança tem de ser em cada um de nós”.

Em boa verdade, e sem colocar a questão na ótica de uma ruptura radical do sistema, “do que se trata, de facto, é de uma profunda mudança de paradigma em todas as esferas da sociedade” (Santos, 2013). Ou seja, a crise de 2008 só é compreensível no quadro de uma mudança de paradigmas. Incluído o civilizacional e o cultural. E não só o político, o jurídico, o económico, o tecnológico ou o comunicacional. Uma compreensão de fundo capaz de nos ajudar a fazer face à crise, já que ela está inscrita no nosso próprio processo evolutivo. Capaz, pois, de nos ajudar a sobreviver no interior dela, não a olhando de forma negativa. Bem pelo contrário, olhando para ela de forma positiva. Na verdade, quando se fala em “crise de crescimento” ou em “resultados do sucesso”, como faz Fareed Zakaria no seu ensaio, é disso mesmo que se fala: da crise que nos faz crescer. Outra coisa é a ruptura radical, para a qual aponta a teoria marxista da crise e de que são exemplo a ruptura com o Ancien Regime e, em parte, a Revolução Soviética, a famosa “revolução contra o capital” (de Marx), na expressão de Antonio Gramsci. Só que esta acabaria por ser reabsorvida setenta anos depois, em 1989.

Diz ele, Zakaria (5) (mas sobre o assunto também Galbraith reflecte no seu livro “ The Culture of Contentment”), que os bons tempos levam sempre a uma espécie de auto-satisfação que privilegia o bem-estar e o lucro imediatos. E também que, de facto, se estava num período em que se verificara um enorme crescimento: num longo período de estabilidade política, a economia global cresceu exponencialmente, duplicando entre 1999 e 2008 e tendo, entre 2006 e 2007, 124 países crescido ao ritmo de 4% ao ano, ou mais; a inflação baixou para níveis jamais vistos; as recessões passaram a ser controladas muito mais rapidamente do que outrora; milhões de pessoas foram retiradas da pobreza; deu-se a revolução da informação e da Internet; emergiram novas potências económicas, como a China, gerando novas interdependências financeiras com fortes consequências no crédito ao consumo (designadamente nos USA; veja-se os índices apontados por Peyrelevade, 2008: 74-75).

Tudo isto viria a gerar efeitos em cadeia para os quais não havia mecanismos de gestão e de controlo. Zakaria usa a metáfora do carro sofisticado que já ninguém sabe conduzir. Daqui, o desastre ou, melhor, a crise. Daqui também que ainda não se tenham verificado respostas eficazes para uma crise que acabou por se revelar como, certamente, crise financeira, mas também da democracia, da globalização e mesmo da ética. Auto-satisfação, como resultado do crescimento, que produziu lassidão, sofreguidão e processos especulativos em escala alargada? Certamente. Mas o que está em jogo é provavelmente muito mais do que isto. O que está em jogo são os vários paradigmas que enquadram o nosso funcionamento societário e que, em grande parte, são subsidiários da revolução moderna que se iniciou no século XVIII ou mesmo com o próprio Renascimento e as Revoluções científicas que se lhe seguiram. A questão que se põe a propósito deste ensaio de Zakaria é a de saber se será verdade que “daqui por alguns anos, por estranho que isso possa parecer, nós podemos todos achar que estamos ávidos de (mais) capitalismo, não de menos”. Zakaria está certamente a pensar que, tal como a democracia, o capitalismo é o pior dos sistemas, à excepção de todos os outros. Não acontecerá, pois, na sua óptica, uma derrocada do capitalismo como fora profetizado pela teoria marxista. Como sabemos, o que viria a acontecer seria precisamente o contrário, a derrocada do socialismo de Estado e a sua reabsorção histórica. Mas de que capitalismo estamos a falar, do capitalismo total, financeiro, accionista, daquele que se separou da economia real, passando, depois, a dirigi-la de acordo com as suas próprias performances em matéria de lucro? Daquele “capitalismo sem projecto” (Patrick Artus) que se identifica exclusivamente com o lucro e, se possível, com o lucro imediato, constante e progressivo (Peyrelevade, 2008: 90)? Se, com a globalização, for este o capitalismo que acabará por se impor então o que acontecerá será a sua libertação dos vínculos da política, do Estado, do trabalho e, finalmente, da própria cidadania, que acabará substituída pela soberania dos accionistas, dos credores e dos consumidores de produtos financeiros (veja-se Beck, 1999: 14-15).

CONCLUSÃO - A CRISE E O RISCO

VEJAMOS, agora, associado ao conceito de globalização, o conceito de crise tal como formulado por Ulrich Beck. Verificamos, que, ao referir-se à evolução da primeira modernidade que teve lugar contemporaneamente à revolução industrial, Beck fala de “modernidade reflexiva”, de “segunda modernidade” e de “sociedade de risco”. De algum modo, assume uma certa continuidade na evolução dos tempos, mas define novas características para estes tempos. Trata-se da fase da globalização e da “sociedade de risco”. A ideia de risco tem, por isso, para Beck uma função equivalente à própria ideia de Crise. Ou melhor, substitui-a. E está associada, neste caso, à crise irreversível do Estado-Nação e à globalização (não fala ele precisamente disso num livro de 2007, publicado pela Suhrkamp, ou seja, de Weltrisikogesellschaft?). Risco difere de crise – ou dá-lhe um novo sentido, como creio – e difere também de catástrofe, na medida em que o risco só ainda anuncia a possibilidade de uma catástrofe futura. Que poderá ser evitada. Se o risco for submetido ao crivo da razão crítica. E se para situações de risco não forem invocadas, pelos imobilistas, as eternas normas constitucionais, previstas para situações de normalidade e não de excepção (6). Vejamos, com Ulrich Beck:

 “Normalmente, fala-se de ‘crise’, mas aqui, na maior parte das vezes, fala-se de ‘risco’ – qual é a relação entre estes dois conceitos? O conceito de ‘risco da Europa’, que introduzi aqui, inclui o conceito de ‘crise do euro’ (ou ‘crise da Europa’), mas vai essencialmente mais longe em três pontos: primeiro, o conceito de crise encobre a diferença entre o risco (encenado), enquanto futuro presente, e a catástrofe, enquanto presente futuro (sobre o qual não podemos, em última análise, saber nada). O discurso sobre a crise ‘ontologiza’ simultaneamente a diferença entre catástrofe antecipada e actual, aqui no centro das atenções. Segundo, hoje, a utilização do conceito de crise ilude a possibilidade de, no processo de resolução da crise, regressar ao status quo ante. Pelo contrário, o conceito de risco revela a ‘diferença secular’ entre a ameaça global e as possíveis respostas disponíveis no quadro da política dos Estados nacionais. No entanto, com isto afirma-se, simultaneamente  – e este é o terceiro ponto – , que o risco, tal como o entendo, não representa uma exceção – como a crise -, mas torna-se uma situação normal e, portanto, o motor de uma transformação maior da sociedade e do ‘político’” (Beck, 2013: 41, nota 24).

Esta passagem é muito elucidativa. Da crise ao risco. A crise representa já um estado de facto, uma excepção, uma negatividade em acto. As crises são isso mesmo. São rupturas não só anunciadas, mas já em acto. Anunciam a morte do velho e o nascimento do novo. Mesmo que nem o velho morra completamente nem o novo se afirme como radicalmente diferente. Não anulam o paradigma dominante em curso. E a verdade é que mesmo hoje, quando nos referimos aos novos tempos, falamos de “pós-modernidade”, de “pós-industrial”, de “segunda modernidade”, de “modernidade reflexiva”. As crises dão lugar a profundas transformações sem anular os respectivos paradigmas. Neste sentido, até pode parecer que só houve verdadeiramente uma Crise com dimensão histórico-ontológica. A que inaugurou a Modernidade e a civilização Industrial, tendo representado as graves crises que lhe sobrevieram simples ajustamentos tectónicos. Intensos, mas ajustamentos. Aquela foi uma Crise com dimensão ontológica, foi uma ruptura de paradigma. Da sociedade rural passou-se à sociedade industrial. Da comunidade passou-se à sociedade. Ela é a Crise por antonomásia e a ela nem sequer se compara a Revolução Soviética porque esta acabaria, setenta anos depois, por ser absorvida e, logo, relativizada.

Ora, o conceito de risco exprime bem a consequência da dinâmica propulsora e decisiva da Crise, agora entendida neste sentido radical. Exprime (ao contrário do conceito de crise) a diferença entre catástrofe possível e risco sofrido; exprime a possibilidade de regresso ao status quo ante; e exprime, também, não uma excepção, mas uma dinâmica permanente que nos põe em situação de vigilância crítica. O risco e a crítica convivem. A ideia de risco aproxima-nos, por isso, dessa ideia avançada, na senda da revolução iluminista, por Koselleck, da íntima conexão entre crítica e crise, neste caso entre risco e crítica. A ideia de excepcionalidade da crise cede, assim, o lugar à normalidade do risco (Beck, 2012: 2013). Risco de crise. Crise antecipada como ameaça permanente. Numa leitura mais profunda da ideia de excepcionalidade da crise poderíamos admitir a inevitabilidade da revolução, de um período de ausência da lei, de anomia, de irrupção dogmática da decisão política, de fim da constitucionalidade da vida colectiva regulada (Agamben, 2010). Com a ideia de normalidade do risco não cabe admitir esse tipo de excepcionalidade, mas tão-só a ideia de vigilância crítica. Vigilância inspirada pela razão crítica. A ideia de risco parece ser, pois, mais funcional à globalização do que a ideia de crise.

Com efeito, os autores em referência, incluído Claus Offe, assumem mais a ideia de risco do que a de crise, admitindo que haverá soluções para pôr fim às crises e evitar o risco, esse sim, de uma catástrofe (7), seja com a queda do euro e da União Europeia, na forma de uma crise sem precedentes, sobretudo pelas suas características e pelo seu impacto mundial, seja na forma de triunfo final do capitalismo accionista, com a definitiva sobreposição do consumidor e accionista ao cidadão, com a dissociação definitiva entre democracia e capitalismo e a transformação daquela em puro simulacro político (8) e com a atrofia e a submissão da economia real ao diktat do capital financeiro, um “capitalismo sem projecto”, porque obcecado exclusivamente pelo lucro.

Algumas das posições de partida são partilhadas por Habermas, designadamente, como vimos, no texto de crítica a Streeck, já referido, Beck, Offe ou Peyrelevade: a) que a globalização não tem regresso possível (ao status quo ante) e que, portanto, não é possível responder aos seus desafios com soluções estranhas à sua própria lógica, ou seja, sem ser através de mecanismos supranacionais; b) que o projecto europeu é essencial para responder a estes riscos, designadamente desenvolvendo mecanismos de integração económico-financeira comunitários (“under the pressure of the crisis, this has now become an urgent emergency measure, hastening us towards the establishment of stronger fiscal and economic powers at the EU level”, diz Claus Offe, 2013: 4); c) que é necessário reintroduzir a política lá onde ela parece estar cada vez mais capturada pelos mercados financeiros internacionais (“o objectivo não é o de suprimir o mercado, mas o de voltar a incluí-lo no campo do político, de o integrar num espaço de cidadania”, que não exclusivamente num espaço de consumo accionista – Peyrelevade, 2008: 120); d) que, a par de uma integração institucional, top down, se proceda a uma integração, down top, europeia, de uma cidadania que transborda largamente o actual quadro institucional, ou melhor, que ainda não se encaixa perfeitamente no quadro institucional da União e que tem necessidade de se reconhecer como efectiva cidadania europeia:

“por um lado”, diz Beck, “temos a casa abstrata das instituições europeias, mas em cujos quartos não vivem pessoas. Do outro lado, estão os indivíduos (jovens) que vivem a Europa, mas não se querem mudar para a casa construída para eles em Bruxelas (…)”; “eles (vários europeus de renome) (…) pensam que a democracia europeia tem de crescer a partir da base, porque compreendem que não existe um “povo europeu”, mas sim uma Europa de indivíduos que ainda têm de se transformar no soberano da democracia europeia” (Beck, 2013: 96 e 102).

Aqui fala-se de risco e de catástrofe; fala-se de regresso ao status quo ante e de triunfo do capitalismo accionista, mas também se fala (Peyrelevade) da ausência de um rosto a combater como adversário, de um capitalismo anónimo e de um crescimento assimétrico (do capital accionista) impossível de manter ao ritmo de crescimento que tem vindo a manter. Fala-se de tudo isto e também se fala de crise do euro, da União e do sistema capitalista mundial. Mas não se vislumbra uma Crise como a que inaugurou a Modernidade. Porque as variáveis são diferentes, porque o substracto ontológico é diferente, porque pela própria natureza da crise os poderes mundiais não precisam de recorrer à lógica antagonista da guerra e da revolução, porque os Estados nacionais já estão naturalmente desapossados do poder, porque do que se trata não é de destruir, mas de construir para prevenir o risco de catástrofe e de desagregação. A crise tem um novo rosto, para o qual também a palavra risco pode servir. Todas as crises contêm uma dimensão de risco, embora nem todas possam anunciar uma possível catástrofe. Uma Crise como a da modernidade talvez não aconteça não só porque uma crise radical destruiria o planeta, mas também porque mudanças profundas e significativas poderão acontecer, sim, mas no interior de um mesmo paradigma, porque, na realidade, do ponto de vista ideal já se avançou tanto que o que se impõe fazer é simplesmente concretizar a melhor tradição ideal e expulsar os desvios de que história já nos deu conta durante o atormentado século XX.

NOTAS
  1. Isto não significa que partilhe da perspectiva de Streeck, que assume, nesta obra, uma posição completamente diferente da que advogo, ou seja, a necessidade de um aprofundamento político da estrutura institucional da União Europeia e de uma constituição para a União.
  2. Veja-se, a este propósito, a posição do Prémio Nobel Friedrich von Hayek, e pai dos neoliberais, sobre a desvalorização do próprio conceito de justiça social (Hayek, 1978), que ele próprio afirma nem saber o que é.
  3. A obra é de 2005, muito anterior à crise actual.
  4. Sobre o conceito de crise. Olhemos para a origem da palavra crise. A palavra crise vem do grego: krísis (-eôs): 1. separação, discórdia, disputa; 2. Escolha; 3. decisão, êxito, sucesso; decisão: a) decisão judiciária; pôr um processo a alguém, juízo, condenação; b) tribunal, direito, castigo; c) crítica estética. São estes os significados que encontramos num bom dicionário de grego antigo. A palavra (um substantivo) vem do verbo krínô e tem a ver com: separar, dividir, decidir, julgar, condenar. Poder-se-ia dizer que, no sentido etimológico, há uma ideia de rotura, de separação, de decisão com reais efeitos, mas também de intervenção da vontade, da razão e da consciência (podendo implicar juízos de valor, como veremos). E é na decisão que separa, com intervenção da razão, da consciência e da vontade, ou seja, na intervenção do elemento subjectivo, que assentará a ideia de Crise, muito ligada à ideia de revolução. Num importante livro de 1973, Legitimationsprobleme im Spaetkapitalismus (Habermas, 1973), Juergen Habermas analisa o conceito de crise nas suas várias dimensões, desde a dimensão simplesmente médica, onde a crise é provocada por algo que é exterior ao paciente, algo objectivo sobre o qual ele não pode influir, por agentes externos. E, todavia, essa crise não é separável da visão interna de quem a ela está sujeito. Ou seja: com as crises, nós ligamos a ideia de uma potência objectiva que subtrai a um sujeito uma parte da soberania que lhe é normalmente garantida. E, todavia, no seu entendimento, a ideia de crise só é compreensível se incluir a percepção dela por parte dos agentes a ela sujeitos, mesmo que não tenham poder para interferir nela enquanto provocada por agentes externos. Com efeito, segundo Habermas, a ideia de crise na dramaturgia clássica – de Aristóteles a Hegel – já implica a presença de sujeitos, de protagonistas. A crise, na verdade, só se configura como tal quando, de algum modo, os que a ela estão sujeitos têm dela consciência, mesmo que a sofram sem terem capacidade para nela interferir. Esta variável subjectiva torna-se ainda mais decisiva no plano histórico-social. Trata-se aqui da relação entre consciência-vontade e estados de facto. Pode não haver ligação, mas estes elementos têm de estar presentes na Crise e na própria ideia de Crise. Habermas: “Die Krise ist nicht von der Innenansicht dessen zu loesen, der ihr ausgeliefert ist” (Habermas, 1973: 9).  “Mit Krisen verbinden wir die Vorstellung einer objektiven Gewalt, die einem Subjekt ein Stueck Souveraenitaet entzieht, die ihm normalerweise zusteht” (1973: 10).
  1. Sigo aqui a interpretação de Santos (2013: 43-45).
  2. Sobre a complexidade do estado de excepção e seu enquadramento constitucional veja-se o estimulante ensaio de Giorgio Agamben (2010).
  3. “Nobody can be sure what will happen if nothing is done, if there is no debt−sharing agreement or if no other variant of “northern” subsidies to stabilize the periphery is implemented”, diz Claus Offe. “The most recent prognoses from the Bertelsmann Foundation” – continua – “indicate catastrophe: a domino effect racing through the whole European Mediterranean region, including France and possibly even Belgium, with devastating economic effects worldwide and particularly across Europe” (Offe, 2013: 5; itálico nosso).
  4. “A central problem for the euro rescue scheme” – diz Claus Offe – “is that the banking crisis became a state budgetary crisis, which then became the crisis of European integration we have today. This in turn is a crisis of renationalizing our sense of solidarity, a crisis in which the rich countries of Europe impose saving packages upon their poorer neighbours which are supposed to win back the confidence of the finance industries. This flies in the face of past experience, all of which tells us that austerity is a highly toxic cure that can kill the patient in case of overdose, instead of stimulating growth and expanding the tax base. Thus the weakest members of the eurozone (and in the long run, all members) become ever more dependent on the finance industry, which in turn reacts to weak growth by imposing heavier and ever more onerous interest rates − a vicious circle” (Offe, 2013: 7; itálico nosso). E ainda: “If the eurozone were actually to dissolve − in an “orderly” or in a chaotic manner − we would embark upon a gigantic negative−sum game: all sides lose” (Offe, 2013: 7 e 12; itálico meu).
REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. (2010). Estado de Excepção. Lisboa: Edições 70.

BECK, U. (2013). A Europa Alemã. De Maquiavel a “Merkievel”: as estratégias de poder na crise do Euro. Lisboa: Edições 70.

BECK, U. (1999). Che cos’è la globalizzazione, Roma, Carocci.

BECK, U. (1991). Politik in der Risikogesellschaft. Essays

und Analyse. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

GALBRAITH, J. K. (1954). A crise económica de 1929. Lisboa: Dom Quixote.

GALBRAITH, J. K. (1993). A cultura do contentamento. Mem Martins: Europa-América.

GRAMSCI, A. (1958). Scritti giovanili. Torino: Einaudi.

HABERMAS, J. (2012). Uma Constituição para a Europa. Lisboa: Edições 70.

HABERMAS, J. (2013). “Democrazia o capitalismo? La miseria capitalistica di una società planetaria integrata economicamente e frantumata in Stati nazionali”. In: http://www.resetdoc.org/story/00000022342

HABERMAS, J.  (1973). Legitimationsprobleme im Spaetkapitalismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

HAYEK, F. v. (1978). “Liberalismo”. In Enciclopedia del Novecento. Istituto dell’Enciclopedia Italiana. Roma. Vol. III.

KLEIN, N. (2001). No Logo. Milano: Baldini&Castoldi.

KOSELLECK, R. (1988) Critique and Crisis – Enlightenment and the Pathogenesis of Modern Society. Cambridge: The MIT Press.

OFFE, C. (2013). “The Europe in the trap”. http://www.eurozine.com/pdf/2013-02-06-offe-en.pdf

PEYRELEVADE, J. (2008). O capitalismo total. Lisboa: Vega.

SANTOS, J. A. (2001). “Cosmopolis. Categorias para uma nova política”. In Vários (2001: 61-89). Agora em nova edição revista e reescrita, em www.tendencias21.net (blog: comunicacion/es).

SANTOS, J. A. (2013). À esquerda da crise. Lisboa: Vega.

ZAKARIA, Fareed (2009). “Capitalist Manifesto. Greed is good”. In Newsweek, Junho de 2009. www.newsweek.com .

ZUBOFF, S. (2020). A Era do Capitalismo da Vigilância. Lisboa: Relógio d’Água. #Jas@02-2022.

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Poesia-Pintura

O TERRAÇO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “O Terraço”
Original de minha autoria
Fevereiro de 2022
Terraço2022Pub1302FimLUZ

“Terraço”. Jas. 02-2022

POEMA – “O TERRAÇO”

É DAQUI,
Deste terraço,
Ó deusa,
Que te alcanço
E te vejo
Com a forma
Intangível
Do desejo.

SILÊNCIO,
Nuvens,
Um lago,
Uma luz
Que rompe
O escuro
Da partida
E acende
O dourado,
Elementos
Que compõem
O teu muro,
Meu pecado.

É DAQUI
Que eu te sonho,
Uma fresta
No teu céu,
Um olhar
Que não tem fim...
........
É daqui
Que eu te quero
Sem limites
No poema,
Quando
Com palavras
Te olho
E te vejo
Como se fosses
O fruto
Daquilo que eu
Mais desejo.

É DAQUI
Que eu não saio
Quando parto
Para longe,
Pois é aqui
Que te tenho
Nas raízes
Do que sou.

ERA AQUI
Que eu te queria
Se aqui não te
Tivesse,
Ver-te
Ao perto
Sem te tocar,
Beijar-te
Com os olhos
Numa noite
De luar.

VÊS,
Meu amor,
Como é simples
Gostar de ti?
A mim basta,
Neste encanto,
Ficar-me
Docemente
Aninhado
Num recanto...
..............
Reinventar-te
Por aqui.
Terraço2022Pub1302FimLUZ

“Terraço”. Detalhe

Ensaio

A RECOMPOSIÇÃO DO SISTEMA DE PARTIDOS EM PORTUGAL

IDENTIDADE POLÍTICA E CIDADANIA

Por João de Almeida Santos

Ballot box

“Democracia”. Jas. 02.2022

OLHANDO COM OBJECTIVIDADE para os dados que resultaram das recentes eleições de 2022, o que se constata é que estamos realmente perante uma recomposição do sistema de partidos, em Portugal, desde as eleições de 2015, com a entrada em cena do PAN. O processo iniciara-se antes, com o aparecimento do Bloco de Esquerda (BE), em 1999, tendo nas eleições desse ano conseguido dois deputados. Vinte e três anos depois, o panorama é muito diferente porque saíram do Parlamento o CDS e o PEV e apareceram (nas eleições de 2019) duas formações políticas de direita com representação parlamentar, o CHEGA (12 deputados e 7, 15%) e a Iniciativa Liberal (IL; 8 deputados e 4,9%), enquanto, à esquerda, o LIVRE consegue (em 2019 e em 2022) um deputado e o PCP e o BE caem drasticamente (respectivamente para 4,39%, com 6 deputados, e 4,46%, com 5 deputados). O PS consegue uma maioria absoluta (41,68% e, provavelmente, 119 ou 120 deputados), com um sistema eleitoral proporcional puro, e o PSD fica reduzido àquilo que é o seu núcleo duro eleitoral (27,80%, com, provavelmente, 77 ou 78 deputados). No momento em que escrevo falta eleger os quatro deputados dos círculos eleitorais do estrangeiro.

FRAGMENTAÇÃO DOS SISTEMAS DE PARTIDOS

NA EUROPA, a recomposição dos sistemas de partidos há muito que aconteceu, com uma sua forte fragmentação: Espanha, França, Inglaterra, Itália e Alemanha, só para citar os maiores países. Esta tendência parece ter vindo para ficar, invertendo aquela que foi a tendência dominante (dois partidos alternativos de poder) que se verificou a seguir à guerra e até aos anos noventa. Várias são as razões que o explicam, mas poderemos dizer que isso aconteceu sobretudo devido a) a uma progressiva crise de representação por parte do establishment político e, ainda, b) à revolução das TICs e da rede, em geral, c) à alteração do modelo de participação baseado no sentimento de pertença orgânica e ideológica, d) ao empoderamento político e comunicacional da cidadania, graças às TICs e à expansão dos meios de comunicação, e, finalmente, e) à globalização de processos e à intensificação de movimentos migratórios que produziram efeitos internos absolutamente disruptivos (veja-se os casos inglês, Brexit, e italiano). Estes factores parece darem a esta tendência uma perdurabilidade inquestionável, fragmentando consistentemente os sistemas de partidos.

O SISTEMA DE PARTIDOS EM PORTUGAL

E PORTUGAL? Também aqui está a acontecer uma fragmentação e uma recomposição? Durante décadas eram quatro as formações políticas com representação parlamentar (exceptuado o período do PRD). Mas, neste século (mais precisamente, a partir de Outubro de 1999), iniciou-se, com o Bloco de Esquerda, um processo que haveria de levar à actual configuração de oito partidos com representação parlamentar, mas ainda com dois partidos com uma fortíssima maioria qualificada (cerca de 85% da representação parlamentar). Dir-se-ia, pois, que esta não é uma fragmentação. E é verdade, numericamente falando. E, todavia, há já no Parlamento uma representação política que, como na tendência europeia, no futuro poderá vir, sim, redistribuir os mandatos de forma menos desigual entre os partidos. Em primeiro lugar, à direita, com a extrema-direita já consistentemente representada e com a tendência liberal em crescimento. Ambas as tendências em dois anos cresceram 18 deputados. O PSD, uma força política “catch-all”, sob a sigla PPD, com uma clara matriz interclassista e de largo espectro na área do centro-direita, em aliança regular com o CDS para a formação de maiorias, domina ainda claramente a direita. Mas este partido, que com Rui Rio assumiu uma configuração exclusivamente social-democrata, deverá provavelmente ter de fazer reset para reiniciar como PPD, assumindo aquelas que eram as três fontes de que falava Pacheco Pereira nos anos noventa, quando era um seu alto dirigente: personalista, liberal-democrática e social-democrata e reformista. E, todavia, verdadeiramente, não se sabe se irá a tempo, definidas que estão as outras tendências de direita, sem que se veja agora que espaço ideológico irá ocupar. Creio mesmo que só lhe restará o espaço neoliberal (ou liberal-democrático, como na altura defendi, em relação ao PSD de Cavaco Silva). Este foi o espaço que Passos Coelho assumiu de forma indiscutível, deixando uma tíbia representação democrata-cristã ao CDS, agora em vias de extinção. Verdadeiramente, com Paulo Portas, o CDS era mais um partido-catavento do que um partido democrata-cristão. Mas também é verdade que o PSD tem uma forte vantagem competitiva em relação às outras formações políticas de direita, ou seja, tem um corpo orgânico muito vasto por via da sua presença no espaço político autárquico e em organizações da sociedade civil, podendo recomeçar daí, retirando espaço às duas outras formações de direita. Mas para isso é fundamental que resolva um problema antigo: o da sua identidade política e ideológica (que certamente não se resolve com programas de 164 páginas). Se não o resolver iremos assistir a uma efectiva e mais consistente fragmentação da direita, com uma mais equilibrada e distribuída representação parlamentar. Um PSD social-democrata terá sempre e cada vez mais dificuldade em conseguir maiorias parlamentares, até porque este espaço está ocupado pelo PS, mas também porque desse modo continuará a deixar em aberto a representação de um vasto sector de direita que não se sentirá representado por esta mundividência política. A questão que se volta a pôr, e agora com mais acuidade, é esta: que nome e que coisa para o nome? É este o máximo desafio que se porá à nova liderança pós-Rui Rio. De resto, o nome até já existe – PPD.

À ESQUERDA, o PS tem vindo a manter uma faixa consistente de eleitorado, exibindo entre 2002 e 2022 uma média de cerca de 37.5%, enquanto o PSD exibe uma média de cerca de 33,6% (em 2015, em percentagem conjunta com o CDS). Estamos a falar apenas de quatros pontos de diferença em média entre as duas principais formações políticas, durante 20 anos, mas agora com, à direita do PSD, dois grupos parlamentares com vinte deputados (ou 21) e, à esquerda do PS, dois grupos parlamentares e um partido fragilizados e com um total de 12 (ou 13, dependendo da posição do PAN) deputados.

Perante esta aritmética e tendo em conta este arco de 20 anos – e agora com a maioria absoluta do PS – não é ainda possível falar de fragmentação do sistema de partidos, dada a reduzida dimensão da representação parlamentar dos partidos à direita do PSD e à esquerda do PS.  Mas o caso mudará realmente de figura se o PSD não clarificar a sua identidade político-ideológica, repetindo-se e consolidando-se a tendência de reforço dos partidos à sua direita e, à esquerda, o PCP e o BE recuperarem, como já aconteceu, o seu eleitorado e os seus anteriores grupos parlamentares, o que não deixa de ser plausível, se estes partidos definirem bem e com competência o seu espaço político de afirmação eleitoral. Neste caso, estaríamos já a falar de uma representação parlamentar exterior aos partidos da alternância correspondente a cerca de 25% da representação parlamentar, uma presença significativa que, não rompendo ainda com a lógica da alternância, viria a condicionar decisivamente a formação das maiorias parlamentares.

Mesmo assim, o sistema manter-se-ia estável, só que a exigir a formação de alianças parlamentares para a formação dos executivos, sendo certo que o sistema proporcional não foi, de facto, pensado para proporcionar maiorias absolutas de um só partido. Outros sistemas eleitorais há que servem para isso. O que voltou a acontecer, com esta maioria absoluta do PS foi, uma vez mais, uma combinação excepcional de factores, aos quais não será estranha a Covid19, o efeito disruptivo das sondagens e o insistente alerta sobre um perigo fascista iminente.

IDENTIDADES POLÍTICAS

E, TODAVIA, no meu entendimento, o problema de fundo que afecta a política de hoje subsiste, ou seja, subsiste a necessidade de definir com rigor as identidades políticas dos partidos com vista à representação política da sociedade. O que ainda não aconteceu, mantendo-se todos os partidos num paradigma que, no meu entendimento, já não corresponde exactamente à nova cidadania nem às novas fracturas sociais.  A sociedade mudou e os partidos têm que corresponder a essas mudanças e não só de forma instrumental para obtenção do consenso necessário à governação. Porque o processo político é mais denso, mais complexo e mais exigente. A mudança é necessária sobretudo para credibilizar a política e corresponder a uma nova e emergente identidade da cidadania. Esta identidade não se consegue determinar, de facto, a partir de programas com 164 ou 121 páginas (são as dimensões dos programas do PSD e do PS, respectivamente), que ninguém lê e que tendem a ser enormes repositórios de medidas formuladas com a linguagem estereotipada do management de última geração e das temáticas do politicamente correcto e onde cabe tudo, sim, mas de onde não se deduz com clareza, segurança e transparência o exacto perfil dos partidos. Um perfil claramente identificável pelo eleitorado para além do rosto do líder do momento.  Mas este também não se pode definir este perfil negativamente, por exemplo, por oposição ao inimigo “externo” CHEGA, ao perigo iminente de fascismo ou do populismo de direita, ainda que desta vez tenha funcionado com grande eficácia (a favor do PS), ou por oposição ao inimigo comunista ou socialista (e afins) que quer roubar o que é teu. O muro de Berlim caiu, um deputado do VOX, Ignacio Gil Lázaro, é Vice-Presidente do Congresso dos Deputados de um país governado pelo governo socialista de Pedro Sánchez e, em Itália, Salvini, que foi Vice-Primeiro Ministro, hoje apoia o governo Draghi e o fascismo não tomou conta do Estado italiano.  Este alarme social e político é manifestamente exagerado e até tem vindo a contribuir para pôr o CHEGA no topo da agenda, reforçando a sua capacidade polarizadora (como de resto se viu: em dois anos passa de 1 deputado para 12 deputados). E o facto é que a nova agenda anti-CHEGA a propósito do seu grupo parlamentar já está de novo a funcionar (e talvez de forma ainda mais intensa), contribuindo para o reforço da sua notoriedade e para a sua vitimização, gerando claros dividendos políticos.

Por outro lado, se parece ser claro que o PCP vive o dilema insuperável e irresolúvel da dicotomia oposição ou morte, estando a tornar-se cada vez mais tendencialmente residual (exibindo nos últimos 20 anos uma média de cerca de 7,9%, que passou para os 5,35% nas duas últimas eleições), mesmo lá onde era mais forte, nas autarquias, também aqui em acentuada perda, já o Bloco, que vive intensamente o drama de ser ao mesmo tempo um partido de oposição e um partido com aspirações a fazer parte da solução governativa (a ética da convicção conjugada com a ética da responsabilidade), permanece em forte ondulação eleitoral, sabendo-se que das duas vezes em que, com o seu voto, contribuiu decisivamente para a queda de governos do PS viu como consequência o seu eleitorado reduzir-se para metade. Duas vezes em circunstâncias idênticas, note-se. O que leva a pensar que há nos eleitorados do PS e do BE uma certa permeabilidade (reforçada pela caminhada conjunta de quatro anos), sobretudo quando se vislumbra um “inimigo” comum ou “externo”. De qualquer modo, é de registar e de sublinhar que, apesar de uma ligeira inflexão (de 10,6% passou para 9,5%) em relação a 2015, acabou por, em 2019, manter o grupo parlamentar de 19 deputados, não tendo sido penalizado pela sua contribuição para uma maioria de governo durante longos quatro anos. Considero, por isso, que o BE se encontra numa posição um pouco diferente da do PCP, ideologicamente menos rígida,  historicamente menos marcada e mais permeável relativamente ao universo sociológico e eleitoral do PS, podendo assumir-se, sim, como força progressista de governo e disputar o consenso no terreno deste partido, respondendo politicamente de forma responsável, mais ágil e apelativa às expectativas de uma cidadania que está a mudar profundamente, ou seja, para além do quadro em que os partidos tradicionais a continuam a identificar. Não será, todavia, com soluções radicais ou com propostas populistas que este partido poderá recuperar do tombo eleitoral que sofreu nestas eleições. O que lhe restará fazer é reinventar-se, identificar com rigor o seu universo possível de representação e propor, sem tibiezas, aquilo que o PS não tem vindo a conseguir do ponto de vista da representação política, olhando de frente, olhos nos olhos, a classe média e as elites cultas deste país. O seu desafio também terá de ser o de uma maior presença no tecido da sociedade civil, nos organismos da sociedade civil, e no plano autárquico. O que ainda não acontece. De resto, na sua história recente (de cerca de 23 anos), o BE conseguiu atingir um nível de representação parlamentar significativo, embora gravemente afectado pelas duas quedas monumentais em 2011 (com o chumbo do PEC IV) e em 2022 (com o chumbo do orçamento de Estado). Rui Tavares, nesta campanha, talvez tenha dado o mote certo para um futuro mais consistente do BE. Mas creio também que o Bloco deveria estudar com rigor e abertura de espírito o funcionamento das grandes plataformas civis que têm vindo a mobilizar em vários países milhões de cidadãos em torno de causas. Refiro as plataformas Meetup (nos USA e em Itália, decisiva para a formação do M5S), Momentum (em Inglaterra, pelo Labour de Corbyn), mas sobretudo a MoveOn (nos Estados Unidos), que foi muito importante na eleição de Barack Obama, na defesa do Obamacare e na mobilização do apoio a Bernie Sanders. Estas plataformas serão cada vez mais importantes na mobilização bottom-up da cidadania, atendendo ao esgotamento do tradicional modelo de participação política. Este é um terreno virgem em Portugal e pelas afinidades que tem com a identidade do BE (movimento de causas) poderia constituir um importante motor de mobilização da cidadania e do seu próprio eleitorado. Mas o BE lá saberá as linhas com que se tece.

O PS

FINALMENTE, O PS. Este partido ocupa, desde sempre, uma posição política privilegiada, porque se situa entre visões mais extremadas, à esquerda e à direita. É o partido que estrutura o centro-esquerda e que constitui a chave da alternativa ao centro-direita e à direita. Digamos que, hoje, é o partido que procura representar a middle class (maioritária nas sociedades desenvolvidas) e por isso tende cada vez mais a assumir-se como um partido “catch-all”, com as potencialidades eleitorais e de acesso ao poder que estes partidos exibem, mas também com as conexas dificuldades de responderem agilmente e de forma criativa aos desafios que a mudança social lhes põe. São partidos do establishment, grandes e pesadas plataformas em progressiva perda de tensão ideológica (dada a dimensão do espectro eleitoral que aspiram a atingir e representar), vivem dos recursos que o exercício do poder de Estado lhes confere, subalternizam a clássica militância e ficam ancorados numa excessiva personalização da política na figura dos líderes. São partidos sobretudo eleitorais, profissionalizados, designadamente em regime de outsourcing. No caso do PS, estas características estão claramente presentes, mas a verdade é que o partido continua a mover-se no interior de uma mundividência orgânica que remete para a tradicional identidade social-democrata, como se ainda fosse um “partido-igreja”, de massas, no sentido clássico, com uma ideologia intensa, um corpo orgânico e territorial robusto e com uma visão comunitária da vida social, deixando a visão societária (centrada no indivíduo) na esfera de um liberalismo que continua a recusar porque considerado de direita. O exemplo mais interessante do que estou a dizer (dualidade na identidade ideológica) pode encontrar-se no velho Labour e no episódio da famosa Cláusula 4, só retirada dos cartões dos militantes nos anos noventa, com Tony Blair, e depois de um ano de luta interna. Uma tentativa que remontava já a meados dos anos 50, com a liderança de Gaitskell.  Mantém-se, pois, no corpo do PS, uma ideologia orgânica que não coincide exactamente com aquela que é a sua real identidade de partido “catch-all”. A mesma dualidade que se verificava ainda durante as lideranças de Kinnock, Smith e Blair e que o New Labour procurou superar definitivamente (e sabemos no que viria a dar a regressão promovida pela liderança de Jeremy Corbyn).  Este aspecto da visão societária (tenho bem presente a distinção de Toennies e de Weber, onde se distingue as afinidades naturais das afinidades electivas) é muito importante e significativo, como importante é a componente liberal, que sempre foi, ao mesmo tempo, recusada, mas, paradoxal e indirectamente, também exaltada, ao afirmar o primado do conceito de liberdade sobre o conceito de igualdade na democracia (sobretudo o PS de Mário Soares, mas é também essa a posição de Hans Kelsen) e a filiação do socialismo no iluminismo liberal. No caso português, e em concreto do PS de Mário Soares, esta proeminência do valor liberdade era devida, como se sabe, ao facto de vivermos em ditadura. Dedico algumas páginas a este  balanceamento entre igualdade e liberdade no meu livro Paradoxos da Democracia (Lisboa, Fenda, 1998, pp.23-27), onde concluo pelo primado da igualdade, inspirando-me nas palavras de Cícero, lembradas por Kelsen em “Essência e Valor da Democracia” (de 1929), “si aequa non est, ne libertas quidem est“, mas lembro aqui o equilíbrio que o socialismo liberal sempre procurou estabelecer entre os valores da liberdade e da igualdade, como tentativa de síntese entre a tradição liberal e a tradição socialista.  De resto, é bem conhecida esta tradição do socialismo liberal (também designada por liberal-socialismo) e dos seus inspiradores, do Stuart Mill de “On Liberty” aos Irmãos Rosselli, a Hobson, Hobhouse, Dewey, Norberto Bobbio, sendo, todavia, é verdade, mais vezes chamado à colação o velho Bernstein dos “Pressupostos do socialismo e as tarefas da social-democracia” (Stuttgart, Diez, 1899) do que esta tradição de inspiração liberal. O outro filão do liberalismo, que vai de Adam Smith a Friedrich Hayek e que também se filia no liberalismo político que governou no séc. XIX e no início do século XX, é, esse sim, um filão claramente de direita, que viria a ser assumido, em geral, pelos partidos liberais e, agora, aqui, entre nós, também pela IL. Este é, pois, um terreno em que o PS muito ganharia em clarificar a sua posição, ou seja, o lugar da tradição liberal no património ideal do PS e a questão da centralidade de um indivíduo moderno que é portador de múltiplas pertenças de natureza política (o espaço político não estritamente partidário em que se move), civilizacional (as causas), cultural (as orientações estéticas), económica (como consumidor, por exemplo), comunicacional (a partilha de um terreno de comunicação ainda dominado por três ou quatro grupos de comunicação), territorial (membro de uma comunidade territorial, por exemplo, por exemplo territórios de baixa densidade), histórica (a sua origem remota ou a identidade, étnica ou de género, por exemplo), com todas as consequências que esta centralidade terá no seu discurso político, por exemplo, na centralidade dos direitos individuais e na sua protecção perante os oligopólios que hoje dominam a vida social em inúmeras frentes (centrais de distribuição no consumo alimentar, de comunicações e de comunicação, bancos, seguros, energia, etc., etc.). Simples exemplos entre outras matérias decisivas, como, por exemplo, o Estado social, a política fiscal, a política redistributiva, o modelo de desenvolvimento, a eficácia do Estado, a igualdade entre os cidadãos (por exemplo, entre trabalho privado e trabalho público) ou a centralidade da ética pública. Ou seja, é nas questões nucleares que se afirma a identidade política de um partido, e não em tratados programáticos que ninguém lê (eu li e como foi difícil mover-me no interior dessa linguagem estereotipada, um pouco manta de retalhos e de fórmulas pouco mais que vazias…).

DAQUI PARA O FUTURO

ORA, O QUE ACONTECEU nas recentes eleições não significa que não haja necessidade de clarificar o posicionamento ideal do PS, a sua identidade perante as principais clivagens presentes na sociedade em rede e da informação, tornando-se, enquanto partido, sublinho, uma força propulsiva da própria sociedade civil independentemente da sua presença no Estado. Uma questão que ganha acuidade agora que tem maioria absoluta no parlamento. Esta questão, de resto, cruza-se com a questão da integração no património ideal do PS da herança do melhor liberalismo, libertando-o do abraço de urso do Estado, por exemplo, repensando o Estado social e a política fiscal, que lhe é conexa, repensando a sua presença nos organismos da sociedade civil, assumindo o desafio da hegemonia (no sentido gramsciano e não só no plano político-eleitoral), reequacionando a sua ideia de cidadania, melhorando os seus métodos internos de selecção dos dirigentes e dos candidatos, conjugando a componente orgânica com a componente comunicacional, assumindo uma posição clara sobre os problemas das redes sociais, mas também sobre as virtudes das chamadas tecnologias da libertação e marcando bem a diferença relativa aos movimentos anti-globalização, agora com um novo imperialismo a combater, o famoso capitalismo da vigilância da senhora Zuboff. E tantos outros desafios. Este último tem sido um terreno mais do BE do que do PS (Francisco Louçã tem sido muito activo sobre este tema), mas é preciso que isso fique claro, como clara tem de ficar a sua ideia sobre como regular a rede, em particular as redes sociais (para além da lei já aprovada e da sua regulamentação, e sobre a qual já aqui escrevi). Só entrando com coragem, criatividade e agilidade nestes terrenos o PS poderá vir a tornar-se verdadeiramente hegemónico na sociedade, e não só conjunturalmente ou no plano exclusivamente político, não se deixando, entretanto, arrastar para esse terreno transversalmente viscoso e pantanoso do politicamente correcto, que afasta uma faixa imensa da cidadania e que, em muitos casos, empurra muitos cidadãos para os braços dos populismos de direita.

Eu creio que o PS deveria aproveitar este momento de felicidade eleitoral para fazer um refresh ideológico e identitário tendo em conta as mudanças que já estão a acontecer na sociedade digital e em rede em que vivemos e na profunda transformação da identidade da cidadania contemporânea. O PS já teve antes uma maioria absoluta e uns anos depois viria não só a perdê-la como também a perder por duas vezes as eleições (em 2011 e em 2015). Agora, que a reconquistou, tem a oportunidade de comodamente se empenhar em se repensar enquanto partido, e também no seu próprio funcionamento interno, nos seus métodos, não se anulando e perdendo nas importantíssimas tarefas governativas que tem pela frente. Porque essa é uma tarefa do partido, não do governo.

NOTA.

SOBRE ESTA MATÉRIA, e para um maior aprofundamento analítico, poderão ser consultados, entre outros, os seguintes textos de minha autoria:

SANTOS, João de Almeida, (2020), “A Política, o Digital e a Democracia Deliberativa”. In Camponez, C, Ferreira, G. e Rodriguez, R., (2020) Estudos do Agendamento. Covilhã: Labcom/UBI, pp. 137-167.

SANTOS, João de Almeida (2020). Política e Democracia na Era Digital (Org.) (Lisboa, Parsifal, 2020, 160 pág.s): Cap. I (“Um novo paradigma para a social-democracia”) e Cap. VI (“Conectividade – Uma chave para a política do futuro”), respectivamente pág.s 15-47 e 133-153. #Jas@02-2022

Ballot box

“Democracia”. Detalhe

Poesia-Pintura

TEU ROSTO ARCO-ÍRIS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Rubor”
Original de minha autoria
Fevereiro de 2022
RUBOR3

“Rubor”. Jas. 02-2022

POEMA – “TEU ROSTO ARCO-ÍRIS”

O TEU ROSTO
É arco-íris,
Dança, dança
Nos meus olhos,
Fascinados
Pelos teus,
É luz intensa
Que brilha
E domina
Como um deus.

É FULGOR,
É raio
Que me fulmina,
Com essas cores
Tão intensas
O meu rosto
Se acende
E de ti  
Se ilumina.

HÁ CHEIRO
A maresia,
Sinto sal
Na tua boca
Que me sabe
A poesia
E, quando a digo
Em voz rouca
De tão frio
Ser o mar,
É tão quente
O meu desejo
Que eu quero
É navegar
Para ver
Se lá te vejo.

TUA BOCA
É mar profundo,
Tão azul
Como o infinito
Do céu
Onde gosto
De voar,
Se te beijo
Vou ao fundo,
Mas respiro
Lá bem dentro
Nas profundezas
Do mar.

COM TEU ROSTO
Arco-íris
Brilhas ao sol
Logo ao
Amanhecer,
Mas sempre
Caio em tristeza
Por tão pouco
Te rever.

A TRISTEZA
É saudade
Desse encontro
Tão fugaz,
Meus olhos
Perdem-se
Em ti,
Mas em ti
Encontram paz.

O TEU ROSTO
É arco-íris,
Se te vejo
É alegria sem fim,
Não vás, por isso,
Embora,
Que eu fico triste,
Na hora...
................
Espera um pouco
Por mim.
RUBOR3Rec

“Rubor”. Detalhe

Artigo

MAS, AFINAL, O QUE É QUE ACONTECEU?

Por João de Almeida Santos

Ballot box

“Democracia”. Jas. 02.2022

NESTAS ELEIÇÕES de 30 de Janeiro o vencedor é António Costa, ou melhor, o PS de António Costa. Ou seja, venceu a extrema personalização da marca PS no seu líder enquanto candidato a primeiro-ministro. O que esteve em causa, realmente, foi a liderança de um governo, não a composição do Parlamento. Na verdade, se, por exemplo, as listas de Lisboa, do Porto ou de Castelo Branco fossem muito diferentes o resultado seria o mesmo. O que importava verdadeiramente era o número de deputados eleitos para que uma determinada solução de governo fosse possível.  Neste caso, a representação parlamentar do PS, ou seja, a maioria parlamentar, mais não é, pois, politicamente falando, do que uma prótese política da liderança e do futuro primeiro-ministro, a somar à do futuro governo. Daqui, por um lado, uma efectiva subalternização do parlamento e, por outro, um enorme poder, mas também uma tremenda responsabilidade de António Costa, enquanto líder do PS e enquanto primeiro-ministro. Duas consequências: o partido afunila na figura do líder, a representação parlamentar perde densidade e autonomia política perante o primeiro-ministro e o governo. Com esta maioria absoluta reforça-se, sim,  o presidencialismo do primeiro-ministro. Absolutus: liberto de vínculos. Isto é bom para a democracia? Talvez não. Haverá estabilidade, sim, e isso é bom, mas o legislativo ficará sempre em posição subalterna, invertendo-se, deste modo, a natural hierarquia de poderes. Mas, vendo bem, a questão não reside propriamente na maioria absoluta (de um partido ou de uma coligação), porque, afinal, a maior parte dos governos democráticos funcionam neste registo, mas sim na falta de peso político específico dos deputados, de densidade política de cada representante e, consequentemente, da representação parlamentar, se atendermos à origem dos mandatos e à forma como nasceram as candidaturas, à natureza das listas, à escolha que é proposta ao eleitor, mas também ao que verdadeiramente esteve em jogo na campanha eleitoral, o executivo e não a representação parlamentar.

COMO SE CHEGOU AQUI?

COMO SE CHEGOU AQUI, ou seja, à maioria absoluta (com 41,68% e 117 deputados, sem os deputados dos círculos eleitorais do estrangeiro)? São vários os factores que poderão explicá-la.

Em primeiro lugar, e sem qualquer margem de dúvida, as sondagens (gravemente incompetentes ou marteladas) que, a dois ou três dias das eleições, davam PS e PSD em empate técnico, provocando uma forte polarização do voto por estes dois partidos – esquerda-direita, o que nem correspondia à verdade porque o PSD de Rui Rio nunca se apresentou e assumiu confessadamente como de direita (o líder sempre foi claro neste aspecto), mas sim como social-democrata.

Em segundo lugar, o ambiente mediático que a potenciou, dando particular enfoque – neste período tão sensível da pandemia – à ideia de instabilidade e de perigo iminente, com à eventual influência da extrema-direita num governo do PSD, pondo em perigo o Estado social e a própria segurança social. Este ambiente gerado pelas sondagens e pelos media, mas também pelo discurso polarizador do PS, provocaram um forte voto útil à esquerda que viria a penalizar fortemente a CDU e o BLOCO. Este voto útil, que antes de 2015 seria difícil, pela latente e permanente crispação política entre estas forças e o PS, tornou-se mais viável depois de seis anos de fraterna convivência destes dois partidos com o governo do PS, até ao chumbo do orçamento de Estado. Ou seja, a partir de 2015 a crispação ideológica e política anterior, que alimentava a distância do eleitorado destes partidos do PS, desapareceu, tornando-se depois mais natural e “suportável” o voto neste partido, em caso de emergência política. O que, neste caso, bem vistas as coisas, parece ter acontecido.

Em terceiro lugar, agora à direita, consumou-se, com a liderança de Rui Rio, um problema que desde sempre afectou o PSD: a questão da sua identidade político-ideológica. Há cerca de trinta anos publiquei no DN, onde era colunista, um artigo sobre o “PSD: o nome e a coisa”, onde dizia que o nome não correspondia à coisa pois este partido na realidade era um partido liberal-democrático. Pacheco Pereira respondeu-me com dois artigos, primeiro, discordando, mas reconhecendo a pertinência da questão, depois, acabando por reconhecer que sim, que o nome só corresponderia à coisa se em vez de PSD fosse PPD, partido popular democrático, um partido que, segundo ele, teria três fontes inspiradoras: a personalista, a liberal-democrática e a social-democrata e reformista, acabando ele por enfatizar esta última, a reformista, e reconhecendo que na construção programática estiveram em disputa interna liberais e sociais-democratas. Estes dois artigos, de Novembro de 1992, constam de um seu livro com o mesmo título do meu artigo “O Nome e a Coisa” (Lisboa, Editorial Notícias, 1997, pp. 21-25). Social-democracia à portuguesa, acaba por dizer Pacheco Pereira, na altura um dirigente de topo do PSD, que reconhece que a identificação social-democrata é polémica, para o exterior (e eu próprio a pus em causa), e que a identificação liberal-democrática também é polémica, sim, mas no interior do partido. E é aqui que reside o problema. Sendo certo que estas três inspirações o identificavam como um partido multipolar e política e socialmente muito abrangente e que com Passos Coelho o partido se virou fortemente para a inspiração liberal, ou mesmo neoliberal, com Rui Rio a fonte dominante, ou mesmo exclusiva, foi a social-democrata. E foi precisamente daqui que resultou o grande problema do PSD quer nas eleições de 2019 quer nestas eleições. Ao fazê-lo, de forma tão explícita e assumida, Rui Rio apostou no centro e deixou completamente descoberta a importante parte da direita liberal e da direita mais radical, levando o partido para um terreno afim ao do PS. Ora, deixando a descoberto a representação desta faixa do eleitorado – que nem o CDS já estaria em condições de representar, vista a sua progressiva extinção – criou as condições para que surgissem outras formações a ocupar esse espaço deixado livre, ou seja, nasceram a Iniciativa Liberal e o Chega, enquanto o CDS/(PP?) estava a desaparecer nas mãos dos sete magníficos (Assunção Cristas, Nuno Melo, Telmo Correia, Cecília Meireles, Diogo Feio, Pedro Mota Soares, Adolfo Mesquita Nunes), tendo, já no fim do processo, nestas eleições, como oficiante final o jovem e aguerrido Chicão, Francisco Rodrigues dos Santos. Foi esta situação que impediu o voto útil no PSD de Rui Rio, embora alguma falta de gravitas do próprio também tenha ajudado. Estou a falar de 20 deputados que foram conquistados pela direita quando o PSD esqueceu as suas fontes personalista e liberal e assumiu radicalmente a fonte social-democrata, para usar a taxonomia de Pacheco Pereira.

RECOMPOSIÇÃO DA DIREITA E CRISE DA ESQUERDA RADICAL

AQUILO A QUE ESTAMOS A ASSISTIR é a uma reconfiguração do sistema de partidos português, com a saída do Parlamento de dois partidos, o PEV (que, de resto, nunca fez prova de vida autónoma do PCP) e o CDS (que completou o lento declínio que começara com Assunção Cristas), o reforço substancial da Iniciativa Liberal (IL, com mais 212.754 votos do que em 2019), dando assim vida a uma orientação político-ideológica liberal com marca de direita, filiada mais no eixo Adam Smith/Friedrich Hayek do que no eixo Stuart Mill/Hobhouse/Dewey/Bobbio (a esquerda liberal) e defensora de um forte recuo do Estado para as suas funções de soberania, e o reforço, ainda mais consistente, do CHEGA (com mais 319.151 votos do que em 2019), partido nacionalista, anti-sistema e também ele, como a IL, defensor, em matéria de política fiscal, da chamada Flat Tax. Estes partidos já representam hoje 20 deputados (ganharam 18 relativamente a 2019), apesar dos poucos anos de vida que têm, e correspondem à representação de direita que o PSD de Rui Rio enjeitou politicamente, de certo modo alterando aquela que era a originária matriz de largo espectro do partido. Por isso, a liderança que sucederá a Rui Rio não poderá deixar de recuperar a tradicional identidade do partido de modo a cobrir toda a área de direita até ao centro (centro-direita). Tarefa que agora será mais difícil com estes dois partidos já no terreno e com consistentes grupos parlamentares.

À esquerda, excluindo naturalmente o partido vencedor, o PS, as perdas foram fortíssimas. O BE perdeu mais de metade do eleitorado, passando de quase meio milhão de votos (492.507), em 2019, para 240.256, o que representa uma perda de 252.242 votos. Uma catástrofe. A CDU, por sua vez, além de perder a representação do seu aliado PEV, passou de 329.241 votos para 236.635 votos, o que equivale a uma perda de quase cem mil votos (92.606). Não creio que estes resultados sejam devidos a uma punição do eleitorado de esquerda por terem chumbado o orçamento de Estado, sabendo-se que ambos os partidos têm na sua matriz uma intensa ética da convicção, apesar de terem assumido com garra uma ética da responsabilidade em 2015 para evitarem a formação de um novo governo de direita (neoliberal) chefiado por Passos Coelho. O que parece certo é que tenham sido vítimas do processo a que acima aludi: forte penalização devida à intensa polarização da campanha induzida pelas sondagens e à ameaça de regresso (plausível, segundo as sondagens) de uma direita que incorporasse a “besta negra” da extrema-direita, com voto útil no único partido em condições de evitar que isso se viesse a concretizar. Acontece ainda que este eleitorado, como já disse, durante estes seis anos convivera com um  PS aliado em virtude do activo apoio que conheceu por parte destes dois partidos. Se as razões forem estas isso significará que poderão no futuro vir a recuperar o seu eleitorado, embora, no caso do PCP, o declínio esteja a ser progressivo, não se vendo como poderá vir a inverter a tendência. Em ambas as eleições a média eleitoral deste partido é de cerca de 5,5% (inferior em  2,4 pontos à média das últimas duas décadas, que foi de 7,9%) e a sua força autárquica também tem vindo a conhecer uma forte erosão. Por seu lado, o BE parece estar a viver uma grave crise de identidade entre ser partido de oposição ou partido de governo, o que, de resto, se torna difícil com muitas das propostas radicais que apresenta. Este é o dilema que este tipo de partidos vive. O dilema dos partidos comunistas é o de se tornarem obsoletos se mantiverem o seu ideário ou de, mudando, perderem identidade, tornando-se sociais-democratas. Uma certa esquerda terá, pois de se reinventar se quiser sobreviver.

PS - UMA RESPONSABILIDADE ACRESCIDA

QUANTO AO PS, esta vitória esmagadora deve ser enaltecida na pessoa de António Costa. A parte problemática reside, todavia, naquilo que há muito está a acontecer aos partidos socialistas e sociais-democratas – a sua transformação em partidos eleitorais que sobrevivem à custa do aparelho de Estado, ideologicamente desnatados e socialmente interclassistas (sem “classe gardée), reproduzindo a lógica daquilo que Otto Kirchheimer chama partidos “catch-all”, ou seja, partidos em forte perda de tensão ideológica que modulam o seu discurso a partir da procura, perdendo a dimensão de projecto e minimizando a própria identidade. São partidos que perdem organicidade e que não desenvolvem os melhores critérios de selecção dos dirigentes e dos candidatos precisamente porque vivem cada vez mais de uma excessiva personalização da política na figura do líder. Um teórico italiano, se não erro Mauro Calise, em Il Partito Personale (Roma-Bari, Laterza, 2000), dizia a propósito do sistema americano que os candidatos a Presidente não são candidatos dos partidos (republicano ou democrata), mas antes que os partidos são partidos do Presidente, numa clara inversão de papéis. É o que se verifica quando se entra num processo excessivamente personalizado da política democrática, processo que, como se sabe, conheceu um acelerado e progressivo desenvolvimento quando, nos anos cinquenta (nos Estados Unidos),  a televisão entrou em grande na competição eleitoral e, mais tarde, sobretudo com a chamada “permanent campaigning”, na comunicação política diária, designadamente através dos telejornais. E quando falo de presidencialismo do primeiro-ministro, falando do caso português, é disto mesmo que estou a falar.

Não seria desejável que esta maioria absoluta, e sobretudo num contexto deste tipo, pudesse vir a cobrir os limites internos do partido, que os há, mascarando-os, e tornando mais difícil uma mudança virtuosa que esteja em linha com os tempos e com os desafios do futuro.

CONCLUSÃO

EM SÍNTESE, e sem se saber em que medida a longa situação pandémica em que temos vindo a viver também contribuiu para este resultado, a verdade é que o sistema de partidos conheceu uma profunda transformação, cabendo agora a todas as formações políticas, mas em particular ao PSD, ao Bloco e ao PCP, fazer uma profunda reflexão para que a democracia saia deste processo reforçada e não diminuída. Também o PS, pelas particulares responsabilidades que esta vitória lhe confere, não pode ficar instalado comodamente nela porque as suas causas e razões parece serem muito claras, sendo para mim evidente que muito haverá a fazer para o confirmar como um partido de futuro e com futuro ao serviço de uma democracia mais robusta e mais justa. Esta maioria absoluta, em vez de ser um motivo de conforto e de auto-satisfação, deverá, pelo contrário, dar origem a uma maior exigência e responsabilidade no aperfeiçoamento da qualidade da nossa democracia, melhorando o seu próprio funcionamento interno, em método e em programas, dando um  exemplo que seja mais virtuoso do que de auto-suficiência.

Ballot box

“Democracia”. Detalhe