MUSSOLINI E O FASCISMO
O Livro de Antonio SCURATI
Por João de Almeida Santos

Mussolini – O Filho do Século, o Homem da Providência. Jas. 10-2021
M – Il Figlio del Secolo
(Milano, Bompiani, 2018, 848 pág.s)
M - L’Uomo della Provvidenza
(Milano, Bompiani, 2020, 647 pág.s)
- Por Antonio Scurati
I.
ACABEI DE LER este livro, um romance fundado em factos reais, em dois volumes, sobre Mussolini e o fascismo, “M – O Filho do Século” e “M – O Homem da Providência”. Cerca de 1500 páginas (já traduzido em português).
O primeiro volume é uma longa, minuciosa e atraente narrativa sobre o nascimento e a escalada do fascismo italiano, de 1919 até 1924, fundados na violência física sistemática e difusa dos “squadristi”, e sobre a forma como Benito Mussolini, por entre altos e baixos, a foi gerindo até à subida ao Quirinale e à sua indigitação, pelo Rei Vittorio Emanuele III, como Presidente do Conselho de Ministros. O livro apresenta a esquerda socialista, no biénio “vermelho” (1919-1920), período pós-revolução russa, como inconsequente e indecisa relativamente à tomada do poder e fraccionada, sobretudo entre reformistas e maximalistas, o que levaria a cisões: por um lado, à formação do Partido Comunista (em 1921) e, por outro, à criação do Partido Socialista Unitario, de Giacomo Matteotti.
Os “squadristi” no início eram sobretudo ex-combatentes da I Guerra e tinham por lema a violência e a Lei de Talião, elevada à máxima potência e com grande e cruel profissionalismo derivado da experiência de guerra. Morre um dos nossos, mato cinco dos deles – era esta a filosofia. Mas a escalada progressiva dos “squadristi” só foi possível pela complacência do poder liberal instalado e pelo apoio dos grandes agrários, estando generalizado o medo do assalto dos socialistas ao poder, até pela sua grande força parlamentar. Fortes no Parlamento e ousados nas ruas e nas greves, mas incapazes de se decidirem pelo assalto ao poder, como, de pelo contrário, acontecera na Hungria de Bela Kun, os socialistas eram vistos como os principais inimigos da monarquia constitucional liberal italiana.
Scurati traça as grandes linhas da doutrina fascista ancorada na violência dos “squadristi” e no carisma do Duce, fino jogador da alternância táctica entre“a cenoura e o bastão”, num jogo duplo com que sabia desarmar os adversários, para os aniquilar. Pelo meio, governos liberais incapazes de lidar com o fenómeno ou mesmo tolerando-o demasiadamente, qual indigesto remédio para salvar o poder das garras dos socialistas. Incluídos os do velho Giovanni Giolitti, sobrevivente até ao fim do Parlamento. Pelo meio, o Poeta Gabriele d’Annunzio e as suas bravatas guerreiras e poéticas, os seus vícios sexuais e a retórica gongórica, o seu ritualismo desbragado, a sua loucura e o seu activismo voluntarista, incluída a conquista e o governo de Fiume.
A cena é dominada, da primeira à última página, pelo triunfo da violência, que culminará no assassinato de Giacomo Matteotti, em 1924, que momentaneamente abalará o regime fascista.
II.
A EXALTAÇÃO DA GUERRA E DA VIOLÊNCIA conhecerá logo uma sua expressão cultural no futurismo de Marinetti (o Manifesto Futurista é de 1909 e o seu fundador alistou-se no movimento fascista pretendendo fazer dele a continuação do futurismo), até certo ponto subalternizado pela intervenção da sofisticada e influente amante de Mussolini, Margherita Sarfatti, pretensa “ditadora das artes” por delegação do Duce e centro de ódios culturais não muito disfarçados, mas contidos pela sua proximidade de Mussolini. O personagem Mussolini surge muito bem delineado ao longo do livro, desde as suas irreprimíveis pulsões sexuais, as suas inúmeras amantes, dentre as quais se distingue precisamente Margherita Sarfatti, a sua sofisticada “educadora”, até à imolação dramática pela Nação, desde um abundante uso instrumental da violência pelos seus implacáveis e imparáveis “squadristi” até à sua pública condenação para puro uso político, para consumo da opinião pública. Mas a violência, que foi a sua arma fundamental para a conquista do poder, no seu discurso oficial era tão-só um recurso de última ratio, uma mera resposta, ainda que dura, às agressões dos socialistas e dos anarco-sindicalistas. Mas não, na verdade essa era a sua verdadeira filosofia, a que decorria da assunção privilegiada da relação amigo-inimigo no centro da acção política, como se iria ver no futuro. “Quem não está connosco, é contra nós”, contra o fascismo, e deve ser esmagado. Grandes intelectuais italianos como Benedetto Croce, Vilfredo Pareto, Luigi Pirandello ou Toscanini estiveram com ele e ao lado do seu Ministro da Educação, o filósofo hegeliano do regime, Giovanni Gentile. A posição do rei Vittorio Emanuele III também é clara – recusa-se a proclamar, recusando a posição (unânime) do Conselho de Ministros, o estado de sítio quando já eram claras as movimentações no terreno para a “Marcha sobre Roma”. O livro conta ainda o primeiro ano de governo fascista e as contradições internas do aparelho fascista, designadamente as tensões internas entre o próprio Mussolini e a máquina “squadrista” e seus chefes.
III.
O SEGUNDO VOLUME, “M – O Homem da Providência”, que vai de 1925 a 1932, conta, em 625 páginas, a consolidação do regime, a evolução para a ditadura (com pretensões totalitárias: construir o italiano fascista) e sobretudo o poder unipessoal de Mussolini, com a subordinação total do partido fascista ao Estado fascista e ao Duce. O livro relata não só a anulação da oposição, com a prisão dos seus dirigentes e a redução do Parlamento a uma instituição exclusivamente fascista, mas também as lutas internas no poder fascista, designadamente no Partido Nacional Fascista, a ascensão e queda dos principais dirigentes e a progressiva solidão de Benito Mussolini. Muitas páginas são também dedicadas à presença de Itália no Norte de África, às campanhas na Líbia.
IV.
Este livro é um romance baseado em factos, personagens e documentos reais. Dá a sensação que o autor lhe chamou romance para poder descrever minuciosamente com maior liberdade o real ambiente em que nasceu, cresceu e se consolidou o regime fascista, de 1919 a 1932, sem ter de se preocupar com as regras rígidas da historiografia. Pôde, deste modo, traçar, de forma literariamente muito sofisticada e até exuberante, o ambiente que se viveu naqueles tempos do primeiro pós-guerra, tempo do pós-revolução russa. Mas é no primeiro volume que melhor podemos“visualizar” o ambiente de violência exasperada que foi sendo criado pela tensão entre o extremismo de esquerda e o extremismo “squadrista” perante a passividade e até a cumplicidade objectiva dos governos liberais e do próprio rei. Este segundo volume é dedicado à progressiva fascistização do país, à lenta supressão das liberdades, a uma violência física, real, mas já não tão fisicamente intensa, até para que o regime se pudesse credibilizar, à produção de legislação que foi introduzindo a lenta sobreposição de uma lógica de polícia às movimentações aleatórias e difusas do “squadrismo”, à sua absorção nas estruturas do Estado, à divinização do todo-poderoso Duce, à criação de um tribunal especial para julgar os crimes de natureza política e de desvio ideológico.
Assistimos também às guerras fraticidas entre os dirigentes dos “camicie nere” que acabam por liquidar grande parte deles, à vistosa excepção de Roberto Farinacci, “squadrista” temido por Mussolini e líder dos intransigentes e duríssimos do fascismo, que consegue resistir a todas as investidas para o liquidar. Neste volume, o Duce acaba numa grande solidão, sobretudo após a morte do irmão e confidente Arnaldo Mussolini e a desgraça de inúmeros e fiéis seus colaboradores, vítimas directas das guerras internas e dos interesses instalados e resultantes da governação fascista. Até a relação com a sua sofisticada amante e inspiradora Margherita Sarfatti acaba, sendo muito expressiva a cena em que a senhora aguarda na antecâmara de Palazzo Venezia, em Roma, duas horas para ser recebida por Mussolini, que está só no seu imenso gabinete e que se recusa a recebê-la, sem, todavia, sequer lho dizer pessoalmente ou, pelo menos, por intermédio do seu fiel secretário Quinto Navarra.
V.
A LÓGICA DO PROCESSO DE ASCENSÃO E QUEDA dos protagonistas do regime e a posição do Duce neste processo é de manual: Mussolini distancia-se, deixa friamente que a relação de forças se consume e saia vencedor o que maior capacidade de luta revelar, independentemente das lealdades pessoais. De resto, o poder está cada vez mais no Estado e nele próprio e cada vez menos no Partido Nacional Fascista e no seu “Gran Consiglio del Fascismo”.
Dois volumes muito bem escritos, por um autor da área da literatura, já com inúmeros prémios conquistados por outras obras.
Tendo eu estudado, por motivos profissionais, designadamente quando estava a investigar, no Instituto Gramsci, a obra de Antonio Gramsci, líder do PCI e sua vítima, este período da história italiana, esta obra veio confirmar ao detalhe aquilo que eu julgava já saber – a violência difusa e progressiva como centro da acção política e assumida como princípio purificador, tal como a guerra (de resto, cantada pelos futuristas), onde a relação amigo-inimigo substitui a relação entre adversários. A Itália dos “squadristi” foi isso mesmo e resultaria em efectiva conquista do poder. O que se passou em Itália não passaria despercebido a Hitler, que recolheu a experiência de Itália para avançar num processo que todos bem conhecemos. O segundo volume termina precisamente em 1932, o ano em que Hitler obtém a maioria dos sufrágios em eleições legislativas e se prepara para dar o assalto decisivo ao poder. Também aqui o culto da violência, o carisma e o organicismo do regime são os elementos centrais que determinam a acção política. #Jas@10-2021
