Artigo

ALGOCRACIA

Por João de Almeida Santos

Redes2022_06

“S/Título”. Jas. 06.2022

MÃO AMIGA FEZ-ME CHEGAR, por via digital, um interessante livro de Giovanni Gregorio, investigador na Universidade de Oxford, precisamente sobre o anunciado no título deste artigo: Digital Constitutionalism in Europe. Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society (Cambridge, Cambridge University Press, 2022). O assunto é sério, urgente e interessante. E responde, em parte às questões que têm sido levantadas, designadamente por Shoshana Zuboff, no seu A Era do Capitalismo da Vigilância (Lisboa, Relógio d’Água, 2020), de resto citado no livro (pág. 2). Vejamos.

NOVOS CONCEITOS

O AUTOR usa interessantes conceitos para analisar a  sociedade digital e em rede. Vale a pena referir alguns: “algorithmic society”,  “algocracy”, “automated decision-making processes”, “digital environment”,  “extraction of value from information”, “online platforms vertically order”, “digital capitalism”, “digital liberalism” “modulated democracy”, “constitutionalisation of online spaces”, “functional sovereignity” (que substitui a “territorial sovereignity”). Nos conceitos usados adivinha-se toda uma doutrina avançada sobre esta nova realidade, que muitos teimam em não reconhecer e assumir como algo a considerar muito seriamente, sobretudo nos domínios da política, da comunicação e do direito. “Sociedade algorítmica” – parece ser o conceito que vem substituir o de “sociedade digital e em rede” para indicar uma evolução das TICS e uma maior intervenção social da Inteligência Artificial (IA), o crescimento dos “automated decision-making processes” subtraídos aos normais processos de “accountability”, a montante e a jusante . Tanto que pode dar origem a uma Algocracy, a um sedutor regime do algoritmo, sucedâneo da Democracy. Bastaria para tal dar forma política à “sociedade algorítmica” e à correspondente automatização generalizada dos processos sociais. Uma utopia que parece ao nosso alcance a breve prazo. Outro conceito a registar poderá ser o de “soberania funcional”, uma soberania pós-territorial, global, a das grandes plataformas digitais. Uma soberania diferente, que não reside na nação nem no povo, mas nas grandes plataformas digitais privadas. Ou ainda a extracção da mais-valia, agora não já do trabalho, como em Marx, pelo prolongamento não remunerado da jornada de trabalho (a famosa mais-valia absoluta), mas pela informação acerca perfis dos seus utilizadores/consumidores para futura venda de preditivos comportamentais aos seus novos clientes. Poderia continuar, mas creio que já ficou claro o caminho traçado.

SOBERANIA FUNCIONAL

ESTAMOS, pois, a pisar terreno inovador, muito complexo, polémico e vital. O centro do problema reside na relação entre as grandes plataformas digitais, a cidadania e a autoridade pública, estando cada vez mais as grandes plataformas digitais privadas e globais a interpor-se entre a autoridade pública e a cidadania, gerando o que julgo ser já um problema de “constituency”, de uma nova “constituency”, vista a natureza e o alcance destes poderes privados globais. O conceito de soberania funcional é isso mesmo que indicia.  Sim, um problema de “constituency” exactamente como acontece no caso das grandes plataformas financeiras. Diferente, mas equivalente. Se estas actuam perante os Estados endividados como credores protegidos por contratos que intervêm no processo de gestão financeira dos Estados e até nos seus programas de governo (veja-se, como exemplo, o documento assinado – um autêntico programa de governo – entre o governo português e a troika que nos financiou), reivindicando o direito a verem satisfeitos os termos dos contratos de financiamento público, estas plataformas intervêm directamente sobre a cidadania consumidora de produtos digitais, gerindo um vastíssimo espaço social não regulado ou, então, ainda pouco e mal regulado, podendo mesmo, vista a matéria sobre a qual trabalha, condicionar a génese e a constituição do próprio poder político e, por essa via, a condicionar decisivamente os processos de “decision-making” e os programas, a um nível que nunca o velho poder mediático atingiu. A passagem do conceito de mass communication (media) a mass self-communication (rede) dá-nos bem ideia da mudança. Esse terreno foi, por exemplo, e como se sabe, explorado e usado para condicionar a eleição de Donald Trump e para favorecer o BREXIT. Ou seja, foi usado politicamente para instalar no poder determinadas soluções políticas.

As grandes plataformas movem-se num espaço global, interpelam biliões de consumidores, estabelecem códigos não contratualizados com eles e substituem-se aos Estados nacionais numa parte relevante da vida social, assumindo até funções que antes estavam exclusivamente confiadas aos poderes públicos, e têm orçamentos maiores do que muitos Estados nacionais. E, muito importante, intervêm directamente sobre os comportamentos, analisando-os e explorando-os comercial e politicamente. Há como que uma dualidade na relação dos poderes públicos e privados com a cidadania, podendo classificar-se como verdadeira partilha. Só que se uns respondem perante a cidadania, outros exercem directamente uma soberania funcional sem necessidade de prestarem contas, não estando o seu poder dependente de processos electivos. A rede é uma camada que está cada vez mais a sobrepor-se à realidade social e é governada segundo regras que não constam de uma constituição, não estando sujeitas a “accountability”, dispondo de informações sobre os cidadãos considerados individualmente numa dimensão tão profunda que nem os Estados nacionais se lhes podem comparar. Na verdade, esta transferência de funções e poderes para as plataformas digitais não conhece, pois, nenhum tipo de “accountability”, nenhum tipo de controlo, precisamente porque não estão sob a alçada de um constitucionalismo digital e funcional. O constitucionalismo digital constituir-se-ia, assim, como uma reacção aos novos poderes digitais. Reacção que nem é muito difícil de compreender e de aceitar – veja-se, por exemplo, o poder dos vários oligopólios instalados na sociedade portuguesa (operadoras de telecomunicações, redes de distribuição, marcas de  combustíveis) e a impotência do cidadão singular perante os ditames destes oligopólios. No caso das plataformas digitais esta dimensão agiganta-se e não só em extensão, mas também em intensidade e em qualidade.

DA SOCIEDADE DIGITAL E EM REDE
À SOCIEDADE ALGORÍTMICA

NA VERDADE, se, no início, as grandes plataformas representavam um incomensurável alargamento de direitos, de liberdade de comunicação e de participação nos processos de decision-making da cidadania, centrando-se a relação entre as plataformas e a cidadania exclusivamente neste plano, disputando poder ao establishment mediático para o devolver à cidadania (na figura dos users), depois haveria de se verificar um desvio de função, passando as plataformas a considerar como clientes, não os users, mas as empresas interessadas na determinação da previsão comportamental, tendo aqueles sido transformados em matéria-prima a ser trabalhada para extracção de mais-valia processada a partir da informação acumulada nos servidores e gerida pelas plataformas digitais junto dos seus novos clientes, que tanto podem ser empresas como forças políticas interessadas em sucesso eleitoral.

Como diz o autor: “Este é um livro sobre direitos e poderes na era digital. É uma tentativa de reformular o papel das democracias constitucionais na sociedade da informação ou em rede, que, nos últimos vinte anos, se transmutou em sociedade algorítmica como atual base societal que apresenta grandes plataformas sociais multinacionais ‘situadas entre os Estados-Nação tradicionais e os indivíduos comuns e o uso de algoritmos e de agentes de inteligência artificial para governar populações’” (Gregorio, 2022: 1). Portanto, forças intermédias dotadas de potentes e sofisticados meios de IA para gestão de processos sociais, económicos e comportamentais.

Da “sociedade digital e em rede” à “sociedade algorítmica”, à sociedade governada pelo algoritmo, pela inteligência artificial, através de “automated decision-making processes” que viriam a afectar “os valores constitucionais que sustentam o contrato social”, que superaram a lógica de Vestefália, substituindo a soberania territorial  por uma nova soberania funcional desterritorializada e global. É assim que funcionam as grandes plataformas digitais. Como diz, no prefácio Oreste Polliccino, “Giovanni explora a transformação de plataformas online de simples atores económicos em poderes privados capazes de competir com autoridades públicas” (Gregorio, 2022: xiii). A geometria do poder já não se resume a uma relação vertical, mas acontece cada vez mais na relação horizontal que “conecta indivíduos com poderes digitais privados que competem com, e muitas vezes prevalecem sobre, poderes públicos na sociedade algorítmica” (Gregorio, 2022: xiv). Assim sendo, “atores não estatais, corporações privadas e instituições supranacionais de governança contribuem para definir as suas regras e códigos de conduta cujo alcance global se sobrepõe à expressão tradicional do poder soberano nacional” (Gregorio, 2022: 311) – “Google, Facebook, Amazon or Apple are paradigmatic examples of digital forces competing with public authorities in the exercise of powers online. Within this framework, constitutional democracies are increasingly marginalised in the algorithmic society”.  Glosando o Michel Foucault de Surveiller et Punir; o autor afirma que “the paradigmatic idea of a public panopticon can be considered one of the primary concerns in the algorithmic society” (2022: 8; 15). É assim que:

“Digital firms are no longer market participants, since they ‘aspire to displace more government roles over time, replacing the logic of territorial sovereignty with functional sovereignty”. “These actors have been already named ‘gatekeepers’ to underline their high degree of control in online spaces. As Mark Zuckerberg stressed, ‘[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company’” (2022: 17).

Substancialmente, o que acontece é um verdadeiro processo de livre constitucionalização dos espaços online, mas feito por instrumentos de ordenamento privado que moldam o alcance dos direitos e liberdades fundamentais de biliões de pessoas, adotando uma rígida abordagem top-down, sem exigências de accountability. E a pergunta poderia ser a mesma que faz Daniel Innerarity em recente artigo no “El País” (13.05.2022): não dispondo nós ainda de um dispositivo conceptual que nos instrua sobre a natureza do novo espaço digital e o seu significado democrático, teremos de começar por perguntar quem, neste novo universo digital, “é o soberano: o algoritmo, o consumidor ou o Estado?”.

DO PODER ECONÓMICO AO PODER POLÍTICO

JÁ TEMOS QUE CHEGUE. Está, de facto, a emergir uma terceira constituency, depois da dos contribuintes e da dos credores internacionais, que financiam a dívida pública (W. Streeck, em Gekaufte Zeit, Berlin, Suhrkamp, 2013): a das grandes plataformas digitais que paulatinamente vão criando o seu universo societário de acordo com as suas próprias normas, superando o nível económico e atingindo já a dimensão da própria soberania (territorial), a soberania funcional. Basta pensar, como disse, na sua intervenção na eleição de Trump ou no Brexit. Se antes se podiam considerar verdadeiramente tecnologias da libertação relativamente aos poderes públicos instalados e aos poderes que os acompanhavam e reflectiam (o establishment mediático), agora, com a determinação preditiva de comportamentos em larga escala, elas dão lugar a uma intervenção que já supera a mera dimensão económica: “[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company”. Se antes o poder do establishment mediático já era enorme, colocando-se mesmo em directa competição com o poder político (veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 259-264), agora, as plataformas digitais online representam um enorme upgrade, um poder muito mais forte que deve ser constitucionalmente regulado para que “dentro deste modelo, os indivíduos” não se encontrem eles próprios “in a situation which resembles that of a new digital status subjectionis”. Um novo estado de sujeição, súbditos, em vez de cidadãos. Bem pelo contrário, diz, segundo Vestager, podendo ter as plataformas um enorme impacto no modo como vemos o mundo à nossa volta e tornando-se, por isso, um sério desafio à nossa democracia “so we can’t just leave decisions which affect the future of our democracy to be made in the secrecy of a few corporate boardrooms” (2022: 287). Existindo uma regulação constitucional feita pelos poderes públicos através de correctos procedimentos políticos e institucionais seria possível recuperar o primeiro impulso destas tecnologias, valorizando-as como tecnologias de libertação, sem as impedir de desenvolverem o seu processo de acumulação, mas respeitando os direitos e as garantias individuais, sendo certo que elas fornecem à cidadania, aos utilizadores, fantásticos instrumentos de comunicação, de automobilização, de participação e de conhecimento a custo zero e numa escala de liberdade que nunca os media conseguiram atingir. O que naturalmente tem um custo. Que tem, todavia, de corresponder a um “preço justo”. O autor sublinha bem este aspecto positivo das grandes plataformas, mas considera que se torna necessário reconduzir todo o processo à “constituency” originária, aquela que verdadeiramente é a legítima e com dimensão ontológica porque o segundo fôlego das plataformas as levou por um caminho que pode atingir o coração da democracia e daquilo que ela tem de mais sagrado: a ideia de soberania popular (ou da nação) centrada na autodeterminação individual. O que não é possível é os poderes públicos continuarem a proceder como se esta realidade não existisse, emitindo deliberações que são totalmente desprovidas de valor perante estas novas realidades. Por exemplo, se a ERC para reconhecer uma publicação “on line” lhe aplicar os critérios que, no essencial, são aplicáveis às publicações “on paper”, então, a entidade reguladora revelará (mais uma vez) a sua perfeita inutilidade. Mas este é um simples e minúsculo exemplo. De resto, nem me parece que a ERC esteja muito preocupada em compreender este gigantesco universo com o qual nos estamos já a confrontar em larga escala.

CONCLUSÃO

É CLARO que estamos a assistir a um fortíssimo ataque à rede, em especial às redes sociais, por parte daqueles que antes tinham o monopólio do acesso ao espaço público e o monopólio da opinião socializada. Por outro lado, de repente, os radicais descobriram um novo imperialismo, a que chamaram capitalismo da vigilância, evidenciando somente o  enorme poder das plataformas on line e imputando-hes o roubo de direitos e de titularidades aos cidadãos. Precisamente aquilo que aqui está em causa e que merece um novo e necessário constitucionalismo digital que possa regular as relações destes poderes quer com os Estados nacionais ou a União Europeia (sobretudo com esta) quer com a cidadania, não se limitando a simples códigos de conduta, como o que já foi (e bem) assinado, nem a disposições legais de aplicação meramente comercial. Como diz o  nosso autor, só assim será possível usufruir do melhor que as grandes plataformas digitais podem dar, evitando que deslizem para a produção de lucro puro e duro sem regras nem fronteiras. Mas o que não se deve é ver nelas apenas poder, totalitarismo, capitalismo globalitário e imperialismo digital. História com barbas – o radicalismo reinventa-se sempre para sobreviver, mantendo acesa a velha chama. Como se para ele nada significasse esta enorme possibilidade que o cidadão passou a ter de acesso ao espaço público deliberativo, de se informar sem limites a partir de casa, de se automobilizar sem intermediações, de retirar o monopólio do acesso ao espaço público ao establishment mediático e às respectivas elites (o poder de gatekeeping), de se protagonizar singularmente e de se organizar autonomamente através de plataformas livres que possibilitam uma eficaz conectividade democrática bottom-up em condições de promover uma autêntica democracia deliberativa. Sim, tudo isto. Mas, sim, também à necessidade de se construir um novo constitucionalismo digital à escala europeia (a que melhor pode dialogar com as poderosas plataformas digitais) que, interpelando com seriedade estas plataformas para promover uma resposta integrada às ameaças e aos riscos, dê maior protagonismo digital aos Estados nacionais e à União, inovando politicamente para melhor consolidar e aprofundar a ainda jovem democracia representativa, hoje seriamente ameaçada por forças que, à esquerda e à direita, vêem na sua matriz liberal originária o inimigo a abater. “The rise of European digital constitutionalism”, diz Gregorio, “can also be read as a reaction against the power of online platforms to set their values on a global scale on a discretionary basis” (2022: 287). Mas reacção como uma “terceira via” entre humanismo digital e capitalismo digital (2022: 284) – uma Europa consciente do papel que a IA pode representar para o progresso e o próprio empoderamento da cidadania, mas também dos riscos de concentração de poder sem controlo, não só do ponto de vista da caça ao lucro desmesurado e desumano, mas também de um poder capaz de condicionar decisivamente o curso da democracia e até mesmo de a destruir. A famosa transição digital tem de contemplar não só os progressos da IA, assumindo um protagonismo que lhe tem faltado e promovendo um fortíssimo investimento nesta área, designadamente na infraestruturação das redes digitais, na construção de próprios motores de busca e na literacia digital, mas terá também de integrar esta revolução num novo paradigma constitucional que a reconduza aos parâmetros e às exigências da democracia representativa ou deliberativa. A ideia de um constitucionalismo digital europeu é fundamental sobretudo porque estamos a falar de poderes muito fortes e muito sensíveis e num terreno onde tem faltado não só regulação, mas também sensibilidade constitucional para a desenvolver. #Jas@06-2022.Redes2022_06Rec

Poesia-Pintura

A PORTA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Porta”. Original de
minha autoria. Maio de 2022.
JAS_Porta2022

“A Porta”. Jas. 05-2022

POEMA – “A PORTA”

¡Qué trabajo nos cuesta / traspasar 
los umbrales / de todas las puertas! / 
Vemos dentro una lámpara /
ciega / o una niña que teme / 
las tormentas. 
La puerta es siempre la clave / 
de la leyenda. / 
Rosa de dos pétalos
/ que el viento abre / y cierra.

Federico García Lorca, 
Puerta Abierta, 1921
ILUMINADA
Em generosa
Cascata
De cores,
Nesta porta
Fria e nua
Há mistério
Que oculta
O outro lado
Da rua...
..........
O lado
Dos sonhadores.
MAS NÃO SEI
Se é porta
De rua,
Se me leva
A tua casa
Ou se abre
Para o mundo,
Se é porta
De sacrário
Que guarda
Corpo
De deusa,
Acesso
A templo
Sagrado,
Lugar de ecos
De um poema
Sufocado.
BATO LEVE,
Levemente,
Como quem
Chama
Por ti
Com as cores
Do meu jasmim...
Silêncio
É o que ouço
Do princípio
Até ao fim.
AH, A VERTIGEM
Do mistério
Que barra
O passo
Do lado de cá
Do desejo...
................
Por isso o pinto
De cores
Do generoso
Jasmim,
Uma profusa
Cascata
Que brota sempre
Das fontes
Do meu amado
Jardim.
FOSSE ELA,
Transparente,
Como a minha
Janela,
Raios de sol,
Feixes de luz
A entrarem
Dentro dela
Como seiva
Na raiz...
..............
Ah como seria
Tão belo,
Como seria
Feliz!
HÁ UM SILÊNCIO
Frio
Do lado de lá
Dessa porta
E tropeço
No vazio
Que não me deixa
Passar.
MAS A PORTA
É ombreira
De mistério
E fascina
O olhar,
É fonte
D’inspiração
Que me leva
A cantar
A vida
Imaginada
De uma doce
Ilusão.
POR ISSO
Eu a componho
Sob forma
De poema
Que logo lanço
Ao ar,
Fingindo que
Sofro o que
Sinto
Em palavras
Que não tenho
Para mais tarde
Te dar.
NO POEMA,
Eu pinto
Dessa porta
A soleira
Porque não posso
Passar
Esse lado
Da fronteira
Que encerra
O mistério
Do outro lado
De ti...
.............
O lado escuro
Da vida,
Que sempre
Desconheci.
AH, ESSA PORTA,
Lugar
De invocação,
Na memória
Permanece
Porque é nela
Que mais sinto
O fascínio
Do oculto
Que inspira
E entretece
O poema
Na canção.
JAS_Porta2022Rec

“A Porta”. Detalhe

Ensaio

A POLÍTICA DELIBERATIVA

AFINAL, O QUE É?

Por João de Almeida Santos

S:TítuloDelib

“S/Título”. Jas. 05.2022

QUANDO SE CONSULTA a bibliografia sobre a política deliberativa e a democracia deliberativa quase sempre se constata que o que circula é uma visão muito restritiva, ficando-se quase sempre por experiências de democracia participativa ou pela experiência dos Deliberative Polls, de James Fishkin (veja-se List, Luskin, Fishkin, McLean, 2012). Experiências de cidadãos escolhidos para, em duas fases, se pronunciarem sobre um mesmo tema, um antes de informação e de debate e outro depois de informação e de debate. As posições tendem a ser alteradas depois de adquirida mais informação e mais diálogo sobre o tema. Só que a questão da política deliberativa é muito mais ampla e inscreve-se na própria história da política e da democracia, dos gregos a hoje, mas sobretudo desde a instauração do sistema representativo e, depois, do sufrágio universal. Acresce que, hoje, com a rede, a situação ainda se aprofundou mais. Na verdade, a rede veio produzir uma tal transformação nos processos sociais, designadamente no crescimento do chamado espaço público deliberativo̧o público deliberativo, um espaço de tipo intermédio onde acontece a relação entre cidadão e poder, sem intermediações de carácter orgânico, que é possível afirmar que, finalmente, superada a fase da exclusividade ou monopólio da intermediação, a democracia representativa pode vir a ser aproximada daquela que era a sua matriz representativa original, ou seja, a da centralidade do indivíduo/cidadão a que corresponde um sistema de poder (político ou comunicacional) mais transparente e mais participado e com menor índice de intermediação̧a. Esta será uma democracia deliberativa porque resulta da superação da cisão originária, da separação, do “sulco” entre cidadania e poder, através do crescimento do espaço intermédio como espaço público deliberativo̧o público deliberativo. O vazio inicial entre as instâncias do poder e a cidadania, esse espaço intermédio, foi sendo ocupado progressivamente pelos meios e canais de comunicação até se tornar um território de conquista da cidadania, subtraindo-o ao monopólio dos media e à exclusividade da mediação partidária. Não se trata, como é evidente, de uma experiência de democracia directa, como o referendo, por exemplo, porque se inscreve plenamente na matriz do sistema representativo, acrescentando, todavia, novas e mais profundas exigências ao processo decisional, ancoradas numa alteração profunda da identidade da cidadania.

A DELIBERAÇÃO NA HISTÓRIA

VALE, POIS, A PENA começar por me deter um pouco no conceito de democracia deliberativa (1). Que não é, de facto, coisa nova.

1. Na “Política” de Aristóteles (Aristóteles, 1998), no capítulo sobre “As magistraturas deliberativas”, o conceito está claramente formulado:

“Todos os regimes (políticos) constam de três partes (…). Uma dessas três partes relaciona-se com a deliberação (tò bouleuómenon) sobre assuntos que dizem respeito à comunidade. (…) Compete à função deliberativa decidir de modo supremo sobre a declaração de guerra e de paz, as alianças e a quebra dos pactos; sobre as leis; sobre a condenação à morte, o exílio e a expropriação de bens; sobre a escolha para os cargos de magistratura e a fiscalização das contas públicas. Todas estas decisões estão necessariamente sob a alçada, ou de todos os cidadãos, ou só de um certo número deles (neste caso, as decisões podem ser da competência ou de uma magistratura só ou de várias; ou, então, umas serão da competência de certas magistraturas e outras da competência de outras); ou ainda, uma sob a alçada de todos os cidadãos, enquanto outras apenas sob a alçada de alguns. É próprio do espírito democrático o procedimento segundo o qual todos decidem acerca de todas as questões que se referem à comunidade. É, de facto, o povo quem mais procura essa espécie de igualdade (…) Quando a participação na função deliberativa não está ao alcance de todos, mas só dos que foram eleitos, e se estes governam de acordo com a lei da mesma forma que na situação precedente, então estamos perante um procedimento oligárquico (…). Ainda assim, a decisão seria melhor se todos deliberassem em comunidade: o povo (dêmos) com os notáveis, e estes com a multidão (plêthous)” (itálico meu) (2).

O substantivo proboúleuma (-tos), deliberação, deriva de boulê, a mesma palavra usada para designar o Conselho dos Quinhentos, a Boulê (3), criada por Clístenes, que preparava as Assembleias, competindo-lhe a função deliberativa̧ão deliberativ, ou seja, emitir parecer (proboúleuma) (4), obrigatório (5), que era submetido à Assembleia.

Do que se lê no texto de Aristóteles sobre a matéria pode evidenciar-se o seguinte:

  1. Uma das três partes do regime democrático ateniense refere-se à deliberação (tò bouleuómenon) sobre assuntos que dizem respeito à comunidade: decidir de modo supremo sobre a declaração de guerra e de paz, as alianças e a quebra dos pactos; sobre as leis; sobre a condenação à morte, o exílio e a expropriação de bens; sobre a escolha para os cargos de magistratura e a fiscalização das contas públicas – nisto consiste a função deliberativa, ou seja, a deliberação sobre assuntos essenciais;
  2. a melhor decisão, segundo Aristóteles, é a que resulta da deliberação em comunidade: o povo (dêmos) com os notáveis e, estes, com a multidão (plêthous);
  3. a melhor decisão é, pois, a que é preparada pela Boulê e deliberada pelo povo (os cidadãos, polítai, sob forma de Assembleia).

Podemos, pois, dizer que a democracia deliberativa já existia em Atenas (e nas colónias) e que se consubstanciava num processo de amadurecimento democrático da decisão, através de um processo deliberativo. A própria figura da deliberação (proboúleuma) conhece em Atenas um ancoramento institucional num órgão que tem o mesmo nome, Boulê, e cujo verbo, bouleúo, significa precisamente deliberar, aconselhar, reflectir, pensar. A política associada a um procedimento racional e argumentativo.

Esta preparação da decisão acontecia num regime de democracia directa para posterior decisão da assembleia, constituída pelos polítai, e excluídos os escravos, os estrangeiros e as mulheres. No sistema representativo, acontecerá uma inversão de papéis, sendo a cidadania a intervir para melhorar não só a qualidade da decisão dos representantes, mas também a sua transparência. Este duplo processo (deliberativo e decisional) manter-se-á ao longo dos tempos, como veremos, ainda que com a evolução da comunicação o processo tenha ganho maior acuidade e importância, dando origem àquilo que conhecemos como política deliberativa e democracia deliberativa.

2. Se consultarmos a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (1751-1772) encontraremos a ideia de deliberação em múltiplos sentidos, inclusivamente, neste caso, de délibératif: “en termes de suffrages”: “signifie le droit qu’une personne a de dire son avis dans une assemblée, & d’y voter” (Diderot & D’Alembert, 1751) (6). O processo deliberativo é aplicável às várias formas de associação, funciona segundo regras prévias, de tempo, para assuntos relevantes e visa melhorar as decisões sobre a vida da comunidade.

3. Em 1774, Edmund Burke pronunciou um discurso, “Speech to the electors of Bristol” (03.11.1774), onde definia o Parlamento britânico como uma “assembleia deliberativa”:

But government and legislation are matters of reason and judgment, and not of inclination; and what sort of reason is that, in which the determination precedes the discussion; in which one set of men deliberate, and another decide; and where those who form the conclusion are perhaps three hundred miles distant from those who hear the arguments?” (…) “Parliament is not a congress of ambassadors from different and hostile interests; which interests each must maintain, as an agent and advocate, against other agents and advocates; but parliament is a deliberative assembly of one nation, with one interest, that of the whole; where, not local purposes, not local prejudices, ought to guide, but the general good, resulting from the general reason of the whole” (7).

Governo e legislação são assuntos de razão e juízo; a decisão não pode estar separada da deliberação, da discussão, da argumentação; o parlamento é uma assembleia deliberativa e visa o bem geral, que resulta da razão geral do todo. A decisão também aqui implica um processo deliberativo prévio em instâncias deliberativas (e não executivas), como é o caso do Parlamento.

4. Se, depois, consultarmos um bom dicionário de política do século XIX, por exemplo, o que foi organizado por Maurice Block e publicado em 1864, Dicionário Geral de Política (Block, 1864), veremos que “dans les affaires publiques, toute décision importante doit être le résultat d’une délibération, c’est à dire d’une réflexion en commun, contradictoire, d’une discussion”. O processo deliberativo – diferente do processo consultivo – é essencial para se obter uma boa decisão política para a comunidade.

5. Já no século XX, Walter Lippmann, na obra Public Opinion (Lippmann, 1922), define as bases necessárias para evoluir para uma democracia de tipo deliberativo, fundada não sobre as origens do poder – como era habitual –, mas sobre a legitimidade de exercício ou, como eu prefiro, sobre a legitimidade flutuante, ou seja, sobre a necessidade de ancorar o exercício do poder num processo de tipo deliberativo, onde as decisões mereçam um consenso activo por parte da cidadania, não só como controlo, mas também como construção de um espaço público deliberativo onde deliberar acerca das matérias decisivas para a comunidade, em fase de decisão (Santos, 2017), repondo, de algum modo, aquela que era a inspiração ateniense e aristotélica originária.

6. Um grande impulso à ideia de uma democracia deliberativa foi dado por Jürgen Habermas, em 1992, na obra “Faktizität und Geltung. Beiträge zur Discurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats”, tendo-lhe dedicado explicitamente o capítulo “A política deliberativa como conceito procedimental da democracia” e um outro sobre “Sociedade civil e esfera pública política”, em torno da mesma problemática (Habermas, 1996).

Segundo Habermas, uma política deliberativa deve conter elementos da concepção liberal e da concepção republicana, valorizando simultaneamente a sociedade civil e a dimensão política de Estado. Se a primeira centrava na sociedade civil o bem comum, e não na esfera política (veja-se Constant, 1819), e considerava inultrapassável e ineliminável o “sulco entre aparelho estatal e sociedade”, e a segunda considerava a sociedade como “comunidade ética politicamente institucionalizada” (Habermas, 1996, pp. 352 e 350), para a terceira, ou seja, para a política deliberativa, apoiada numa teoria do discurso, “a razão prática já não reside nos direitos universais do homem ou na substância ética de uma comunidade particular, mas sim naquelas regras de discurso e formas argumentativas que derivam o seu conteúdo normativo da base de validade do agir orientado ao consenso, portanto – em última instância – da estrutura da comunicação linguística e do ordenamento insubstituível de uma socialização comunicativa” (1996, p. 351; itálico meu). Assim sendo, “o sucesso da política deliberativa não depende do agir unânime da cidadania, mas da institucionalização de correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos e da interacção das consultas institucionalizadas com as opiniões públicas informais”. A teoria do discurso, que subjaz à política deliberativa, visa “a intersubjectividade de grau superior, que caracteriza os processos de consenso que se concretizam nos procedimentos democráticos ou na rede comunicativa das esferas públicas políticas” (1996, p. 353). Habermas, nesta sua incursão pela política deliberativa, conclui que a “formação democrática da opinião e da vontade” não deve limitar-se “a controlar a posteriori o exercício do poder político, mas conseguir também (com maior ou menor sucesso) programá-lo” (1996, p. 355; itálico meu). Deste modo, as estruturas comunicativas da esfera pública não comandam, mas controlam e influenciam a orientação do poder administrativo.  

O que aqui se verifica, na linha da política deliberativa, embora de forma pouco mais que acenada ou mesmo fragmentária, é o reconhecimento de um “sulco” entre sociedade e Estado que urge preencher a partir da sociedade civil, designadamente através do accionamento das estruturas comunicativas da esfera pública, de modo a influenciar a decisão política, ou seja, a ir mais além do mero controlo do exercício do poder, intervindo sobre a “programação”, logo, directamente sobre o processo decisional. Neste sentido, o agir comunicativo desempenha aqui uma função essencial, todavia, ainda num sentido algo limitado, mas claro, relativamente às exigências de tipo deliberativo.

O ESPAÇO INTERMÉDIO, OS MEDIA, 
A REDE E A DELIBERAÇÃO

NA VERDADE, e é isto que é preciso sublinhar, o que se verificou entre o século XVIII e o século XXI foi uma evolução do espaço intermédio (veja-se Tagliagambe, 2009), no início, aquele “sulco” ineliminável de que fala Habermas e cuja superação implicava o “breach of privilege”, tendo como consequência a prisão de quem o superasse, pois era proibido relatar o que acontecia nas instâncias do poder. Pelo menos até pouco depois de meados do século XVIII, era crime relatar o que se passava no Parlamento inglês, o que viria dar origem à literatura Lilliput (8). Entre o palácio e a rua não havia comunicação. Uma vez eleitos os representantes – aliás, por uma parte ínfima da população, vista a vigência do regime censitário –, a comunicação interrompia-se e ficava sujeita à alçada da lei.

Foi o crescimento da imprensa política e a sua autonomização relativamente ao poder que deu origem à lenta, mas progressiva ocupação deste espaço intermédio, até porque com a progressiva adopção do sufrágio universal se tornou necessário manter informados os inúmeros eleitores. Temos assim uma evolução que vai da imprensa à rádio e à televisão, com a crescente ocupação do espaço intermédio e a entrada em cena de milhões e milhões de pessoas que se informavam e votavam. Ou seja, este “sulco” originário foi sendo progressivamente transposto pela cidadania mediante informação acerca do exercício do poder proveniente dos mass media. Numa primeira fase, nos fins do século XIX e na primeira metade do século XX, na verdade, a informação política para fins eleitorais quase se identificava com exercício de propaganda política, sendo a participação dominada pela ideia de pertença ideológica̧a ideológica, mais do que por informação acerca do exercício concreto do poder (veja-se Manin, 1995, pp. 247-308). A imposição de ditaduras na Europa entre guerras viria reforçar esta ideia. Por isso, esta situação ou, melhor, esta exclusividade da participação política fundada no sentimento de pertença só começaria a ser ultrapassada na segunda metade do século XX, com a expansão das fontes de informação, sobretudo da televisão, que haveria de se tornar o “príncipe dos media”, a ponto de capturar o essencial da comunicação política e de, sobretudo a partir dos anos 50, com o nascimento do marketing político, impor as próprias regras de comunicação aos agentes activos da política. Esta evolução haveria de influenciar de tal modo a democracia representativa que esta acabaria por assumir, espelhando a realidade, a designação de “democracia do público” ou “democracia de opinião” (Manin, 1995; Minc, 1995). De qualquer modo, esta evolução viria a produzir mudanças de fundo nas relações entre a cidadania e a política. Em primeiro lugar, verificou-se uma crescente perda de influência da participação por “sentimento de pertença”, não só porque a informação começou a chegar de forma mais alargada à cidadania, mas também porque se verificou uma crescente perda de influência das ideologias políticas, em parte devido à desnatação ideológica dos grandes partidos de alternância ao transformarem-se em catch-all-parties. A expansão da informação e a quebra na tensão ideológica da política iriam, pois, provocar uma alteração substantiva na relação entre a cidadania e o poder, passando a participação política por “sentimento de pertença” a ser partilhada com uma participação centrada na informação e agora vocacionada para o controlo do exercício do poder (sobretudo através dos media), a que se seguiria, depois, uma participação já não só de controlo, mas também de intervenção política propositiva, cumprindo-se assim uma evolução estrutural que haveria de levar à formulação da chamada democracia deliberativa. Completa-se, assim, a superação desse “sulco” entre a sociedade e o Estado, desse espaço intermédio, através do seu “enchimento”, ou seja, a sua conversão em espaço público deliberativo.

Na verdade, do que se trata é de uma progressiva superação desse “sulco” vazio, desse espaço intermédio inacessível por um espaço público deliberativo que foi ganhando qualidades emergentes à medida que o subsistema comunicacional o ia ocupando com novas funções de controlo e de “programação”, a que já fiz referência. Emerge deste modo uma nova realidade no quadro do sistema representativo que não estava inscrita na sua matriz originária, concebida que fora no quadro do regime censitário, com o poder a ser exercido pelas elites e com o próprio voto a ser sujeito a critérios económico-financeiros9. Só o sufrágio universal e a introdução da chamada “democracia de partidos” viriam introduzir a exigência de uma progressiva ocupação do espaço intermédio. Ocupação que dera os seus primeiros e condicionados passos já no século XVIII.

E, todavia, até à chegada da rede, toda esta evolução estava sujeita a um processo de intermediação política e comunicacional, onde a cidadania delegava duas vezes a sua soberania. Em primeiro lugar, no sistema de partidos e, em segundo lugar, no Parlamento. Esta delegação acontecia também no plano da comunicação uma vez que os mass media passaram a ter a função – protegida constitucional, legal e corporativamente – de intermediar a representação social, em nome da cidadania, como função orgânica da sociedade e espaço público reconhecido e gerido pelos chamados gatekeepers, autênticos filtros da opinião pública. Por isso, foram designados como quarto poder, apesar de, na verdade, ocuparem uma posição cimeira na hierarquia dos poderes. Veja-se, por exemplo, e já no século XIX, o que diz Alexis de Tocqueville, em “Da democracia na América”: “Nos Estados Unidos, cada jornal tem, por si só, pouco poder; mas a imprensa periódica é ainda, depois do povo, o primeiro dos poderes” (2001, p. 231). Mas, por isso mesmo, também são protegidos pelas constituições, pelas declarações de direitos e pela lei.

É claro que este processo de intermediação constituiu um gigantesco passo em frente na promoção da literacia política, da participação e do funcionamento do sistema político representativo, durante o século XX e, em especial, na sua segunda metade. Mas o sistema, no seu processo evolutivo, haveria de conhecer tendências negativas que o afastariam da cidadania, gerando endogamia partidária, indiferença política (Santos, 1998, p. 111-137), perda de contacto com a sociedade e fragmentação dos sistemas de partidos, com emergência de novos partidos que procuravam responder às expectativas frustradas pelo establishment partidário. Ou seja, o que se verificou foi uma clara inversão no processo de representação: os partidos, que surgiram para organizar politicamente a sociedade civil, deixaram de estar ancorados nela para passarem a estar ancorados no Estado, retroagindo, depois, instrumentalmente, sobre ela para efeitos meramente eleitorais e para garantirem sustentabilidade financeira, ocupação da máquina do Estado e hegemonia política.

A rede veio, depois, introduzir uma mudança radical neste processo uma vez que iniciou um poderoso processo de desintermediação da política e da comunicação, devolvendo soberania à cidadania, dotando-a de instrumentos capazes de promover auto-organização e automobilização política e comunicacional, reforçando fortemente o espaço público deliberativo e substituindo a velha mass communication por uma mass self-communication que vê emergir o indivíduo singular com maior protagonismo e capacidade de autónoma intervenção no espaço público deliberativo. Tudo isto tem consequências que a política deve reconhecer e, mais do que isso, metabolizar.

RISCOS, AMEAÇAS E OPORTUNIDADES

É CLARO que neste processo de desintermediação da política e da comunicação há riscos, mas as oportunidades de regeneração do sistema representativo, no sentido que indiquei e como resposta ao fechamento do sistema, são maiores do que as ameaças.

1. Num longo ensaio, É tempo de desmantelar o Facebook, publicado originariamente no New York Times, Chris Hughes (Hughes, 2019), cofundador do Facebook, sobre esta rede social, o Whatsapp e o Instagram, propõe, de facto, o desmantelamento desta plataforma, numa posição que talvez possa ser considerada demasiado radical para uma plataforma que veio dar voz a quem a não tinha e que, afinal, não encontra correspondência noutros grandes grupos multinacionais com orçamentos superiores aos de muitos Estados nacionais. Francisco Louçã concorda com o desmantelamento, em artigo publicado no Expresso (Louçã, 2019), devido ao excesso de poder concentrado nesta plataforma, seguindo, nisso, Ted Cruz e Elizabeth Warren, referindo o historial de desmantelamentos americanos de outros monopólios (e a Lei Sherman) e concluindo que, depois de Zuckerberg ter manifestado querer criar a sua própria moeda Facebook e, ainda, visto o escândalo da Cambridge Analytica (veja-se Cadwalladr, C., & Graham-Harrison, E., 2018), chegou o tempo de parar o patrão do Facebook. Mas, digo eu, talvez não tenha chegado este tempo, não só porque estes desmantelamentos não tiveram, como se sabe, o efeito que fora invocado para os accionar, mas sobretudo porque não é tempo de acabar com plataformas digitais que vieram dar espaço de liberdade aos cidadãos como nunca acontecera, podendo também tornar-se instrumentos de libertação da cidadania relativamente a outros oligopólios como as televisões e os outros grandes meios de comunicação, bem menos democráticos que a rede e bem mais amigos do poder instalado, constituindo mesmo a outra face do mesmo poder (veja-se Blasio e Sorice, 2020). De resto, as críticas às redes sociais têm sido, como é sabido, promovidas precisamente pelos poderes (individuais e organizacionais) instalados, ao verem ameaçado o seu monopólio de acesso e de gestão do espaço público deliberativo. Mas concordo, isso sim, na necessidade de regular as redes sociais, impedindo que um poder excessivo, político e comunicacional fique concentrado numa só pessoa, que Hughes, neste caso, identifica como o de Mark Zuckerberg.

Entretanto, e neste sentido, na União Europeia, a Comissão assinou e activou um código de conduta com as grandes plataformas por ocasião das eleições europeias de Maio de 2019, o que foi um passo importante para regular a circulação da informação na rede, designadamente nas redes sociais, libertando as suas potencialidades para alimentar uma democracia deliberativa que possa relançar o sistema representativo, devolver poder ao cidadão, evitar a tendência endogâmica dos partidos, melhorar a qualidade e a transparência da decisão e promover uma cidadania activa e mais interventiva, mais e melhor informada e mais culta. Tudo no quadro da democracia representativa.

2. Na verdade, a emergência da rede veio alterar significativamente o quadro em que se passou a processar a comunicação e a própria política, o quadro com que operavam as chamadas teorias dos efeitos, e designadamente a teoria do agenda-setting, todas elas pensadas sobretudo para o modelo mediático de comunicação, para o broadcasting, o eixo emissor-receptor, o modelo vertical e hierarquizado de comunicação, a mass communication. E veio alterar porque o eixo da comunicação mudou, dando lugar a um novo eixo de tipo horizontal, não hierárquico e relacional, onde a comunicação ocorre entre variáveis independentes num gigantesco espaço intermédio e onde a mass communication deu lugar à mass self-communication, a uma comunicação individual de massas, centrada num sujeito de múltiplas pertenças e dotado de eficazes instrumentos e canais de duplo acesso (como receptor e como emissor) ao espaço público deliberativo, de que antes não dispunha (veja-se Castells, 2007; 2011; 2012) . Ou seja, no quadro do novo modelo comunicacional já não há o receptor puro, mas sim um receptor que é simultaneamente emissor, dando lugar àquele que hoje já começa a ser designado por cidadão prosumer, cidadão produtor e consumidor de comunicação e de política. Em tese, um cidadão mais interveniente, menos passivo e, logo, menos sujeito ao diktat do emissor, ao gatekeeping, ao spinning e à comunicação instrumental, até porque a sua actividade se inscreve cada vez mais numa lógica de conectividade, bottom-up (veja-se a entrevista, em linha com o que aqui defendo, de Daniel Innerarity, ao “Público, de 17.05.2022, pp. 18-19). É claro que já existia, pelo menos, uma linha teórica, no âmbito das teorias dos efeitos, que atribuía uma função mais activa ao receptor, embora ainda no quadro da comunicação broadcasting – a teoria dos “usos e gratificações” (10). Sem dúvida. Mas, com a rede, o activismo do receptor passa a ser de outra natureza, visto que assume a forma de prosumer, simultaneamente receptor e emissor, em condições, pois, de devolver as mensagens ao emissor. Ou seja, o poder de agendamento está hoje ao alcance de um cidadão que antes não dispunha dos meios para o fazer e, por isso mesmo, a capacidade de polarização da atenção social e o poder sobre o acesso ao espaço público deliberativo deixaram de ser monopólio do establishment mediático (poder de gatekeeping) para passarem a ser partilhados com o poder diluído emergente no sistema-rede (Álvarez, 2005). Estas profundas levam necessariamente a uma evolução que corresponde exactamente ao que se entende por política deliberativa.

3. Do que se trata, pois, neste novo paradigma, que se adequa plenamente à proposta da política deliberativa e da democracia deliberativa, é de uma nova localização do cidadão no sistema, neste processo de desintermediação da comunicação e da política, havendo, pois, que redefinir o quadro de referência para a determinação da natureza do subsistema comunicacional e dos seus efeitos nos processos políticos e, consequentemente, que proceder também a uma revisão do quadro conceptual das próprias teorias dos efeitos, à semelhança do que já está a acontecer com o marketing digital ou marketing 4.0 (Kotler, 2017), e, consequentemente, da própria política. O que, na verdade, se verificou foi uma novidade radical: a emergência de um espaço intermédio como livre espaço público deliberativo, não sujeito ao monopólio do gatekeeping, e de uma nova ontologia da relação vieram alterar o sistema em aspectos absolutamente decisivos, gerando qualidades emergentes que a política e as próprias teorias dos efeitos (assentes no modelo vertical emissor-receptor) terão que metabolizar conceptualmente se quiserem compreender as novas mecânicas dos processos políticos e o ambiente em que eles se processam. E é, naturalmente, neste quadro que se inscreve a própria ideia de democracia deliberativa.

 CONCLUSÃO

DE QUALQUER MODO, já existem experiências políticas concretas onde o digital e as mudanças estruturais por ele induzidas ocupam um lugar de destaque, devendo, por isso, ser avaliadas do ponto de vista da relação entre a cidadania e o sistema, quer no plano da comunicação quer no plano da política.

Falo de experiências negativas, como as que viram a Cambridge Analytica envolvida na manipulação de dezenas de milhões de dados de users, nos casos americano e inglês, mas falo também do uso inteligente e legítimo que foi feito nas duas campanhas de Barack Obama (Castells, 2011; e Cadwalladr, C., & Graham-Harrison, E., 2018). E falo sobretudo da experiência italiana do MoVimento5Stelle, apesar de se encontrar agora em graves dificuldades políticas, depois das eleições europeias de 2019 (11). Experiência importante de uma formação política de matriz digital e de tipo neopopulista que soube capitalizar o consenso para chegar ao poder como primeira força política (32,7%, em 2018), mas que, depois, não soube concretizar as suas propostas, vendo-se, primeiro, ultrapassada pela Lega (por exemplo, nas eleições europeias), numa autêntica inversão de resultados no arco de um ano, e, depois, pelo Partito Democratico e por Fratelli d’Italia, mantendo-se hoje, nas sondagens, como o quarto partido italiano. Exemplo: o modo como lidou com a sua própria proposta sobre a cidadania digital, uma âncora estatutária e ideal do M5S.

Poderia aqui falar também das grandes plataformas digitais que mobilizam milhões de cidadãos numa lógica bottom-up, centradas na conectividade, e que já disputam influência aos grandes partidos tradicionais, mas sobre esta ideia já tive oportunidade de discorrer no capítulo VI do livro Política e Democracia na Era Digital: “Conectividade – Uma chave para a política do futuro” (Santos, 2020a). Na verdade, estamos perante uma profunda mudança nos processos políticos que é necessário metabolizar porque, entre ameaças e oportunidades, a possibilidade de melhorar a democracia representativa é real. Mas, para isso, é preciso reconhecer o caminho percorrido de modo a detectar a real evolução das sociedades nas suas formas de autogoverno, o que funcionou bem e os desvios, as mudanças estruturais e os seus efeitos sobre a política e a comunicação. Este reconhecimento é fundamental para dar resposta às novas exigências e, no meu entendimento, a democracia deliberativa é a melhor resposta aos desafios que se estão a pôr à democracia representativa, não só porque esse é, como vimos, o sentido para que aponta a evolução da política desde que foi criado o sistema representativo, mas também porque a evolução da tecnologia para aí converge também, enquanto facilita o empoderamento comunicacional e político da cidadania e lhe permite um autogoverno mais esclarecido e informado. É este o quadro em que se processa a política democrática e à qual a designação que melhor lhe corresponde é a de “política deliberativa” porque ela qualifica o sistema sem desvirtuar a sua estrutura representativa.

REFERÊNCIAS

* Para uma análise mais aprofundada veja-se Santos, J. A. (2020), A política, o digital e a democracia deliberativa. In (2020) Camponez, C, Ferreira, G. e Rodriguez, R.. Estudos do Agendamento. Covilhã: Labcom/UBI, pp. 137-167.

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Aristóteles (1998). Política (Edição Bilingue). Lisboa: Vega.Blasio, E., e Sorice, M. (2020). O partido-plataforma entre despolitização e novas formas de participação: que possibilidades para a esquerda na Europa. In Santos,   (2020: 71-101).

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Habermas, (1996). Fatti e norme. Contributi a una teoria discorsiva del Diritto e della democrazia. Milano: Guerini e Associati.

Hughes, Chris (2019). É tempo de desmantelar o Facebook. Expresso. Consultado a 25 de maio de 2020, em https://expresso.pt/sociedade/2019-05-25-E-tempo-de-desmantelar-o-Facebook.

Kotler, Ph., Kartajaya, H., & Setiawan, I. (2017). Marketing 4.0. New Jersey: Wiley.Lipmann, W. (1922). Public opinion. New York: Macmillan.

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Sorice, M. (2014). I media e la democrazia. Roma: Carocci.

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Tocqueville, A. (2011). Da democracia na América. S. João do Estoril: Principia.

NOTAS

1. Para uma síntese das várias posições sobre a democracia deliberativa, veja-se o excelente ensaio de Michele Sorice I media e la democrazia (Sorice, 2014, p. 45-71).

2. Aristóteles (1998): pp. 324-330: 1297b – 41; 1298a – 4 e 14; 1298a – 40; 1298b – 4; 1298b – 20 e 22; 1298b – 30 e 33 – no texto grego; itálico meu. A palavra proboúleuma não é usada neste capítulo (apesar de encontrarmos a forma verbal probouleúsôsin, aoristo do conjuntivo, 3.ª pessoa do plural, do verbo probouleúo, deliberar, relativo às deliberações da Boulê prévias à Assembleia, ou Ekklêsía), mas sim o verbo bouleúo. O prefixo pro significa precedente. Algumas formas derivadas do verbo bouleúo (deliberar, aconselhar, reflectir, pensar) ou do substantivo boulê que aparecem no texto grego, aqui citado nas páginas acima referidas: bouleuómenon, bouleúontai, bouleúesthai, bouleúsontai, bouleuómenoi, bouleuoménous, probouleúsôsin, symboulês.

3. A estrutura institucional da democracia grega era composta pela Ekklêsía (Assembleia, com 30.000 polítai com direito a voto, sendo o quorum 6.000), pela Boulê (Conselho dos Quinhentos, que correspondia em Roma ao Senado) e pelos Tribunais.

4. “Este proboúleuma era, de acordo com as várias questões, mais ou menos longo e formulado com maior ou menor precisão: podia ser uma simples proposta, quase um esboço oferecido à discussão da assembleia ou, então, um decreto acabado em todos os seus aspectos. Na idade mais antiga, cada proboúleuma devia vir do Senado, já que um decreto ao qual faltasse o proboúleuma senatório não era considerado legal”. Da Enciclopédia Treccani online: http://www.treccani.it/enciclopedia/probuleuma_ (Enciclopedia-Italiana)/ (Acesso em 01.05.2020; itálico meu).

5. Esta pertença exclusiva do proboúleuma (que só existiu em Atenas e nas klêrouchíai, colónias) às competências da Boulê terminou no início do século IV a.C.

6. https://books.google.pt/books?id=KFYrD5RoR5UC&pg=PA782&lpg=PA782&dqe (Acesso: 01.05.2020).

7. In: http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/v1ch13s7.html (Acesso: 09.06.2019).

8. Veja-se, sobre o assunto, o meu “Media e Poder” (Santos, 2012, p. 61, notas 50 e 51)

9. Veja-se a constituição francesa de 1791, no seu Capítulo I, Secção II, Art. 7.

10. Sobre as Teorias dos efeitos, veja-se o meu Media e Poder (Santos, 2012, p. 229-256).

11. A este propósito veja-se o meu ensaio “Mudança de Paradigma: A emergência da Rede na Política. Os casos italiano e chinês” (Santos, 2017b). E ainda: “O Nacional-Populismo já tem um ideólogo: Steve Bannon” (Santos, 2018). #Jas@05-2022.

S:TítuloDelibRec

 

 

Poesia-Pintura

A OUTRA JANELA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Outra Janela”. 
Original de minha autoria 
para este poema. Maio de 2022.
JAS_Janelal052022PoePub

“A Outra Janela”. Jas. 05-2022

POEMA – “A OUTRA JANELA”

DAQUELA JANELA
Já não te vejo,
Mas se visse
O que diria?
Um destino,
Um caminho
Que não sei
Onde me leva
Nesta incerta
Travessia...
SÓ SEI QUE
Parto
Com o olhar
E uma discreta
Dor
Para destino
Ignoto...
...........
E por isso
Sedutor.
HÁ SEMPRE
Outra janela
Dentro de nós,
Vê-se
O mundo
Através dela
Para não ficarmos
Sós.
VIAJAR
Ao sabor do vento,
Sentir-se
Um pouco
Vagabundo,
Amigo da evasão,
Perder-se, sim,
Neste mundo
Como alguém
Que não tem chão.
OUTRA JANELA
Sobre a rua,
Sobre um rio,
Sobre o mar
Ou traçado virtuoso
Para meu vale
Abraçar;
Marcas
De passos remotos
Escritos
Na água fria
Ou recanto
Sem passado
Num futuro
Desejado
Como pura utopia;
Um trilho
A desbravar:
Encontrar-te
Lá no fim
Do meu longo
Caminhar...
SIM, OUTRA JANELA,
A que a musa
Desenhou
Pra que eu te visse
Nela
Na montanha
Ou no mar,
Numa praça 
Da aldeia,
Numa rua
Em qualquer 
Outro lugar...
OUTRA, SIM,
De onde veja
O teu rosto
Assomar,
Quando o sol
Me acende
A alma
De tanto no alto
Brilhar.
O MUNDO
Quando acorda,
A nascente,
E entardece,
A poente,
Muda de cor
E de luz
E vê-se
De uma janela
Como algo
Que reluz.
E EU, A TI,
Com esta luz
Interior,
Com outra janela
Na alma,
Vejo-te sempre
A sul,
Antes do
Entardecer,
No infinito
Azul,
Nesse céu
Onde gosto
De te ver.
EU CANTO-TE
Aqui,
Do alto
Desta janela,
Deste meu lado
Da rua
Com alma
Cheia,
Mas nua,
Pra que me vista
De ti...
HÁ SEMPRE
Outra janela
Por onde te possa
Olhar,
A que é feita
De palavras
Lá no alto
Da montanha
Ou no embalo
Do mar...
............
Onde o poeta
Quiser,
Onde sentir
Que é nela
Que mais te pode
Encontrar.
JAS_Janelal052022PoePubRec

“A Outra Janela”. Detalhe

Artigo

RasPutin

Por João de Almeida Santos

DuginPub

“Dugin. Como o vejo”. Jas. 05-2022

I.

É conhecida a influência do místico Grigori Rasputin sobre a czarina Feodorovna e, por seu intermédio, sobre o Czar Nicolau II, o seu intenso activismo na corte, designadamente no andamento da própria guerra, graças aos favores da czarina pela sua acção sobre a sua saúde do seu amado filho. Mas também agora circulam notícias (aliás, confirmadas pelo próprio)  sobre a influência de um filósofo russo (mas este, ao que parece, mais virado para o ocultismo) sobre Putin, de nome Aleksandr Dugin. Um intelectual que pretende avançar com uma nova teoria política que se propõe suceder ao liberalismo, ao marxismo e ao nacionalismo, que “dominaram o pensamento político moderno”, tendo, no fim, vencido um deles, o liberalismo, que, no seu entendimento, viria a lançar “os fundamentos da globalização durante a década de noventa do século XX”. A sua proposta é esta, apresentada, por exemplo, no artigo La Cuarta Teoría Política como estrategia de lucha contra el capitalismo mundial, de 2021:

“A Quarta Teoria Política propõe-se ir mais além de uma tal definição eurocêntrica da política que é defendida pela Modernidade. Além disso, algo equivalente se pode conseguir através do regresso ao pré-moderno, quer seja europeu ou não europeu, e dar também um passo até ao futuro pós-moderno. Não através de um “pós-modernismo” liberal, que é uma continuação da hegemonia ocidental, mas sim através de um pós-modernismo alternativo e multipolar, que reconheça ao mesmo tempo a pluralidade de culturas e civilizações e o seu direito sagrado a construir as suas sociedades e sistemas políticos de acordo com o desejo da maioria da sua população, sem ter em conta standards ‘universais’ e especialmente os dogmas próprios do liberalismo moderno desumanizante e perverso que destrói todas as formas de identidade colectiva em nome de um individualismo absoluto” (In Revista “Política Internacional”, Vol. III, n. 4, 2021, 127-128; itálico meu).

II.

Dugin mistura várias influências, como por exemplo, as de Heidegger (o conceito de Dasein), de Julius Evola, de René Guenon, de Ananda Coomaraswamy ou de Alain de Benoist, o famoso teórico da Nova Direita francesa. Ou até a crítica da razão instrumental da Escola de Frankfurt .  Mas o verdadeiro centro do seu combate ideal é o “liberalismo ideológico”, a doutrina que inspira inapelavelmente as elites europeias. Um combate, pois, contra as “elites liberais politicamente correctas”, “a aristocracia globalista” (itálico meu), que conduziram a Europa à decadência. Um liberalismo que caminha para a progressiva “libertação do indivíduo de todos os vínculos com a sociedade, com a tradição espiritual, com a família, com o próprio humanismo”, que liberta o indivíduo do seu gender e, um dia, até da sua própria natureza humana. Refere-se, aqui, naturalmente, ao construtivismo e ao experimentalismo social, inimigos jurados de uma ontologia da tradição.

A Rússia diz, já não se revê nesta Europa, pois ela já não é “a pátria do logos, do intelecto, do pensamento”, sendo hoje “uma caricatura de si própria”. É ela, cristã ortodoxa, que se assume como a autêntica “herdeira da tradição romana, grega, bizantina”, fiel ao antigo espírito cristão. Na verdade, nós russos, diz Dugin, “somos mais europeus”  do que “estes europeus”, “somos cristãos, somos herdeiros da filosofia grega”. E acrescenta: “a Europa não pode compreender o acto político por excelência, a soberania, porque ela própria perdeu o controlo da própria soberania” (veja-se a entrevista de Dugin, a Giulio Meotti, “Il Foglio”, 02.03.2017). A realidade a que Dugin se refere é a Eurásia.

Mais claro do que isto não é possível. A Europa, para ele, é o rosto da decadência e o seu país, a Rússia de Putin, o rosto do futuro (embora reconheça que Putin não preparou a sua própria sucessão). Dugin filia-se no pensamento político da nova direita, representada sobretudo por Alain de Benoist, e tem como alvo principal do seu combate o liberalismo, considerado como o inimigo principal a abater. Mas não é novidade, este antagonismo, pois a mesma posição já tinha sido amplamente desenvolvida pelos românticos (mas também pelos marxistas) contra as Luzes, rejeitando a visão liberal por ser uma visão abstracta e descarnada do ser humano (Veja-se Santos, J. A., 1999, Os Intelectuais e o Poder, Lisboa, Fenda, pp. 71-87). Visão que fora traduzida deste modo por Joseph de Maîstre, nas Considerações sobre a França (Londres, 1797, p. 102, 2.ª edição):

“A constituição de 1795, tal como as predecessoras, é feita para o homem. Ora, não existe homem no mundo. Eu vi, na minha vida, Franceses, Italianos, Russos, etc.; até sei, graças a Montesquieu, que é possível ser persa; mas, quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei na minha vida; a não ser que exista sem que eu saiba” (https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6258824q/f114.item.texteImage).

III.

Dugin e os seus parceiros de pensamento colocam-se nos antípodas do liberalismo, rejeitando liminarmente o individualismo sem vínculos e contrapondo-lhe a inserção orgânica do indivíduo nas suas comunidades de pertença, a começar logo pelo vínculo natural. Esta posição está expressa com notável clareza numa conferência de Benoist em Palermo sobre “Les fondements anthropologiques de l’idéologie du profit” (https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/alaindebenoist/pdf/l_ideologie_du_profit.pdf). Cito duas passagens bastante elucidativas:

“La bourgeoisie s’est progressivement émancipée des valeurs artistocratiques et des valeurs populaires et, après avoir conquis son autonomie, n’a pas tardé à imposer ses propres valeurs à l’ensemble de la société. Comme chacun le sait, sur le plan politico-idéologique, cette évolution s’est confondue avec la montée de l’individualisme libéral, pour lequel le marché est le paradigme de tous les faits sociaux” (itálico meu).

“On ne peut dès lors s’étonner que la montée de l’individualisme libéral se soit traduite, d’abord par une dislocation progressive des structures d’existence organiques caractéristiques des sociétés holistes, ensuite par une désagrégation généralisée du lien social, et enfin par une situation de relative anomie sociale, où les individus se retrouvent à la fois de plus en plus étrangers les uns aux autres et potentiellement de plus en plus ennemis les uns des autres, puisque pris tous ensemble dans cette forme moderne de «lutte de tous contre tous» qu’est la concurrence généralisée. Telle est la société décrite par Tocqueville, dont chaque membre, «retiré à l’écart, est comme étranger à tous les autres». L’individualisme libéral tend à détruire partout la sociabilité directe, qui a longtemps empêché l’émergence de l’individu moderne, et les identités collectives qui lui sont associées. « Le libéralisme, écrit Pierre Rosanvallon, fait en quelque sorte de la dépersonnalisation du monde les conditions du progrès et de la liberté» (itálico meu).

Estas palavras – valores aristocráticos, valores populares, estruturas de existência orgânica, desagregação do laço social, anemia social, sociabilidade directa, identidades colectivas, despersonalização do mundo – seriam certamente subscritas também por Dugin. O mundo é hoje dominado pelos liberais e há, pois, não só que combater a sua hegemonia, opondo-lhe a condição natural e orgânica dos indivíduos, a sua pertença à natureza e às várias comunidades em que necessariamente se inscrevem. É esta integração orgânica, natural, geográfica, social, histórica e tradicional que lhe transmite os valores e o sentimento de pertença colectiva, o tornam elemento integrante e vivo de uma comunidade natural e histórica. A dimensão de valor da existência do indivíduo é garantida pela tradição e pelo património por ela transmitido. E estes valores remontam às origens da nossa própria civilização. Mas os liberais, pelo contrário, segundo Alain de Benoist, centram a sua estratégia sobre o corte com a natureza e com a tradição como forma, por excelência, de emancipação e única via de acesso a uma sociedade universal e cosmopolita (veja-se a sua recensão ao livro de Jean-Claude Michéa, Le Complexe d’Orphée, na revista Critica Sociale: Socialismo, nè sinistra nè destra: https://www.sinistrainrete.info/teoria/3729-alain-de-benoist-socialismo-ne-sinistra-ne-destra.html). Uma crítica clara e radical ao liberalismo, sobretudo na sua versão neoliberal.

IV.

Num recente artigo no “Observador” (de 14.05), “Valores Europeus? Que Valores?”, Jaime Nogueira Pinto alinha claramente com estas posições, mas evidencia um outro aspecto muito importante:

“Hoje, por razões diferentes, muitos europeus – à semelhança dos fundadores da Europa e dos povos e dirigentes dos países do Leste Europeu que, depois do fim da União Soviética e da libertação, entre 1989-1991, recuperaram a sua independência – estão longe, muito longe, da deriva pós-moderna dos ‘novos direitos humanos’ que algumas instituições e dirigentes políticos da União Europeia querem apresentar como ‘valores europeus’” (itálico meu).

E continua, perguntando quem os mandatou para: “lavrarem recomendações de bom e correcto comportamento político e ideológico e fazer depender do seu cumprimento a atribuição de subsídios ou a aplicação de sanções” (itálico meu)? Depois, em linha com o combate à assepsia ou anemia axiológica do liberalismo, mas avançando para a dimensão axiológica da sua proposta, faz uma incursão pela literatura grega e romana (Homero, Virgílio), pelas suas relevantes obras (Odisseia, Ilíada, Eneida), pelos seus principais protagonistas (Ulisses, Aquiles, Heitor, Eneias) e pelos valores que eles representam: o heroísmo, a liberdade, o realismo, o sofrimento, o combate, a transcendência, a lealdade, a beleza, a força física e a inscrição deste valores numa “ética de grupo”, na comunidade, na cidade, na tribo, na família e na sua relação com os deuses. Uma evidenciação dos valores originários clássicos e pré-modernos que foram elevados ao sublime pela ancestral arte da Europa clássica e que, supostamente, o liberalismo dos nossos tempos votou ao esquecimento ou mesmo à sua anulação.

Esta incursão de Nogueira Pinto completa, assim, a pars destruens das posições de Dugin e Benoist, aqui evidenciadas, de crítica radical e de desmontagem do liberalismo com uma pars construens, que evidencia os valores inscritos nas nossas comunidades orgânicas originárias de pertença e que a melhor tradição nos legou como património ideal imorredouro. Esta viagem pelo classicismo não representa uma hermenêutica estética, mas sim uma valorização política dos valores que a estética clássica pôs no centro da sua narrativa, dando assim corpo a uma alternativa à doutrina neoliberal, a mesma que, de resto, também é combatida pela esquerda, como se se tratasse de uma revisitação da velha oposição entre românticos e marxistas, de um lado, e iluministas, do outro.

V.

Fica assim clara a dupla orientação da nova direita, não só no combate directo àquele que eles consideram ser o seu adversário maior, o liberalismo vencedor sobre o socialismo e o nacionalismo (Dugin), mas também na recuperação dos valores que a estética grega e romana elevou em obras de arte imortais (JNP). E, todavia, ao ler-se o discurso de Benoist em Palermo, o que realmente se reconhece é o neoliberalismo mais puro, a fileira que vai de Adam Smith, abundantemente referido, a Friedrich von Hayek, sendo certo que a crítica, na verdade, não atinge o liberalismo social, que parte de Stuart Mill e vai até Norberto Bobbio. Pelo menos na cirúrgica reflexão de Benoist. É, pois uma posição clara, sendo certo que nesta visão do liberalismo esta doutrina inclui os identitários e os apóstolos do “politicamente correcto”, apesar de estas orientações serem objectivamente antiliberais nos seus postulados. Neste sentido, a crítica não atinge argumentativamente este seu alvo. Com efeito, os identitários, tal como esta nova direita, negam o tão criticado universalismo defendido pela doutrina liberal. De fora deste combate parece ficar a social-democracia, o que até não é de estranhar por ela ter sido historicamente também adversária das posições liberais, apesar de estas terem uma sua versão conhecida precisamente como socialismo liberal.

Mas não deixa de ser curioso que esta direita tenha colhido de forma tão certeira aquela que é a matriz moderna da nossa civilização, construída a partir do liberalismo, tão bem expressa na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (de 1789) e tão fortemente combatida quer pelos românticos quer pelos marxistas (Santos, 1999). Na verdade, o que eles combatem realmente é esta matriz, retomando a crítica romântica. Nada de novo, portanto.

Em suma, aquele que, generalizadamente, é apontado como o novo RasPutin, inspirador e ideólogo do novo Czar russo, é, pois, um claro seguidor expresso e confesso do pensamento da Nova Direita, em particular do pensamento de Alain de Benoist, o que, de resto, não é de estranhar vistas as afinidades electivas que se têm verificado entre esta direita e Vladimir Putin.

VI.

Perante esta vaga de direita que se está a instalar intelectualmente, e de forma muito sofisticada, um pouco por todo o lado, o que apetece perguntar é o seguinte: por onde andam os intelectuais orgânicos do socialismo democrático e da social-democracia em face deste avanço intelectual e político da nova direita a caminho de uma hegemonia ideológica nas democracias ocidentais? Até o pobre Gramsci tem sido convocado para o projecto, o que, de resto, não acontece pela primeira vez (veja-se a este respeito o meu texto em Neves, J., Org., 2006, Da gaveta para fora, Porto, Afrontamento, pp. 79-107, esp. 96-101). Não foi o próprio Viktor Orbán que já lhe deu voz política ao proclamar a sua luta pela liberdade contra o sufoco liberal? Desabafo, de resto, subitamente acolhido pelo nosso Jaime Nogueira Pinto. E não tivemos Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos, com o inefável Steve Bannon e a Cambridge Anaytica como preciosos ajudantes? E, antes, a experiência dos neoconservadores americanos com a tentativa de conseguirem a hegemonia nos Estados Unidos? E não temos, agora, ao que parece, a nova e perigosa teoria do “Great Replacement”, nos USA? Na verdade, o que está a ocorrer talvez seja um provável e grave erro de visão do establishment sobre o que é necessário fazer não só para garantir a nossa matriz civilizacional moderna, mas também para promover a sua actualização sem cair naquilo que os novos conservadores criticam tão radicalmente, ou seja, no construtivismo social e na sua correspondente tradução linguística. #Jas@05-2022.

DuginRec

Poesia-Pintura

O ESPELHO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Perfil de Mulher”.
Original de minha autoria.
Maio de 2022.
Silhueta2022_1505H

“Perfil de Mulher”. Jas. 05-2022

POEMA – O ESPELHO

“Tu prima m’inviasti verso Parnaso
a ber ne le sue grotte, e prima
appresso Dio m’alluminasti”.

Dante Alighieri. Purgatorio. Canto XXII.
ENCONTREI-TE
No Parnaso,
Lá em cima,
Intangível,
Sem te poder
Tocar
A não ser com
As palavras
De um poema
Sensível às cores
Da tua alma.
E VESTI-ME
Com elas,
As palavras,
E senti-me
Quente,
Afagado
No meu canto
Porque tu as
Escutavas.
SIM, ENCONTREI-TE
Lá em cima
No Monte.
Em ti
Eu via a costa
E via o mar
No horizonte
Com nitidez
E via
O meu mundo
Interior
Em sonhos
De azul,
A tua cor,
Em toda a sua
Nudez.
A NEBLINA
Cobria-te
O corpo,
Como Graça de
Botticelli,
Pra te refrescar
A alma,
Morrinha
Lenta e fina
De palavras
Húmidas
Caídas
Lá do alto
Do meu céu
De nuvens brancas...
.........
Sobre ti.
EU ERA
Espelho
Que te devolvia
Fantasia
Contra a
Petrificação
Fatal
Que espreitava
Nos olhares
Indiscretos
Do teu círculo
Vital.
MAS TU
Não sabias.
SUBITAMENTE,
Decidiste declinar
O espelho
Porque,
Dizias,
Começava
A embaciar-te
A alma.
E NÃO ERA DA
NEBLINA
Que te envolvia,
Mas dos desenhos
Que tuas mãos
Esboçavam
Timidamente
Nesse espelho
Já tão húmido
De ti.
E DEIXASTE
O Monte.
Desceste
Apressadamente,
Sob os olhares
Das mil górgones
Que sempre
Ameaçam
Petrificar
Os que vivem
No vale.
E sucumbiste.
Ou talvez não...
NO MONTE,
Disse
De mim
Para mim:
De tanto te reveres
No espelho,
Ficou-me, de ti,
O cintilante 
Reflexo.
E sabes o que se
Vê
Na minha superfície
Plana?
Beleza.
Toda a que me sobrou
Quando,
Em tristeza,
Desceste o Monte.
MAS ESTA NÃO
PETRIFICARÁ
Porque ficou
Guardada
No meu corpo
Vítreo
Onde todos
Se revêem
Sem saber
Que no reflexo
Levam, gravada
Em transparência,
A tua imagem...
...................
Embaciada.
E POR CÁ FIQUEI,
Espelho do mundo,
A olhar para
O escuro espaço
Sideral
À espera que um
Cometa
Me alumie
O caminho
Para te devolver
O teu reflexo
Original
E prosseguir
A caminhada
Solitária
A que me votaste.

Silhueta2022_1505HRec

Artigo

A MILITÂNCIA E A LIBERDADE

Por João de Almeida Santos

PS

A RECENTE EXPULSÃO do militante do PS, Maximino Serra, por ter integrado a lista de candidatos do “Nós, Cidadãos” à Câmara Municipal de Alcobaça, como último suplente, recordou-me o que escrevi, há uns anos, aquando do processo a 320 militantes pela mesma razão. Nunca tive conhecimento do desfecho do processo, embora creia que o desfecho terá sido o mesmo, a expulsão. Mas entendo que esta nova situação, pela sua particularidade, é um bom momento para voltar a reflectir sobre o assunto pelo que ele representa.

O caso concreto está enquadrado nos artigos 2, 3 e 13 dos Estatutos do PS, tratando-se da conjugação do exercício da liberdade de expressão com o dever de respeito pelas normas estatutárias do partido.

As notícias, na altura, davam conta de que trezentos e vinte militantes do PS estavam sob processo e em risco de expulsão por terem participado em listas de movimentos não partidários nas eleições autárquicas. A questão gerou alguma polémica no interior do próprio partido, como, aliás, esta decisão. Com efeito, alguém lembrava a candidatura presidencial de Manuel Alegre contra a candidatura de Mário Soares, apoiada pelo PS, sem que a este militante tenham sido aplicados os estatutos (embora, neste caso, em rigor, não fossem formalmente aplicáveis por se tratar de candidaturas não partidárias).  Era, pois, caso para isso, para levantar polémica, tratando-se de um partido que tem como valor fundamental da sua matriz a ideia de liberdade, avesso, pois, matricialmente, ao bastão administrativo. Mas há os Estatutos, o artigo 13. E é claro que a violação das regras de uma organização a que se pertence tem de ter consequências. É normal. E naquele caso houve. Militantes participaram em listas cívicas que se apresentaram nas eleições autárquicas em concorrência com o PS. E isto não deveria acontecer, à luz dos estatutos da organização a que esses cidadãos pertenciam. Uma organização que se preze deve agir em consequência. Também neste caso se verificou a mesma circunstância.

Mas (há sempre um mas), tratando-se de uma organização política e, ainda por cima, com as características do PS, a questão não é linear. E menos ainda quando se trata de um militante com a história de vida (política e partidária) de Maximino Serra.

ENDOGAMIA E “BOLSAS DE QUOTAS”

EM PRIMEIRO LUGAR, mais do que com as sanções, o PS deveria preocupar-se com as causas, as razões desta “deserção”, ou melhor, desta suspensão de militância nas suas fileiras no combate autárquico. Para, deste modo, poder dar vida a soluções estruturais para o problema. É que não se tratava só de trezentos e vinte, que já eram muitos, porque a maioria saiu mesmo do Partido, muitas vezes com as lágrimas nos olhos. Conheço alguns com quem travei batalhas. E com dezenas de anos de militância activa, de trabalho e de luta. A esses já não eram aplicáveis os Estatutos, simplesmente porque já lá não estavam. Foram silenciosamente embora, mas levando consigo os valores por que sempre lutaram, continuando socialistas (mas sem cartão). Acabaram em movimentos cívicos ou então politicamente desmotivados. Levaram a mesma luta para outros espaços de intervenção. Muitos dos casos tinham e têm a ver, no caso autárquico, com a imposição, às vezes incompreensível, de candidaturas pela direcção nacional. E, há que reconhecer, na verdade, no plano autárquico, trata-se de circunstâncias muito complexas e delicadas, onde as relações pessoais determinam em muito as próprias relações políticas.

Na verdade, há duas razões de fundo que explicam este transvase de militantes para a área da cidadania não partidariamente comprometida. A primeira reside na insuficiência ou inadequação dos mecanismos de selecção de dirigentes e de candidatos às instituições políticas de natureza electiva. O debate em torno das primárias, sobretudo de primárias abertas, tem vindo a ser suscitado por isso mesmo: necessidade de melhorar o sistema de selecção e de romper com o velho sistema. Ou seja, o controlo das estruturas dos partidos através de “bolsas de quotas” tem-se revelado politicamente desastroso porque permite a ascensão a cargos de alta responsabilidade política de pessoas manifestamente impreparadas e inadequadas, para usar a qualificação mais benigna, visto que esta ascensão acontece em muitos casos de forma ínvia e pouco transparente ou mesmo por imposição da direcção nacional. Um exemplo: há candidatos que ganham sempre as eleições internas, mas perdem sempre que se candidatam em eleições autárquicas. A ausência de mecanismos de selecção adequados e controlados (“bolsas de quotas” ou injunções administrativas na selecção dos candidatos) provoca muitas vezes fracturas graves e a opção por caminhos alternativos. E esta prática contribui para alimentar uma grave doença do sistema de partidos, ou seja, a endogamia, responsável pela perda de contacto dos partidos com a sociedade civil, mas também pela ocupação incompetente, primeiro do aparelho do partido, depois do aparelho de Estado, com as consequências nefastas que são conhecidas. E esta tendência tenderá a reforçar-se se não se alterar o sistema de selecção das candidaturas seja aos órgãos dirigentes do partido seja às instituições políticas de origem electiva. As primárias não são a chave milagrosa que resolve o problema, mas ajudam a resolver o problema das “bolsas de quotas” e da ínvia promoção dos respectivos angariadores.

Na verdade, grande parte dos movimentos autárquicos não partidários alimenta-se – do ponto de vista dos eleitores, mas também do ponto de vista dos candidatos ou dirigentes – de militantes que abandonaram ou que acabarão por abandonar os partidos. Voluntariamente ou expulsos. E há várias maneiras de abordar com seriedade este problema partidário, vista a dimensão que tem vindo a ganhar essa tendência da política autárquica que podemos designar por movimentos políticos autárquicos não partidários. Um crescimento progressivo, mesmo com uma lei que decididamente foi feita para lhes criar obstáculos e que é, sem dúvida, inconstitucional, pelo menos num dos seus aspectos, porque fere o princípio da igualdade. Mas há seguramente uma maneira de abordar o problema que não é desejável: a de apontar o dedo, desatando pura e simplesmente à bastonada moral e administrativa. Não só porque é feio e porque agudiza o problema, mas também porque indicia um comportamento simétrico, que acusa os mesmos defeitos que se atribui aos que deixaram de ser militantes ou que, num determinado momento, por razões que até podem ter uma clara explicação, sobretudo no plano autárquico, não seguiram o caminho traçado pelo partido, apesar de se manterem firmes nos seus valores políticos. Uma posição destas sabe a visão de seita, pouco compatível com a tradição, a dimensão e a vocação de um grande partido como o PS. E até porque os partidos políticos, mais do que fazerem juízos morais e negativos sobre a diferença, as razões da dissidência ou os comportamentos políticos, incentivando a “caça às bruxas”, seja por que via for, têm, isso sim, a responsabilidade de compreender a fundo o que se passa à sua volta, respondendo com eficácia aos problemas, designadamente aos internos. Curiosamente, este processo administrativo contra os trezentos e vinte e, agora, este (e outros haverá na sequência das autárquicas de 2021) fez-me lembrar a questão catalã, muito viva na altura (e agora de novo agitada pelas famosas escutas através da tecnologia Pegasus), respeitando naturalmente as devidas proporções. É claro que os independentistas violaram a constituição de 1978, acabando, por isso, na prisão ou em fuga. Mas temos a certeza de que esta é a melhor maneira de resolver um problema que envolve milhões de catalães? Que foi feito da política? Por que razão cresceu o independentismo na Catalunha? Curiosa a expressão independentismo, porque também entre nós o que se está a passar é um transvase precisamente para os chamados movimentos independentes, com pequenas catalunhas autárquicas na nação partidária. O Porto, a Barcelona do PS, por exemplo. E confesso que a minha leitura das últimas eleições autárquicas, apesar de ganhas claramente pelo PS, não é tão optimista como a visão oficial. Um exemplo: no distrito da Guarda o PS ficou reduzido, na autárquicas de 2021, à presidência de três Câmaras (em catorze), número igual precisamente ao dos movimentos autárquicos não partidários. Mereceria uma atenta leitura o processo de selecção dos candidatos nestes catorze municípios, designadamente no da Capital do distrito.

Em relação ao caso em apreço, a da fuga de militantes para a concorrência não partidária, não seria melhor que o secretário-geral repensasse a sua posição sobre as primárias e promovesse também um repensamento mais profundo sobre a identidade organizacional do partido e da sua própria relação com a cidadania? Com a actual maioria absoluta na AR e no início dos mandatos autárquicos, o processo de reflexão, neste sentido, poderia muito bem ser desenvolvido com tempo suficiente para encontrar um caminho virtuoso.

SENTIMENTO DE PERTENÇA

A SEGUNDA RAZÃO é mais de fundo e tem a ver com a natureza do partido contemporâneo, especialmente se comparada com a do partido da primeira metade do século XX, com o alargamento do sufrágio universal. Na verdade, naquele período os partidos nasceram para organizar politicamente as várias sensibilidades existentes na sociedade, facilitando a participação política através da mediação partidária, extremamente importante num período em que à escassez quantitativa e qualitativa de canais de informação correspondia uma generalizada iliteracia política, mas também a adopção do sufrágio universal, ou seja, o alargamento da base eleitoral. Fomentar o sentimento de pertença tornou-se extremamente importante para dar vazão à participação política. Numa palavra: votava-se na família política, guiados pela ideologia, e o erro seria residual. Era fácil, eficaz e permitia o alargamento exponencial da participação política, numa época em que se estava a consolidar o sufrágio universal e, portanto, se estava a alargar a base eleitoral das democracias. Tornava-se, assim, possível organizar politicamente a sociedade civil, dando-lhe depois uma coerente expressão institucional.

Ora, o que entretanto aconteceu, com o desenvolvimento da imprensa, do audiovisual e, agora, da Rede, foi uma expansão gigantesca dos canais de informação e de comunicação, numa verdadeira democratização do acesso à informação e da intervenção participativa directa da cidadania na comunicação e na política, com uma progressiva desintermediação destes processos, ainda em curso. Sobretudo, agora, na era da Rede, embora a expansão da comunicação tenha conhecido uma aceleração incrível nos anos noventa do século passado. Com efeitos evidentes na cidadania, em ambos os sentidos. E, assim, o sentimento de pertença relativizou-se (este processo começara nos anos cinquenta,  nos USA, com o advento da televisão), dando lugar a uma participação agora também fundada na informação e no conhecimento e na possibilidade de auto-organização e de automobilização da cidadania. Ou seja, começou a emergir uma cidadania cada vez mais independente dos processos de intermediação comunicacional e política. Mas este sentimento de  pertença desapareceu de vez, tornou-se residual, desnecessário? Não, mas passou a só intervir parcialmente nas escolhas e decisões políticas dos cidadãos em geral. Continuando a ser muito importante, relativizou-se e deu lugar a uma sua afirmação mais autónoma, mesmo da cidadania que continua a partilhar uma pertença política. Este facto tem fortíssimas implicações no sistema de partidos, designadamente, na natureza da pertença e da própria militância, ou seja, aumenta o grau de independência e de autonomia do cidadão comprometido partidariamente e diminui o peso da organicidade envolvente e decorrente dessa pertença. Acontece com os partidos aquilo que já está a acontecer com os media: o cidadão pode auto-organizar-se e automobilizar-se prescindindo dos órgãos de intermediação. O que pode acontecer parcialmente ou radicalmente, pelo abandono dos partidos. Por isso, estes têm de compreender a nova situação, diminuindo a rigidez da organização e das normas de pertença se não quiserem ver a sua base orgânica diminuir substancialmente e alastrar o sentimento de rejeição da “mordaça” estatutária e comunitária. De resto, esta rigidez tem vindo a diminuir sob outros aspectos, designadamente com a sua passagem a “catch-all-parties”, abandonando a sua identidade como “partidos-igreja” de massas. A pertença a um partido, que antes era condição de liberdade política, se não for regulada de acordo com a nova realidade pode configurar-se mais como limitação da liberdade do que como pleno exercício de cidadania. A pertença passará a ser mais motivada por razões de interesse pessoal do que por razões ideais. A ética de convicção, mas também a ética pública cederão ao interesse pessoal e estes partidos acabarão por ser meras federações de interesses pessoais ou organizados visando a conquista do aparelho de Estado para próprio benefício. A fragmentação do sistema de partidos tem muito a ver com a ausência de resposta a esta dinâmica.

Que consequências resultaram, pois, deste processo? Uma consequência é certa: o sentimento de pertença passou a determinar só uma parte da decisão política e eleitoral porque a outra parte passou a resultar inevitavelmente da informação, do conhecimento e da reflexão pessoal. E um partido como o PS tem o dever de promover precisamente esta segunda dimensão, atenuando a dimensão orgânica e administrativa, porque sempre se assumiu como um herdeiro político do iluminismo, ou seja, aquele que tem como horizonte da sua estratégia a máxima de que fala o Kant de “Was ist Aufkaerung?”: “sapere aude!”. Ter a coragem, a audácia de saber. Uma saída – Ausgang – do preconceito para as luzes. Há, a este propósito, uma afirmação de Foucault, no seu texto de diálogo com Kant, “Qu’est-ce que les Lumières?”, que sintetiza tudo o que acabo de dizer: “a Aufklaerung é simultaneamente um processo de que os homens fazem colectivamente parte e um acto de coragem a efectuar pessoalmente”. Na linguagem de hoje: uma cidadania esclarecida e emancipada, onde a dimensão comunitária nunca poderá anular a afirmação pessoal, e muito menos à bastonada disciplinar.

CONCLUSÃO

É DAQUI que os partidos têm de partir, repensando a sua relação com a cidadania, seja ela a da militância ou não.

Ora, se pensarmos a questão dos trezentos e vinte (e de todos os outros que saíram silenciosamente) e agora este caso incrível de um militante com 87 anos e cerca de cinquenta de empenhada militância na causa partidária e democrática, com estas duas razões é fácil tirar conclusões: o excesso de endogamia juntamente com a relativização estrutural do sentimento de pertença (tal como era concebido) está a produzir efeitos disruptivos no sistema de partidos que urge assumir e para os quais é necessário encontrar respostas estruturais, designadamente no plano da identidade organizacional e das relações com a cidadania. Ou seja, tratando-se de um problema político não pode ser resolvido liminarmente com sanções administrativas ou com cruzadas morais.

Mas, no que toca ao PS, se até a simples questão das primárias se encontra adormecida como será possível responder a um problema que tem dimensões de futuro? Mas, ainda assim, mantenhamos a esperança.

PSRec

Poesia-Pintura

VEJO-TE NO POEMA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Ponto Cardeal”.
Original de minha autoria.
Maio de 2022.
Cesto2022

“Ponto Cardeal”. Jas. 05-2022

POEMA – “VEJO-TE NO POEMA”

VEJO UMA ESFERA
Tingida
De cores
Que me faz
Vibrar
Os sentidos,
Mas há um
Silêncio
Frio
Que me chega
Lá de longe...
...........
Então parto
Para o poema,
Refúgio
Dos meus pecados,
Onde vivo
Como monge.
MAS TREME O CHÃO
No poema
Quando passas
Na estrofe,
Rápida como o vento
Que tudo o resto
Varreu
E em silêncio
Esvoaças
Num círculo
Que é só meu.
MEU SILÊNCIO
É composto
De palavras,
Diz muito mais
Do que quer
E se o poema
Te abriga
Nascem desenhos
Perfeitos
Do teu perfil
De mulher.
MESMO QUE TE ESCONDAS
Ou finjas
Que não és tu,
Te diluas na estrofe
Onde sempre
Fico nu,
Sinto sempre
Esse teu rasto,
Invisível
Como tu.
E TREME A TERRA
Quando passas
No desenho
Que te ofereço,
Mas não te vejo
Tremida.
O traço
Não é banal
(Como sabes),
É nele que eu
Te dou vida.
É FORTE
O meu desejo
De um encontro
Virtual,
Invocar-te
Num poema
Como musa
Ideal
E mesmo que
Os versos
Tremam
Serás sempre,
De certeza,
O meu ponto
Cardeal.
Cesto2022Rec

“Ponto Cardeal”. Detalhe

Ensaio

MUDAM OS TEMPOS E A POLÍTICA TAMBÉM

Por João de Almeida Santos

PosseJB3 copiar

“S/Título”. Jas. 05-2022

Mudam-se os tempos, mudam-se 
as vontades,/ Muda-se o ser, 
muda-se a confiança;/
Todo o mundo é composto 
de mudança,/
Tomando sempre novas 
qualidades.

Continuamente vemos 
novidades,/ Diferentes em tudo 
da esperança;/
Do mal ficam as mágoas na 
lembrança,/
E do bem, se algum houve, 
as saudades. (...)

E, afora este mudar-se 
cada dia, / Outra mudança faz 
de mor espanto:/
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA, 9 de Maio, é o dia da Europa. E, mais do que comemorar este dia, pois não é tempo de comemorações, vista a grave crise que atravessamos, o que importa é reflectir não só sobre o Projecto Europeu, o que muitos farão, mas também sobre a situação política interna dos Estados-Membros da União. É o que farei.

A EXTREMA-DIREITA 
EM FRANÇA E EM ITÁLIA

EM DOIS dos maiores países da União Europeia, a França e a Itália, a situação política é muito esclarecedora sobre as tendências políticas de extrema-direita que estão a ganhar corpo e consistência no coração da Europa. Não falo do crescimento do VOX em Espanha (hoje com cerca de 15%, mas em sondagens recentes já com cerca de 20%, aproximando-se do PP de Feijóo), do Alternative fuer Deutschland (com cerca de 10%), na Alemanha, ou do CHEGA (com cerca de 7%), em Portugal. Falo de algo muito mais consistente. Marine Le Pen, em França, obteve 41,46% dos votos nas recentes eleições presidenciais, o mais alto score eleitoral jamais alcançado pela extrema-direita neste país. Em Itália, o segundo e o terceiro partidos, Fratelli d’Italia (os legítimos herdeiros do fascismo italiano, da senhora Giorgia Meloni) e  a LEGA, de Matteo Salvini (de extrema-direita, herdeira da LEGA NORD, do famoso Senatur Umberto Bossi), exibem quase 38% nas sondagens mais recentes. FdI tem praticamente a mesma percentagem do Partito Democratico, o primeiro partido italiano (com 21,5%), sendo a diferença somente de cerca de 0,9 pontos percentuais (20,63%), na média de 13 sondagens recentes realizadas por 8 empresas diferentes. Estamos a falar de um score eleitoral consistente que, aliado ao de Forza Italia, direita liberal, atinge cerca de 46%. Ou seja, a direita moderada quase desapareceu em Itália, tendo, em França, desaparecido quer a direita moderada quer o centro-esquerda. A polarização é hoje entre o centro e a extrema-direita, tendo, todavia, a extrema-esquerda de Mélenchon atingido um score eleitoral muito significativo (cerca de 22%). E isto tem algum significado, não só internamente e não só para a esquerda, mas para toda a União. Lembrá-lo é muito importante sobretudo para os que parece estarem instalados e demasiado autoconfiantes nos resultados eleitorais que vão conseguindo. A velocidade da política aumentou. Basta lembrar o que aconteceu em 2017, e somente no arco de um ano, em França, com o fenómeno Macron. E lembrar também que um exercício político que se esgote na lógica da “governance”, na mera gestão da máquina do Estado e nos resultados de uma política financeira assente exclusivamente na cobrança fiscal, mesmo quando esta máquina (não a fiscal) dá sinais de ineficiência e desperdício, e sem um claro modelo de desenvolvimento, não conseguirá mobilizar a cidadania para um envolvimento empenhado e confiante na tarefa colectiva. Pelo contrário, a tendência será a de a sociedade se deixar envolver pela sereia da política populista e pelo regresso da velha política de apelo aos valores iliberais do velho romantismo político e ao regresso do organicismo vestido com as novas roupagens soberanistas do velho nacionalismo. Para isso muito têm contribuído também as novas ideologias identitárias anti-liberais e a agressiva vigilância moral sobre as linguagens, uma tendência que aspira a tornar-se hegemónica e que até já entrou no perigoso terreno da sua normalização jurídica, dando consistentes sinais de tentativa da criminalização da opinião, mesmo relativamente a instâncias políticas que era suposto gozarem de imunidade no exercício da opinião. Creio que é aqui que, por exemplo, poderá ser incluída a tentativa em curso de criminalizar a posição do PCP em matéria de política internacional (sobre o conflito Rússia-Ucrânia). A perigosa e sufocante avançada destas tendências a caminho da hegemonia alimentam e alimentarão cada vez mais a extrema-direita, que se lhes opõe frontalmente, mesmo no que elas possam ter de aceitável e de civilizacionalmente progressivo. Com este combate, ela crescerá mais do que já cresceu. Até invocando a liberdade. É muito sugestivo, a este respeito, um recente artigo de Jaime Nogueira Pinto (“A liberdade anti-liberal de Victor Orbán”, Observador, 09.04.2022). “O que se passa”, diz JNP, “é que, por um processo gramsciano de hegemonia cultural, a ortodoxia da correcção política adoptou os conteúdos e os caminhos do marxismo cultural. E um país, um povo e um governo que se proclamem nacionalistas, conservadores e populares são uma coisa inadmissível para a harmonia e equilíbrio das distopias em formação” (itálico meu). Sem discutir a correcção desta interpretação e de outras afirmações sobre Gramsci (como, por exemplo, a da actualização do marxismo-leninismo, absolutamente incorrecta), acaba o artigo a citar, a propósito da liberdade, Victor Orbán, acusando os liberais de um mal que, de facto, não lhes pertence: “Porque os liberais, que antes eram partidários do pluralismo, querem agora ter a hegemonia da opinião. Sim, sou hoje um lutador pela liberdade contra os liberais“. Mas a verdade é que os identitários e os apóstolos do “politicamente correcto” não são liberais, mantendo com os “iliberais” uma afinidade e um organicismo que estão nas antípodas do liberalismo.

O QUE É A EXTREMA-DIREITA?

O QUE É, afinal, esta extrema-direita? Falar de populismo começa a querer dizer quase nada, de tão gasta estar a palavra. E também porque a palavra povo, de onde deriva, pouco representa, contendo, em amálgama, diversos segmentos sociológicos indiferenciados, que lhe dão substância. De resto, a noção de povo foi identificado de forma diversa ao longo da história, indicando, todavia, preferencialmente as classes subalternas. Contrapunha-se-lhe, antes, a aristocracia e, depois, as elites. Com o direito de voto o conceito tendeu a alargar-se e passou a identificar-se com o eleitorado em geral. O mesmo vale para a palavra público, quando usada para designar a chamada “democracia do público”, uma fórmula realmente um pouco desviaste. Mais correcto é, pois, usar a palavra “cidadania” quando nos referimos à política por ser um conceito que lhe é totalmente funcional. Cidadão é o elemento do Estado político, o seu fundamento, a base a que está referida a actividade política.  Assim sendo, como devemos caracterizar a extrema-direita, na sua inevitável diversidade nacional? Nacional-populismo? Neopopulismo (o populismo digital)? Plutopopulismo?  Populismo tout court? Estes conceitos pouco dizem se não os caracterizarmos no concreto. É o que vou tentar, mas referindo-me à, mais unívoca, noção de extrema-direita.

E talvez seja caso de dizer que ela, a extrema-direita, com reservas mentais, a) aceita a democracia representativa, fazendo dela, todavia, uma interpretação autoritária e restritiva, contestando abertamente a sua matriz liberal e valorizando, pois, mais a sua componente orgânica; b) é inimiga figadal do politicamente correcto, interpretando um sentimento generalizado de recusa deste autoritarismo iliberal da linguagem, que, cada vez mais, tende a ser convertido em normas legais, só lhe faltando mesmo os famosos tribunais plenários, agora justificados em nome da liberdade (candidatos ou candidatas a procuradores-gerais, a pequenos vichinskys, não faltariam, até porque alguns, ou algumas, já vão exercendo essa função nos seus perímetros de actuação profissional);  c) privilegia um certo cesarismo e o carisma, centrando-se muito na figura do líder, oráculo do sentimento profundo do povo oprimido; d) usa com eficácia e sem preconceitos as novas tecnologias para conseguir o consenso, como aconteceu com a campanha presidencial de Trump e com a empresa Cambridge Analytica; e) é soberanista, nacionalista e populista, tendo como mote central a devolução ao povo do poder confiscado pelas elites liberal-democráticas; f) é ambígua sobre o destino da União Europeia, interessando-lhe apenas os seus fundos estruturais, defendendo uma Europa-fortaleza e das nações e propondo, portanto, uma União minimalista em competências e fortaleza em fronteiras – uma ambiguidade equivalente, pois, à que mantém relativamente à democracia representativa; g) é securitária, sobretudo em função da diferença; h) mantém relações amistosas com os poderes ditatoriais, tendo generalizadamente privilegiado a relação com a Rússia de Putin (por exemplo, Marine Le Pen e Matteo Salvini, tendo até, neste caso, sido, em 2017, firmado um acordo escrito de cooperação entre a LEGA e o partido de Putin); h) explora as fraquezas sociais do sistema, a ineficiência do Estado, a crise de representação e o exaurimento do tradicional sistema de partidos; i) usa com inteligência a teoria do agenda-setting, propondo temas altamente fracturantes para polarizar a atenção social sobre si; j) tem bem consciência do novo tipo de cidadania emergente e das potencialidades que as novas tecnologias oferecem para a sua mobilização; l) é tendencialmente negacionista em relação à transição ecológica; m) define-se mais pela negativa do que pela positiva, escondendo as suas filiações no seu património histórico doutrinário, procurando iludir as suas raízes históricas no totalitarismo; n) pratica o “entrismo” democrático de modo a conquistar por esta via o poder. E assim por diante.

O MAINSTREAM TRADICIONAL

PELO CONTRÁRIO, o mainstream do tradicional sistema de partidos mantém uma linha de rumo igual à do passado sem fazer um sério esforço de reconhecimento do que está a mudar nas sociedades de hoje e, consequentemente, a sua metabolização política para poder dar novas respostas de natureza organizacional, doutrinária, comunicacional, e relativas também às próprias classes dirigentes. Na verdade, o que verificamos é que: a) persiste a velha endogamia e pratica uma política sem alma, sem valores capazes de mobilizar a cidadania e sem uma clara estratégia inovadora de desenvolvimento integrado, para além da estratégia da transição energética, da transição digital e da solidariedade social, comuns a todas as forças, pelo menos em retórica; b) adopta institucionalmente, e cada vez mais, a linguagem do politicamente correcto e tende progressivamente a transpô-la para normas legais e para patamares sancionatórios, pondo seriamente em crise a velha e sagrada tradição que já vem da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e da Primeira Emenda da Constituição americana, de 1791; c) a política tende cada vez mais a ser reduzida a “governance”, liofilizada, vendida em pacotes publicitários, eventualmente em marketing 4.0, transformando-se os governos em verdadeiros conselhos de administração, onde o primeiro-ministro é o administrador-delegado; d) pratica uma política mais reactiva do que proactiva, ou seja, limita-se a correr atrás do prejuízo; e) a burocracia do Estado tende cada vez mais a impor de forma difusa condicionamentos administrativos à livre acção do cidadão, bloqueando-lhe e onerando-lhe a iniciativa (colocar uma simples rede ovelheira a delimitar um terreno próprio pode implicar hoje três licenças diferentes);  f) vive dos recursos que resultam do financiamento do Estado, em função dos resultados eleitorais, e do emprego na sua imensa máquina administrativa; g) convive (em Portugal) pacificamente, e de consciência tranquila, com a existência de dois tipos diferentes de cidadãos, os que trabalham para o Estado – emprego para a vida e 35 horas de trabalho semanal, para cerca de 733 mil empregos na AP – e os que trabalham no sector privado, a imensa maioria (a população activa é de cerca de 5, 152 milhões) – emprego não garantido nas mesmas condições e 40 horas de trabalho semanal (uma bela distinção entre cidadãos de primeira e cidadãos de segunda); h) vive também em regime de extrema personalização da política na figura do líder do momento, acomodando as estruturas do partido às clientelas da liderança em detrimento de um autêntico corpo orgânico autónomo – este processo é bem visível na formação das listas de candidatos a deputados; i) os técnicos de comunicação e de marketing substituem a militância na produção das campanhas eleitorais, que, mesmo assim, são os únicos momentos de exercício efectivo da militância; j) os partidos tornam-se federações de interesses pessoais e particulares que usam a marca-partido sobretudo como modo de vida, em clara violação dos imperativos da ética pública; l) perdeu consistência o seu tradicional corpo orgânico  como mobilizador activo da sociedade civil, tendo-se desvalorizado o papel da militância orgânica e das respectivas estruturas durante o período entre eleições.

As suas posições podem muito bem ser resumidas, como exemplo, no plano da União Europeia, na ausência de solução para o actual impasse, que parece resolver-se somente à medida de cada crise que surge, para logo se verificar um ulterior e lamentável adormecimento. Corre-se atrás do prejuízo, também aqui. E as crises não são assumidas como oportunidades, mas tão-só como riscos a evitar.

O EQUÍVOCO

A EXTREMA-DIREITA, pelo contrário, tem sabido falar a linguagem da política (só assim se explica o seu sucesso) e, desse modo, ganhar consensos que devem ser tomados na devida conta, sim, mas sem transformar toda a política num combate contra ela, mantendo-a constantemente no topo da agenda, em vez de se reanimar ela própria com respostas políticas eficazes às expectativas da cidadania, com a promoção de uma verdadeira ética pública e um esforço de aperfeiçoamento dos mecanismos de deliberação e de decisão política, com novos canais de comunicação interventiva com a cidadania, com a eficiência da máquina do Estado (que não seja exclusivamente para cobrar), com a infraestruturação da sociedade para promover condições de auto-afirmação económica, política, social e cultural da cidadania,  com o fim da retórica da solidariedade (para fins eleitorais e de conquista ou manutenção do poder de redistribuição de recursos do Estado) como se esse fosse o único objectivo do Estado e dos partidos, com a diminuição dos impostos que sufocam a classe média (quase metade dos que declaram rendimentos não paga IRS) e a promoção da educação como único fundamento eficaz para a construção de uma sociedade melhor. O combate é necessário, sim, mas mais necessária é uma lúcida resposta ao que já flui na sociedade e que não encontra resposta nos actuais protagonistas políticos. O crescimento da extrema-direita é a este défice que se deve.

OS PARTIDOS EM PORTUGAL

EM PORTUGAL, O PSD, partido de centro-direita (não de centro-esquerda), depois de mais uma derrota nas legislativas de Janeiro de 2022, está à procura de uma nova liderança, indo a votos a 28 de Maio (curiosa data, esta, para um partido de centro-direita reiniciar uma nova fase da sua vida). É um dos partidos do sistema (da alternância) e tem-se revelado incapaz de apresentar uma alternativa sólida ao PS de António Costa, em parte porque sobrepôs a sua estratégia à deste partido, não se diferenciando e deixando o flanco conservador ou de direita totalmente livre para novos partidos que aspirassem a interpretá-lo eficazmente. O que viria a acontecer de forma significativa, com o enorme crescimento do CHEGA e da Iniciativa Liberal. Na recente entrevista de Luís Montenegro ao Diário de Notícias (29.04.22, pp 4-7) não encontrei, todavia, qualquer referência à necessidade de adaptar o partido à mudança, de revisão do que não está bem, o que, de resto, ficou bem expresso na reiterada crítica ao “erro gravíssimo, diria mesmo um erro clamoroso” do PSD: “andar com problemas existenciais (…) andar com crises existenciais”, com “complexos ideológicos”. Ora, fica dito com clareza que, se for líder, não se irá ocupar daquilo que, no meu entendimento, é mesmo o problema central do PSD. Luís Montenegro fica-se pela pragmática, pela qualidade da liderança e pela força do seu aparelho autárquico e partidário territorial. Não se preocupa com o problema da representação política, ficando-se mesmo por duas ou três propostas de natureza programática: por exemplo, o tecto fiscal para os jovens entre os 25 e os 35 anos e a alusão ao gravíssimo problema da habitação, quer na óptica da aquisição quer na do mercado de arrendamento (a que, estranhamente, não é dedicada uma palavra sequer no discurso de Moreira da Silva). No essencial, Montenegro continuará a marcha actual sem sobressaltos nem angústias  existenciais, reintroduzindo no partido apenas uma elevada dose de pragmatismo. Pelo contrário,  o discurso de Moreira da Silva na apresentação da sua candidatura, embora tivesse reconhecido que o PSD não tem um problema de identidade, definindo-o através da tradição social-democrática e liberal-social (palavras suas), pretende, todavia, fazer uma actualização estatutária e das linhas programáticas do partido, porque, reconhece, o mundo mudou. E não o faz por menos do que o que fizeram Bill Clinton ou Tony Blair (e David Cameron, com a linda iniciativa que levou ao BREXIT, digo eu). Refundar o partido, sim. Clinton com os New Democrats e Blair com Third Way.  Nada menos, até porque, diz, se verificam circunstâncias equivalentes. E, no meu entendimento, faz bem, seja ele capaz de levar por diante algo parecido com o que os referidos líderes fizeram. No essencial, pretende identificar o PSD como um partido-movimento orientado por causas, ficando, pois, claro que o que dominará serão as causas e não a sua incerta matriz ideológica – que, afinal, também parece pouco importar a Montenegro -, dando palco, em particular, às causas da sustentabilidade ecológica, da transição digital e da economia azul. Se esta orientação indicia uma compreensão de que é preciso fazer alguma coisa para que nada fique na mesma, todavia, parece-me pouco para um combate de reconquista do eleitorado perdido para o CHEGA, para a Iniciativa Liberal e também para o PS, ainda por cima sabendo-se que a tendência de fundo que se está a manifestar um pouco por todo o lado é, sim, a fragmentação do sistema partidário, pelas razões que acima referi. Mas também não é clara esta compatibilização de um partido-movimento com a identidade orgânica histórica do PSD, ainda por cima tendo ficado por definir também as causas específicas (devidamente priorizadas e limitadas em número) por que se baterá, para além daquelas que hoje são verdadeiramente comuns e que não diferenciam este partido de outros. A ideia de partido-movimento, ou de partido-plataforma, a sua versão mais actualizada, tem implicações que interferem necessariamente na sua identidade orgânica, por exemplo, como partido de militantes, e na sua base social, que se torna mais fluida e móvel. E isso terá também implicações na sua estrutura dirigente. Seguramente, esta redefinição alterará a sua identidade, o que contradiz a sua afirmação inicial de que o partido não tem um problema de identidade. Pelo contrário, é porque tem que se torna necessário avançar para a forma partido-movimento start-up. Mas, sinceramente, não sei se o PSD será o partido adequado para esta forma-partido. Se com a sua história e a sua complexidade estrutural poderá adquirir a agilidade e a flexibilidade de um movimento. E também não sei se a fórmula, sugerida por Moreira da Silva, de um PSD com uma “cultura de start-up”, à parte o vanguardismo que pretende sugerir com o uso político desta palavra, será a mais indicada por parecer estar a importar uma linguagem própria da economia empresarial para um corpo vivo com exigências de muito maior complexidade e delicadeza, como são as de um partido. Mas se o objectivo for o de indicar refundação de tipo empresarial, recomeço ou reinício (como na origem a palavra indica), então, mais uma vez estará em contradição com a questão da identidade ou, de outro modo, o recomeço não será suficientemente inovador, mas tão-só de tipo transformista: mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. Mesmo assim, sugiro a Moreira da Silva que peça conselho ao novo Secretário de Estado do Trabalho, Miguel Fontes, que do assunto parece ter vasta experiência.

Assim, com estas limitações e sem que esteja ainda suficientemente clarificada esta linha de rumo inovadora, não me parece que o PSD, com a bagagem doutrinária que ainda carrega (e que, com Montenegro, manterá), esteja pronto para firmar uma robusta identidade política aliada à definição de concretas prioridades programáticas capazes de marcar com nitidez o terreno político em que se move, disputando o terreno eleitoral em que cresceram quer o CHEGA quer a Iniciativa Liberal. Não se alterando a forma-partido, mas assumindo uma sua faceta mais conservadora e mais liberal, diria mesmo liberal-democrática, abandonando as pretensões de se afirmar como partido social-democrático, ou seja, a linha derrotada de Rui Rio, até porque essa é a área em que se move o PS, o PSD poderá aspirar a reverter a tendência que se vem consolidando e evitar o provável crescimento das duas forças emergentes, que mais cedo que tarde o obrigariam a uma política de alianças para chegar ao governo do país. O facto é que estes dois partidos recentes podem exibir hoje 673 mil votos e 20 deputados na Assembleia da República, mostrando claros indícios de possível crescimento.

Por outro lado, à esquerda, e atendendo ao percurso pouco compreensível que o PCP tem vindo a percorrer e que poderá levar à sua efectiva irrelevância política, o Bloco de Esquerda poderá aproveitar a situação reflectindo a fundo sobre o seu posicionamento político e marcando com nitidez o seu espaço relativamente a um PS que se move nos carris tradicionais da social-democracia sem visivelmente incorporar as novas dinâmicas que decorrem da nova cidadania e da nova sociedade digital e em rede. O seu eleitorado confina com o do PS, mas não conseguirá atraí-lo mantendo uma identidade e uma orientação maximalistas. Este, sim, poderia estruturar-se como partido-plataforma ou movimento-plataforma em linha com as mais avançadas formas de organização e mobilização do imenso povo da rede (mas não só, pois precisa absolutamente do corpo orgânico que não tem),  afirmando-se à esquerda e brandindo os valores da cidadania esclarecida em vez de continuar com a ladainha do desgraçadinho e do tudo para todos menos para os execrados capitalistas (veja-se o capítulo “O partido-plataforma” entre despolitização e novas formas de participação: que possibilidades para a esquerda na Europa?”, da autoria de Emiliana de Blasio e Michele Sorice, in  Santos, J. A. 2020, Política e Democracia na Era Digital, Lisboa, Parsifal, pp. 71-101).

ENFIM, A POLÍTICA

A CLARIFICAÇÃO IDEOLÓGICA é muito importante porque define uma identidade política, um modo de relacionamento com a cidadania, uma orientação programática ancorada numa ideia de sociedade e, sim, um projecto de sociedade. E, para além de tudo isto, define também um modo de encarar a política em si, como exercê-la, a relação com a ética pública, a determinação do espaço de afirmação da ética da convicção e do espaço da ética da responsabilidade, a relação entre direitos e responsabilidades (onde a reivindicação dos direitos nunca corresponde a igual reivindicação de responsabilidades, quando há uma excessiva fixação nas chamadas classes subalternas privadas de direitos, o que hoje é já muito relativo), as fronteiras da liberdade responsável, a educação para a cidadania e o papel da ciência e da tecnologia no crescimento e no desenvolvimento. Pois é. A política não se resolve somente com cardápios programáticos e boas intenções ao serviço do sucesso eleitoral. A política, a boa política é a que sabe que uma sociedade justa, eficiente, harmoniosa e bela deve ser promovida pelo investimento na formação do indivíduo e, depois, na formação do cidadão. Uma sociedade de invejosos, de brutamontes, de mal-educados, de burocratas, de polícias dos costumes e da linguagem e de oportunistas nunca será uma boa sociedade. A boa sociedade só poderá ser promovida por uma política que promova eficazmente os bens públicos essenciais a um desenvolvimento harmonioso da sociedade e que se exija a si própria comportamentos virtuosos e exemplares.

A evolução do PSD interessará muito ao PS pois também ele terá que preservar o seu espaço político de referência, o centro-esquerda. E fá-lo-á com sucesso duradouro quando tiver a ambição de se tornar um partido hegemónico, não no sentido meramente político, mas no sentido ético-político e cultural, o que, infelizmente, não me parece que esteja a acontecer, ao contrário do que parece sugerir Nogueira Pinto (ainda por cima com a carga gramsciana que refere, embora também me pareça que ele alude sobretudo a uma ala do próprio PS e também ao Bloco). Mas interessar-lhe-á também a evolução do PCP e do Bloco de Esquerda na medida em que os seus eleitorados confinam com o seu e ocupam um espaço político onde se exprimem elites avançadas que ocupam importantes interfaces na sociedade civil, um espaço de deliberação pública muito importante, exigente e delicado. E é tudo para recomeçar, embora não numa lógica star-up, depois do que se passou e do que se está a passar, designadamente com a pandemia, com a guerra e a crise económica que lhe corresponde, com a nova configuração do sistema de partidos, a globalização, a sociedade digital e em rede, a nova cidadania e com a inflação a subir para níveis incomportáveis (depois de um longo período de contenção e estabilidade após a entrada da moeda forte euro) e o preço da energia a preços também eles incomportáveis. A velocidade da política é grande e o nosso espectro partidário está hoje confrontado com desafios intensos que irão interferir na geometria política das relações interpartidárias. Cabe aos partidos reinventar-se, sem dúvida, mas também cabe à cidadania ser cada vez mais exigente, auto-organizada e saudavelmente informada e crítica. Ou seja, importa mesmo promover uma autêntica política deliberativa que torne o processo decisional mais qualificado, mas também mais transparente e mobilizador. Se isso for feito ficaremos todos a ganhar. #Jas@05-2022

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