AFORISMOS
Conversando com Nietzsche
Por João de Almeida Santos

“Fantasia”. JAS. Nova versão. 02-2023
NOS ÚLTIMOS TEMPOS, melhor, há anos, tenho regressado com maior frequência a Friedrich Nietzsche, às suas principais obras, algumas das quais de leitura e de compreensão nada fácil. Por exemplo, Assim falava Zarathustra. Mas regresso porque a sua obra talvez seja, no essencial, uma obra sobre a arte e/ou com perfil artístico. Desta vez, revisitei o ECCE HOMO. Como se chega a ser o que se é, de 1888 (Lisboa, Guimarães Editores, 1961), esse livro autobiográfico, e decidi reflectir sobre algumas curiosas afirmações.
I.
“FIEL DISCÍPULO do filósofo Diónisos, prefiro ser um sátiro (ou “arlequim”) a ser um santo” (“nada houve mais mentiroso do que um santo” – 1961: 161); “abater ídolos (eis o que eu chamo aos ‘ideais’) é o meu principal ofício”; “a mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade”; “não refuto os ideais, calço simplesmente as luvas perante eles” (1961: 20-21).
Claríssimo, Nietzsche, na sua devastadora incursão pelo universo dos ideais. No seu apaixonado realismo dionisíaco. Porque são mesmo os ideais, enquanto ídolos, que estão em causa. Se assim não fosse ele não calçaria luvas ao confrontar-se com eles. Luvas de combate. De boxe, talvez. Ou, então, luvas para não ficar contaminado por eles. Tudo em nome da realidade lamentavelmente falsificada, inventada. E porque os ideais-ídolos são maldição sobre ela, a realidade. Falsificando-a em palavras, a deixam entregue a si própria, desgovernada, anónima. É por isso que prefere ser sátiro a ser santo. Porque, diz, a mentira é amiga dos santos. Como os ideiais.
Nietzsche traduz ideais por idola, provavelmente no sentido em que deles falava Francis Bacon no seu famoso Novum Organon (Bacon, 1959). Bacon distinguia quatro tipos de idola: idola tribus, idola specus, idola fori e idola theatri. Os dois primeiros integram a estrutura espiritual da natureza humana e os dois últimos são adquiridos por via externa. Creio, pois, que ele se refere aos idola theatri porque, diz Bacon, estes “foram encenados e representados para criar mundos fictícios e teatrais” (1959: 67). Mundividências, diria. Melhor: ideologias. Não creio, pois, que haja dúvidas. Decididamente, Nietzsche é do contra, porque é amigo apaixonado da realidade, embora não pareça. O que ele diz tem um fundo de verdade: a concentração da acção humana nos ideais, ainda por cima quando eles são forjados como mundividências ou como pura ideologia, ou seja, idola, leva a que a realidade seja por eles ficticiamente modelada, lida e, sobretudo, convertida em manta retórica que, depois, a cobre e simbolicamente a denomina. A tal maldição sobre a realidade. Isto poderia ser explicado com o mecanismo da inversão ideológica: a realidade é submetida a uma hipóstase e recriada como matéria ideal fictícia, sendo, depois, a nova realidade reconstruída por dedução a partir daquela – hipóstase, primeiro, e inversão, depois. Uma recriação “tautológica” da realidade, mas com novo conteúdo simbólico. Para enganar. A realidade como ficção ideal para efeitos de legitimação, tal é a função dos ideais sob forma de ideologia, de fora theatri. Ficção. Nietzsche não anda tão fora da verdade como podia parecer à primeira vista.
II.
OUTRO TRECHO que me chamou a atenção está incluído no capítulo I, “Porque sou tão sábio”, parágrafo 5 (1961: 37). Passo a citar:
“Afigura-se-me também que as palavras mais impertinentes, a carta mais inconveniente, têm alguma coisa de cortês, de mais honrado que o silêncio. Aos que se calam quase sempre falta perspicácia e finura de coração. O silêncio é impropriedade (no alemão: Schweigen ist ein Einwand), devorar o despeito assinala mau carácter, estraga o estômago. Todos os que se calam são dispépticos”.
Ele sofreu o silêncio, sobretudo o alemão (daí o desprezo que, nesta obra, manifesta tão violentamente pelos alemães), em relação à sua obra e por isso compreende-se esta sua posição. Mas, para além disso, a sua é uma posição de fundo para levar a sério. Discordar, argumentar contra, ser impertinente ou até mesmo inconveniente representa mais respeito pelo outro do que o silêncio. Significa torná-lo visível. A discordância frontal é, pois, mais humana, mais cortês, mais respeitosa do que a ausência discursiva, a fuga para o silêncio, a ocultação. O silêncio é perigoso para a digestão, diz ele. Provoca dispepsia, no próprio. Por isso, o silêncio não é de ouro. Pior ainda, essa prática é mesquinha, quando não é brutal, silenciando, por imposição. Também é técnica apurada para anular o outro, precisamente, silenciando-o. Mas sobretudo pelo silêncio que lhe votamos. Pode falar, manifestar-se, mas nós nunca lhe daremos voz ou falaremos dele. Ele é um estranho. Um intrometido. Um estrangeiro. Um inimigo. Um potencial invasor. Eu até me atreveria a dizer que esta atitude é intimamente cruel, sobretudo se o silêncio for movido por despeito ou então como castigo. O silêncio é escuridão quando a palavra parece estar a interpelar, a pedir que se acenda uma luz. Pelo contrário, a palavra redime e, por isso, acende essa luz. Mesmo que ela também projecte sombra. Muitas vezes sobre aqueles que, por isso mesmo, querem silenciar. Mas… “amor fati”.
III.
NIETZSCHE louva Stendhal a quem, diz, deve a melhor expressão de ateísmo que seria possível inventar: “A única desculpa de Deus é não existir” (1961: 57). Que mais não fosse só isso explicaria a razão de os cardeais o não quererem (sem terem tido sucesso, porém) em Civitavecchia, como representante diplomático de França, junto do Estado do Vaticano. Mas a afirmação não deixa de ser curiosa: só porque não existe não se lhe pode atribuir culpa pelo estado lastimável do mundo. É que se existisse não teria perdão, fossem quais fossem as conversas teológicas para o justificar. De resto, se existisse nem precisaria desses teólogos para justificar a sua não intervenção nos desatinos do mundo. Aqui, o seu silêncio diria tudo. E não seria mesquinho. O poder infinito deixa de o ser se precisar do poder finito. O infinito é inefável. A conclusão: porque não existe é que há por aí tantos a viver à custa da sua inexistência. Estão aí para preencher um vazio. E são os oficiantes desse mesmo vazio, travestido de plenitude. Será por isso que ele diz que os santos são mentirosos?
IV.
“QUANDO PRETENDEMOS libertar-nos de uma opressão intolerável, tomamos haschisch. Pois bem: eu tomei Wagner”; “Não sei estabelecer diferença entre as lágrimas e a música” (1961: 62; 64).
A música, o melhor remédio contra a opressão, contra os pesadelos, contra a dor, contra a infelicidade, contra a solidão. Melhor do que medicamentos ou drogas. Em “Para além do Bem e do Mal” (1886), na parte dos aforismos, disse: “a música oferece às paixões o meio para fruírem de si próprias” (“Vermoege der Musik geniessen sich die Leidenschaften selbst” – Aforismo 106). Um regresso à dimensão dionisíaca da vida que a música e a poesia tão bem representam. E, por isso, ele tomou doses enormes de Wagner a ponto de ficar saturado, até à ruptura. Uma paixão alimentada por Wagner que, como todas as paixões, teve o seu fim, dando lugar a duas solidões debaixo do mesmo tecto, o da música. Mas tinha de ser, para não provocar habituação. A música, para ele, é como o choro, é dionisíaca, é pulsional, física, corporal, é estremecimento, êxtase. Só assim se compreende que ele não consiga estabelecer diferença entre lágrimas e música. Eu canto como quem chora, diria. O meu choro é o canto triste da minha alma. Lembra-me o Manuel Bandeira de “Desencanto”: “Eu faço versos como quem chora / (…) Meu verso é sangue. Volúpia ardente… / Tristeza esparsa… remorso vão… / Dói-me nas veias. Amargo e quente, / Cai, gota a gota , do coração”. Que cumplicidade! Talvez porque sejam irmãs gémeas, a música e a poesia. E é por isso que Nietzsche acabará por dizer:
“E como suportaria eu ser homem, se ao homem não fosse também dado ser poeta, decifrador de enigmas, redentor do acaso?” (139).
Aqui está. A mesma exigência de tomar poesia… e não só Wagner. A alma e o corpo revelam-se na música, confundem-se com ela e concentram-se numa lágrima, sim, mas também na e com a poesia. É ela, a poesia, que vai lá ao fundo do nosso ser e traz os enigmas à flor da pele, mas sem os desvelar completamente, apesar de os expor com força dionisíaca, com poder de estremecimento, com capacidade de redenção. Mas este fluxo resulta de uma viagem ao interior de si, de Nietzsche, do compositor ou do poeta, com poder terapêutico:
“Nunca tive tanto prazer em olhar para dentro de mim como nos períodos da minha vida em que estive mais doente e mais sofri” – “uma forma superior de cura. A outra cura proveio desta” (1961: 109).
Só que assim sobrevém a solidão, esse estado que é chão da criação, o seu húmus. Até se poderia dizer que a arte é a resposta à inquietude que se manifesta neste estado anímico originário. A poesia é irmã da solidão porque ela viaja para o interior de nós próprios, sobretudo quando há dor, deixando lá fora tudo o resto. E, por isso, a linha do horizonte é a própria alma, o sol que nos ilumina lá dentro e que, de quando em quando, vamos revelando através da música e da poesia, de forma cifrada, mas intensa, rompendo com o silêncio quando ele ameaça tornar-se indigesto. Sim, mas, mesmo assim, a solidão permanece inacessível e insondável na sua plenitude, porque ela “tem sete véus” e “nada há aí com poder de atravessá-la” (1961: 130). Só a poesia e a música podem traduzir em sons e palavras a solidão, que permanece intacta como seu alimento, como seu fundo, como seu ambiente. Ambas falam, ambas se exprimem para dar voz a esse magma interior, a essa pulsão que pressiona a erupção melódica e significante, como o vulcão que já não pode ficar contido na terra e tem de explodir para o céu, com seus rios de lava a descerem vertiginosamente pelas encostas dos montes. Lavas, a petrificarem. Como os sons e as palavras da montanha. Pedras preciosas. Sim, mas o magma essencial fica lá, fonte de calor e de energia vital, protegido por sete véus, sete camadas, sem se poder atravessá-lo, mas apenas interpretar os seus indícios, as suas manifestações, as suas incrustações… Só a montanha sabe, como nós, o que vai dentro de si, no seu mais profundo interior e, por isso, quando fala, fá-lo de forma encriptada, embora de forma intensa e torrencial. Com lava, levando tudo à sua frente. Como a música ou a poesia quando transbordam em sons e palavras lá do alto, das cumeadas espirituais. E nos fazem estremecer. Mas não podem desnudar, rompendo os sete véus que cobrem e protegem a solidão da alma. Assim é o terreno primordial da música e da poesia. Como a montanha. O terreno da solidão. Ninguém pode atravessar os sete véus, nem o poeta nem o músico nem quem observa a majestosa solidão em que germina a arte – de fora para dentro, mas também de dentro para fora. O poeta e o músico só podem ser intérpretes do oráculo e oficiantes dos rituais estéticos que dão corpo à linguagem da solidão. Nietzsche é, sim, mais um fiel discípulo de Diónisos do que de Apolo. Basta lê-lo para nos apercebermos disso.
REFERÊNCIAS
BACON, F. (1959). Novum Organon. Roma: Edizioni Paoline.
NIETZSCHE, F. (1961). Ecce Homo. Como se chega a ser que se é. Lisboa: Guimarães Editores.
NIETZSCHE, F. (1888). Ecce Homo. Wie man wird, was man ist. In Digitale Kritische Gesamtausgabe (eKGWB).
NIETZSCHE, F. (1924). Jenseits von Gut und Boese. Leipzig: Alfred Kroener Verlag.
SANTOS, J. A. (2019). Homo Zappiens. Lisboa: Parsifal. Jas@02-2023