Pina Bausch ou a dança em «moviola»

* João de Almeida Santos

 1. As origens da dança.

 Por ballet pode-se entender hoje uma forma de arte centrada na dança e construída através de movimentos (sete, fundamentais, na dança clássica: «plier», «étendre», «relever», «élancer», «glisser», «sauter», «tourner»), figuras, gestos, passos, posições que ganham sentido plástico num «espaço» coreográfico mais global que compreende, além da geometrização corporal do movimento, música, cenografia e guarda‑roupa.
V. Ottolenghi

Originariamente, e até há bem pouco tempo, o termo ballet referia-se sobretudo à chamada dança clássica, académica ou d’école, que mergulhava as suas raízes mais remotas numa linguagem coreográfica nascida nas cortes renascentistas italianas e francesas e codificada, primeiro, por Beauchamps, em finais do séc. XVII, na Académie Royale de Danse (fundada pelo «Rei bailarino», Luís XIV, em 1661), no séc. XIX, depois, pelo napolitano Cario Biasis (1795‑1878), verdadeiro pai da técnica do ballet clássico (no «Tratado teórico, prático e elementar sobre a arte da dança») e, no séc. XX, pelo romano Enrico Cecchetti (1850‑1928), cujo método persiste, ainda hoje, como fundamento do ensino do ballet clássico.

ballet nasceu em Itália, como «ballo di corte». Além da dança, da música, do canto e da recitação, implicava também, na maior parte das vezes, elementos cenográficos móveis e elaborados. O «ballo di corte» difundiu-se em França nos fins do séc. XV e, nos séculos XVI e XVII, com o nome de «ballet de cour», tornou‑se o espectáculo de corte por excelência. Desde então, e até finais do séc. XVII, a história do ballet é, em grande parte, a história do «ballet de cour» francês. Com Lully, compositor francês de origem italiana, o ballet de corte evoluiu em sentido teatral e moderno, a «opéra-ballet» e a «comédie-ballet»: tratava-se de verdadeiras óperas ou comédias nas quais a dança, entendida também como pantomina nobre ou cómica, era um dos elementos fundamentais (embora ainda com carácter essencialmente ornamental) e já executada por bailarinos profissionais.

Após crise, no séc. XVIII, Georges Noverre (1727‑1810) introduziu o «ballet d’action», qual tentativa bem precoce de fusão da dança com o teatro, ao mesmo tempo que o napolitano Salvatore Viganò (1769‑1821), sob inspiração dos trabalhos de Noverre, criava os fabulosos «coreodramas», que exprimiam uma unidade intrínseca e expressivamente autónoma de dança, de pantomina e de música. Não por acaso, Fokine, já no séc. XX, retomou o «coreodrama» de Viganò fazendo dele um importante ponto de referência da coreografia contemporânea.

Mas o momento essencial da história do ballet foi a introdução das «pontas», em período romântico, 1829, «por obra» de Filippo Taglioni (1777‑1871) «e graça» de sua filha, a etérea Maria Taglioni (1804‑1884). Desde então, tal técnica alargou‑se aos palcos de toda a Europa, dando origem a belíssimas figuras femininas, etéreas, pálidas, transparentes que, depois de 1832, não mais haveriam de largar, no típico e universal ballet romântico, aquele famoso complemento das pontas que é o «tutu», também criado por F. Taglioni para La Sylphide (1832). Ambos, «pontas» e «tutu», viriam a constituir os elementos figurativos característicos do ballet romântico e, por extensão, do ballet clássico. A ideia de mulher ideal, etérea, transparente, sobrenatural, irreal é, aliás, bem traduzida cenograficamente precisamente pela transparência e pela inocuidade cromática do «tutu» e pelas «pontas» (sempre cor-de-rosa pálido). Mas toda a ideia de leveza quase irreal, já dada quer no carácter «fabuloso» do conteúdo narrativo quer no aspecto sempre idílico e paradisíaco da cenografia, era traduzida por dois elementos técnicos essenciais, a élévation e o ballon, que exprimiam o domínio da espiritualidade sobre um corpo que, «animado», consegue não só elevar-se do solo (élévation), mas mesmo ficar como que suspenso no ar (ballon) ou, de qualquer modo, contrariar a lei da queda dos graves.

Clássicos ballets românticos são, além de La Sylphide, Giselle (1841), Copélia (1870), O lago dos cisnes (1877), A bela adormecida (1890), O quebra‑nozes (1892).

ballet romântico, como se sabe, impôs-se de tal modo que até há bem pouco tempo dominava em absoluto os palcos de todo o mundo, reduzindo, perante o grande público, naturalmente, a própria ideia de ballet ao seu conceito romântico: dança de conteúdo narrativo «fabuloso» e idílico executada com virtuosismo técnico e, sobretudo, rigidamente predeterminada nas figuras, nos passos, nas posições.

 Dos «Ballets Russes» ao «Teatrodança»

Foi o empresário russo Diaghilev (1872‑1929), com os Ballets Russes, o grande propulsor do ballet de vanguarda do séc. XX e promotor de uma galeria de coreógrafos que haveriam de marcar o futuro da dança até hoje: Fokine(1880 1942), Nijinsky (1890‑1950), Massine (1896‑1979), Balanchine (1904‑1983). Mas, simultaneamente, nos EUA, começava a despontar uma geração que iria romper, de modo muito mais radical do que os Ballets Russes, com o ballet clássico, inaugurando aquela «modern dance» de matriz bem feminina que hoje influencia poderosamente o mundo da dança: Isadora Duncan (1878‑1927), Marta Graham (1894-1991), entre outras. Se os Ballets Russes sempre mantiveram um contacto estrutural com o ballet clássico, pelo menos no plano técnico-formal, o mesmo já não acontece, por exemplo, com I. Duncan: ela visava uma crítica global do ballet d’école procurando superar não só a rígida determinação formal do movimento, mas também, obviamente, os «invólucros» corporais através dos quais se exprimia, «pontas», «tutus», etc., libertando, de uma só vez, o corpo.

O movimento que se inicia com Diaghilev e com I. Duncan marca de modo mais ou menos revolucionário o nascimento de formas de dança novas em relação ao tradicional «ballet blanc», sejam elas mais radicais como, por exemplo, a «dança moderna» proposta por Marta Graham, grande inovadora, quer no plano coreográfico e expressivo quer no plano estritamente técnico (técnica Graham: contraction‑release), ou por um Merce Cunningham (1919-2009), cultor de uma lógica pura do movimento em chave relacional, não por acaso ligado às experiências do compositor americano de vanguarda John Cage, ou, então, menos radicais, como um Balanchine que recupera em chave moderna as virtualidades formais do sistema académico‑clássico conjugadas com a mecânica construtiva do discurso musical.

O novo ballet caracteriza‑se, nos seus traços mais universais, por uma absoluta centralidade concedida a um corpo‑sujeito (e não simples instrumento ornamental ao serviço de inócuos e oníricos conteúdos narrativos) produtor de geometrias esteticamente pregnantes, ou de sentido, e, de qualquer modo, fonte de expressividade construída através do movimento. Um corpo-sujeito autor de movimentos puramente espaciais ou de visualizações espaciais de ocorrências ou movimentos musicais. Neste novo mundo da dança, a comunicação estética pode assumir formas semânticas, substanciais, ou pode exprimir-se através de puras formas geometricamente intensivas, figuras em movimento ou em equilíbrios progressivos, mas descontínuos. A dança moderna pode-se, assim, assumir como um são e livre formalismo aleatório de tipo relacional e anti‑subjectivo mais próximo de um Cunningham do que do ballet abstracto ou neoclássico de um Balanchine, ou, então, assumir‑se como dança expressiva, cenográfica e coreograficamente densa e figurativamente significativa, mais próxima de um Maurice Béjart (1927-2007) ou de uma Marta Graham, ou mesmo fundir‑se ela própria expressivamente com outra forma estética de «reinvenção» essencial do mundo da vida ‑ o teatro ‑, como no teatrodança de Pina Bausch (1940-2009), por exemplo. A descontinuidade que marca a transição do ballet d’école para o «ballet moderno», a «modern dance» ou o teatrodança exprime-se essencialmente na passagem da construção narrativa do sentido e da sua expressão coreográfica através de movimentos, posições, figuras, passos expressivamente inócuos, mas articulados globalmente como função ornamental do conteúdo narrativo, à produção do sentido, da expressividade ou do puro geometrismo espacial que o movimento exprime quando o corpo, da condição de puro instrumento narrativo e ornamental, passa à condição de sujeito livre, ponto de partida absoluto para a comunicação estético-expressiva.

2. «Teatrodança» – Pina Bausch , a dança em moviola
 
«O fim é sempre o teatrodança, entendido como forma e técnica da coreografia dramática em relação ao seu libreto, à música e, em primeiro lugar, aos seus intérpretes; na escola e no «Tanzstudio» a nova técnica de dança deve tornar-se o medium suprapessoal, objectivo da dança dramática, até incluir gradualmente na nova disciplina a dança clássica tradicional».

Kurt Jooss

Moviola

Há nestas afirmações de Jooss (1901‑1979) uma ideia recorrente na dança moderna: retomar, após a libertação do corpo e a superação da rigidez das fórmulas clássico-académicas, o património técnico do ballet clássico, pondo‑o ao serviço do novo sujeito-corpo, doravante senhor do seu próprio mundo estético-expressivo e livre criador de sentido.

Não sei até que ponto Pina Bausch, que de Jooss foi discípula, fez este esforço de reconciliação produtiva com o património clássico. É certo que do teatrodança de Bausch não se pode dizer que seja «belo» – pelo menos se por beleza se entender uma certa quietude e harmonia de formas e movimento. Bausch é violenta, agressiva. É fragmentária. E, todavia, produz arte, se a entendermos como expressão intensiva, essencial e estilizada de relações que escapam ao olhar distraído e, de algum modo, predeterminado do quotidiano. «Nalguns pontos, diz Bausch, é possível ver tudo, mesmo se procurámos controlar-nos (…), é possível ver também onde há algo de reprimido. Existem ainda pontos críticos onde as pessoas não pensam em controlar-se». A Pina Bausch interessa, como ela própria diz, «o que move os seres humanos, não tanto o modo como se movem». O que significa uma ruptura com a ideia de movimento geométrico e de harmonia ideal ao serviço da sensibilidade.  Mais do que uma expressão extensiva e geométrica do movimento fim-de-si-próprio, ela dá-nos uma visão descentrada, fragmentária, mas intensiva e repetitiva e, por isso, violenta, de relações, posicionamentos, gestos existenciais, vitais, que desloca dos seus contextos naturais, para os decompor, os analisar em moviolaFazendo quase fotografia animada. Alguém disse, não sem razão, que a régie de Pina Bausch «se inspira na lógica da montagem cinematográfica» (Schlicher, 1989: 124).

Sabe-se que Pina Bausch recupera, de facto, fragmentos da vida real ou imaginária dos seus bailarinos, os selecciona, os secciona, os recompõe, lhes retarda o movimento, os faz executar em obsessivas repetições. O seu princípio de realidade mais imediatamente visível é sempre, de algum modo, a cenografia, os elementos espaciais escolhidos para base das evoluções – terra, água, folhas secas, relva -, combinados sapientemente com uma arquitectura cénica bem marcada pela passagem do tempo social, histórico ou primordial. Mas também os próprios movimentos contêm intrinsecamente um princípio de realidade: são gestos, desencontros, violências intra-humanas. A violência torna-se, depois, mais pura, na repetição, no automatismo, no ritmo progressivo e martelante, no embate físico contra formas rígidas e resistente, na força bruta com que se rasgam espaços, na procura desajeitada e brutal da liberdade ou de uma comunicação difícil que, por vezes, se torna grotesca. O sistema de Pina Bausch está todo aqui. Nisto reside a sua originalidade: na desestruturação da ordem do quotidiano e na recomposição das suas intensidades subliminares através de uma técnica teatral. Uma desestruturação analítica, selectiva, com ritmo lento, repetitivo e obsessivo que assume reflexivamente a reversibilidade do próprio tempo cénico. Uma mulher e um homem que se atiram mútua, repetida e violentamente contra uma parede (Café Müller); um homem que rasteja, sofrendo violentamente, arrastando consigo uma mulher-boneca e que, batendo regularmente as palmas, comanda os movimentos de cena ao arrepio da música de Béla Bartók (Blaubart); dois grupos de homens que forçam, com violência, um beijo entre um homem e uma mulher, empurrando a cabeça de um contra a do outro (Auf dem Gebirge); um homem em fato de banho com touca e óculos de sol que repetidamente tira balões dos calções (da «braguilha») para depois os encher, encher… até rebentarem; dois homens, um sentado, com um balão entre as pernas, o outro, de pé, que repetidamente lhe estica a cabeça para trás o mais possível para, depois, a deixar cair violentamente sobre o balão; dois homens que ajudam uma mulher a subir e a descer (de costas), no plano vertical, uma parede, como se estivesse em plano horizontal; um cretino que rebenta balões com o rabo; imitação de um salvamento (nadando sobre terra); um homem que tenta levantar voo com duas cadeiras enfiadas nos braços (Auf dem Gebirge).

Fragmentos de violência

 Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehoert (1984) é um espectáculo de cerca de três horas bem elucidativo do que é o teatrodança de Pina Bausch. É uma visualização completa e analítica de miragens, sonambulismos, petrificações existenciais, movimentos de brutalidade em estado puro. Dizia a crítica italiana Vittoria Ottolenghi, referindo-se à sua primeira visão de Café Müller (1978), que se tratava de uma violência gratuita que não existia na realidade; mas, mais tarde, reconheceria que, afinal, se tratava de uma admirável expressão intensiva e, portanto, artística da violência pura. A realidade expressa por Pina Bausch existe, não é pura ficção. O que ela faz é tornar visível a brutalidade latente no quotidiano, passá-la analiticamente ao ralenti, analisá-la ao microscópio e, depois, aumentá-la até um plano visível, demasiadamente visível para não ser tornar chocante e impressiva. Creio que a violência latente e múltipla é o tema dominante do Tanztheater de Pina Bausch. A técnica do ritmo lento e da repetição obsessiva é o meio que torna essa violência pura e, por isso, aparentemente absurda. Chocante, portanto. Em tudo o que ela tem de aparentemente gratuito. Depois, as miragens, esses desejos deslocados do seu húmus natural, são meios expressivos para comunicar a impossibilidade de realização dos desejos fortes, mas simples, às vezes infantis. Há, de resto, muito de recuperação do imaginário infantil no teatrodança de Pina Bausch: as cenas de Blaubart (1977), em que as mulheres, com movimento brusco e sempre mecânico, concedem o travesseiro às cabecinhas carentes de homens que, ávidos, se atiram para ele. É uma visão violenta da carência difusa de ternura. É um modo brutal de exprimir a relação homem/mulher/mãe na sua expressão primordial.

A dança, aqui, parece reduzir-se às exigências dramáticas e expressivas e perder aquele formalismo que sempre foi recorrente, em maior ou menor grau, na dança moderna, pelo menos nos seus grandes expoentes, de Balanchine a Marta Graham, a Cunningham, a Béjart,  ao próprio mestre de Bausch, Jooss. É verdade o que José Sasportes afirma sobre os filões presentes em Pina Bausch: «Do expressionismo Bausch retoma a visão trágica do mundo, mas corrige-a com uma ironia herdada do surrealismo e do teatro do absurdo. As imagens encadeiam‑se como num jogo de associações de ideias» (Sasportes, 1988: 145). Mas talvez não seja tão pacífico afirmar que o verdadeiro tema do seu Tanztheater seja de carácter metodológico, isto é, a própria criação coreográfica. Pelo contrário, os verdadeiros temas são o medo, a violência arbitrária ou pura, o conflito irreconciliável entre homem e mulher, a exterioridade impositiva das relações, mesmo das relações de afecto (os beijos fisicamente forçados por outrem, a sexualidade fisicamente impositiva ou normativamente comandada). Trata-se, no meu entendimento, de uma dimensão de nível ontológico: a expressão estética de categorias existenciais estruturantes do mundo da vida. Trata-se de uma viagem ao centro da existência. Por isso mesmo, a sua criatividade é, mais do que uma «invenção do mundo», uma lente de ampliação das relações de violência, de agressividade ou de incomunicabilidade radical contidas apenas nos limiares das regras de convivência quotidiana, do mundo da vida social objectiva. O que é seguramente mais profundo do que inventar um mundo quem sabe como e a partir de quê! E é por isso mesmo que «a passagem entre palco e plateia está em Bausch sempre aberta», que «a circulação é possível», que «as acções são ora atrozes, ora de ternura, ora de um infantilismo insuportável, ora de um delicado [ou patético?] lirismo, ora brutais, ora cómicas, muito cómicas» (Sasportes, 1988: 147). Talvez se trate, de facto, de um real inédito, tão inédito quanto o é o contexto e o ritmo com que são propostas as acções, sem predeterminação formal, na verdade; de descoberta não do mundo, mas de um mundo, de um mundo parentético que decorre com o seu ritmo próprio nas entrelinhas, nas hesitações, nos interstícios, nas dobras do mundo real, das normas de comportamento, da existência.

Dance is emotion, not motion

teatrodança de Pina Bausch propõe‑nos friamente fragmentos de crueldade existencial, de autopunição através de uma rítmica corpórea obsessiva e mecânica, linear e temporalmente reversível, cadenciada segundo tempos interiores.

E a «dança»? E as formas puras do movimento em puro equilíbrio geométrico sem corpos opacos e rígidos que se lhe entreponham, que choquem com ele para lhe impedir a leveza, a rapidez, a agilidade, a harmonia? Não há. Tem razão Sasportes quando supõe o espanto dos americanos: «toda a bagagem emotiva que julgavam ter sido varrida para sempre por Balanchine e Cunningham, ei-la reentrar pela janela, mais viva que nunca» (1988: 150). Ou, como quer S. Schlicher: «por esta sua recondução do movimento e do corpo à sua história [à sua génese e ao seu contexto] o Tanz Theater alemão distingue‑se da modern dance americana» (1989: 132).

Dance ‑ diria eu, invertendo a fórmula de Alwin Nikolais e procurando traduzir a filosofia de Baush ‑ is emotion not motion.

Não há dúvida de que, com Pina Bausch, se afirma uma variante da dança moderna que tem raízes antigas na história da dança, que chegam mesmo até ao «Ballet d’action», de Noverre, ou aos «coreodramas», de Viganò. Mas aquilo que, assim, ganha em sentido ou em intensidade dramática talvez o perca em leveza ou em «beleza» formal…

Mas, afinal, o que é a beleza? Depurar rítmica e figurativamente movimentos subliminares da existência humana usando a expressão corporal é certamente conforme à essência da arte da dança se é verdade que na sua história originária ela era a forma mais total de exprimir o espírito objectivo das comunidades primitivas nos seus ritmos vitais. Por isso ela é bela, mesmo se pode contrastar com o espírito racionalista e formalista da civilização ocidental moderna. E, todavia, o «irracionalismo substancial» de Pina Bausch é, afinal, «construído» através de uma metodologia analítica bem mais racional e elaborada do que parece! Ela, afinal, procura, com a rapidez do movimento, com a exactidão do gesto, com a multiplicidade dos fragmentos existenciais, com a visibilidade obsessiva das suas categorias existenciais dar-nos conta de forma intensiva e com vigor expressivo do universo subliminar que se insinua insistentemente no nosso quotidiano. 

Nota.

Pina Bausch nasceu em 1940, em Solingen. Entre 1955 e 1959, estudou com Kurt Jooss na Folkwangschule, onde se diplomou. Em 1960, frequentou em Nova Iorque a Juillard School of Music, tendo como mestres, entre outros, José Limón, Antony Tudor e Louis Horst. Trabalha com Paul Taylor. Em 1961 torna-se bailarina do Folkwang-Ballet, dirigido por Jooss. Colabora com Jean Cébron. Em 1967, torna-se coreógrafa do Folkwang-Ballet e, em 1969, recebe o Primeiro Prémio no Segundo Concurso Internacional de Coreografia de Colónia, com In Wind der Zeit. Entre 1969 e 1973, torna-se directora artística do Folkwang-Tanzstudio e docente da Folkwanghochschule. Em 1973-1974, torna-se directora e coreógrafa da companhia dos Wuppertaler Bühnen, ou seja, do Wuppertaler Tanztheater.

Referências Bibliográficas. 

Ottolenghi, Vittoria, 1975, Balletto, in Enciclopedia Europea, Milano, Garzanti (vol. II, pp.28-37).

Sasportes, José, 1988, La scoperta del corpo. Percorsi della danza nel novecento, Roma-Bari, De Donato.

Schlicher, Susanne, 1989, L’avventura del Tanz Theater. Storia, spettacoli, protagonisti, Costa & Nolan. (@Jas2011)

As categorias da arte em Calvino

* João de Almeida Santos

«Os que estão habituados a julgar pelo sentimento não compreendem nada das coisas do raciocínio, porque eles querem logo penetrar de imediato, não estando habituados a procurar os princípios. E os outros, pelo contrário, que estão habituados a raciocinar com princípios, nada compreendem das coisas do sentimento, procurando nelas princípios e nada podendo ver de imediato».

  Pascal, «Pensées», I. 3. (Le livre de Poche, 1979, p. 4)
  Italo Calvino (1923-1985) fora convidado em 1984 a fazer um ciclo de conferências na Universidade de Harvard, as famosas «Charles Eliot Norton Poetry Lectures». Da preparação destas conferências resultou um livro, póstumo, que, sob a responsabilidade de sua mulher Esther Calvino, foi publicado pela Garzanti, em 1988, com o título de «Lezioni americane, sei proposte per il prossimo millennio» («Six memos for the next millennium»). Do livro constam cinco reflexões sobre os valores, qualidades, especificidades ou categorias essenciais da literatura, a salvaguardar para o milénio que já se iniciou: «leveza» (leggerezza; lightness), «rapidez» (rapidità; quickness), «exactidão» (esattezza; exactitude), «visibilidade» (visibilità; visibility), «multiplicidade» (molteplicità; multiplicity). A sexta seria a categoria da «consistência» (consistency) e referir-se-ia a Bartleby, de Melville.

1. VISIBILIDADE

«Stiamo correndo il rischio di perdere una facoltà umana fondamentale»: «pensare per immagini».

Ponto de partida de Calvino é a questão do destino da literatura e dos seus valores fundamentais perante a emergência daquela civilização que se indica com o nome «pós-industrial». O perigo é o da perda de uma «faculdade humana fundamental», «pensar por imagens», sob o colossal dilúvio de imagens prefabricadas, produzidas por essa tão moderna quão sufocante «civilização da imagem». «Antigamente, diz Calvino, a memória visiva de um indivíduo era limitada ao património das suas experiências directas e a um reduzido repertório de imagens reflectidas pela cultura: a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo como os fragmentos desta memória se combinavam entre eles em aproximações inesperadas e sugestivas» (Calvino, 1988: 91). Hoje, o perigo reside na impossibilidade de continuar a poder «evocar imagens em ausência». Trata-se, pois, de defender a centralidade do valor da visibilidade, a genuinidade do «cinema mental» da nossa imaginação (1988: 83), contra essa «chuva ininterrupta de imagens» com que os mais potentes media inundam o mundo e o multiplicam através de uma fantasmagoria de jogos de espelhos (1988: 58). Trata-se, em suma, de salvaguardar essa capacidade de pensar por imagens e de pensar imagens, de evocar imagens em ausência e de as suscitar através da linguagem discursiva. Pelo que a máxima é a do Dante da Divina Comédia: «poi piovve dentro a l’alta fantasia» (Alighieri, 1969: 181) e não a de uma videocracia em expansão universal: chove fantasia prefabricada, confeccionada em condensados audiovisuais. A imaginação literária é, bem pelo contrário, complexa e reflexiva, já que para a sua formação concorrem diversos e sofisticados elementos ou mecanismos que interagem criativamente com o mundo: a observação directa do mundo real, o processo de abstracção, condensação e interiorização da experiência (de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento), o mundo figurativo transmitido pela cultura nos seus vários planos, a transfiguração fantasmática e onírica (Calvino, 1988: 94).

2. LEVEZA 

«La mia operazione è stata il più delle volte una sottrazione di peso».
É claro que a visibilidade, no complexo processo discursivo de reconstrução da essencialidade do mundo da vida, está ligada por um fio directo a esse outro valor da leveza, aquela mesma que se tornava possível a Perseu pela visão indirecta, através do espelho de Atena, da cabeça petrificante da Górgone, da Medusa, ou, se quisermos, desse fardo pesado que uma visão imediata, não mediada, das coisas, dos eventos, do mundo da vida arrasta necessariamente consigo. A operação literária de Calvino consiste precisamente nisso: na subtracção de peso à imediatidade opaca, inerte e pesada de um mundo condenado à petrificação, justamente por esse domínio da imediatidade, como a visão directa da cabeça da Medusa. A fuga a esta visão imediata é já por si mesma um acto de liberdade e, por isso, uma subtracção de peso à existência, uma oposição ao «inelutável peso do viver». Não residia a força de Perseu na sua recusa da visão directa? De que lhe serviriam as sandálias aladas se alguma vez olhasse directamente a cabeça da Medusa que sempre trazia consigo? A dádiva de Atena, deusa da sabedoria e da inteligência, o espelho, permite-lhe subtrair-se a essa visão directa petrificadora, portadora de peso, de opacidade, de inércia, afinal, características imediatas do mundo. A imediatidade constringe e, por isso, acresce peso ao viver. Há, pois, que olhar para o mundo de forma indirecta, mediada, para aceder à sua dimensão mais essencial, como, afinal, faz a própria ciência: «hoje cada ramo da ciência parece querer demonstrar que o mundo se funda sobre entidades subtilíssimas: como as mensagens do ADN, os impulsos dos neurónios, os quarks, os neutrinos vagantes no espaço desde o início dos tempos»; depois, a informática, o software, os bits sem peso de um fluxo de informação que corre em circuitos sob forma de impulsos electrónicos. O ideal estético da leveza parece, pois, encontrar um autêntico suporte científico e ontológico capaz de confirmar a sua essencialidade. E não só na era pós-industrial ou pós-moderna. Mesmo nas suas origens mais remotas, como no tempo de Lucrécio ou de Ovídio, a leveza era um modo poético e escrito de ver o mundo que se fundava quer na filosofia quer na ciência. Lucrécio (De rerum natura), em Epicuro. Ovídio, em Pitágoras (1988: 9-12). A leveza possui, pois, uma dimensão mais profunda do que o simples estilo narrativo, a textura verbal ou a pregnância das imagens figurativas. Possui uma dimensão ontológica onde se apoia mais profundamente esse «dispositivo antropológico que a literatura tende a perpetuar»: o nexo, qual constante antropológica, entre levitação desejada e privação sofrida (1988: 28). Daqui, a «função existencial» da literatura: «a procura da leveza como reacção ao peso do viver», como na tristeza que se transforma em melancolia ou no cómico que se torna humour, quando se dissolvem os últimos resíduos da opacidade corpórea (1988: 21).
3. RAPIDEZ
«Il discorrere è come il correre e non come il portare» (Galileu).
Valor gémeo da leveza é a rapidez, se ambas coexistem num Perseu de pés alados como um dos seus dois deuses protectores, Hermes (e Atena). Hermes-Mercúrio é, aliás, o patrono de Calvino: «Mercúrio, com as asas nos pés, leve e aéreo, hábil e ágil, versátil e desembaraçado, estabelece as relações dos deuses entre si e com os homens, entre as leis universais e os casos individuais, entre as forças da natureza e as formas da cultura, entre todos os objectos do mundo e todos os sujeitos pensantes. Que melhor patrono poderia escolher para a minha proposta de literatura?», conclui Calvino (1988: 50‑51). Como se compreende, a rapidez de Hermes-Mercúrio serve à leveza do discurso, porquanto exerce a função mediadora entre o universal e o individual sem acréscimo de meios, de modo instantâneo. «O meu trabalho de escritor, diz Calvino, foi orientado, desde o início, a seguir o fulmíneo percurso dos circuitos mentais que capturam e ligam pontos longínquos do espaço e do tempo» (1988: 47). O carácter fulmíneo, instantâneo, «sem passagens» de um circuito mental é, de facto, atributo divino. E não só do deus da mitologia greco-latina Hermes-Mercúrio. O raciocínio instantâneo é também para o copernicano Salviati, do galileiano Dialogo sopra i due massimi sistemi de mondo (1632), próprio da mente divina; mas, de qualquer modo, a rapidez é, em Galileu (1564-1642), essencialmente um valor anti-académico-metafísico representado, sobretudo, por um Sagredo antiptolemaico e de «velocíssimo discurso». «Il discorrere, diz Galileu em il Saggiatore (1623), è come il correre, e non come il portare». Rapidez, todavia, não se identifica com imediatidade, ou melhor, com visão imediata, que é fonte de peso e opacidade, mas com processo lógico relacional que estabelece conexões essenciais entre elementos diversamente colocados no espaço e no tempo. Tal como o discurso científico, mas com aspiração ao carácter absoluto e instantâneo da mente divina. E, depois, a rapidez não é modelada exclusivamente segundo os processos relacionais e dedutivos da ciência moderna e a dimensão fulmínea da mente divina. Ela não é só processual, mas também, como dizer, comportamental ‑ «as fadas são muito rápidas nas suas tarefas» ‑ e ôntica (ou mesmo ontológica): «a rapidez da sucessão dos factos dá uma sensação de inelutável» (1988: 35).
A rapidez de que fala Calvino envolve duas ordens da narrativa: a ordem processual, no plano da captação discursiva da essencialidade das relações ‑ e nisto cruza-se com o valor da exactidão ‑ que investem a narrativa; a ordem da realidade, ôntica e ontológica, no plano do conteúdo, do evento propriamente dito, do «objecto» descrito. E aqui toca-se a essência dual deste valor: «o tema que aqui nos interessa, diz Calvino, não é a velocidade física, mas a relação entre velocidade física e velocidade mental» (1988: 42), ou seja, a relação entre o tempo do evento ou do objecto narrado e o tempo processual ou narrativo, ou, com Galileu, a relação entre o correr e o discorrer.
4. MULTIPLICIDADE
«Quella che prende forma nei grandi romanzi del XX secolo è l’idea d’una enciclopedia aperta».
Que esta relação seja determinante na concepção de Calvino está a prová-lo o conceito interactivo da relação palavra-mundo: «seguimento perpétuo das coisas, adequação à sua variedade infinita» (1988: 28). Deste conceito resulta um outro valor essencial para o próximo milénio: o da multiplicidade. Um valor que está mais do lado da sensibilidade, da irracionalidade, do caos, da complexidade irredutível do mundo da vida, da diferença, das várias ordens do saber e dos vários códigos a que a literatura dará unidade «numa visão multíplice e facetada do mundo», em particular agora que «a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam sectoriais e especialísticas». Um valor que, de algum modo, sirva de contraponto à tendência homológica dos outros valores e introduza na obra de arte a diferença não só sensível, mas também lógica e, assim, evite a irrupção da unilateralidade narrativa, estilística e interpretativa. Calvino fala dos grandes romances do séc. XX ‑ de A Montanha Mágica, 1924, de Thomas Mann, considerada, não sem razão, «a mais completa introdução à cultura do nosso século» (1988: 113) ‑ como de enciclopédias abertas, múltiplas em métodos interpretativos, modos de pensar, estilos de expressão e animadas por uma força centrífuga interna que garante a sua irredutibilidade a um só centro e a uma potencial unilateralidade interpretativa. Mas já mesmo antes deste século era visível a vocação enciclopédica da literatura: Goëthe (1749-1832) queria escrever um «romance sobre o universo»; Novalis (1772-1801) um «livro absoluto»; Alexander von Humboldt (1769-1859) escreveu «Kosmos» (4 vols., 1845-1858); Mallarmé (1842-1898) preparava «um livro absoluto como fim último do universo»; Flaubert (1821-1880), que queria escrever «un livre sur rien», afinal, acabou por escrever o «romance mais enciclopédico que jamais foi escrito», Bouvard et Pécuchet (publicado em 1881).
«O conhecimento como multiplicidade, diz Calvino, é o fio que liga as obras maiores, tanto do que chamamos modernismo quanto do que chamamos postmodern, um fio que (…) gostaria que continuasse a desenvolver-se no próximo milénio» ( 1988: 113).
5. EXACTIDÃO
«Il cristallo, con la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce, è il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema».
A multiplicidade temática, de estilo, interpretativa, a força centrífuga que anima o grande romance moderno ou pós-moderno não seriam, todavia, esteticamente realizáveis se não se conservasse um outro valor-guia fundamental: a exactidão. Valor tanto mais precioso quanto maior for a «perda de forma» que se constatar na vida. Esta exactidão literária, sob o pressuposto do valor estrutural da multiplicidade e da diferença, e precisamente por isso, define como normas imperativas: a) «um desenho bem definido e bem calculado da obra»; b) a precisão da linguagem como léxico e como realização das «nuances» do pensamento e da imaginação; c) «a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis», numa palavra, icásticas (1988: 57). Mesmo onde o tema, o objecto, é o subtil sentimento do indefinido, do indeterminado, do vago, portanto, onde parece ser de regra uma intencional indefinição ou indeterminação da linguagem, é precisamente aí que a exactidão se torna imperativa: «o poeta do vago pode ser só o poeta da precisão» (1988: 61). Da precisão como, por exemplo, Jorge Luís Borges: exacto na imaginação e na linguagem segundo a rigorosa geometria do cristal e a abstracção de um raciocínio dedutivo (1988: 115); ou como Georges Perec, para quem «a exactidão terminológica era a sua forma de posse» (1988: 119). De posse, obviamente não proprietária, mas originária e criativa, enquanto essa posse é vista não como apropriação, mas como descoberta, e não física, mas mental, precisamente no sentido em que «a palavra liga o indício visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte de acaso lançada sobre o vazio» (1988: 74). A aproximação simbólica é, assim, tanto mais forte ou significativa quanto mais exacto for o registo. Por isso mesmo, é a exactidão que melhor pode dar o sentido de uma forte presença do criador no mundo da vida, se essa exactidão estiver ao serviço da ordem multíplice do mundo da fantasia e da agilidade do «poeta-filósofo que se eleva sobre o peso do mundo, demonstrando que a sua gravidade contém o segredo da leveza» (1988: 13).
Estas seriam as palavras que Calvino escolheria se devesse formular um «símbolo augural» para o novo milénio que já começou. E, como se vê, nele teria um posto central a «leveza», qual valor libertador do peso, do ruído, da rispidez dos corpos opacos e dos resíduos «enferrujados» de uma civilização do consumo prisioneira do círculo vicioso da imediatidade. A defesa deste e dos outros valores não implica, para Calvino, uma real desvalorização dos seus opostos. É, simplesmente, uma escolha claramente assumida e formulada. De resto, nesta escolha Calvino não está só. E não apenas na literatura, se é verdade que um dos mais famosos arquitectos italianos, Renzo Piano, o arquitecto do Beaubourg, dos espaços arquitectónicos da música de Luigi Nono e do fabuloso projecto do aeroporto insular de Osaka, põe no centro do seu conceito de arquitectura precisamente esse conceito calviniano de leveza, daquela leveza das suas «città invisibili», não só pela compreensível razão da funcionalidade ou pelas ilimitadas potencialidades do software, mas também, ou sobretudo, pelo valor estético intrínseco do conceito, no exacto sentido em que Calvino o definiu. (@Jas2011)

 

 
 
 
 

Pós-moderno

* João de Almeida Santos

Este é um tema que centra muito bem o espírito dos tempos e se exprime como uma espécie de «Fenomenologia da Contemporaneidade». No tempo de transição em que vivemos – e que já é mais do que um tempo de fronteira -, é fundamental conhecer as categorias existenciais em que nos movemos e, por isso, é necessário reflectir sobre a ideia de pós-modernidade e sobre o novo processo de legitimação dos discursos que lhe está associado, sobretudo tendo em conta as reflexões inovadoras de Jean-François Lyotard, em «A condição pós-moderna» (1979), sobre o fim do velho processo narrativo de legitimação do saber (filosófico ou emancipativo) e sobre a necessária formulação das novas categorias legitimadoras que irromperam com a revolução tecnológica e com a pragmatização e laicização do saber. Porque ela representa a outra face da civilização pós-industrial, o desenvolvimento da sua textura social, cultural e existencial, centrando muito bem o espírito dos nossos tempos e exprimindo-se, retomando o Kant foucaultiano, como uma «Ontologia do Presente», num tempo em que começam a cair aquelas que foram as grandes traves mestras da modernidade, as «grandes narrações» e o discurso legitimador,  a profundidade ambivalente da temporalidade histórica, o sentido do lugar e das fronteiras, o domínio do físico sobre o simulacral, do estável sobre o instável, da profundidade sobre a superfície, do compacto sobre o heterogéneo… Mas, sobretudo, e é isso que aqui me ocupa, evidenciando os grandes traços caracterizadores do pós-modernismo tal como estão formulados no estimulante ensaio de Fredric Jameson, «Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism», New Left Review, 1984, ou seja, as várias formas de expressão cultural em que se exprime o pós-modernismo.

O que significa afirmar, neste registo, que a «civilização industrial» e a «modernidade» estão superadas ou em vias de superação?  E que, com as suas categorias, já não é possível pensar os tempos em que em que nos situamos?

Do hardware ao thoughtware: pós-industrial

Significa o seguinte: que os sistemas produtivos próprios da civilização industrial estão a ser radical e inexoravelmente substituídos por sistemas fundados no software, saídos da revolução microelectrónica que teve o seu impulso decisivo no final dos anos quarenta. Que a apropriação da «mais-valia absoluta», que se apoiava na utilização de vínculos extra-económicos, deu lugar à apropriação da «mais-valia relativa», centrada no uso da ciência e da técnica para a intensificação da produtividade (veja-se Cerroni, U., Politica, Roma, NIS, 1986, pp 71-72). Que, consequentemente, ao hardware e aos sistemas mecânicos se segue o thoughtware e a robótica pós-industrial. Que da cadeia de montagem, do taylorismo e do operário de ganga azul se passou aos sistemas de robots de comportamento não determinístico, ao «assemblaggio», ao «condutor», de bata branca, que controla, em enormes espaços humanamente desérticos, a linha de robots. Que o «chip» se tornou a alma dos sistemas produtivos e comunicacionais. E que, com ele, o computador provocou, como diz Umberto Eco, uma verdadeira «mutação da espécie» e uma verdadeira revolução nos sistemas produtivo, cognitivo e comunicacional (remeto aqui para o meu ensaio «A Esquerda na Era Pós-Industrial», publicado em Finisterra 9/1992, Lisboapp. 63-76).

A microelectrónica fechou um ciclo e está a abrir um outro de que não se conhece a verdadeira configuração (é por isso que se usa o prefixo pós-). Fechou o ciclo onde continuava a ser central a relação sujeito-objecto, própria da civilização industrial e da modernidade, e abriu o ciclo das relações em rede, dos networks, da interactividade virtual. Tudo isto, como se sabe, está a produzir, nos campos económico e social, uma autêntica mutação genética que tende a intensificar inexoravelmente a assimetria entre crescimento e emprego, impossível de resolver com as receitas clássicas, uma vez que o uso progressivo do capital intensivo gera maior produtividade ao mesmo tempo que produz efeitos devastadores no plano do emprego. Mas os efeitos desta revolução são igualmente profundos no plano das relações sociais, cognitivas e comunicacionais. A tecnologia informacional, por exemplo, produz efeitos globais tão surpreendentes que não os poderemos compreender com os conceitos da modernidade. As auto-estradas informacionais são algo que escapa ao conceito, de matriz moderna, de conhecimento como representação, à relação sujeito-objecto, à lógica substancialista, à razão finalista. Todos eles módulos próprios da modernidade. Daquela que arranca decisivamente com a revolução científica dos séculos XVI-XVII, com a revolução liberal, com a revolução francesa e com a revolução industrial. As categorias com que já estamos a operar permitem-nos, sem dúvida, falar de civilização pós-industrial e de pós-modernidade, a outra face da mesma moeda.

 As categorias da modernidade

De que modernidade falamos, pois? Não se trata, neste registo, como se compreende facilmente, daquela que inscreveu, de modo amplo, assumido e específico, nos seus anais os valores da liberdade, da propriedade, da solidariedade, da justiça e da igualdade. Simplesmente, porque estes valores são de sempre e são compatíveis com módulos cognitivos diferentes entre si. Porque do que aqui se trata – ao assumirmos o conceito de «pós-modernidade» – é de «esquemas conceptuais de referência» e não de valores. O que se pretende é delimitar temporal e historicamente a civilização que nasceu com o industrialismo e as grandes concentrações operárias. Com o domínio do trabalho mecânico. Com a irrupção e o domínio da civilização urbana de pequena ou média escala e que ainda respeitava uma linha de continuidade entre a geografia natural e a geometria urbana. Uma civilização onde os sujeitos se moviam segundo módulos cognitivos realistas e naturalistas e onde o reconhecimento recíproco sujeito-cidade ou cidade-sujeito estava centrado na representação, no realismo da relação e num conceito físico de espaço urbano. A civilização que instaurou e consolidou o Estado-Nação e as suas fronteiras terrestres, onde dominavam interacções e comunicações marcadas essencialmente por um registo de proximidade, onde o conhecimento social se confundia com a representação sob uma base empírica geral que era constituída por um substracto territorial urbano que se foi impondo decisivamente ao substracto rural. A civilização que deu origem às grandes organizações, pesadas e ideologicamente concentradas, aos grandes partidos orgânicos de massas, aos grandes sindicatos de classe ideologicamente finalizados, às grandes configurações e formações ideológicas, às grandes narrações, dizem agora os pós-modernos. Uma civilização que desenvolveu, por isso, uma lógica própria das grandes organizações que configurava o próprio tecido social em todas as suas dimensões.

Não é por acaso que, no plano estritamente político, os partidos e os sindicatos estão a conhecer, há muito, mutações radicais nos planos ideológico e organizativo, na base social, nas lógicas da comunicação política, nos programas. E que os grandes partidos começaram a despojar-se dos concentrados ideológicos e das narrativas utópicas, para abraçarem perspectivas temáticas. Que os grandes partidos de massas ou partidos-igreja deram lugar aos mais recentes «Catch all Parties», tal como os media deram origem aos mais recentes «Catch all Media», mantendo, é certo, a mesma estrutura lógica enquanto grandes organizações que permanecem, mas abdicando do peso orgânico e territorial e da carga ideológica que transportavam consigo.

 As categorias da pós-modernidade

O conceito de pós-industrial é, tão-só, indicativo das profundas mutações que se viriam a verificar nestes módulos a que acabo de me referir. A revolução microelectrónica marca um passo decisivo na superação da lógica substancialista moderna e inscreve de forma difusa e alargada na história social, económica, cognitiva e comunicacional uma lógica de tipo relacional que relativiza a pretensão universalizante do velho sujeito moderno. É esta passagem que, a par do megaurbanismo ou urbanismo de grande escala, dá lugar à fragmentação da unidade totalizante e finalista perseguida pela razão moderna e que permite a emergência daquilo a que se vem chamando pós-modernismo.  

O conceito de pós-moderno marca, portanto, uma ruptura com o racionalismo finalista moderno e sublinha o efectivo domínio – hoje – da lógica espacial sobre a lógica temporal (em profundidade), da superfície sobre a profundidade volumétrica, do presente sobre a profundidade histórica, da diferença, do heterogéneo, do fragmentário, do degradado, do residual sobre a unidade totalizante, perfeita e omnicompreensiva, do relativo, que retira ao Sujeito a centralidade que o finalismo lhe atribuía. Dá-nos conta do império do simulacro que vem ameaçando mortalmente a matéria empírica de que se alimentava a filosofia  do sujeito e da representação. E permite, por isso mesmo, abrir caminho à descrição «fenomenológica» de um mundo que existe como tal: impuro, fragmentado, terreno, numa palavra, humano.

Do que se trata é de reconhecer a realidade com que nos confrontamos para que seja possível, aí sim, propor uma espécie de «cartografia cognitiva» (cognitive mapping – Jameson) em condições de nos tornar capazes de recompor o que se tornou fragmentário, heterogéneo, degradado. Mas sem pretensões totalizantes. Respeitando a diferença – que nos pode pôr em relação criativa.

Os conceitos de pós-moderno e de pós-industrial não são, pois, valores, mas instrumentos que servem para melhor conhecermos o mundo de hoje e sobre ele agirmos. Com os valores que, por opção interior, assumirmos. É claro que as assunções conceptuais supõem valores e induzem mundividências. E tal como a absolutização conceptual produz anemia axiológica, também a absolutização dos valores gera desertificação analítica ou conceptual. Ambas as posições são indesejáveis.                                    

Jameson, o pós-modernismo e a lógica cultural do capitalismo tardio

«Esta omnipresença do pastiche não é,  todavia, incompatível com um certo humour  (nem isenta de paixões) ou, pelo menos,  com uma necessidade, uma habituação – historicamente original – dos consumidores  a um mundo transformado em puras imagens de si próprio ou a pseudo-eventos e “espectáculos” (para usar um termo dos situacionistas). É a objectos deste tipo que queríamos reservar a concepção platónica do “simulacro” – cópia idêntica de um original que nunca existiu. Pode-se dizer que a cultura do simulacro ganha vida numa sociedade onde o valor de troca se generalizou de tal modo que cancelou a própria memória do valor de uso, uma sociedade onde, como observou Guy Debord com uma frase extraordinária, “a imagem se tornou a forma final da reificação” (La société du spectacle). Ora, é lícito esperar que o novo espaço lógico do simulacro produza um efeito de relevo sobre aquilo que era o tempo histórico».

    Fredric Jameson                                                                                         

Fredric Jameson, no excelente ensaio sobre Pós-modernismo (uso a edição italiana da Garzanti: Milano, 1989, pp. 110), propõe-nos uma sofisticada introdução à lógica cultural da moderna sociedade de massas, mas também mega-urbana e multinacional. A lógica cultural destas sociedades desenvolvidas e em contínua expansão «horizontal» é, como não podia deixar de ser, mais a lógica própria dos sistemas complexos do que a das comunidades micro-urbanas típicas dos inícios da modernidade. Ou melhor: estas sociedades vieram pôr fim à lógica substancialista destas comunidades simples, que se exprimia no  moderno. Lógica que se fundava na relação imediata, empírica entre o substracto territorial urbano e os sujeitos que nele se moviam segundo um módulo realista, naturalista e ambiental; em suma, que se fundava numa relação onde o modo de reconhecimento recíproco estava centrado na representação, na imediatidade ou no realismo da relação. Se esta organização micro-urbana da sociedade se fundava ainda na continuidade entre a geografia natural e a geometria urbana e o seu conteúdo era constituído por sujeitos socialmente bem determinados e portadores exclusivos da capacidade de harmonizar a natureza aos fins humanos, nas modernas sociedades sistémicas não só sobreveio ou irrompeu uma solução de continuidade entre geografia natural e a geometria urbana ou humana, mas também o próprio sujeito desapareceu, desaparecendo com ele, por um lado, a própria capacidade humana de pôr fins na profundidade temporal do futuro e, por outro, a possibilidade de estabelecer a genealogia histórico-social dos indivíduos e dos grupos sociais na profundidade temporal do passado. As sociedades desenvolvidas, ao transformarem-se em sistemas, eliminaram a dimensão da profundidade histórica, quer em relação ao passado quer em relação ao futuro. É esta a razão pela qual, no meu entendimento, elas suscitaram lógicas interpretativas que tendem a postular o «fim da história». Se tudo se converte em lógica sistémica não há diacronia e se não há diacronia não há história. É a ditadura do presente sobre o passado e sobre o futuro: de facto, estes são «lidos» simplesmente em chave integrativa, comparativa, «intertextual». Jameson sublinha as várias dimensões da «coupure», da ruptura, do «gap» que deu origem ao pós-moderno, não como fenómeno meramente superestrutural, mas como movimento que exprime o ser próprio das sociedades complexas. Estas dimensões exprimem-se, em primeiro lugar, ou, pelo menos, com maior realismo e evidência, na arquitectura, já que, como diz Jameson, ela é, de todas as artes, aquela que constitutivamente está mais próxima da economia (1989: 15), do fluxo económico da sociedade, e, por isso, aquela que maior poder tem de configurar a geometria urbana segundo as reais tendências estruturais da sociedade. Em sociedades onde se deu a laicização integral e universal de todas as relações através desse ser-imediatamente-disponível que é a mercadoria universal, é lógico que a tendência pós-moderna em arquitectura se apresente sob a forma de um populismo estético que refuta a «austeridade elitista (e utópica) do grande moderno arquitectónico» (1989: 75). «Noutras palavras», diz Jameson, «geralmente afirma-se que, por um lado, estes novos edifícios (pós-modernos) são obras populares; e, por outro, que respeitam o vernáculo do tecido urbano americano, isto é, que já não tentam, como as obras-primas e os monumentos do moderno avançado, inserir uma linguagem diferente, distinta, elevada, nova e utópica, no sistema de signos comercial e manifesto da cidade circunstante, mas antes, pelo contrário, tentam falar essa mesma linguagem usando o  seu léxico e a sua sintaxe, como emblematicamente se “aprendeu com Las Vegas”» (do livro-manifesto de Robert Venturi, Learning from Las Vegas, 1989: 75). Se o moderno avançado impôs prepotentemente uma ruptura na continuidade entre a geografia natural e a geometria urbana originária, o populismo pós-moderno tenta recuperar uma certa unidade, sem, todavia, regressar ao naturalismo das relações, imergindo-se totalmente nesse sistema de signos que se exprime como linguagem espontânea e universal do mundo mercantil, qual produto característico da própria modernidade. É, poder-se-ia dizer, um populismo mediado pelo laicismo integral que a linguagem mercantil introduziu nas sociedades desenvolvidas.

O fim de uma arquitectura construída originariamente a partir do modelo da relação comunitária simples e em continuidade harmoniosa com a natureza, provocado prepotentemente pelo moderno avançado, marca o início da auto-suficiência arquitectónica no duplo aspecto da relação humana não comunitária, abstracta e funcional, e com a natureza, não imediata. A expansão de tal lógica levou a que as relações sociais não pudessem funcionar com o sistema de reconhecimento fundado na representação, na identificação imediata da genealogia social dos indivíduos, mas sim através de códigos e sistemas de comunicação abstractos, sistemas de signos não apoiados imediatamente nas funções de reconhecimento empírico e territorial.

abstractização da sociedade, a sua transformação em sistema, levou a que a lógica espacial não só se transformasse qualitativamente, mas também a que ela própria triunfasse sobre a lógica temporal. Não só o espaço urbano, social, passou a ser abstracto, geometrizante e convencional, em vez de se desenvolver segundo o traço do espaço natural, mas também passou a ser «invasivo», isto é, passou a funcionalizar o próprio ritmo temporal às suas exigências sincrónicas ou sistémicas. Daqui que, desaparecida a profundidade diacrónica ou histórica, também desapareça o fio condutor que harmoniza a sociedade, que a unifica tendencialmente e que lhe imprime a marca indelével da sua ancestralidade, da sua génese, da sua genealogia: como consequência, desprende-se a força do heterogéneo, do inessencial, do residual, do marginal, do fragmentário, do degradado, que irrompem por entre os destroços do finalismo histórico. Não que os sistemas (pós-)modernos não sejam formalmente unitários; é, todavia, no seu interior que tudo são variáveis independentes, embora reguladas por funções. Mas, nos limites do sistema, supostas as constantes, tudo é possível. Até mesmo, como diz o Russell dos «Principia Mathematica», substituir Sócrates por uma torta e, portanto, a história da filosofia pela história da culinária. O «heterogéneo» é regulado por uma racionalidade imanente (ao sistema) que diz respeito não à substância, isto é, à condição da sua própria heterogeneidade, mas somente às suas relações, à forma. Quando a substância emerge, ela assume, portanto, um aspecto residual, fragmentário, inessencial, heterogéneo. Em tais sistemas o sujeito desaparece, dando lugar à função, ou melhor, o sujeito, quando emerge fora da função, surge como mero resíduo marginal, como fragmento, incapaz, portanto, de protagonismo histórico-social. E como, de facto, sem sujeito não há história, também a historicidade social se transforma em simples movimento aleatório e as relações dão virtualmente lugar à pura coexistência de amontoados de fragmentos inexpressivos, num espaço puramente plano, sem profundidade volumétrica. Tudo isto, obviamente, sob o pressuposto do funcionamento automático do sistema, enquanto auto-regulado, no plano formal.

A ausência do sujeito tem consequências significativas no próprio plano estético: desaparece, no plano intra-sistémico, a relação interno-externo e, por isso, desaparece a própria estética da expressão, como desaparece também a profundidade afectiva, dando lugar àquilo que Jameson designa por «intensities» ou «expressões afectivas», que, tal como o sujeito, são fragmentárias («que flutuam livremente» e que «são impessoais», 1989: 33). Pode-se falar de «descentração» do antigo espírito ou sujeito centrado (1989: 32), de um «espírito objectivo colectivo degradado» (1989: 51) ou mesmo do fim da distância crítica, sob a colonização sistémica do sujeito, do inconsciente e da própria natureza, restando como dispositivo final a «diferença que põe em relação» (ib.,61).

 Cinco modelos de profundidade

Segundo Jameson, o mundo pós-moderno, ao pôr fim aos cinco grandes modelos de profundidade (os das relações interno-externoessência-aparêncialatente-manifestoautenticidade-inautenticidadesignificante-significado), suscita uma cultura da superfície ou das superfícies, das superfícies planas, onde a própria história pode aparecer, ou aparece mesmo, como um «imenso simulacro fotográfico» e onde os eventos se tornam pseudo-eventos ou «espectáculos», tudo se tornando, de facto, «cultural», desaparecida a lógica que suportava a cisão entre a alta cultura e a cultura de massas (e veja-se, a este respeito, Adorno e Horkheimer [1944], 1997, Dialettica dell’illuminismo, Torino, Einaudi), como veio a acontecer, em arquitectura, com o populismo estético. A produção estética passa, então, a subordinar-se integralmente à lógica sistémica da produção de mercadorias em geral (1989: 14).

Esta lógica supõe, sem dúvida, a atomização, a fragmentação social e uma espécie de desrealização do mundo circundante que é recuperada sistemicamente através da circulação capilar de imagens-eventos, quais elementos mediáticos da comunicação e alma da «representação» empírica do mundo. A sobreposição da imagem-evento, com a força da sua imediatidade, à actividade cognitiva autónoma do sujeito-fragmento pós-moderno transforma o real em simulacro e a história em imagética «intertextual». O sujeito-fragmento é envolvido pelo dilúvio imagético e mediada ou construída, sem distância crítica, a sua representação do real e da história.

O conceito que Jameson avança com pretensões resolutivas é o de uma cartografia cognitiva global (cognitive mapping) que, sob o modelo da auto-orientação na totalidade urbana complexa, possa reconstruir o sujeito-fragmento, transformando-o em sujeito cognitivo e activo dotado da capacidade de irromper como autoconsciência por entre a confusão espacial e social dominante (1989: 95-102), por entre o império de uma lógica espacial incapaz de dar conta das posições relativas dos diversos elementos que compõem a sociedade, de uma genealogia histórico-social. Incapaz, precisamente, porque em tal lógica impera o mundo do aleatório e do residual como conteúdo substancial, isto é, como conteúdo histórico-social, ou melhor, como seu conteúdo substitutivo.

Uma filosofia ou uma estética pós-modernas sem uma cartografia cognitiva arriscam-se, pois – parece sugerir Jameson – a serem elas próprias residuais. (@Jas2011)

        

Notas de Viagem

* João de Almeida Santos

Permita-me o leitor que, desta vez, suspenda os habituais temas, sempre um pouco áridos, que aqui venho tratando e me atreva a fazer uma breve incursão na nobre literatura de viagens. Os lugares justificam-na: Sevilha, Córdova e Granada. Ou seja, lugares históricos de embate de civilizações, a islâmica e a católica. Lugares onde a história se encontra registada no seu mais elevado e sofisticado nível.

Quando, em pleno Agosto, cheguei, com a família, a Sevilha deparei com um cenário curioso: ao deslocar-me, a pé, da zona da Igreja de Macarena para o centro, às quatro da tarde, encontrei um autêntico deserto humano, fruto de uma mistura entre a “siesta” e as férias dos muitos sevilhanos que abandonaram a cidade e o calor. O centro, esse, estava repleto de turistas e dos resistentes indígenas que trabalham no turismo. Deslocámo-nos em direcção à Giralda e, depois, ao Real Alcázar, preparando a meticulosa visita do dia seguinte. De facto, quando visitei o Alcázar pela primeira vez fiquei literalmente arrasado pela beleza do Palácio, pelo fabuloso equilíbrio entre o geometrismo exacto do conjunto e a perfeição minuciosa e quase infinita das formas que o revestem e o envolvem. Trata-se de um excesso não excessivo. De um excesso que nos convida a pedir mais. De um tesouro tão trabalhado que nos esmaga com a simplicidade da sua beleza. Mas também de mistério. De imaginários olhares escondidos que resistiram ao tempo, eternizando-se por detrás daquelas redes ou filigranas em gesso, pontes entre o desejo oculto e o mundo exposto naqueles salões. De mistério e de fuga, de olhares fugazes, de traições e assassínios. Numa Andaluzia dos Califados e dos Sultanados árabes. E de Pedro, «O cruel», ou do poderoso Carlos V. Séculos de intensa vida política, de conquistas e de derrotas. E de cultura requintada. O Alcázar, misto de estilos, mas de imponente e difusa presença estética muçulmana, impressiona. Um verdadeiro complexo estético, mas simples na sua relação com o nosso olhar. Quase me atrevia a dizer que, tendo conhecido o Alcázar antes da Alhambra, a visão desta ficou condicionada por tanta beleza concentrada neste Palácio Real.
A Alhambra, claro, é um enorme complexo monumental que multiplica o que já se vira no Real Alcázar. Em primeiro lugar, a dimensão monumental dos Palácios e dos jardins, incluída a residência de Verão dos monarcas, o Generalife. Depois, a localização sobre Granada, em frente ao Bairro Albayzin, na colina oposta. Visão soberba de uma Granada única. O Albayzin e a Alhambra interagem como paisagens em diálogo, estruturando a verdadeira Granada. Qualquer uma das vistas – do alto do Albayzin para a Alhambra ou da Alcazaba ou dos Palácios Nazaríes para o Bairro – é fantástica. Depois, a riqueza interna dos palácios, a sua perfeição geométrica, minuciosa e abundante, deixa-nos perplexos, perante aquele excesso de minúsculas e preciosas formas e materiais que inundam paredes e tectos, gerando, quase paradoxalmente, uma incrível harmonia e simplicidade nos conjuntos. É um poema ao arrojo estilístico, à abundância de formas, à minúcia estética, como se os palácios fossem uma gigantesca filigrana em gesso, lá onde a própria escrita árabe assume um valor estético próprio, quase indiferente aos seus valores semânticos. Um poema à beleza construída. A Alhambra é bem o símbolo de um poder que se manteve séculos por estes lados da Andaluzia. Um poder majestático, mas altamente sofisticado, com um profundo sentido do intemporal.
Antes de chegarmos a Granada, detivemo-nos um dia em Córdova. Quisemos revisitar a Mesquita, hoje Catedral católica de Córdova. Também já a conhecia, desde os meus tempos de liceu até visitas recentes. E confesso que quanto mais a visito mais penoso se torna o percurso, porque não consigo compreender aqueles enxertos católicos num monumento tão diferente e tão belo, uma floresta de colunas onde uma luminosidade coada nos convida à reflexão distante e à serenidade. É um “non-sens” aquela presença difusa em toda a Mesquita dos tradicionais fragmentos iconográficos católicos que chupam literalmente a alma do monumento e a diluem no seu espaço ritualizado, neutralizando-a. Lembra-me Santa Maria sopra Minerva e aqueles cristãos primitivos que construíam os seus templos romanos sobre os próprios fundamentos dos templos pagãos. Não, não estamos perante um diálogo de civilizações. Estamos perante um cruel esmagamento espiritual de uma por outra.

¿Por qué llora Quintana?

«La gentileza de los desconocidos» 
Cuento de Antonio Muñoz Molina»
(«Nada del Otro Mundo» – Cuentos)

Una interpretación 

Antonio Muñoz Molina nació en Úbeda (Jaén), España, en el ’56 y es considerado como uno de los novelistas más significativos de la literatura española actual. Estudió historia del arte y periodismo en las universidades de Granada y de Madrid. Su primer libro resultó de la compilación, en 1984, de algunos artículos que había publicado en diversos periódicos. Se llama El Robinson urbano. Madrid es un tema recurrente en sus obras. Por ejemplo, Beltenebros (del ‘89), Los misterios de Madrid (del ‘92) y El dueño del secreto (del ’94). También en nuestro cuento la historia ocurre en Madrid. Obtuvo dos premios con dos importantes obras: El invierno en Lisboa (del ’87), Premio de la Crítica y el Nacional de Narrativa, y El jinete polaco (del ’92), Premio Planeta. En 1995 fue elegido académico de la Real Academia Española.

¿Qué podemos decir sobre este cuento, que sólo aparentemente es un cuento policíaco, haciendo una reflexión general en torno a los personajes y a los valores que mueven sus vidas?

1. En primer lugar, hay que empezar por el título del cuento: «la gentileza de los desconocidos». Realmente, se trata de una historia entre dos desconocidos donde, en la superficie, se ve funcionando un tipo de relación que podemos definir con la palabra gentileza.

2. Sin embargo, verdaderamente se trata de un encuentro entre dos soledades muy diferentes, pero comunes en su profunda inadaptación respecto a la sociedad. Incluso la soledad de Quintana que, aunque sea experto en ventas de libros, en su intimidad – y en la realidad – mantiene una relación patológica con los otros, una relación movida por un sentimiento de destrucción, mientras que el encuentro con la soledad de Walberg empieza a producir efectos que lo alejan de su anómala estructura psicológica, emergiendo algo parecido con una segunda personalidad llena de humanidad, incluso de una verdadera sociabilidad rudimentaria (como se puede ver en el acto de tomar té), como si se tratara de pura esquizofrenia.

3. En mi opinión se trata, sin duda alguna, de una reflexión sobre la soledad en tres niveles:

a) por un lado, cuando la soledad se presenta como resultado objetivo de un recorrido de vida, del conjunto de los sucesos de nuestra vida individual, se presenta como algo inevitable, como una cárcel a donde la vida nos ha conducido;
b) por otro lado, cuando la soledad representa una opción espiritual, la elección voluntaria del propio aislamiento espiritual;
c) y, finalmente, cuando la soledad es casi un imperativo físico del ordenamiento del territorio urbano, sobre todo metropolitano.

Nuestro personaje principal explota la síntesis de estos tres niveles:

a) perdió la amistad de sus familiares, de sus amigos; perdió su trabajo y el respeto de la comunidad donde vivía; fue condenado a dos años de cárcel porque tuvo una relación amorosa con una joven de quince años, su alumna;
b) por eso, tuvo que transferirse a Madrid, ciudad inmensa y donde no conocía a nadie;
c) era uno de los más reputados catedráticos latinistas españoles siendo su cotidiano ocupado sobre todo por los estudios antiguos, alejando los problemas de la vida moderna, aunque trabajara en un pequeño centro de estudios, haciendo tareas burocráticas.

En Madrid, Walberg vive solo y sin referencias exteriores.Vive socialmente y subjetivamente aislado. Sin embargo, como ser humano, con sus pulsaciones vitales, no puede dejar de tener necesidad de algunas referencias exteriores, incluso referencias afectivas. Por eso empieza a depender cada vez más de la gentileza de eso desconocido que se llama Quintana. Gentileza que va convirtiéndose en amistad, complicidad, reparto. La relación que mantiene con este personaje sólo es posible porque Walberg vive en aislamiento social radical: Quintana es su puente con el exterior, pero también con su interioridad, con su misma historia personal. Por ejemplo, con Quintana Walberg hablará de su historia con la joven de quince años mientras jamás había pensado en hacerlo con alguien. Yo creo que Quintana, el cortador de labios y asesino de Walberg, es un pretexto de Molina para hablar de la soledad de Walberg con profundidad:
a) por un lado, para subrayar el lado humano, demasiado humano de Walberg, que aunque ya sepa quién es el asesino y que éste lo asesinará también, consigue decirle que no le siente odio y que ni siquiera puede decirle que haya dejado de ser amigo suyo;
b) por otro lado, subrayando la tragedia, pero recuperando la dimensión de autenticidad que siempre emerge en las relaciones humanas más profundas, Molina recupera un sentido para la vida atormentada de Walberg cuando, al final, pone en escena la joven, buscando el afecto perdido de un Walberg que desgraciadamente ha muerto sin saber que el suyo, finalmente, era un afecto profundamente correspondido, sin saber que el futuro podría darle la posibilidad de, con el afecto de una joven mujer, rescatar su torpe vida, sus desgracias, su trágico destino;
c) ¿Finalmente, por qué llora Quintana, el asesino compulsivo? Yo creo que también él compartió el flujo de humanidad que se desarrolló entre estos dos desconocidos, algo más allá de la gentileza, quién sabe si aquel nexo vital que sólo emerge en situaciones tan radicales como la que vivieron estos dos desconocidos: la soledad compartida, el amor y la muerte.

Democracia Pós-Eleitoral – um Paradoxo!

(Publicado também em www.tendencias21.net/BLOGS_r25.html)

NOVO: «A classe política», em O COMENTÁRIO DO DIA]

En este ensayo intento hacer una crítica de los que, con demasiada frecuencia y ligereza, intentan sepultar, sin funeral, a la democracia representativa en nombre de ideas que, de tan viejas, nos hacen remontar a los tiempos de las corporaciones o de las visiones organicistas de la sociedad. ¿Qué es una democracia pos-electoral? ¿Qué son formas no electivas de representación? ¿Qué instrumentos tiene el ciudadano para hacerse representar por los que no puede escoger libremente? Sobre todo hoy que el ciudadano tiene a su disposición miles de medios para protagonizarse públicamente y para tomar racionalmente sus decisiones. Claro, la ciudadanía no es directo resultado del principio electivo, porque es más amplia y más compleja. Pero nadie conoce ningún modo más eficaz de actuarla que el ejercicio del voto para escoger a sus representantes o para decidir sobre cuestiones de conciencia (referéndum). En realidad, la historia nos enseña que hay que tener siempre muchas dudas sobre las concepciones de la sociedad que se fundan en visiones científicas de la sociedad, donde la legitimación de los procesos sociales ya no es narrativa, pero, sí, científica. Y tampoco parece muy ajustado a la naturaleza de la democracia que sean los independientes o los representantes de las corporaciones los que mejor interpretan la voluntad general. Todos sabemos que las dictaduras de izquierda han siempre encontrado sus fundamentos en el materialismo histórico, la ciencia de la historia de matriz marxista, que conocía con rigor las leyes del devenir histórico hacia la sociedad sin clases ni Estado. Sabemos también que lugar han ocupado en la historia del poder político las representaciones corporativas y los anti-políticos. Más que reinventar el pasado, parece oportuno potenciar y proyectar en el futuro los principios fundamentales de la democracia representativa.

Sumário: 1. Uma «agorá» electrónica. 2. Rosanvallon e a «democracia pós-eleitoral». 3. «Discrasia da representação». 4. Reapropriação da soberania confiscada. 5. O sistema representativo e o «discurso do impolítico».

Uma «agorá» electrónica

Este título – «democracia pós-eleitoral» (Rosanvallon) – vem juntar-se a outros igualmente sugestivos, como «democracia pós-representativa» ou «democracia do público», num momento em que a ideia de «público» já está, ela própria, em profunda mutação no interior do novo paradigma comunicacional inaugurado pela Rede. Ou seja, a ideia de «público» como «espectador» (ouvinte ou leitor) – que era o referente do velho «modelo mediático de comunicação» e, por homologia, da própria política – parece estar a tornar-se residual perante a crescente generalização da comunicação em rede, onde os receptores já são também emissores, mas onde sobretudo esta relação emissor-receptor foi superada pela ideia de «rede de comunicação», de sistema comunicacional onde as relações são horizontais, sem centro nem periferias, e onde os sujeitos deram lugar a variáveis em relações múltiplas e não hierarquizadas entre si. A ideia de «público» confunde-se, pois, agora, com um imenso «espaço intermédio» universal, uma espécie de «agorá» electrónica sem lugar nem fronteiras, onde decorre o processo discursivo e deliberativo e para onde convergem todos os actores sociais. Um espaço com a sua própria lógica, mas com a imensa capacidade de albergar internamente lógicas diferentes.

Rosanvallon e a «democracia pós-eleitoral»

Pierre Rosanvallon, num ensaio intitulado «Reinventar a democracia», publicado há cerca de dois anos no «Le Monde» (8/10.05.2009), por outras palavras, acabou por se fazer também intérprete das novas exigências que se põem hoje à democracia. O que Rosanvallon diz é que temos de fazer três operações no interior do universo democrático, se quisermos responder aos novos desafios. Em primeiro lugar, alargar procedimentos e instituições para além do sistema eleitoral maioritário. Ou seja, é preciso «inventar formas não eleitorais de representação», diz ele. Depois, é necessário assumir a democracia como uma «forma social», uma «forma de sociedade», ou seja, como algo mais do que um simples regime. Em terceiro lugar, há que dar lugar a uma democracia-mundo, sobretudo através de um relançamento da cidadania para além da sua expressão eleitoral. O que vejo nestas teses de Rosanvallon é uma tentativa de captar o que já flui no interior dos sistemas democráticos e que parece já não caber no interior dos módulos da democracia clássica. Designadamente no interior do modelo representativo de gestão do chamado «interesse geral». Mas, na verdade, para interpretar e reorientar o novo que flui não é possível fazê-lo, como quer Rosanvallon, através da subalternização do «princípio electivo» e da «representação», da ulterior extensão do conceito de democracia para além das larguíssimas fronteiras que ela conquistou (até à própria democracia social) ou sequer da dissociação da ideia de cidadania relativamente ao princípio electivo, uma vez que é através deste princípio que a cidadania melhor se operacionaliza, determinando a própria constituição institucional da democracia. Esta pressa em sepultar o que faz da democracia representativa o menos mau dos sistemas políticos, designadamente através da glorificação das entidades independentes ou das representações mais ou menos corporativas, não tem certamente em consideração que a sua história só poderá ser contada em plenitude a partir da segunda metade do Século XX, descontada a sua fase censitária (Séc. XIX), as duas guerras mundiais (1914-1945), os totalitarismos do Século XX (1922-1945) e todos os efeitos que estes factos produziram sobre um sistema tão delicado como é o sistema democrático representativo. Até mesmo na segunda metade do Século XX o bipolarismo político, ideológico e estratégico-militar representou um violento espartilho que impediu a democracia representativa de se exprimir em toda a sua plenitude! E, por isso, diria até que, ao contrário de Rosanvallon, do que se trata, cada vez mais, é de retomar a sua matriz originária interrompida ou nunca plenamente cumprida: 1) a centralidade do indivíduo no sistema; 2) o revigoramento da representação (do mandato-não imperativo) e 3) o aperfeiçoamento de sistemas electivos e de representações supranacionais (com a velha ideia iluminista de cidadania universal) que já existem (por exemplo, o Parlamento Europeu) e que até têm dado boas provas.

«Discrasia da representação»

Em boa verdade, o que se passa – mas era disso que Rosanvallon devia falar – é que a sociedade moderna produziu canais e formas de participação e de expressão política que transbordam, de facto, as margens do sistema representativo, agindo, depois, sobre ele, com uma tal «pressão ambiental» que acabam por gerar aquilo a que eu chamo «discrasia da representação» ou, mais simplesmente, «anemia democrática». E por várias razões: 1. porque a política democrática foi forçada a deslocar o seu centro geométrico das clássicas estruturas de participação e de expressão política para o «espaço público mediatizado», sobretudo o electrónico, ou seja, para um não-lugar, anulando totalmente as fronteiras do tradicional espaço deliberativo, que eram espaciais e físicas; 2. ao fazê-lo, deslocou também o centro do poder deliberativo para a instância mediática, em perfeita e total homologia discursiva; 3. e ao retirar o seu centro geométrico das estruturas de participação e de expressão política tradicionais, comunitárias, associativas, localmente enraizadas e estruturadas, que eram também estruturas de natureza representativa, deslocando-o para o novo espaço público mediático, a política subtraiu, ipso facto, poder ao cidadão, porque induziu um processo de partilha da soberania delegada entre a representação institucional e instâncias não electivas, resultando daqui também uma evidente «confusão de géneros» e uma maior «discrasia da representação política». Não se tratou, evidentemente, de uma livre opção voluntária ou conjuntural, mas de uma profunda mutação estrutural na própria natureza da política: da política de matriz orgânica passou-se para a política de matriz comunicacional. Só que esta mudança estrutural acabou por gerar – devido ao poder dos media, em particular da televisão – um fenómeno de total homologação do discurso político ao discurso mediático que viria a afectar o próprio mecanismo da «delegação de soberania» e da «representação». São, de resto, muito bem conhecidos os efeitos da irrupção da televisão na comunicação política, a partir dos anos sessenta do Século passado.

Reapropriação da soberania confiscada

Ora, a verdade é que a ideia de relançamento da cidadania só será compreensível e aceitável se ela representar, em primeiro lugar, uma reapropriação, pelo cidadão, da soberania confiscada, antes, pelos directórios partidários («partidocracia») e, agora, pelos directórios mediáticos («mediocracia»), e, em segundo lugar, uma revalorização do valor de uso do voto, designadamente através de um reforço da «cidadania activa» a montante e a jusante dos processos eleitorais, mas sempre em função deles. Porque se alguma vantagem poderia haver na deslocação do centro da deliberação política para esse não-lugar do novo espaço público (que, afinal, acabou por, na era mediática, se confundir com as redacções das rádios, dos jornais e dos telejornais) ela só poderia acontecer se se verificasse uma efectiva emergência do cidadão individual como protagonista político directo, dotado de autonomia discursiva pública e com capacidade efectiva de condicionar as próprias «agendas» pública e política. O que, de todo, não foi possível na era mediática por falta de meios autónomos de acesso ao espaço público – que foi sempre um espaço mais ou menos condicionado – e por força da lógica dominante das grandes organizações – dos media aos partidos políticos. É claro que os media permitiram um alargamento da intervenção política para além da esfera das elites políticas tradicionais (do «parlamentarismo» à «democracia de partidos»), mas nem por isso deixaram de agir no interior de uma lógica que era equivalente à das grandes organizações partidárias («catch all parties« versus «catch all media»). Lógicas que, de resto, se replicavam. Ora é este panorama que hoje começa a estar superado, tantos são os canais disponíveis de acesso a um novíssimo espaço público que está a convergir cada vez mais para esse «espaço intermédio» universal que designamos por Rede. O que aconteceu foi que, com o espaço público mediático, o indivíduo singular estava mais identificado funcionalmente com o espectador, o leitor ou o ouvinte do que com o «cidadão activo», não dispondo, por isso, de virtuais capacidades operativas de livre estruturação do espaço público. Isto só viria a acontecer com a Rede. E, aqui, sim, passou a ser possível construir uma «democracia participativa» plenamente compatível com a democracia representativa, praticável a partir desse não-lugar que é a Rede e centrada num cidadão não dependente nem dos «gatekeepers» mediáticos nem dos velhos comunitarismos militantes. Ou seja, aqui passou a ser possível superar os problemas que resultaram da emergência dos media como directos protagonistas políticos e como espaço público de acesso condicionado, sem transgredir aquelas que são as bases essenciais da democracia representativa, o «princípio electivo» e o «indivíduo» enquanto seu suporte ontológico decisivo. Além disso, o exercício democrático, nesse plano superior da comunicação em rede, poderá constituir sem dúvida um enorme upgrade naquele que continua a ser o menos mau dos sistemas políticos disponíveis. E a verdade é que nunca como hoje os cidadãos tiveram tantos meios de livre acesso ao espaço público, embora reconheça que também nunca como hoje os poderes fortes organizados tiveram tantos meios para agir instrumental e eficazmente sobre as consciências.

O sistema representativo e o «discurso do impolítico»

Uma coisa é certa: a «democracia permanente», ou seja, como «forma de sociedade», como pretende Rosanvallon, tenderá sempre a abafar o «discurso do impolítico», do politicamente irredutível, que vale socialmente muito, mas que nunca deve ser convertido numa função do poder, mesmo que seja o democrático. Ora eu creio que a democracia representativa ainda continua a ser aquela «forma política» que melhor garante a expressividade e a autonomia do impolítico socialmente útil e relevante. Como alguém diria, há mais vida para além da política. E a política tem mesmo o dever de a preservar. E que melhor sistema do que o sistema representativo para garantir a autonomia da esfera do não-político? O velho e lúcido Benjamin Constant, no seu discurso de 1819, no Real Ateneu de Paris, sobre a «liberdade dos antigos comparada com a dos modernos», formulou esta distinção de forma admirável: ao contrário dos antigos gregos, a representação política existe para que os cidadãos possam perseguir os seus fins privados em total liberdade, sem que, com isso, deixem de cuidar convenientemente do interesse público comum (através dos representantes). É certo que cada vez mais se fala de «aldeia global», mas não é preciso exagerar, procurando restaurar a velha democracia directa de ateniense memória, mesmo que os novos meios pareçam torná-la possível! Não nos esqueçamos que na Grécia antiga escravos, estrangeiros e mulheres não participavam na gestão da polis, porque não eram considerados cidadãos. @Jas2011.

João de Almeida Santos

(Publicado também em www.tendencias21.net/BLOGS_r25.html)

NOVO: «A classe política», em O COMENTÁRIO DO DIA]

En este ensayo intento hacer una crítica de los que, con demasiada frecuencia y ligereza, intentan sepultar, sin funeral, a la democracia representativa en nombre de ideas que, de tan viejas, nos hacen remontar a los tiempos de las corporaciones o de las visiones organicistas de la sociedad. ¿Qué es una democracia pos-electoral? ¿Qué son formas no electivas de representación? ¿Qué instrumentos tiene el ciudadano para hacerse representar por los que no puede escoger libremente? Sobre todo hoy que el ciudadano tiene a su disposición miles de medios para protagonizarse públicamente y para tomar racionalmente sus decisiones. Claro, la ciudadanía no es directo resultado del principio electivo, porque es más amplia y más compleja. Pero nadie conoce ningún modo más eficaz de actuarla que el ejercicio del voto para escoger a sus representantes o para decidir sobre cuestiones de conciencia (referéndum). En realidad, la historia nos enseña que hay que tener siempre muchas dudas sobre las concepciones de la sociedad que se fundan en visiones científicas de la sociedad, donde la legitimación de los procesos sociales ya no es narrativa, pero, sí, científica. Y tampoco parece muy ajustado a la naturaleza de la democracia que sean los independientes o los representantes de las corporaciones los que mejor interpretan la voluntad general. Todos sabemos que las dictaduras de izquierda han siempre encontrado sus fundamentos en el materialismo histórico, la ciencia de la historia de matriz marxista, que conocía con rigor las leyes del devenir histórico hacia la sociedad sin clases ni Estado. Sabemos también que lugar han ocupado en la historia del poder político las representaciones corporativas y los anti-políticos. Más que reinventar el pasado, parece oportuno potenciar y proyectar en el futuro los principios fundamentales de la democracia representativa.

Sumário: 1. Uma «agorá» electrónica. 2. Rosanvallon e a «democracia pós-eleitoral». 3. «Discrasia da representação». 4. Reapropriação da soberania confiscada. 5. O sistema representativo e o «discurso do impolítico».

Uma «agorá» electrónica

Este título – «democracia pós-eleitoral» (Rosanvallon) – vem juntar-se a outros igualmente sugestivos, como «democracia pós-representativa» ou «democracia do público», num momento em que a ideia de «público» já está, ela própria, em profunda mutação no interior do novo paradigma comunicacional inaugurado pela Rede. Ou seja, a ideia de «público» como «espectador» (ouvinte ou leitor) – que era o referente do velho «modelo mediático de comunicação» e, por homologia, da própria política – parece estar a tornar-se residual perante a crescente generalização da comunicação em rede, onde os receptores já são também emissores, mas onde sobretudo esta relação emissor-receptor foi superada pela ideia de «rede de comunicação», de sistema comunicacional onde as relações são horizontais, sem centro nem periferias, e onde os sujeitos deram lugar a variáveis em relações múltiplas e não hierarquizadas entre si. A ideia de «público» confunde-se, pois, agora, com um imenso «espaço intermédio» universal, uma espécie de «agorá» electrónica sem lugar nem fronteiras, onde decorre o processo discursivo e deliberativo e para onde convergem todos os actores sociais. Um espaço com a sua própria lógica, mas com a imensa capacidade de albergar internamente lógicas diferentes.

Rosanvallon e a «democracia pós-eleitoral»

Pierre Rosanvallon, num ensaio intitulado «Reinventar a democracia», publicado há cerca de dois anos no «Le Monde» (8/10.05.2009), por outras palavras, acabou por se fazer também intérprete das novas exigências que se põem hoje à democracia. O que Rosanvallon diz é que temos de fazer três operações no interior do universo democrático, se quisermos responder aos novos desafios. Em primeiro lugar, alargar procedimentos e instituições para além do sistema eleitoral maioritário. Ou seja, é preciso «inventar formas não eleitorais de representação», diz ele. Depois, é necessário assumir a democracia como uma «forma social», uma «forma de sociedade», ou seja, como algo mais do que um simples regime. Em terceiro lugar, há que dar lugar a uma democracia-mundo, sobretudo através de um relançamento da cidadania para além da sua expressão eleitoral. O que vejo nestas teses de Rosanvallon é uma tentativa de captar o que já flui no interior dos sistemas democráticos e que parece já não caber no interior dos módulos da democracia clássica. Designadamente no interior do modelo representativo de gestão do chamado «interesse geral». Mas, na verdade, para interpretar e reorientar o novo que flui não é possível fazê-lo, como quer Rosanvallon, através da subalternização do «princípio electivo» e da «representação», da ulterior extensão do conceito de democracia para além das larguíssimas fronteiras que ela conquistou (até à própria democracia social) ou sequer da dissociação da ideia de cidadania relativamente ao princípio electivo, uma vez que é através deste princípio que a cidadania melhor se operacionaliza, determinando a própria constituição institucional da democracia. Esta pressa em sepultar o que faz da democracia representativa o menos mau dos sistemas políticos, designadamente através da glorificação das entidades independentes ou das representações mais ou menos corporativas, não tem certamente em consideração que a sua história só poderá ser contada em plenitude a partir da segunda metade do Século XX, descontada a sua fase censitária (Séc. XIX), as duas guerras mundiais (1914-1945), os totalitarismos do Século XX (1922-1945) e todos os efeitos que estes factos produziram sobre um sistema tão delicado como é o sistema democrático representativo. Até mesmo na segunda metade do Século XX o bipolarismo político, ideológico e estratégico-militar representou um violento espartilho que impediu a democracia representativa de se exprimir em toda a sua plenitude! E, por isso, diria até que, ao contrário de Rosanvallon, do que se trata, cada vez mais, é de retomar a sua matriz originária interrompida ou nunca plenamente cumprida: 1) a centralidade do indivíduo no sistema; 2) o revigoramento da representação (do mandato-não imperativo) e 3) o aperfeiçoamento de sistemas electivos e de representações supranacionais (com a velha ideia iluminista de cidadania universal) que já existem (por exemplo, o Parlamento Europeu) e que até têm dado boas provas.

«Discrasia da representação»

Em boa verdade, o que se passa – mas era disso que Rosanvallon devia falar – é que a sociedade moderna produziu canais e formas de participação e de expressão política que transbordam, de facto, as margens do sistema representativo, agindo, depois, sobre ele, com uma tal «pressão ambiental» que acabam por gerar aquilo a que eu chamo «discrasia da representação» ou, mais simplesmente, «anemia democrática». E por várias razões: 1. porque a política democrática foi forçada a deslocar o seu centro geométrico das clássicas estruturas de participação e de expressão política para o «espaço público mediatizado», sobretudo o electrónico, ou seja, para um não-lugar, anulando totalmente as fronteiras do tradicional espaço deliberativo, que eram espaciais e físicas; 2. ao fazê-lo, deslocou também o centro do poder deliberativo para a instância mediática, em perfeita e total homologia discursiva; 3. e ao retirar o seu centro geométrico das estruturas de participação e de expressão política tradicionais, comunitárias, associativas, localmente enraizadas e estruturadas, que eram também estruturas de natureza representativa, deslocando-o para o novo espaço público mediático, a política subtraiu, ipso facto, poder ao cidadão, porque induziu um processo de partilha da soberania delegada entre a representação institucional e instâncias não electivas, resultando daqui também uma evidente «confusão de géneros» e uma maior «discrasia da representação política». Não se tratou, evidentemente, de uma livre opção voluntária ou conjuntural, mas de uma profunda mutação estrutural na própria natureza da política: da política de matriz orgânica passou-se para a política de matriz comunicacional. Só que esta mudança estrutural acabou por gerar – devido ao poder dos media, em particular da televisão – um fenómeno de total homologação do discurso político ao discurso mediático que viria a afectar o próprio mecanismo da «delegação de soberania» e da «representação». São, de resto, muito bem conhecidos os efeitos da irrupção da televisão na comunicação política, a partir dos anos sessenta do Século passado.

Reapropriação da soberania confiscada

Ora, a verdade é que a ideia de relançamento da cidadania só será compreensível e aceitável se ela representar, em primeiro lugar, uma reapropriação, pelo cidadão, da soberania confiscada, antes, pelos directórios partidários («partidocracia») e, agora, pelos directórios mediáticos («mediocracia»), e, em segundo lugar, uma revalorização do valor de uso do voto, designadamente através de um reforço da «cidadania activa» a montante e a jusante dos processos eleitorais, mas sempre em função deles. Porque se alguma vantagem poderia haver na deslocação do centro da deliberação política para esse não-lugar do novo espaço público (que, afinal, acabou por, na era mediática, se confundir com as redacções das rádios, dos jornais e dos telejornais) ela só poderia acontecer se se verificasse uma efectiva emergência do cidadão individual como protagonista político directo, dotado de autonomia discursiva pública e com capacidade efectiva de condicionar as próprias «agendas» pública e política. O que, de todo, não foi possível na era mediática por falta de meios autónomos de acesso ao espaço público – que foi sempre um espaço mais ou menos condicionado – e por força da lógica dominante das grandes organizações – dos media aos partidos políticos. É claro que os media permitiram um alargamento da intervenção política para além da esfera das elites políticas tradicionais (do «parlamentarismo» à «democracia de partidos»), mas nem por isso deixaram de agir no interior de uma lógica que era equivalente à das grandes organizações partidárias («catch all parties« versus «catch all media»). Lógicas que, de resto, se replicavam. Ora é este panorama que hoje começa a estar superado, tantos são os canais disponíveis de acesso a um novíssimo espaço público que está a convergir cada vez mais para esse «espaço intermédio» universal que designamos por Rede. O que aconteceu foi que, com o espaço público mediático, o indivíduo singular estava mais identificado funcionalmente com o espectador, o leitor ou o ouvinte do que com o «cidadão activo», não dispondo, por isso, de virtuais capacidades operativas de livre estruturação do espaço público. Isto só viria a acontecer com a Rede. E, aqui, sim, passou a ser possível construir uma «democracia participativa» plenamente compatível com a democracia representativa, praticável a partir desse não-lugar que é a Rede e centrada num cidadão não dependente nem dos «gatekeepers» mediáticos nem dos velhos comunitarismos militantes. Ou seja, aqui passou a ser possível superar os problemas que resultaram da emergência dos media como directos protagonistas políticos e como espaço público de acesso condicionado, sem transgredir aquelas que são as bases essenciais da democracia representativa, o «princípio electivo» e o «indivíduo» enquanto seu suporte ontológico decisivo. Além disso, o exercício democrático, nesse plano superior da comunicação em rede, poderá constituir sem dúvida um enorme upgrade naquele que continua a ser o menos mau dos sistemas políticos disponíveis. E a verdade é que nunca como hoje os cidadãos tiveram tantos meios de livre acesso ao espaço público, embora reconheça que também nunca como hoje os poderes fortes organizados tiveram tantos meios para agir instrumental e eficazmente sobre as consciências.

O sistema representativo e o «discurso do impolítico»

Uma coisa é certa: a «democracia permanente», ou seja, como «forma de sociedade», como pretende Rosanvallon, tenderá sempre a abafar o «discurso do impolítico», do politicamente irredutível, que vale socialmente muito, mas que nunca deve ser convertido numa função do poder, mesmo que seja o democrático. Ora eu creio que a democracia representativa ainda continua a ser aquela «forma política» que melhor garante a expressividade e a autonomia do impolítico socialmente útil e relevante. Como alguém diria, há mais vida para além da política. E a política tem mesmo o dever de a preservar. E que melhor sistema do que o sistema representativo para garantir a autonomia da esfera do não-político? O velho e lúcido Benjamin Constant, no seu discurso de 1819, no Real Ateneu de Paris, sobre a «liberdade dos antigos comparada com a dos modernos», formulou esta distinção de forma admirável: ao contrário dos antigos gregos, a representação política existe para que os cidadãos possam perseguir os seus fins privados em total liberdade, sem que, com isso, deixem de cuidar convenientemente do interesse público comum (através dos representantes). É certo que cada vez mais se fala de «aldeia global», mas não é preciso exagerar, procurando restaurar a velha democracia directa de ateniense memória, mesmo que os novos meios pareçam torná-la possível! Não nos esqueçamos que na Grécia antiga escravos, estrangeiros e mulheres não participavam na gestão da polis, porque não eram considerados cidadãos. @Jas2011.

Política e Comunicação no Portugal de Hoje

João de Almeida Santos

[Conferencia sobre «Poder Político e Comunicación». II Seminario Ibérico de investigación en comunicación. Universidade de Vigo. Facultade de Ciencias Sociais e de Comunicación. Castelo de Soutomaior. Pontevedra. 21.12.2010]

(Nova versão revista. Agora também em http://www.tendencias21.net/ – blog «Comunicacion/es»)

*

En esta conferencia he intentado describir críticamente el panorama de la comunicación política en Portugal, sus modelos dominantes, posición y función de la prensa, de la televisión y de la Red en la comunicación política, paralelismo político-mediático, cambios y perspectivas hacia un futuro que se vuelve cada vez más inminente, sobretodo porque un nuevo modelo de comunicación reticular ya está poniendo nuevas y urgentes exigencias a la política democrática. En Portugal, la prensa escrita está perdiendo cada vez más lectores, siguiendo una tendencia general, mientras la televisión mantiene altos niveles de audiencia y los usuarios de la Red son cada vez más numerosos, poniéndose esta como espacio intermedio para donde todos los actores están convergiendo, disputando la dominancia al viejo modelo mediático de comunicación. La política en Portugal no sigue siendo muy diferente respecto a otros países occidentales. Sus modelos equivalen a los de las otras democracias occidentales y sus índices son también equivalentes. Es por eso que esta reflexión concluye que las soluciones para la política en Portugal son las mismas que hay que proponer para las otras democracias. Claro que nuestro modelo es un poco diferente del «modelo liberal» porque las relaciones y las intensidades internas del modelo que Hallin y Mancini llaman «pluralista polarizado» (relaciones Estado-medios, profesionalismo, niveles de información ciudadana, códigos éticos, etc.), en el que Portugal se incluye, son muy diferentes de las que ocurren en el «modelo liberal» o en el «modelo democrático corporativo» de Norte Europa. Además, trátase de una joven democracia, con menos de cuarenta años de vida, con una tradición institucional, política y administrativa muy joven, pero también muy compleja y difícil, que hay que seguir reformando con alguna profundidad en muchos de sus aspectos.

I.

A. O tema «Poder político e comunicação» convoca a uma inovação obrigatória na teoria política: a simbiose entre a teoria política clássica e a teoria de comunicação. Sobretudo hoje que o paradigma comunicacional está a mudar radicalmente, com o modelo reticular de comunicação a fagocitar progressivamente o velho e poderoso modelo mediático de comunicação, num território onde a disputa pelas audiências continua a determinar os ritmos de afirmação do poder mediático e do poder político. Uma evolução que também está – como veremos – a acontecer em Portugal.

B. Portugal não constitui, de facto, uma excepção nas relações entre «política e comunicação», relativamente às outras democracias ocidentais. Tem uma democracia estabilizada, um sistema de partidos estabilizado, um nível de participação política razoável, com uma abstenção média durante os anos da democracia de 27,83% (de 1975 a 2009, embora nos últimos anos tenha vindo a aumentar), vários grupos económicos de comunicação, ou com presença na comunicação, com alguma dimensão e, portanto, um subsistema comunicacional estruturado e relativamente robusto, bem entroncado no sistema político democrático.

Os principais Grupos económicos com presença na comunicação social são os seguintes:

Controlinvest (Sport/TV, «Diário de Notícias», «Jornal de Notícias», TSF), RTP, serviço público de rádio e televisão (RTP1, RTP2, RTPN, RDP e parte da Agência de Notícias LUSA), Impresa (SIC, «Expresso», «Visão»), Media Capital/Prisa (TVI, Rádio Comercial), Cofina («Correio da Manhã», Jornal de Negócios), Sonae («Público»), Ongoing («Diário Económico», ETV), Estado/Privados (Agência de Notícias «Lusa») etc.. Do «Sol», semanário com uma venda média de cerca de 51 mil exemplares no 1º Semestre de 2010, o accionista maioritário é um Grupo luso-angolano (Newshold). Quanto a partidos, temos cinco com representação parlamentar (230 Deputados): PS (36,56%, 97 Dep.), PSD (29,11%, 81 Dep.), CDS/PP (10,43%, 21 Dep.), BE (9,81%, 16 Dep), PCP/PEV (7,8%, 15 Dep.). Existe também um partido ecologista «Os verdes» (PEV), que, aliás, tem Grupo Parlamentar. E, todavia, como nunca se apresentou autonomamente a votos, não se sabe exactamente o que vale ou se, sequer, existe, visto o limitado score eleitoral do PCP, com o qual está aliado. Na verdade, o que se diz é que é verde por fora e vermelho por dentro… ou seja, que é um desdobramento parlamentar do PCP, o único partido que, através deste artifício, consegue dispor de dois grupos parlamentares na Assembleia da República. Curiosidades lusas!

sistema eleitoral é proporcional (Método d’Hondt) e tem até produzido várias (três) maiorias absolutas (equivalente a 12 anos de governo), o que é algo contraditório com a sua própria natureza. O que, todavia, prova a sabedoria dos eleitores… o seu desejo de estabilidade política.

C. Daniel Hallin e Paolo Mancini, no seu excelente livro «Comparing Media Systems. Three Models of Media and Politics (Cambridge University Press, 2004; edição italiana da Laterza, Roma-Bari, 2009, a partir da qual passarei a citar»), colocam o subsistema mediático português num modelo que eles designam como «pluralista polarizado» e no qual se incluem também a Espanha, a França, a Itália e a Grécia. Neste modelo, a política sobredetermina o sistema mediático de forma mais intensa do que nos outros dois modelos – que são o «liberal» (América, Canadá, Reino Unido) e o «democrático corporativo» (sobretudo no Norte da Europa, mas também na Áustria e na Suíça) -, a presença e a influência do Estado nos media é mais significativa, o profissionalismo jornalístico é menor, a instrumentalização e o clientelismo são maiores, os índices de acesso à informação analítica (imprensa) pelos cidadãos são inferiores, ao mesmo tempo que o diferencial entre consumidores de TV/jornais é muito mais elevado. Por exemplo: comparando os três modelos, do ponto de vista da difusão de jornais por 1000 habitantes (dados de 2000, World Association of Newspapers), o que se verifica é que no «modelo pluralista-polarizado» a difusão corresponde, em média, a menos de metade do «modelo liberal» e é cerca de três vezes e meia inferior ao «modelo democrático-corporativo». Por outro lado, o diferencial entre o consumo de televisão e o consumo de imprensa escrita é também muito maior do que nos outros dois. É que naquele modelo a tradição liberal é muito mais recente e muito menos intensa.

II.

E eu creio que esta visão, no essencial, está correcta. Mesmo assim, diria que em Portugal se verificam as seguintes características:

1. Os media, enquanto tais, intervêm de forma muito intensa na política, procurando – e, de certo modo, conseguindo – determinar a agenda política. Mas não creio que se trate daquilo que vulgarmente designamos por processo público deliberativo, porque, na verdade, do que se trata é mais da intervenção do poderoso establishment mediático do que de uma irrupção difusa da cidadania activa. Temos, de facto, um sistema mediático vasto e forte (e diria mesmo desproporcionado, relativamente à robustez da sociedade civil), com um conjunto muito amplo de comentadores e editorialistas (da imprensa à televisão generalista e por cabo) que não só desenvolvem permanente e sistematicamente uma monitorização da situação política como determinam em boa parte a própria agenda. A situação é tão curiosa que se verifica uma autêntica corrida dos políticos mais ou menos profissionais à própria condição de comentadores, se possível residentes. O comentário político – dominante, neste modelo, segundo Hallin e Mancini – é, pois, muito intenso e vasto em Portugal. Diria mesmo que é invasivo, porque filtrado pelo próprio poder mediático, que pode dar voz a quem quer e quando quer, designadamente aos protagonistas políticos, promovendo uns e silenciando outros, consoante os ciclos e a posição relativa que ocupam no sistema de poder. Por outro lado, o modelo de jornalismo dominante em Portugal ao mesmo tempo que (a) age sob uma forte influência do conceito de «liberdade negativa», que era apanágio dos velhos liberais (liberdade relativa ao Estado), mas também, por um lado, fruto de uma radicada tradição de combate ao autoritarismo salazarista e, por outro, de um muito recente exercício democrático, desenvolve também (b) uma cultura de jornalismo militante, «advocacy», expressamente como discurso ético-político militante e mesmo castigador, mas também, como explícito exercício de poder, promovendo a agenda política dos escolhidos de circunstância (partidos ou candidatos à Presidência: os exemplos abundam). Trata-se, em Portugal, de um grupo social muito poderoso que exibe regularmente sinais exteriores de poder, designadamente através de uma não contida agressividade e arrogância relativamente ao eleitos. Muitas vezes agindo como se o regime não fosse democrático.

2. A televisão é, de longe, o meio mais poderoso, em termos de comunicação política, e os telejornais em prime time são os principais alvos de cobiça dos gabinetes de comunicação dos partidos e dos governos, visto o universo gigantesco de espectadores, que atingem, ou seja, em média, cerca de 4, 5 milhões, em prime time (RTP1, SIC, TVI – que, em média, exibem, em conjunto, um universo de cerca de 3,5 milhões de espectadores por telejornal -, RTP2, RTPN, SIC Notícias e TVI24), para uma população de cerca de 10 milhões e setecentos mil habitantes.

3. O fenómeno da personalização da política (próprio da era televisiva) é, por isso mesmo, em Portugal, muito intenso, resultante do domínio incontestado da televisão como meio de comunicação política e informativa. É claro que em Portugal, a par desta tendência, verifica-se uma forte estabilidade no sistema de partidos, podendo dizer-se que estes mantêm sólidos núcleos duros eleitorais que lhes garantem uma determinada estabilidade para além das concretas lideranças. Por exemplo, o PS e o PSD mantêm uma base eleitoral ao longo dos tempos – entre 1975 e 2009 – praticamente equivalente (com cerca de +1.5 a favor do PS, ou seja, com 35,98% para o PS e 34,53 para o PSD, excluídas as eleições de 1979 e de 1980, onde houve coligações). Isto é, os partidos mantêm uma base orgânica muito estável, devendo-se as alterações nas maiorias sobretudo a dois factores: por um lado, (a) ao desgaste dos governos em funções; por outro lado, (b) à imagem das lideranças, num processo onde a personalização da política pode fazer, de facto, a diferença. As últimas eleições legislativas de Setembro de 2009 foram um claro exemplo disso.

4. Se o sistema partidário português é, como na maior parte das democracias ocidentais, um sistema de alternância entre dois grandes partidos (do tipo «Catch all Parties»), PS e PSD, o sistema comunicacional é mais complexo, uma vez que (a) no plano televisivo, tem três grandes canais generalistas em sinal aberto («Catch all Media») – RTP1, SIC e TVI – que se equivalem (mais a RTP2, que tem um alcance substancialmente inferior), exibindo, ao mesmo tempo, por satélite e/ou cabo, mais três canais com algum impacto nacional (RTPN, SIC Notícias e TVI24Horas); e (b) no plano da imprensa escrita, exibe um panorama algo mais complexo, uma vez que os dois diários de referência alternativos («Público» e «Diário de Notícias») têm uma expansão pouco superior a 30 mil exemplares (respectivamente, 33.039 e 30.440, como média de circulação em 2010, 1º semestre), ou seja, um número absolutamente insignificante, ao mesmo tempo que um diário com vocação omnibus, mas de tendência vincadamente tablóide, o «Correio da Manhã», se apresenta como o maior jornal português, com 126 mil exemplares diários (dados dos 10 primeiros meses de 2010). Nem um semanário como o «Expresso» (110.420 exemplares, no mesmo período) se aproxima dele, estando a ficar, aliás, cada vez mais distante.

Se fizermos um pequeno exercício, somando os principais sete jornais diários em circulação («CM»,«JN»,«P.»,«DN»,«DE»,«I.»,«JNeg»), e que interessam para a comunicação política, concluímos que, no total, a circulação média paga destes jornais é de cerca de 29 jornais por mil habitantes. De resto, a soma global (dados de 2010), não sendo muito superior ao «Jornal 2», da RTP 2 (cerca de 309.000 contra 216.000 – este, dado médio entre 2002 e 2006), é muito inferior ao número de telespectadores de um único Telejornal da RTP1 (1.050.000 – dado médio de 2002-2006): quase 3 vezes e meia.

O que acontece é que os diários de referência, normalmente, conseguem influenciar a agenda dos próprios telejornais, sendo, portanto, a sua influência indirecta, mas qualitativamente relevante. Devo também acrescentar que a TSF, também ela influenciada pelos jornais, parece manter um razoável nível de influência em toda a agenda informativa da manhã.

Como se vê, o panorama mediático é mais complexo do que o panorama político, sendo certo que a imprensa escrita tem uma expressão muito reduzida, cedendo todo o poder de influência à televisão. Isto confirma uma outra tendência do modelo de Hallin e de Mancini, chamado «pluralista polarizado», no sentido em que se verifica um diferencial mais elevado, neste modelo, entre a TV e a imprensa escrita. Um só exemplo, referido por Hallin e Mancini: na relação televisão/jornais diários, Portugal apresentava, em 2001 (dados da Comissão Europeia), numa lista de 14 importantes países europeus, o segundo mais alto diferencial (3,2), logo a seguir à Grécia (5,0), ou seja, por cada 64 telespectadores só vinte é que liam jornais diários. Mas, como vimos, e na relação que aqui nos interessa – a que diz respeito à informação – este diferencial já é de quase 3,5 na relação entre os 7 jornais diários que contam e um só telejornal, o da RTP1.

5. Fruto desta situação, ou seja, porque a conquista do espaço televisivo dos telejornais se revela decisiva em Portugal, nas campanhas eleitorais o trabalho principal ainda continua a ser feito pelos partidos, sendo a intervenção de empresas especializadas (que, naturalmente – ou não! -, é exclusiva, por exemplo, no caso das sondagens ou dos estudos de opinião) confinada à prestação de serviços específicos (por exemplo, de tratamento de imagem – Outdoors – ou de organização técnica de alguns eventos).

De resto, sendo os telejornais o principal destinatário dos eventos de campanha, muito do trabalho de comunicação cabe às assessorias dos partidos ou dos governos, ficando a mobilização no terreno a cargo das estruturas regionais dos partidos. De certo modo, esta importância das estruturas deixa ainda uma grande margem à intervenção de tipo orgânico. Diria mesmo que esta opção decisiva pelos telejornais (componente comunicacional) encontra no trabalho de mobilização orgânica o seu contraponto necessário, reduzindo-se assim a margem de manobra das empresas especializadas em comunicação. Os próprios partidos portugueses não dispõem de sólidos Gabinetes de Comunicação, uma vez que está instalada uma cultura de assessoria, no fundamental integrada por jornalistas desempenhando essas funções. Esta tendência está também muito condicionada por uma visão instrumental da comunicação política, particularmente centrada nas relações pessoais entre os assessores/jornalistas e as redacções dos jornais e dos telejornais.

6. Em Portugal, sendo a televisão o principal veículo de comunicação política, aquele meio que os partidos políticos procuram condicionar através de influência (neste caso, o papel dos assessores junto da corporação dos jornalistas é decisivo) e de iniciativas que os coloquem no topo da agenda mediática, para condicionarem decisivamente o alinhamento dos telejornais, a verdade é que, como os estudos disponíveis têm demonstrado (veja-se, por exemplo, Nuno Goulart Brandão, 2002, O espectáculo das Notícias, Lisboa, Editorial Notícias; e , 2006, Prime Time. Do que falam as notícias dos telejornais, Lisboa, Casa das Letras)a informação dos telejornais tende cada vez mais a ser de natureza tablóide, lá onde a categoria do negativo surge transversalmente em todos os géneros informativos. É por isso que, em Portugal, temos vindo a assistir a um crescendo na intensa exploração mediática de casos/escândalos. Durante os últimos seis anos – desde a campanha eleitoral até hoje – a vida do actual Primeiro-Ministro tem servido de pasto infindável à voracidade tablóide dos telejornais. O caso da TVI e do «Jornal Nacional» de Sexta-Feira é o mais notável dos exemplos e viria, até, a provocar uma «Comissão Parlamentar de Inquérito» para averiguar acerca da eventual compra deste canal pela «Portugal Telecom», supostamente ao serviço da estratégia do Governo português para silenciar uma voz incómoda. Mas a exploração mediática de casos ou escândalos tem sido uma constante ao longo da última década e meia: caso «Freeport», Escândalo da «Casa Pia», «Caso Maddie», «Queda da Ponte Entre-Rios», «Fundação para a Prevenção e Segurança», «Apito Dourado» e, agora, «Face Oculta». E tantos outros. O que está em questão é a exploração até à náusea de casos que muitas vezes nem sequer têm grande consistência, mas que servem para alimentar grande parte das infindáveis emissões dos telejornais com o único objectivo de garantir audiências em prime time – e, portanto, publicidade – em regra durante mais de uma hora. No caso da criança inglesa Madeleine McCann, durante 13 dias, um canal nacional de grande audiência (a SIC) dedicou-lhe 42% do tempo médio do telejornal, tendo chegado a ocupar quase uma hora de um telejornal de 79 minutos. A recente morte de um cronista da imprensa cor-de-rosa, em circunstâncias dramáticas, em New York, foi noticiada até à exaustão, enquanto a morte de um dos principais obreiros da Revolução Democrática de Abril, Vítor Alves, foi quase silenciada. Os exemplos valem pelos critérios, pelo excesso e pela noção de serviço público que subjaz a estas decisões editoriais, lá onde as funções de cidadania são transformadas em espectacularidade para conquista de audiências. Ou seja, a ideia de serviço público surge cada vez mais como categoria residual na estratégia informativa.

7. Um outro aspecto muito importante diz respeito à emergência da Rede. Segundo dados da www.internetworldstats.com Portugal já conta com cerca de 5.168.800 usuários, que correspondem a 48,1% da população, registando-se no «Facebook» 2.688.820 usuários, que correspondem a uma penetração de 25% (dados de 2010). São números que nos devem pôr a pensar sobretudo quando comparados com os números disponíveis no universo mediático. Como vimos, dois diários de referência como o «Público» e o «Diário de Notícias» registaram, em conjunto, no primeiro semestre do ano passado, uma circulação média de cerca de 63.500 exemplares (sendo, nos primeiros 10 meses, um pouco superior: cerca de 64.000 exemplares, segundo dados da APCT). Num universo mais amplo, mas agora relativamente a dados de 2000 (WAN-Hallin e Mancini, 2009: 24), Portugal apresentava 82,7 jornais por cada 1000 habitantes, o que representava um número extremamente baixo quando comparado com países como a Noruega (719,7), o Reino Unido (408,5), os Estados Unidos (263,6), a França (190) ou a Espanha (186). Na relação televisão/jornais diários, no modelo pluralista-polarizado, em que Portugal se inclui, o diferencial entre consumidores de TV e de jornais é, em média, cerca de duas vezes e meia maior do que no «modelo democrático-corporativo», enquanto na comparação com a relação verificada no Reino Unido («modelo liberal») a média daquele modelo é superior em cerca de 61% (2004: 27).

8. Ora o que é interessante notar é que, constatando-se, em geral, em relação a estes países, uma correspondência genérica na hierarquização dos níveis de penetração dos jornais e da Redecomparativamente, os índices de penetração da Rede são, em Portugal, muito superiores aos dos jornais. Vejamos: enquanto Portugal exibia, em 2000  e note-se que a tendência tem sido de queda progressiva: nos dez primeiros meses de 2010, o «DN» e o «Público» sofreram, respectivamente, quebras da ordem de 13% e de 10,72% relativamente ao período homólogo anterior, com 30.040 e 33.923, respectivamente, sendo certo que o «Público» ainda podia exibir em 2003 e 2004, respectivamente, 56.239 e 52.976 exemplares de circulação total por edição, ao mesmo tempo que o «DN» apresentava uma média de 50.794 e de 42.699, no mesmo período –, proporcionalmente, em leitores de jornais, somente 11,5% dos leitores noruegueses, já em relação à Rede a penetração portuguesa corresponde (em 2010) a 50,7% da penetração norueguesa. Algo equivalente se passa em relação aos USA: 31,37% dos leitores americanos de jornais, mas já 62,2% da penetração da Rede americana (em 2010). Em relação a Espanha, a 44,4% dos leitores espanhóis de jornais (dados de 2000) corresponde 76,8% da penetração da Rede espanhola (dados de 2010). Em relação ao Facebook, Portugal supera a Espanha (23,7%) e a Alemanha (13,2%).

A verdade é que o crescimento tendencial da Rede é manifestamente superior ao crescimento da imprensa escrita, se é que não se revela, de facto, inversamente proporcionalcaem os media tradicionais (neste caso, a imprensa escrita), relativamente aos paupérrimos índices de que dispunham, e aumenta exponencialmente a Rede. É por isso que não poderia estar mais de acordo com o que diz o Prof. Jesús Timoteo: na Rede, e em especial nos terminais móveis, o espaço dos «nativos digitales» e dos «inmigrantes digitales», em breve se jogará o destino das eleições, uma vez que nela já se encontra cerca de 50% dos eleitores (Texto inédito da Conf. Do Castelo de Soutomaior, Dezembro de 2010). Lembro o caso de Portugal: 48,1% de usuários da Rede, com um Facebook com 25% de penetração.

9. O que é que pretendo significar com estes números? Simplesmente que:

a) temos um nível de informação analítica, via imprensa escrita, demasiado baixo e, mesmo assim, com forte tendência a decrescer, como se verificou no 1.º semestre de 2010;

b) a nossa informação é excessivamente dependente da televisão e que, não só pelas características intrínsecas desta informação (não analítica, curta, centrada na imagem e na emoção), mas sobretudo pela sua clara evolução tablóide, onde a categoria do negativo impera, não pode, por tudo isto, desempenhar cabalmente as funções de cidadania que estão implícitas na noção serviço público de informação;

c) a comunicação via Rede tem vindo a crescer exponencialmente, exibindo, em relação aos outros países, um diferencial muito inferior ao que podem exibir os media escritos. Ou seja, o nível de penetração da Rede, as suas características e o modelo de comunicação envolvido permitem-nos pensar que, em linha de princípio, estamos perante um novo modelo de comunicação que nos poderá ajudar a superar o limitado (em quantidade e em qualidade) panorama mediático-informativo que temos em Portugal, melhorando a qualidade da nossa democracia.

10. É certo que os níveis de penetração da Rede, em Portugal, nos permitem afirmar que os canais de intervenção na política aumentaram exponencialmente – desde os e-mails aos blogs, às chamadas redes sociaisFacebook, MySpace, Twitter, ou à importante rede móvel, SMS, que tão decisiva já revelou ser, por exemplo, em Espanha, em 2004, etc. -, abatendo definitivamente o monopólio dos chamados «Gatekeepers» mediáticos no acesso ao espaço público. Todos os partidos com assento parlamentar possuem «Sites» e a maior parte já está nas redes sociais, sobretudo no Facebook, no Youtube ou no Twitter. O que indicia uma atenção especial dos partidos ao novo modelo comunicacional. E, todavia, esta atenção não deve ser interpretada como o início de uma viragem substantiva, uma vez que a TV continua a ser o meio que domina a atenção da comunicação política dos partidos. É o domínio da chamada «lógica do sofá»: enquanto houver um sofá, a televisão tenderá a impor-se como o meio de comunicação de massas mais potente. Até mesmo na campanha presidencial americana, onde a Rede foi decisiva, por exemplo na recolha dos fundos da campanha, onde obteve 67% do total (contra 20% de Hillary Clinton, nas primárias, e os 17% de John McCain), Obama não deixou de fora os suportes tradicionais de comunicação: por um «spot» televisivo de meia hora, transmitido pelas CBS, NBC e FOX, o actual Presidente USA terá gasto 5 milhões de dólares, na parte final da campanha. Certamente. Até porque os partidos políticos nasceram e continuam a mover-se no interior da lógica inscrita na relação emissor-receptor, que é exactamente a mesma do chamado modelo mediático de comunicação. Ou seja, a comunicação através da Rede, pelos agentes políticos tradicionais, continua a obedecer ao código da comunicação vertical ou instrumental, inscrita na relação sujeito-objecto, obedecendo, portanto, a sua migração para a Rede sobretudo a uma lógica dominante de colonização do espaço reticular. Colonização que se desenvolve através da importação para este espaço da lógica do emissor-receptor própria das grandes organizações, sejam elas políticas ou mediáticas («Catch all Parties»/«Catch all Media»). A verdade é que os partidos, configurados também eles, como os media, a partir do paradigma do emissor-receptor, têm inscrito no seu ADN um registo matricial vertical, top-down, que, sendo compatível com o espaço reticular, nem por isso se identifica, necessariamente, com a sua lógica interna, que é de tipo horizontal e down-top, porque este espaço exprime algo de tão novo que já não cabe nesse paradigma tradicional. 

11. Esta talvez seja a razão pela qual os agentes políticos convencionais ainda continuam a dar, pelo menos em Portugal, a maior importância ao suporte televisivo de comunicação. Mas, em boa verdade, é o próprio «modelo reticular» que, de algum modo, a isso os obriga, porque a sua deixou de ser – no plano estrutural do novo paradigma – uma lógica top-down para passar a ser uma lógica down-top, que tende a favorecer a emergência daquilo a que Jesús Timoteo chama «poder diluído», ou seja, a emergência do indivíduo singular no chamado espaço público deliberativo, sem filtros ou sem pedidos de autorização quer ao establishment mediático quer ao establishment político para aceder ao espaço público. O recente caso do Wikileaks mostra bem como a lógica do emissor-receptor, com o inerente «gatekeeping», que faz parte da sua natureza, acaba de ser ultrapassada, envolvendo media que, em condições normais, talvez acabassem por não publicar os materiais que estão a agitar a cena política mundial.

Ou seja, a Rede inaugura um tempo novo que é mais amigo dos indivíduos singulares do que das grandes organizações, por mais que estas estejam a colonizar este espaço, transpondo para o seu interior as relações de força que já se verificam cá fora. Mas se tudo isto é certo, também é certo que não será a natureza do novo meio – «espaço intermédio» ou «espaço reticular» – a constituí-lo como motor da história se não for a própria história a fazer dele o seu motor principal.

III.

12. Finalmente, termino como comecei: Portugal não escapa às tendências que se verificam nas outras democracias, mantendo a comunicação política no plano do modelo mediático de comunicação, mas utilizando o espaço reticular para reforço de uma comunicação centralizada e unidireccional. Porque este ainda é o mesmo modelo dominante de funcionamento da democracia representativa, com todos os seus agentes/sujeitos tradicionais bem articulados com os «gatekeepers» de mediática memória. É por isso que a atenção central da comunicação política ainda continua virada para os telejornais em prime time, assumindo-se implicitamente como dominante a ideia de que continuamos a viver numa sociedade de massas, pouco activa naquilo que Castells designa por «mass-self communication», ou seja, comunicação individual de massas. Mas certamente não tardará muito que a política tenha que incorporar, de facto, na sua própria matriz, esse novo modelo de comunicação em Rede, até porque já estamos num novo modelo horizontal de construção do consenso, onde é o próprio user/eleitor a decidir os canais, as modalidades e as formas de acesso e de participação nesse imenso «espaço intermédio» que é a Rede, a partir de um único terminal de convergência multimédia. De resto, este user/eleitor individual tanto pode entrar numa lógica horizontal de «solidão múltipla» ou de «multidão/massas solitária» (Virilio), de tipo «broadcasting», como pode entrar numa lógica de rede social (relacional) ou, ainda, de protagonismo/virtuosismo solitário nesse novo espaço intermédio, universal, sem centro e sem fronteirasO que é facto é que a lógica das grandes organizações deixou de ocupar, em regime de monopólio, o espaço público para passar a ter de o partilhar com a lógica do poder diluído (Jesús Timoteo) ou do micropoder (Javier Cremades) ou, para o dizer com Castells, a lógica da comunicação de massas (mass communication) passou a ter de conviver com a lógica da comunicação individual de massas (mass self communication). O que tem implicações políticas de alguma radicalidade. [@Jas2011. Versão para publicação na Rede].

A Rede e a Democracia: uma simetria perfeita?

(Nova Versão, revista e aumentada. Agora também em www.tendencias21.net – blog: comunicacion/es)

João de Almeida Santos

En este ensayo intento descubrir la simetría perfecta entre el modelo de comunicación de la Red, que es pos-mediático, y el sistema democrático representativo, poniendo en el centro de mi análisis el concepto de individuo. La tradición de los estudios de comunicación conoce dos tentativas de establecimiento de paralelismo entre sistemas sociales y políticos y sistemas mediáticos. El primero fue de Siebert, Peterson y Schramm, «Four Theories of the Press», de 1956. El segundo de Daniel Hallin y Paolo Mancini,«Comparing Media Systems. Three Models of Media and Politics», de 2004 (Cambridge University Press). Estas investigaciones, han trabajado, sin embargo, con el viejo modelo de comunicación emisor-receptor (one-to-many, diría Castells) o sujeto-objeto. Por eso, la simetría que los autores han encontrado era, todavía, una simetría imperfecta porque se verificaba solamente entre los emisores (comunicacional y político), por ejemplo, entre los media y los partidos (Hallin y Mancini hablan de «Catch all media» al lado de los «Catch all parties). Pero la simetría no se verificaba entre los receptores, o sea entre, por ejemplo, espectadores y ciudadanos, muy diferentes entre sí. Lo que yo propongo es una nueva simetría – perfecta – entre el modelo comunicacional de la red y el modelo de la democracia representativa, donde el modelo de internauta corresponde al modelo de ciudadano, o sea donde red y sistema representativo están en una simetría perfecta. Esta simetría corresponde a un nuevo tipo de poder, el poder diluido, de que habla Jesús Timoteo.

Sumário. 1. A simetria imperfeita. 2. O indivíduo como fundamento ontológico da Rede e da representação política. 3. Televisão: uma prótese cognitiva. 4. O modelo reticular, ou pós-mediático, de comunicação: a lógica relacional. 5. A simetria perfeita.

1. A simetria imperfeita

Na segunda metade do século XX, o processo de expansão e de afirmação dos grandes media, a concorrência, a procura de grandes audiências, geradoras de receitas publicitárias, de capacidade persuasiva e de influência em todos os sectores da sociedade, correu paralelo ao processo de afirmação daqueles grandes partidos de alternância governativa que viriam a ser designados como «Catch all Parties». Este processo desenvolveu-se em simultâneo com a corrida dos grandes partidos ao centro sociológico do eleitorado, à «middle class», exigindo (1) uma crescente quebra de tensão ideológica, (2) uma renúncia progressiva ao «enquadramento intelectual e moral das massas», característico dos grandes partidos-igreja tradicionais, como, por exemplo, a velha Democracia Cristã italiana («La Balena Bianca»), o PCI («L’Elefante Rosso») ou os tradicionais partidos Sociais-Democratas (veja-se Peter Mair em «La trasformazione del partito di massa in Europa», in Calise, Mauro, 1992, Come cambiano i partiti, Bologna, Il Mulino, pp. 99-120); (3) o abandono da classe de referência (a «classe gardée») a favor de um crescente interclassimo; (4) a profissionalização progressiva da decisão política; (5) um modelo estratégico mais ofensivo do que defensivo (este último sendo mais próprio dos partidos-igreja); (6) o reforço dos dirigentes de topo; (7) a passagem da fase orgânica à fase comunicacional da política, etc., etc. O processo de transformação do Labour Party em New Labour,de Neil Kinnock a Tony Blair (de 1985 a 1994), poderia ser dado como excelente exemplo desta transformação (veja-se Calloni, Marina, Org., 1997, Il nuovo Labour. Tony Blair, Milano, Reset).

Do ponto de vista dos media, este processo resulta, no essencial, da tendência crescente para a privatização, para a empresarialização e para a crescente comercialização, passando estes a adoptar também uma comunicação menos intensa ideologicamente, menos militante e mais asséptica, ou seja, mais próxima daquele que é designado por modelo liberal de informação e que, segundo Daniel Hallin e Paolo Mancini, tende a tornar-se o modelo dominante de informação: «o modelo liberal tornou-se claramente dominante na Europa tal como na América do Norte e, sem dúvida, em grande parte do mundo» (veja-se Hallin, D., e Mancini, P., 2004, Comparing media systems. Three Models of Media and Politics, Cambridge University Press)Modelo que, por isso, também poderíamos designar, à semelhança dos partidos, como «catch all media», «media agarram-tudo». Em termos de audiências, claro. Nas televisões, nos anos oitenta e noventa, foi notória a passagem de um modelo de serviço público – favorecido pelo controlo estatal – para um modelo comercial em alta concorrência pelas audiências.

Ora, a tendência simbiótica que, neste período, acabou por se verificar entre os grandes meios de comunicação de massas e a política foi, sem dúvida, provocada, em parte, por esta comum exigência de luta pelas audiências e de luta pelo consenso – que era também uma luta pela sobrevivência – em ambiente altamente concorrencial. Tendência de tal modo tão forte que há quem afirme que a verdadeira competição deixou de ocorrer exclusivamente entre partidos políticos para passar a ocorrer também entre os media e os partidos políticos. O exemplo mais exuberante desta radicalização verificou-se em Itália, com Berlusconi, a partir de 1994, onde a política passou a poder ser definida, clausewitzianamente, como a «continuação do audiovisual por outros meios». Na transição do velho «bipartidarismo imperfeito» italiano para a era berlusconiana muitos foram aqueles que, de facto, consideraram que os protagonistas centrais da competição política tinham passado a ser os media, colonizando um espaço que até então tinha sido propriedade exclusiva dos partidos.

Neste período, dominava ainda um modelo mediático de comunicação que não podia exibir uma verdadeira simetria com o modelo político representativo, já que se simetria se verificava no plano da relação entre media e partidos, ou seja, no plano do emissor, o mesmo não se verificava, como veremos mais à frente, no plano da relação entre espectador/ouvinte/leitor e cidadão, ou seja, no plano do receptorDe qualquer modo, o paralelismo entre sistemas mediáticos e sistemas políticos foi clara e brilhantemente demonstrado, no terreno concreto, mediante análise comparativas, por Daniel Hallin e Paolo Mancini na excelente obra «Comparing media systems» – que prolonga e actualiza a famosa obra de Siebert, Peterson e Schramm, Four Theories of the Press, de 1956 -, onde definem três grandes modelos de jornalismo: o liberal (norte-atlântico), odemocrático-corporativo (norte-europeu) e o pluralista-polarizado (sul-europeu). Mas a verdade é que o fazem no interior de um modelo que hoje não só é obrigado a conviver com um outro modelo radicalmente diferente, mas também para o qual aquele acabou por ter de migrar. Trata-se, como é evidente, do modelo reticular de comunicação, um modelo claramente pós-mediático. Ou seja, a simetria que Hallin e Mancini fundamentam é ainda, e tão-só, uma simetria imperfeitaporquanto apoiada numa estrutura básica (a relação emissor-receptor) onde o paralelismo com o sistema político só se verifica plenamente ao nível do primeiro termo, como veremos.

2. O indivíduo como fundamento ontológico da Rede e da representação política

A verdade é que o verdadeiro fundamento ontológico do sistema democrático representativo reside no indivíduo singular, ou seja, no plano político, reside no «cidadão». É este o significado da fórmula clássica «um homem, um voto». Mas ele resulta da própria ideia de sufrágio universal e do exercício individual e secreto do voto, correspondendo a democracia representativa precisamente ao fim da organização da sociedade por ordens ou por corporações e à sua reorganização abstracta através do Estado moderno – o uno dessa multiplicidade caótica constituída pelos indivíduos singulares, como diria Hegel –, com o reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão, imputáveis a esse indivíduo singular portador de direitos subjectivos (tal é o sentido da «Declaração dos direitos do homem e do cidadão», de Agosto de 1789). Mas também é verdade que o modelo de Estado representativo, tal como foi teorizado pelos contratualistas, também pressupõe uma sociedade civil constituída por indivíduos singulares. De resto, toda a estrutura da democracia representativa e do próprio ordenamento jurídico está assente nessa ideia moderna de um cidadão que é, ao mesmo tempo, um indivíduo singular e uma função do próprio Estado. O mesmo se poderá dizer relativamente aos media? No essencial, não. Porque neles não encontramos a mesma relação funcional interactiva que encontramos no subsistema político. O leitor, o ouvinte ou o espectador não ocupam um lugar funcional no modelo mediático de comunicação equivalente ao que o cidadão ocupa no sistema político representativo. A sua função constituinte é praticamente nula – trata-se de um receptor, ocupando o lugar do «objecto» na relação sujeito-objecto, o lugar do «P» na predicação «S é P» – ao passo que a do cidadão é estruturalmente constituinte – ocupa o lugar do «S» -, seja no contrato social originário seja, sobretudo, na função recorrente de delegação de soberania. A natureza da respectiva representação é, como se compreende, completamente diferente, na medida em que a do Estado é dominantemente interactiva e a dos media é dominantemente estática. Ou seja, enquanto na representação política a delegação confere poder decisional autónomo e universal ao representante, na representação mediática verifica-se tão-só uma autonomia funcional de narrativa (por parte do emissor) quer em relação ao real representado quer em relação ao receptor. O espectador não é constituinte e a representação, sendo para o espectadornão é do espectador. Isto é, a representação é para o espectador, mas tem origem fora dele. Exactamente o contrário da representação políticaela tem origem no cidadão e é para o cidadão. E essa nova forma televisiva que é a digital não vem alterar, no essencial, a natureza do modelo, uma vez que a sua interactividade ocorre ainda dentro do modelo mediático de comunicação, embora constitua uma sua função avançada.

Ora, a verdade é que o ambiente em que se move o cidadão, enquanto função do subsistema político, é muito mais parecido com o ambiente da Rede do que com o ambiente do subsistema mediático. E compreende-se: o internauta possui uma natureza constituinte relativamente à Rede, sendo, a sua, uma relação totalmente interactiva no interior de um modelo cuja natureza é, por definição, ela própria interactiva. Ou seja, altera-se radicalmente o modelo da relação e o modelo da comunicação.

3. Televisão: uma prótese cognitiva

Com efeito, com a emergência da Rede, algo de muito profundo começou a acontecer, e a grande velocidade, no próprio modo de organização das sociedades modernas. Mantendo-se, naturalmente, o modelo democrático representativo como modelo de excelência (ou, pelo menos, como o menos mau dos modelos), a verdade é que no seu interior começaram a desenvolver-se mutações muito profundas. Essas mutações já estavam, de algum modo, a acontecer quando o modelo mediático de comunicação (da imprensa escrita, à rádio, à televisão) ainda detinha o monopólio da comunicação nas nossas sociedades. Quando o «gatekeeping» ainda dominava o processo comunicativo (informativo), sob forma de monopólio do acesso ao espaço público. Mutações induzidas sobretudo pela irrupção da televisão no campo da comunicação e no campo político, logo a partir dos anos ’50. Joshua Meyrowitz fez, no seu excelente «No sense of place. The impact of electronic media on the social behavior», de 1985(New York, Oxford University Press), uma eficaz descrição do que mudou com a televisão na nossa relação sensorial, perceptiva e cognitiva com o mundo social. Ao mesmo tempo que a representação do mundo, toda ela, convergia para o monitor, convertendo as «mundividências» (Weltanschauungen) em «tele-visão», a política personalizava-se ao máximo, centrando-se em imagens ao alcance de todos, ao mesmo tempo que ruía, na nossa representação do real, a velha compartimentação geracional (crianças/adultos), de género (mulheres/homens) ou política (palco/bastidores), fruto dessa convergência para aquele espaço electrónico único, onde tudo fluía sem barreiras, sem tempo e sem lugar. Mas não só. A mediação televisiva trazia consigo outras consequências ainda mais profundas, ou seja, o mecanismo cognitivo de captação televisiva do real passava a funcionar como uma espécie de prótese cognitiva do espectador que, assim, alargava o campo de conhecimento até uma dimensão universal, ao mesmo tempo que via alterar-se a própria dimensão do real. Na verdade, a televisão, ao mesmo tempo que passava a aumentar exponencialmente a dimensão do real e do simbólico, também passava a transformar o espaço e o tempo em dimensões sem fronteiras e sem profundidade, configurando, o primeiro, como uma espécie de ausência de lugar e, o segundo, como um presente iminente, como um absoluto instantâneo. Mas, mais surpreendente, é que essa prótese cognitiva externa do espectador acabou por se transformar em prótese interna, internalizando-se. Isto verificou-se na relação perceptiva com as dimensões do real (efeito de dilatação do real), na relação perceptiva com as conexões espácio-temporais (efeito de proximidade e de banalização) e na relação perceptiva com a própria natureza única e irrepetível dos processos histórico-sociais (efeito de repetição/replay) (veja-se Santos, J. A., 2000, Homo Zappiens. O feitiço da televisão, Lisboa, Editorial Notícias, pp. 62-65). Por outro lado, a avaliação dos fenómenos reais processados em imagens televisivas pôde passar a ser feita através dos mesmos mecanismos cognitivos que o espectador já usava no seu quotidiano. O que viria a ser bem visível na apreciação política dos candidatos a representantes: «read my lips», dizia Bush-pai para dizer que estava a dizer a verdade (na televisão); este rosto inspira-me confiança – «comprava-lhe um carro em segunda mão»; Nixon perdeu a confiança de muitos eleitores porque apresentou um aspecto físico debilitado (e mal maquilhado) no debate com Kennedy, que apresentava um aspecto mais saudável (bronzeado).

Ou seja, ao trazer a política à boca-de-cena, anulando a diferença entre palco e bastidores, a televisão personalizou-a ao extremo, tornando possíveis a avaliação e a decisão político-eleitorais através da imagem e dos mesmos mecanismos cognitivos que o cidadão/espectador usava na sua vida quotidiana. Com efeito, a televisão veio simplificar o processo de decisão política do eleitor, personalizando ao máximo a escolha e transformando o complexo processo de decisão política (com variáveis que vão dos princípios aos programas e aos personagens) num simples acto de delegação de confiança num rosto formatado televisivamente. É interessante observar que o processo de «media training» começou com John Kennedy e evoluiu a um ponto tal que o Partido «Forza Italia», de Berlusconi, seleccionava, nos inícios dos anos ’90, os candidatos a candidatos a deputados através de sessões onde a performance televisiva era decisiva para a sua inclusão ou exclusão nas listas.

Mas, apesar de tudo isto, a verdade é que o modelo comunicacional dos media, e, por isso, também da televisão, continuava a assentar estruturalmente numa relação lógica extremamente simples: a relação emissor-receptor. Centros de recolha, edição e difusão (redacções) produziam informação que, depois, era distribuída a milhões de indivíduos (leitores, ouvintes, espectadores). O modelo poderia ser traduzido, seguindo Manuel Castells, na seguinte fórmula: «one-to-many», «de um para muitos». Mas, como dizia, já com este modelo as mutações que estavam a acontecer no interior do sistema democrático representativo eram absolutamente disruptivas: o poder electivo tornava-se cada vez mais anémico perante a colonização cada vez mais intensa do espaço político pelo poder mediático. A este estado de coisas já uma vez chamei «anemia democrática». Esta anemia resultava da crescente confiscação da representação política pelo poder mediático e da colonização do sistema operativo da política pelo sistema operativo dos media, anulando aquelas características estruturais do subsistema político que, segundo Niklas Luhmann, são próprias de todos os sistemas – «fechamento operativo», «diferenciação» e «autonomia autopoiética» (La realtà dei mass-media, [1996] 2000, Milano, FrancoAngeli). É claro que esta tendência simbiótica, ou mesmo colonizadora, acontecia sobretudo no plano do emissor (político e mediático): com a televisão, a informação política podia assumir aforma de narrativa global (por imagens) e dotar-se de todas as técnicas possíveis e imagináveis de spinning. O modelo mediático de comunicação, de resto, é o modelo mais facilmente compaginável com a racionalidade instrumental ao serviço da persuasão e da influênciaprópria de um certo modo de conceber e praticar a política e a comunicação. A propaganda e o marketing são-lhe congeniais. As «massas» ou as «audiências» funcionam, neste registo, como mero «campo de manobra», como mero objecto de uma intencionalidade instrumental totalmente autocentrada. É por isso que a simetria ou o paralelismo entre política e comunicação, neste registo instrumental e de exclusiva procura técnica de influência e de sucessosó se verifica no plano do emissor. Não no plano do receptor.

4. O modelo reticular ou pós-mediático de comunicação: a lógica relacional

Ora, o que hoje se está a verificar, com o crescimento exponencial da Rede, com o modelo de comunicação que ela inaugura, com a laicização integral do espaço público que ela provoca e com a sua força centrífuga em direcção a um poder diluído, é que a anemia – resultado de uma autêntica transfusão permanente do fluxo mediático para o fluxo político – deixou de afectar exclusivamente o poder electivo para passar a afectar também, de certo modo, o próprio poder mediático, já que este modelo de comunicação acabou por ceder o lugar a um modelo pós-mediático ou reticular de comunicação. Ou seja, o que se verifica é que a emergência do novo modelo reticular de comunicação não só veio subalternizar o modelo mediático como também acabou por lhe retirar o monopólio do acesso ao novo espaço público, perdendo este, por consequência, para a Rede, uma grande fatia daquele poder que entretanto havia conquistado. Em primeiro lugar, porque os próprios media tiveram que migrar para ela, não só para ocupar novos espaços de poder disponíveis como também para falar novas linguagens. Em segundo lugar, porque com esta transformação da natureza do espaço público – um espaço intermédio, como alguns já lhe chamam – o modelo global de comunicação se alterou radicalmente, passando do «um-para-muitos» (broadcasting) para o «muitos-para-muitos» («many-to-many»), ou seja, passando da clássica lógica substancialista própria da relação sujeito-objecto (emissor-receptor), para uma lógica de tipo relacional, onde os sujeitos e os objectos deram lugar a variáveis independentes em relações múltiplas, autónomas e diferenciadas entre si. Relações comunicativas que se passaram a processar num imenso espaço universal sem centro e onde a «comunicação de massas» deu lugar, como diz Castells, a uma «mass self communication», a uma «comunicação individual de massas». Em terceiro lugar, este espaço intermédio é um espaço livre e universal ao qual acede quem quiser, sem condicionamentos quer para obter informação quer para produzir e difundir informação, mas, sobretudo, ao qual pode aceder para se protagonizar no espaço público universal sem ter de pedir licença aos senhores da informação, os famosos «gatekeepers».

É claro que para este espaço intermédio – porque é um espaço de convergência universal -, acabaram, inevitavelmente, por migrar as próprias relações de força que hoje se verificam no exterior, tendendo inevitavelmente a colonizá-lo com a sua lógica, a sua linguagem e sua gramática e a comprimir a liberdade que o próprio modelo de comunicação reticular induz. E até sabemos que a alavanca administrativa também existe na Rede, tendo já sido, de facto, usada. Mas uma coisa é certa: para se aceder ao espaço público universal já não é necessário passar pelo controlo apertado dos «gatekeepers», dos guardiões do espaço público, uma vez que o modelo dominante de comunicação sofreu uma verdadeira mudança de paradigma. Ou seja, foi esta mudança estrutural de paradigma que gerou o novo modelo de acesso ao espaço público e que fez implodir o monopólio mediático. E é aqui que reside a grande diferença.

5. Simetria perfeita

Na verdade, nunca o indivíduo singular teve ao seu alcance uma tão grande possibilidade de afirmação, de participação, de expressão e de difusão, numa palavra, de protagonismo, como o que hoje a Rede lhe permite. E isso pode constituir uma revolução no próprio tecido democrático das nossas sociedades. Porquê? Como já disse, o verdadeiro referente ontológico da Rede é este mesmo indivíduo singular. A universalidade da Rede tem o seu efectivo contraponto no indivíduo singularque está para ela como a alavanca de Arquimedes estava para o mundo. Ora o mesmo se passa com a democracia. Ou seja, é no indivíduo singular (aqui designado por «cidadão») que reside a verdadeira função vital da democracia («um homem, um voto»). Assim, pela primeira vez, podemos encontrar um paralelismo perfeito ou uma simetria perfeita entre um sistema político (neste caso, o sistema democrático representativo) e um modelo de comunicação (neste caso, o novo modelo de comunicação inscrito na rede: o modelo reticular e relacional). Simetria a que corresponde um novo tipo de poder, o poder diluído, de que fala Jesús Timoteo, no seu excelente «Gestión del poder diluido» (Madrid, Pearson, 2005). E, por isso, a questão que se pode pôr é a seguinte: não teremos chegado a um estádio em que a democracia representativa, ao contrário do que muitos pensam, pode finalmente concretizar aquela que era a sua utopia originária e que sempre pode ser traduzida nos termos ideais do imperativo categórico kantiano: age como se a máxima da tua vontade [individual] pudesse valer ao mesmo tempo, e sempre, como princípio de uma legislação universal? De resto, que melhor modelo para uma auto-regulação perfeita da Rede do que este postulado kantiano? @Jas2010.

A esquerda e a natureza humana

João de Almeida Santos

(Novo!) (Publicado também em «Comunicacion/es» – www.tendencias21.net – com introdução em espanhol)

Se é possível ler os «códigos genéticos» da direita e da esquerda, esta tem de desenvolver uma nova «ontologia da relação», propondo novas leituras sobre a sociedade e sobre si própria, em linha com o seu código genético, mas também com as fortes tendências que se exprimem num mundo cada vez mais global.

1. Uma «ontologia da relação». 2. Fracturas e interrogações. 3. A esquerda e a natureza humana – uma questão de fundo. 4. Repensar a esquerda, repensando a sociedade. 5. Uma visão «espacial» da política. 6. A esquerda e o Estado Social. 7. A esquerda e os intelectuais.

1. Uma «ontologia da relação»

Num tempo em que da política já só restam, aparentemente, técnicas de marketing para os rostos dos líderes, tem mais sentido reflectir sobre as identidades que esses rostos de algum modo representam. Ocupo-me da esquerda. Afinal, que questões se põem hoje à esquerda? A uma esquerda que seja tão radical nos seus pressupostos filosóficos, nos seus valores, princípios e ideais – no seu élan propulsivo (a ética da convicção) -, quanto moderada nos programas com que se propõe governar – o seu pragmatismo (a ética da responsabilidade). Porque se a esquerda tem inscrita no seu código genético a palavra «utopia», ela própria, inspirando-se em valores projectados no futuro e numa forte «ética da convicção», cruza inevitavelmente, mais do que os liberais, o seu destino com o da democracia representativa. E porque, ao contrário do que pensam os «decisionistas» ou os absolutistas da «ética da convicção», a democracia implica compromisso, diálogo, interacção, isto é, uma «ética da responsabilidade» que modera e regula a força propulsora das convicções. Liberdade e responsabilidade, portanto. A esquerda e a democracia têm também inscrita na sua matriz a palavra igualdade. Alexis de Tocqueville viu isso como ninguém. A sua era a «igualdade de condições». Mas já a direita não pode dizer que as palavras democracia, igualdade e liberdade façam parte do seu código genético. Porque até os primeiros liberais (na altura, os progressistas) eram antidemocráticos («democráticos e quase comunistas», dizia o liberal Croce) porque anti-igualitários e avessos ao sufrágio universal (censitários: veja-se a constituição francesa de 1791, os escritos de Kant ou de Constant) e cedo (e muitos) toleraram (em Itália, por exemplo) soluções políticas autoritárias. Ao princípio, em Itália, o próprio Benedetto Croce, esse «Papa laico» italiano, como lhe chamou Antonio Gramsci. De resto, os valores matriciais da direita são a ordem, a diferença (a desigualdade) e a hierarquia (Ernst Nolte). Dizendo-o, com o Bobbio de «Destra e Sinistra», a esquerda, no signo de Rousseau, afirma que, à partida todos são iguais, sendo a sociedade (e os seus mecanismos) a fomentar, quando mal organizada, as desigualdades. Que, por isso mesmo, são sociais, não naturais. Pelo contrário, a direita, no signo de Nietzsche, afirma que, à partida, todos são desiguais, sendo a sociedade quem, indevidamente, torna igual o que igual não é, tornando-se, assim, necessário o aprofundamento das singularidades e a minimização dos mecanismos sociais ou públicos de integração. É por isso que uma esquerda que se preze tem de sublinhar esta diferença matricial entre a esquerda e a direita. Não para se limitar a cantar e a glorificar os seus valores de referência ou para exercer a função exclusiva de eterno sindicato dos deserdados, mas para colocar os valores da liberdade e da igualdade no seu devido lugar. Porque foi o uso arbitrário destes valores que levou, por um lado, ao totalitarismo (o igualitarismo) e por outro, ao utilitarismo mais desbragado (o neoliberalismo): igualitarismo da miséria e darwinismo social, socialismo de Estado e neoliberalismo. Mas se é possível ler os códigos genéticos da direita e da esquerda, também é verdade que a leitura desses códigos não é suficiente para uma afirmação política da esquerda: esta tem de fazer uma fenomenologia crítica do existente ou, melhor, uma ontologia do presente, ou melhor, ainda, uma ontologia da relação, propondo novas leituras em linha com o seu código genético. O que é uma «ontologia da relação»? O reconhecimento de que o modelo de relação centrado no sujeito e no objecto, ou no emissor e no receptor, cedeu o seu lugar a um modelo de relação centrado no espaço intermédio, a um modelo relacional onde os sujeitos se comportam como variáveis num sistema sem perderem, ao mesmo tempo, a sua dimensão subjectiva ou substancial. E a Rede é o melhor modelo para relançar a reflexão porque ela é, ao mesmo tempo, um conceito e um facto, ou seja, uma realidade que já está a estruturar – para além das fronteiras territoriais nacionais – novos tipos de relação que nada têm a ver com o módulo moderno e espacial de relação e de representação (veja-se, aqui, o meu ensaio «O espaço intermédio», a propósito do livro de Silvano Tagliagambe, «Lo spazio intermedio»). É neste espaço intermédio e nesta lógica relacional que se pode identificar uma esquerda que queira superar uma lógica do sujeito, meramente instrumental, própria da sociedade de massas, da «democracia do público», da era do «spinning» e de uma visão meramente utilitarista da própria natureza. Neste espaço, que poderíamos identificar como um espaço reticular, pode emergir finalmente um indivíduo moderno livre de vínculos e capaz de irromper directamente, sem mediadores ou «gatekeepers», no espaço público, graças exclusivamente à sua competência social. Ou seja, estamos perante um novo espaço comunitário que não só não anula a individualidade como ainda a reforça. Mas este não é o espaço de uma esquerda que ainda se move por módulos comunitaristas e antilibertários, centrados exclusivamente na «ética da convicção».

2. Fracturas e interrogações.

Poderíamos perguntar: as fracturas sociais da sociedade pós-industrial – aquela que foi inaugurada pela revolução da microelectrónica – são as mesmas da velha sociedade industrial, com as grandes concentrações operárias, o fordismo e o taylorismo? Que efeitos sociais produziu a generalização das, humanamente desérticas, linhas de «robots» de comportamento não determinístico, vigiadas pelos poucos e novos «operários» de bata branca, os «condutores»? O novo conceito de «middle class», não patrimonial, profissionalmente instável e culturalmente nómada, que lugar ocupa na reflexão estratégica da esquerda? Que resposta tem a esquerda para os novos poderes das novas elites «manageriais» e mediáticas? Que balanço é feito do Estado social, visto que a sua crise se tornou crónica? A responsabilidade da sua crise reside, ou não, no excesso de procura e na debilidade da oferta, mesmo quando é a esquerda a governar? Ou seja, a sua crise resulta, ou não, de uma contradição interna, e genética, que o pode levar a uma espiral autodestrutiva? Continua a esquerda a ler as «indústrias culturais» com as velhas categorias adornianas (da «Dialéctica do Iluminismo», de 1944) e, portanto, a remetê-las para a esfera da alienação? A televisão é o novo inimigo de direita e tudo o que lhe seja funcional é (deve ser) combatido pela esquerda como deriva populista? Qual o papel dos «media» na nova hierarquia dos poderes? A «partidocracia», à esquerda e à direita, não continua a afectar gravemente a democracia, confiscando direitos aos cidadãos? Qual é a solução? E a tão falada «mediocracia»? Que papel tem na erosão da democracia representativa e na queda tendencial do valor de uso do voto? Como se transforma a «cidadania passiva» em «cidadania activa»? Como libertar o cidadão da nova «gaiola electrónica» que substituiu essa «gaiola de aço» de que falava Max Weber? A esquerda incorporou radicalmente na sua matriz o individualismo moderno ou pretende superá-lo promovendo novas expressões de sociabilidade comunitária? A esquerda moderada e de governo assume definitivamente causas electivas ou mantém-se prisioneira do pragmatismo? E a Internet e as comunicações móveis, revolucionando radicalmente as relações, que lugar devem ocupar no pensamento da esquerda? O «espaço intermédio» que elas hoje ocupam não exige que a esquerda formule uma nova «ontologia da relação», para além da relação sujeito-objecto, emissor-receptor, meio-fim e de qualquer conceito instrumental das relações humanas? Há muito que se fala de crise de representação e ninguém responde a esta crise. Agora até já se fala de democracia pós-representativa e poucos são os que se preocupam com a mudança de paradigma político que já estamos a viver. O protagonismo político dos «media» rivaliza hoje com o dos partidos, mas ninguém os confronta com a questão da legitimidade.

3. A esquerda e a natureza humana – uma questão de fundo.

A esquerda sempre se confrontou com um desafio a que nunca foi capaz de responder claramente: o desafio de assumir uma ideia complexa de natureza humana. Por uma razão essencial: esta ideia era considerada incompatível com a dinâmica transformadora do processo histórico-social. Porque a esquerda sempre viu o processo humano como processo histórico-social em devir, onde a componente natural ocupava sempre uma posição puramente subalterna ou mesmo residual. Outra coisa era atribuir-lhe leis de desenvolvimento de tipo determinístico, como viria a fazer o marxismo ortodoxo. Se tivesse de falar de natureza humana, a esquerda clássica diria sempre que ela é o resultado de um processo, não estando, pois, predeterminada. Os existencialistas traduziram esta ideia através daquela conhecida fórmula de que «a existência precede a essência». E, antes, creio, Gramsci traduziu-a por aquela outra feliz expressão de que o homem é aquilo em que se torna («è ciò che può diventare»). Mas a verdade é que há, em Marx, páginas muito interessantes, nos «Manuscritos de 1844», onde a dimensão natural da vida em comunidade é muito valorizada e onde a natureza é considerada como «corpo inorgânico do homem». De qualquer modo, a ideia de que existem no ser humano determinadas características estruturais comuns que, na sua aleatoriedade, tendem a manifestar-se recorrentemente na vida em sociedade, sendo reconduzíveis aos próprios indivíduos singulares, nunca foi muito acarinhada conceptualmente pela esquerda. As características comuns, naturais e morais, eram tendencialmente distribuídas por classes sociais, tendo, depois, uma sua expressão política. A ideia genérica de que o «homem é o lobo do homem» («homo hominis lupus») tem, na visão da esquerda clássica, uma concreta tradução de classe: o homem-lobo e o homem-cordeiro representam classes antagónicas. A natureza humana, que aqui surge como aleatória e transversal a todos os indivíduos, na lógica da esquerda fracturava-se em função das classes. Se, no utilitarismo, a pulsão egoísta orientada para o útil podia converter-se em benefício colectivo, à esquerda este só podia ser obtido por intervenção da «razão pública». A esquerda sempre acreditou na força criativa da sociedade contra os determinismos conservadores que habitualmente legitimam a ordem vigente. Sempre acreditou na ideia de um progresso contínuo. Esta crença no valor taumatúrgico da dinâmica social levou-a, contudo, a desvalorizar a força das pulsões estruturais que sempre persistem e condicionam o processo social, para além do princípio da razão. Lá onde a esquerda tem procurado usar a razão para canalizar um processo histórico-social considerado progressivo, muitas vezes tem esquecido o papel resistente dessas pulsões estruturais que também condicionam o curso histórico. Alguém dizia que a ideologia é eterna e que, mesmo quando parece que morre, sempre há-de ressurgir, de novo vigorosa, em tempos futuros. Também Jürgen Habermas, recentemente, nos chamados «Seminários de Istambul», parece ter revalorizado o papel das religiões nas chamadas sociedades pós-seculares. Ou seja, de algo que a esquerda sempre tendeu a remeter para o domínio da pura alienação, não admitindo que essa possa ser uma componente estrutural da natureza humana, ligada à ideia de finitude, necessária e sofrida. Mas é claro que a esquerda muito ganharia em compreensão do mundo se incorporasse estes dados rejeitados na sua rede conceptual e procurasse integrá-los numa lógica racional superior, sem qualquer veleidade construtivista, projectando esse «corpo inorgânico», de que falava Marx, sem o esmagar com a força do voluntarismo ético. Toda esta lógica está, afinal, envolvida por um voluntarismo moral («ética da convicção») que dificulta o reconhecimento das reais fracturas sociais e, por isso, uma sua correcta interpretação e superação. Na verdade, o reconhecimento de que as sociedades humanas estão também elas condicionadas por determinismos de tipo estrutural torna-se decisivo. Até porque ele é condição necessária de alguns dos valores mais importantes das democracias modernas: a tolerância e o respeito recíproco, o realismo político e o compromisso, a liberdade responsável. É neste reconhecimento que reside a capacidade de progredir de forma sustentada, reconduzindo o exercício da vontade política ao equilíbrio social. Conjugando optimismo da vontade com pessimismo da razão, num quadro onde a ética se funde com a política.

4. Repensar a esquerda, repensando a sociedade.

Mas a tendência a repensar a esquerda continua a ser mais interrogativa do que propositiva, afirmando-se mais como proclamação de intenções do que como concreta reflexão analítica sobre o assunto. Repensar a esquerda ou repensar a sociedade? Eu creio que para repensar a esquerda é preciso, antes, repensar a sociedade. E é preciso também abandonar as proclamações morais, indo directamente ao assunto. E, para ir ao assunto, é preciso reflectir sobre as mutações profundas que estão a revolucionar a democracia, os novos modelos de desenvolvimento, as novas formas pós-orgânicas de reorganização política da sociedade, o papel do indivíduo no conjunto orgânico de uma sociedade onde parece ser o intangível a ditar as regras essenciais, o papel do Estado, o papel dos meios de comunicação. Eu diria que sem uma fenomenologia rigorosa da sociedade moderna não é possível compreender o lugar da esquerda na sociedade. É certo que muitos dizem que a distinção esquerda-direita já não faz sentido. Outros dizem que quem assim pensa é de direita. Uma coisa é certa: não é possível repensar a esquerda como se esta fosse uma condição. Sobretudo a condição dos deserdados, mas também dos seus apóstolos. Todos sabemos que não é assim. Todos sabemos que o conservadorismo atravessa todos os grupos sociais, sendo transversal. Tal como o progressismo. Mas, aqui como ali, há sempre apóstolos vocacionados para as grandes proclamações morais, assumindo-se como eleitos e como depositários da justiça histórica dos povos. Como todos os apóstolos, eles pertencem ao reino do imaterial e preocupam-se pouco com as coisas concretas e muito com os grandes princípios. E como entre o material e o espiritual sempre foi difícil encontrar a justa adequação, o seu papel está garantido até ao fim dos tempos. Outra coisa é o esforço analítico de descrição e de explicação dos mecanismos sociais e a tentativa de os aperfeiçoar, melhorando a sua «performance». Por exemplo, que modelo de desenvolvimento terão de adoptar as sociedades modernas para se adaptarem às novas exigências globais e desiguais da competitividade? O «suor do rosto» continua a ser a principal força produtiva ou já foi substituído pela ciência e pela tecnologia, como principais forças produtivas? A resposta implica consequências impressionantes no modelo de organização social. Outra questão, de resto, ligada com esta. As sociedades modernas estão estruturadas em grandes blocos sociais, as ditas classes, ou a sua organização é cada vez mais de tipo superestrutural, uma vez que elas estão fragmentadas, sendo constituídas por indivíduos? Ou seja, a componente orgânica não cedeu definitivamente a sua centralidade a uma recomposição formal e abstracta das relações sociais? Terceira questão. O modelo de organização democrática das sociedades não pressupõe precisamente esta desestruturação das sociedades orgânicas e a sua recomposição a partir da soberania individual? Que sentido tem a frase «um homem, um voto»? Quarta questão. Neste contexto, que democracia? A democracia representativa, tal como a temos vindo a viver ainda continua a manter validade plena ou já estamos a evoluir para um novo tipo de organização democrática, pós-representativa, onde cada vez mais começam a exprimir-se mecanismos de democracia directa de novo tipo? Ou seja, mantendo-se como seu fundamento o indivíduo singular, não estão alteradas radicalmente as condições da sua participação na produção da decisão política colectiva? Ou melhor: não se está a verificar uma alteração radical nas formas de expressão política do cidadão quando os partidos políticos cedem cada vez mais o terreno aos meios de comunicação, desde a televisão até às suas formas mais avançadas de «comunicação individualizada de massas», na Rede (Castells)? Quinta questão. E o Estado, como se comporta perante tal evolução? Não terá de se transformar para responder às novas exigências emergentes? De certo modo, o «e-government» já constitui uma primeira resposta. Mas outra resposta deverá consistir na determinação da sua natureza reguladora, nem maximalista nem minimalista. Sexta questão. E os partidos políticos, como é que podem responder a estas transformações, garantindo uma efectiva autonomia, capacidade de agenda e relação, orgânica e inorgânica, com a sociedade ao mesmo tempo que resolvem o bloqueio burocrático interno? A solução não passará pela introdução de autênticas primárias generalizadas, como método para a selecção e de legitimação interna? É confrontando-se com estes temas que se pode responder à pergunta sobre a esquerda.

5. Uma visão «espacial» da política.

A análise que circula continua excessivamente apoiada numa visão «espacial» ou «geométrica» da política: esquerda, direita, centro, centro-direita, centro-esquerda, extrema-esquerda, extrema-direita. É certo que os conceitos de esquerda e de direita possuem já um património analítico tal que estão em condições de designar algo bem preciso. Mas há um conceito que é tanto mais usado quanto menos é definido: o conceito de centro. Centro geométrico, centro sociológico, centro político? Mas, afinal, o que é o centro? Eu creio que quando se fala de centro se está a falar necessariamente da nova «middle class». Na linguagem marxista clássica, o centro nem sequer tinha grande dignidade conceptual, espartilhado que estava por aquela contradição fundamental que determinava a vida social: a contradição entre os proprietários dos meios de produção e os assalariados. Mas a tradição sociológica passou a definir os grupos sociais não só em termos de relações de produção, mas também com critérios, digamos, superestruturais: estilos de vida, influência, capacidade de consumo, etc.. Em particular, a sociedade pós-industrial provocou o crescimento de um sector social intermédio que possui características comuns a ambos os lados, a proprietários e a assalariados. A democracia, com a laicização integral das funções sociais, cresce, aliás, com o crescimento deste sector. E, este, reforça-se com a democracia. A própria democracia é o regime mais congenial a este sector, isto é, à «middle class». Mas a classe média já existia na chamada civilização industrial. Só que, antes, as suas características eram bem diferentes da actual. Tratava-se de uma classe patrimonial, de profissão e rendimentos estáveis, com uma mundividência estruturada e global, culturalmente sedimentada, com valores morais bem definidos e uniformes, com clara afirmação e reconhecimento social de tipo territorial, não sendo maioritária na sociedade. A nova classe média da era pós-industrial define-se mais por critérios de tipo superestrutural, por estilos de vida, capacidades e hábitos de consumo, mobilidade profissional e territorial. É existencialmente nómada e culturalmente precária, massificada, anónima e socialmente dominante. Como diz Giddens: «a velha economia industrial foi inexoravelmente substituída por um novo modelo económico baseado no saber, e a classe média tornou-se já o grupo socialmente dominante». Uma classe média centrada no terciário e nos novos sectores de negócio que têm origem na nova economia do conhecimento. É por isso que a esquerda de hoje não pode, pois, construir o seu quadro de referência político-ideal a partir daquela que era a sua base social de apoio tradicional, de sectores sociais que a história está a tornar residuais. A ideia de que a esquerda deve propor à vastíssima e heterogénea classe média um discurso feito à medida de grupos sociais que já são historicamente residuais – porque se recusa a reconhecer como dominante uma economia de tipo pós-industrial e uma sociedade onde os processos informacional e comunicacional já transformaram completamente as relações sociais e os comportamentos individuais – significa agir no presente com os olhos postos no passado, quando o horizonte próprio da esquerda sempre se situou no futuro. É certo que os valores da esquerda persistem no tempo e são transversais aos vários grupos sociais. Mas os seus conteúdos mudam com os tempos. Exercer a liberdade em democracia não é o mesmo que exercê-la durante a ditadura: as formas da opressão deixaram de ser físicas para passarem a ser simbólicas. E a opressão simbólica tem de combater-se com instrumentos mais sofisticados do que a resistência física. Em democracia, a universalização dos direitos formais, aliada ao igualitarismo do consumo, produz uma imagem do mundo igualitária, precisamente quando se insinuam cada vez mais novas formas de discriminação. Sob o manto formal da democracia também a luta pela igualdade (e pelo direito à diferença) exige novos e mais sofisticados instrumentos. Mas também o cidadão se tornou mais complexo nas modernas sociedades democráticas. Ele exibe hoje dimensões que outrora estavam mitigadas. Por exemplo, na moderna sociedade de serviços, o cidadão-consumidor emerge como sujeito central de direitos a tutelar. Uma esquerda com futuro não pode deixar de o integrar como elemento central do seu quadro de referência político-ideal e para além das tradicionais fracturas de classe. Numa palavra, uma esquerda moderna não olha para o futuro com os olhos do passado.

6. A esquerda e o Estado Social

Um artigo de Rui Ramos, de 2008, publicado no «Público» (23.07) e intitulado «Os pobres de Estado», fez-me regressar a um tema central na discussão em torno da identidade da esquerda: o tema do Estado Social. Ressalvo, em relação a tudo o que a seguir direi, que não me parece feliz o título do artigo, pela carga depreciativa que encerra. Mas não deixo de reconhecer pertinência à crítica de Rui Ramos. Porque ele põe em evidência um paradoxo muito comum numa certa esquerda: reivindica tão radicalmente os direitos sociais que o resultado acaba por ser oposto ao que proclama – a permanente dependência do Estado Social (exemplo meu: Francisco Louçã que «sente uma revolta enorme», porque «se possa impor a uma pessoa que tem subsídio de desemprego a obrigação de ir trabalhar por um pouco mais do que o subsídio que recebia», DN, 28.03.2010, p.9). Mas critica também uma certa ideia de construtivismo social: uma lógica auto-referencial que vê os necessitados como laboratório social das suas próprias concepções do mundo. E conclui dizendo que a luta pela libertação social dos necessitados acaba por resultar num novo tipo de opressão de Estado. Por isso lhes chama «pobres de Estado». Há, neste interessante artigo de Rui Ramos, mais retórica e menos substância do que, à primeira vista, pode parecer. Mas há também a sinalização de problemas ligados ao modelo persistente de Estado Social. Sobretudo ao modelo maximalista. Aquele modelo que adoptou a cultura dos direitos como matriz exclusiva das suas políticas. E que vive do garantismo como seu alimento político exclusivo e quotidiano. Um modelo onde a pobreza representa o principal capital político, sendo o seu volume directamente proporcional à depressão económica e social dos países. Um modelo que, à força de reivindicar sempre direitos acaba por legitimar a irresponsabilidade, a ausência de sentido do dever, de empenho e de luta individual por uma vida melhor e mais livre. Compreende-se. Esta é, aliás, uma visão organicista da sociedade, onde a responsabilidade individual se dilui sempre na responsabilidade colectiva. Mas se, depois, a responsabilidade colectiva acaba por se esgotar sempre na luta pelos direitos orgânicos das comunidades, a responsabilidade individual esvai-se e anula-se. De resto, esta lógica não decorre directamente da estrutura nuclear da democracia representativa, cujo fundamento, digamos, ontológico, é o indivíduo singular: «um homem, um voto». Diria mesmo que ela representa a tábua de salvação para os que sempre mantiveram reservas mentais em relação à democracia representativa. Constitui o enxerto político necessário para poderem agir com boa consciência no interior daquela que sempre rotularam como democracia burguesa. Toda a gente entende o que quero dizer. Ora, na lógica a que se refere criticamente Rui Ramos, os indivíduos singulares são sempre tutelados pelo Estado Social e, por isso, na sua perspectiva, ela acaba por induzir um processo de permanente submissão à vontade do Estado e da sua máquina protectora, com a consequente anulação do princípio da liberdade, que só a responsabilidade individual pode gerar. É por tudo isto que se torna necessário clarificar a natureza do Estado Social e a relação da esquerda com este conceito. Em primeiro lugar, recusando as leituras maximalistas. É claro que as sociedades têm o dever de garantir os «bens públicos» essenciais, bem mais vastos do que as funções estritamente vitais do Estado. Mas nenhum Estado Social pode sobreviver a uma lógica construtivista e a uma filosofia maximalista dos direitos sociais. Por uma razão muito simples: uma e outra convergem para o agigantamento de um Estado que tende a atrofiar a sociedade civil, acabando ele mesmo por implodir, fruto de um excesso de procura para o qual acaba por não ter resposta. Na verdade, aquilo que a esquerda radical ainda não compreendeu foi que a uma cultura de direitos, essencial à democracia representativa, deve corresponder uma outra cultura de deveres tão intensa como aquela. Só que esta não pode emergir no interior de um pensamento que ainda não superou, a não ser numa óptica puramente instrumental, uma cultura política organicista, hoje absolutamente superada pelas democracias modernas. A vocação organicista e moralista da esquerda radical acaba sempre por produzir o atrofiamento da emancipação individual e por contrariar aquela que é a vocação originária da própria democracia representativa.

7. A esquerda e os intelectuais

Finalmente, a questão dos intelectuais. E começo por referir uma entrevista do filósofo francês Alain Badiou a «Le Monde» que deu que falar. Nela, ele declarava o fim – desejado – do «intelectual de esquerda». A coisa pareceu ganhar mais sentido após a debandada geral de ilustres figuras do PS francês para o projecto sarkoziano. De qualquer modo, o caso intelectualmente mais flagrante, depois de algumas viragens já verificadas durante a corrida presidencial de Ségolène Royal e do caso Kouchner, foi a transmigração do pós-moderno ex-ministro socialista da cultura Jack Lang. Dizia Badiou: «esta adesão a M. Sarkozy simboliza a possibilidade, para intelectuais e filósofos, de serem, doravante, reaccionários clássicos “sans hésitation ni murmure”, como diz o regulamento militar». (…) «Nós vamos assistir – ao que eu anseio – à morte do intelectual de esquerda, que vai soçobrar ao mesmo tempo que toda a esquerda, antes de renascer das suas cinzas como a fénix». Aqui, a verdadeira questão consistiria em saber o que é a esquerda, não antes de saber em que consistiria o ser-intelectual. Na França de hoje, o problema é complexo, reconheçamos. Mas, em boa verdade, há muito que estamos a assistir à morte do «intelectual», do «filósofo», do «maître à penser». Que, na verdade, tem o seu ADN à esquerda, apesar do(s) excelente(s) Aron(s). Permitam-me recordar que, disto, muito falei no meu livro de 1999, «Os intelectuais e o Poder» (Lisboa, Fenda): que acabaram os sartres. E que Sartre foi, talvez, o último dos «maîtres à penser». Que estes acabaram ao mesmo tempo que as «grandes narrações». Que acabaram quando acabou a densificação do tempo vivido, a identificação territorial dos percursos de vida, a exaltação da memória. E quando o princípio da esperança se desligou do futuro. Quando o presente se impôs como ditadura e as ideologias se diluíram, sendo substituídas por fugazes e superficiais estilos de vida. A verdade é que os intelectuais não eram simplesmente autores de livros ou de ensaios. Eram, isso sim, autores de ideologias, de mundividências, de concepções do mundo. Demiurgos. Eram artífices de ideias projectadas no futuro, mas com capacidade propulsiva sobre o presente, como se fossem forças materiais, físicas, sujeitas à lei da gravidade. Substituíam-se, com eficácia, às religiões e projectavam a laicidade à categoria de concepção do mundo. Construíam vastas redes de pertença, onde se reconheciam inteiros grupos sociais. O pensamento tornava-se norma de comportamento, atitude, ética, sentido. E eles emprestavam um certo heroísmo de atitude à esquerda, uma certa nobreza, para não dizer uma certa superioridade moral. Nada disto subsiste. Tudo se fragmentou. Até as causas, que passaram a ser especialidades de uns tantos profissionais. O fim das grandes narrações, a ditadura do presente, o triunfo do inorgânico, a velocidade, o tempo como sucessão de instantes absolutos, o indivíduo como função do inorgânico, o império do simulacro, tudo isto gerou uma nova rede social onde não há lugar para os velhos intelectuais. O novo intelectual é o «fast-thinker». O «Lucky Luke» do pensamento e da palavra. O velho «maître-à-penser» deu lugar ao novo «prêt-à-penser», que ocupa os interfaces da comunicação como seu ambiente natural. Está por todo o lado e ao mesmo tempo. É um clone de si próprio. Fala de tudo como se de tudo fosse especialista. E ao ritmo da comunicação electrónica. O «sound byte» é a medida do seu discurso. Ele é uma espécie de centauro: meio intelectual, meio publicitário. Assume o meio onde comunica como «púlpito» onde exerce o poder da palavra, olhos nos olhos com o público, essa «multidão solitária» que se une em torno do terminal electrónico onde ele pontifica. Este é o novo intelectual «tout court». Já nem de esquerda nem de direita. Mais do que de esquerda ou de direita, o novo intelectual é orgânico do inorgânico, do simulacro, da velocidade, da emoção curta e eficaz, do discurso binário, da urgência do presente, do negativo. Não cria nem representa ideologias ou concepções do mundo. Representa-se a si próprio e age como se fosse o umbigo do mundo. Ora, quando a política começa a exibir excessivas afinidades com este universo discursivo dos novos intelectuais do vídeo, torna-se necessário reivindicar o regresso em força do orgânico, contra os cavaleiros do simulacro. O que em si representa uma eventual regressão da própria esquerda. Mas eu diria, à esquerda, que o regresso do orgânico só pode ser hoje representado pela irrupção do indivíduo, fisicamente determinado e livre de vínculos orgânicos no seu mandato de cidadania, na nova cena comunitária global.

O Espaço Intermédio

João de Almeida Santos

(Novo!)

[Publicado também em http://www.tendencias21.net no Blog «comunicacion/es»]

[Ver, agora, também, em «Ensaios», a nova versão de 1. «Reflexões sobre a crise»]

En este ensayo intento hacer una reflexión sobre el concepto de «espacio intermedio», categoría central en la «geografìa situacional» y cognitiva del hombre contemporaneo. Mi reflexión está centrada en el excelente libro de Silvano Tagliagambe, «El Espacio Intermedio. Red, individuo, comunidad», publicado por las ediciones «Fragua», de Madrid, en cooperación con el ThinkCom-Instituto de Pensamiento Estratégico, coordenado por el Prof. Jesús Timoteo, de la UCM. Este concepto está hoy en el centro del pensamiento contemporaneo pues que permite comprender la mutación del paradigma cognitivo moderno hacía nuevas formas de relación cognitiva de los individuos con la realidad y los otros. Tagliagambe nos propone una sólida fundamentación del concepto de «espacio intermedio», visitándolo en sus varias expresiones científicas y evolucionando hacía una llave de lectura centrada en la red.

O «Espaço Intermédio» é um livro de Silvano Tagliagambe, publicado em Itália em 2008, pelas edições da Universidade Bocconi («Lo Spazio Intermedio. Rete, individuo e comunità»), de Milão, e, recentemente, em Madrid, pelas edições «Fragua», em cooperação com o ThinkCom, Instituto de Pensamiento Estratégico, da Universidade Complutense de Madrid, dirigido pelo Prof. Jesús Timoteo (Tagliagambe, Silvano, 2009, El Espacio Intermedio. Red, individuo y comunidad, Madrid, Fragua, pp. 240). O autor, filósofo italiano, professor nas Universidades de Roma, «La Sapienza», e de Sassari, na Sardenha, propõe-nos, nesta interessante obra, uma reflexão em torno do conceito de «espaço intermédio», como proposta de resolução daquele que vem sendo, afinal, o mais antigo problema com que, há séculos, se confronta a tradição filosófica: o problema da mediação entre ser e pensamento, género e indivíduo, universal e particular. Problema que o Professor Tagliagambe identifica com uma fórmula feliz e eficaz: a «ansiedade cartesiana», filha de um dualismo incomponível entre a ideia e a matéria que tanto trabalho tem dado à filosofia ocidental.

1. «O Espaço Intermédio, rede, indivíduo e comunidade» é um excelente livro: cientificamente culto e conceptualmente rigoroso. Rico na diversidade de enfoques, de perspectivas sobre o tema central, mas rigorosamente desenvolvido segundo um claríssimo fio condutor: precisamente a ideia de espaço intermédio. Uma ideia verificada nos vários ramos do saber, com incursões analíticas nos vários domínios das ciências, desde a geoquímica, com o russo Vernadski, até à biologia, com Stuart Kauffmann ou o russo Alexei Ujtomskij: o «mundo intermédio», dizia este, teorizado e elaborado conceptualmente por Florenskij, não é só uma entidade abstracta, mas também a dimensão em que se forma e se desenvolve a identidade pessoal de cada um de nós; desde teoria da literatura, com Michaïl Bachtin, à filosofia, com Thomas Kuhn ou Wittgenstein, à neuropsicologia, com Luriya, à linguística e à teoria da linguagem, com Vygotski, ou ao universo das redes de comunicações, com Chris Anderson, etc., etc..
Ou seja, um conjunto vastíssimo e diversificado de argumentações científicas em torno da fundamentalidade do conceito de «espaço intermédio».

2. O conceito de «espaço intermédio», de resto, eu próprio o encontrei, e valorizei, pela primeira vez, no livro de Joshua Meyrowitz «No sense of place. The impact of electronic media on social behaviour (New York, Oxford University Press, 1985). Dei-lhe uma certa atenção na minha tese de doutoramento e, em particular, tendo em conta a excepcionalidade da obra onde o encontrei (Meyrowitz, por esta sua obra, foi justamente considerado como um segundo McLuhan). Mas hoje, depois de ter reflectido sobre esta obra de Silvano Tagliagambe, ter-lhe-ia dado, sem qualquer dúvida, uma importância muito maior. Rezava assim, a passagem de «No Sense of Place», tendo como pano de fundo os media electrónicos:

«partindo dos conceitos de espaço de bastidores e de palco, o novo comportamento produzido pela fusão das situações [a de palco e a de bastidor] pode ser definido como “espaço intermédio” (…). E continua Meyrowitz: «Instaura-se um comportamento de espaço intermédio quando os espectadores assumem uma perspectiva “de palco lateral”. Isto é, eles vêem algumas partes dos bastidores tradicionais e algumas partes do palco tradicional; vêem o actor passar dos bastidores para o palco e vice-versa».

A antiga fronteira passa, pois, de muro separador a ponto de contacto. Ou melhor: acaba a fronteira. E diria mais, entrando a fundo na tese de Meyrowitz: com os media electrónicos, as fronteiras convencionais, sejam elas geracionais, sexuais ou políticas, desaparecem, alterando-se, assim, a própria geografia situacional dos indivíduos. Ou seja, todos eles passam a ocupar um espaço intermédio a partir do qual se relacionam cognitivamente com o real e com os outros. Ou melhor, a separação radical tradicional entre público e representação desaparece no «espaço intermédio», uma vez que desaparece a separação entre bastidores e palco, desencadeando, assim, uma real interacção entre a representação e o público. Com efeito, ao conhecer os bastidores da representação, o público passa a ser também virtualmente actor, sem deixar de ser espectador. Ou seja, a fronteira que demarcava estes dois territórios desaparece, dando lugar a uma outra fronteira que já não só separa, mas também une, põe em relação, liga, funcionando como ponte, permitindo que o espectador interaja com o palco, com os actores e a própria representação. A invasão do olhar do público sobre os bastidores não pode deixar de condicionar a própria representação em todas as suas dimensões.
Também Jesús Timoteo, no seu excelente «Gestión del poder diluído», de 2005 (Madrid, Pearson: 244), refere este conceito aos media:

os media, diz ele, «conseguiram que os níveis de decisão dos indivíduos não estejam situados nem em âmbitos de massas nem sequer num âmbito de isolamento pessoal, mas sim num espaço intermédio de esfera social».

3. Eu acrescentaria que este é precisamente o ponto de passagem onde se estrutura o novo espaço público deliberativo e onde entram a política deliberativa e a democracia deliberativa, no sentido em que as concebe o Habermas de «A inclusão do Outro» («Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie», Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1996) ou de «Facticidade e validade» («Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats», Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1992), ou seja, lá onde o «espaço intermédio» é o lugar onde ocorre essencialmente esse processo que conduz à conversão e à institucionalização política e institucional da opinião pública que nele se exprime. É isso mesmo que diz Habermas:

«No interior e no exterior dos corpos políticos programados para deliberar, estas comunicações sem sujeito formam “arenas” onde – acerca de temas relevantes para toda a sociedade e em torno de matérias que necessitam de regulação – pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade. A formação informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em deliberações legislativas através das quais o poder comunicativamente produzido é transformado em poder administrativamente utilizável» («L’inclusione dell’altro, Milano, Feltrinelli, 1998: 244-245).

4. O que encontramos, portanto, nesta obra do Prof. Tagliagambe, quase como a confirmar esta sintonia, é uma formulação da emergência de um «espaço intermédio» que parece coincidir com a Habermas, mas sobretudo com a de Meyrowitz, ao concebê-lo como uma nova, palavras suas, «intimidade entre público e privado» ou como o «go between entre individual e social» (2009: 213). Uma intimidade só possível quando as fronteiras deixam de ser muros inultrapassáveis para passarem a ser espaços de intermediação e de conexão, onde, portanto, o individual se converte em social e o social retro-age sobre o individual. Mas uma retro-acção de novo tipo, já que o individual, neste modelo, nunca pode ser subsumido por esse universal que é o público ou o social. E não pode precisamente porque ele já reside num «espaço intermédio».
Pois bem, este livro do Prof. Tagliagambe é uma vasta e variegada fundamentação da pregnância actual do conceito de «espaço intermédio» e da ruptura que ele opera com o velho individualismo metodológico. Uma fundamentação que encontra suporte num complexo disciplinar e científico muito vasto e rico. Aliás, o título do livro condensa muito bem o programa que vem desenvolvido no seu interior. Vejamos o título: O Espaço Intermédio – rede, indivíduo, comunidade.

5. Comecemos pela Rede. A Rede é um «espaço entre», comandado por uma lógica relacional, não convertível numa lógica substancialista, aristotélica, nem na relação sujeito-objecto. Ou seja, colocando o meu discurso mais perto do discurso do autor: com a rede verifica-se uma passagem do pensamento centrado na ideia de substância (que os gregos designavam por tò hypokeímenon, e, que, depois, o racionalismo e o idealismo modernos haveriam de converter em sujeito), para o pensamento centrado na ideia de relação, enquanto «modalidade primitiva do real», lá onde o sujeito é constituído por uma matriz relacional, seja no plano diacrónico seja no plano da sincrónico, seja no plano interno seja no plano externo. Lá onde, afinal, o sujeito adquire também o estatuto de uma variável, ou seja – para usar as palavras do Habermas da «Querela sobre o Positivismo» – onde se pode dar uma síntese entre substância e função.
Na rede, desenvolve-se um saber relacional e uma «inteligência conectiva» que é, ao mesmo tempo, uma «inteligência colectiva», mas multipolar – eu diria também «with no sense of place», glosando o título do livro de Meyrowitz -, uma inteligência, pois, que reside nesse «espaço intermédio» que é a própria rede.

6. Depois, o Indivíduo. O indivíduo não é aqui concebido como o sujeito próprio da lógica aristotélica. O indivíduo constitui-se como um processo mediado. Precisamente no sentido em que o concebe Gramsci: l’uomo è ciò che può diventare, o homem é aquilo em que se pode tornar. Vale a pena citá-lo, a partir dos «Quaderni del Carcere»:

«ponendoci la domanda che cosa è l’uomo, vogliamo dire: che cosa può diventare», ou «l’uomo è un processo e precisamente è il processo dei suoi atti» ou, ainda, aproximando-nos mais, «ogni individuo non è solo la sintesi dei rapporti esistenti, ma anche della storia di questi rapporti, cioè il riassunto di tutto il passato» (Quaderni del Carcere, Torino, Einaudi, 1975: 1343-1346; Q., 10).

Esse indivíduo de que Gramsci fala faz parte do género humano precisamente através das várias comunidades em que participa, sendo, portanto, também, modelado e construído por elas. É claro que em Gramsci a vontade e a razão individuais também lá estão para desempenhar o seu papel naquela que se poderia conceber como uma ontologia social, onde o homem seria mais um resultado do que um processo onde ele próprio participaria activamente:

«occorre concepire l’uomo», diz ele, «come una serie di rapporti attivi (un processo) in cui se l’individualità ha la massima importanza, non è però il solo elemento da considerare», porque, para Gramsci, a humanidade é composta pelo indivíduo, pelos outros homens e pela natureza, e onde as relações são orgânicas (Q., 1345).

Ou seja, retomando o livro aqui em causa, o indivíduo torna-se cada vez mais comunidade, na medida em que a comunidade o «sobredetermina», para usar o feliz conceito do Althusser de «Pour Marx» [1965] (Paris, Maspero, 1973, 87-116; 206-224), modelando-o, ao mesmo tempo que o obriga a olhar para si próprio como um ser-em-comunidade, complexo, que contém em si uma vasta sedimentação dos seus próprios estádios de desenvolvimento num processo evolutivo e interactivo com o exterior. É por isso que Tagliagambe fala também, não de «pertença» do indivíduo ou sujeito na sua relação com uma organização, mas de «multipertença» (de diferentes nível, significado e valor) e fala da natureza anfíbia do homem (seguindo Hegel), a significar a sua relação de equilíbrio dinâmica, activa, aberta e plural com o mundo exterior (2009: 105-106), que retro-age sobre ele, modificando-o e articulando-o (2009: 108-110).
Trata-se, pois, de um conceito de homem bem afastado das visões essencialistas, metafísicas ou subjectivistas da natureza humana.

7. Finalmente, a Comunidade. A interpenetração entre indivíduo e comunidade compreende-se muito bem se a pensarmos a partir da rede: nem o indivíduo é subsumido nela, nem a comunidade é subsumida no indivíduo/sujeito. Pelo contrário, a comunidade que se constitui no ciberespaço pressupõe uma fortíssima afirmação do indivíduo singular, possibilidade que não era visível na era dos media convencionais, porquanto ele sofria uma inevitável compressão a cargo de mediadores centrados subjectivamente, quer como sujeitos produtores de informação quer como organização-emissora de informação, ou seja, como sujeitos detentores de um exlusivo poder administrativo, discricionário e instrumental: editores, «gatekeepers», managers, proprietários. De resto, a lógica «broadcasting» é uma lógica própria da relação sujeito-objecto, emissor-receptor, produtor-consumidor. Ou seja, é uma lógica de natureza instrumental, para usar a modulação conceptual da Escola de Frankfurt.
Ora acontece que, com a Rede, esta comunidade se constitui como um verdadeiro «espaço intermédio» onde não há extremos em oposição directa ou relações puramente instrumentais, mas sim variáveis em relação, dotadas de densidade ontológica.
Castells estabeleceu uma interessante distinção entre a lógica tradicional – de tipo sujeito/objecto, substancialista e virtualmente instrumental, presente nos media convencionais, que se movem segundo o módulo «broadcasting» e no interior de uma relação de tipo one-to-many – e a lógica relacional, que está presente na rede e nas comunidades que nela estão integradas. A comunidade virtual do ciberespaço é uma comunidade que não tende a anular a liberdade do sujeito individual, como acontecia na generalidade das comunidades tradicionais. Antes, pelo contrário, ela devolve-lhe uma centralidade que não possuía sequer na sociedade mediática, abrindo-lhe um espaço de intervenção activa na comunidade, livre de mediações de tipo administrativo, próprias dos velhos e poderosos «gatekeepers» ou senhores da opinião.


8. O que aqui se passa é, afinal, algo que os filósofos sempre procuraram, ao pretenderem resolver aquilo a que Tagliagambe chama «ansiedade cartesiana», resultante do dualismo incomponível entre a ideia e o real, o género e o indivíduo, o sujeito e o objecto, o universal e o particular. O «espaço intermédio» é a solução que escapa aos problemas de subsunção recíproca quando o dualismo entre ser-pensamento procura superar-se sem sair de si. Uma solução diferente da que Heidegger propõe com esse grande mediador que é o Ser, esse «transcentente puro e simples» («Sein ist das transcendens schlechthin», de que fala na Carta sobre o Humanismo (Paris, Aubier, 1964, 92-93), mas mais próxima daquela que vê na instituição jurídica um «espaço intermédio» que tem como missão desenvolver um processo de funcionalização do singular ao universal, e vice-versa, e que representa, ao mesmo tempo, esse hibridismo que Hegel vê no homem e que já Maquiavel também via, quando, no «Príncipe», falava da necessidade de conjugar no exercício do poder «la golpe e il lione», o leão e a raposa, o pensamento e a força, vista essa natureza centáurica ou híbrida do homem.

9. Só que o novo «espaço intermédio» é algo que verdadeiramente conserva e supera, mas para além do registo hegeliano da Aufhebung, ainda demasiado prisioneira de uma filosofia do sujeito. Como se se tratasse de uma espécie de ontologia da relação. Este espaço tem, assim, muitas virtualidades, sobretudo no processo evolutivo de uma democracia que está a encontrar limites tais que a podem tornar funcionalmente inútil. Este «espaço intermédio», que não é uma utopia, já que ele é visível em todos os planos do sistema-vida em que nos inserimos e movemos, como tão bem este livro do Prof. Silvano Tagliagambe nos demonstra, pode constituir, se o intensificarmos, o assumirmos e fizermos dele o nosso verdadeiro «habitat» humano, uma poderosa alavanca para sairmos dos impasses que nos estão a bater à porta cada vez com mais intensidade, desde o equilíbrio do ecossistema até aos desequilíbrios de uma democracia electivamente cada vez mais anémica. E o livro do Prof. Tagliagambe, pelo seu vigor argumentativo, pode muito bem constituir um excelente tónico para a luta daqueles que aliam a emancipação individual, cívica e cultural, ao compromisso para com o próprio, e cada vez mais ameaçado, ecossistema.

10. O espaço intermédio é, afinal, o ambiente onde melhor pode desenvolver-se uma interacção produtiva e sustentável entre indivíduo e sistema, substância e função, vontade e meio. Traduzindo socialmente estas relações, podemos dizer que o espaço intermédio é o meio onde melhor se conjugam a «ética de convicção» e a «ética da responsabilidade». E é a rede que constitui essa teia inovadora onde, finalmente, é possível conjugar a ideia de comunidade com a plena afirmação da singularidade individual. Onde a máxima liberdade pode, de facto, conviver com a máxima responsabilidade, dando, assim, voz ao kantiano imperativo categórico: «age como se a máxima da tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, E., 1966, Critique de la raison pratique, Paris, PUF, p. 30).

O Espaço Intermédio

João de Almeida Santos

(Novo!)

[Publicado também em http://www.tendencias21.net no Blog «comunicacion/es»]

[Ver, agora, também, em «Ensaios», a nova versão de 1. «Reflexões sobre a crise»]

En este ensayo intento hacer una reflexión sobre el concepto de «espacio intermedio», categoría central en la «geografìa situacional» y cognitiva del hombre contemporaneo. Mi reflexión está centrada en el excelente libro de Silvano Tagliagambe, «El Espacio Intermedio. Red, individuo, comunidad», publicado por las ediciones «Fragua», de Madrid, en cooperación con el ThinkCom-Instituto de Pensamiento Estratégico, coordenado por el Prof. Jesús Timoteo, de la UCM. Este concepto está hoy en el centro del pensamiento contemporaneo pues que permite comprender la mutación del paradigma cognitivo moderno hacía nuevas formas de relación cognitiva de los individuos con la realidad y los otros. Tagliagambe nos propone una sólida fundamentación del concepto de «espacio intermedio», visitándolo en sus varias expresiones científicas y evolucionando hacía una llave de lectura centrada en la red.

O «Espaço Intermédio» é um livro de Silvano Tagliagambe, publicado em Itália em 2008, pelas edições da Universidade Bocconi («Lo Spazio Intermedio. Rete, individuo e comunità»), de Milão, e, recentemente, em Madrid, pelas edições «Fragua», em cooperação com o ThinkCom, Instituto de Pensamiento Estratégico, da Universidade Complutense de Madrid, dirigido pelo Prof. Jesús Timoteo (Tagliagambe, Silvano, 2009, El Espacio Intermedio. Red, individuo y comunidad, Madrid, Fragua, pp. 240). O autor, filósofo italiano, professor nas Universidades de Roma, «La Sapienza», e de Sassari, na Sardenha, propõe-nos, nesta interessante obra, uma reflexão em torno do conceito de «espaço intermédio», como proposta de resolução daquele que vem sendo, afinal, o mais antigo problema com que, há séculos, se confronta a tradição filosófica: o problema da mediação entre ser e pensamento, género e indivíduo, universal e particular. Problema que o Professor Tagliagambe identifica com uma fórmula feliz e eficaz: a «ansiedade cartesiana», filha de um dualismo incomponível entre a ideia e a matéria que tanto trabalho tem dado à filosofia ocidental.

1. «O Espaço Intermédio, rede, indivíduo e comunidade» é um excelente livro: cientificamente culto e conceptualmente rigoroso. Rico na diversidade de enfoques, de perspectivas sobre o tema central, mas rigorosamente desenvolvido segundo um claríssimo fio condutor: precisamente a ideia de espaço intermédio. Uma ideia verificada nos vários ramos do saber, com incursões analíticas nos vários domínios das ciências, desde a geoquímica, com o russo Vernadski, até à biologia, com Stuart Kauffmann ou o russo Alexei Ujtomskij: o «mundo intermédio», dizia este, teorizado e elaborado conceptualmente por Florenskij, não é só uma entidade abstracta, mas também a dimensão em que se forma e se desenvolve a identidade pessoal de cada um de nós; desde teoria da literatura, com Michaïl Bachtin, à filosofia, com Thomas Kuhn ou Wittgenstein, à neuropsicologia, com Luriya, à linguística e à teoria da linguagem, com Vygotski, ou ao universo das redes de comunicações, com Chris Anderson, etc., etc..
Ou seja, um conjunto vastíssimo e diversificado de argumentações científicas em torno da fundamentalidade do conceito de «espaço intermédio».

2. O conceito de «espaço intermédio», de resto, eu próprio o encontrei, e valorizei, pela primeira vez, no livro de Joshua Meyrowitz «No sense of place. The impact of electronic media on social behaviour (New York, Oxford University Press, 1985). Dei-lhe uma certa atenção na minha tese de doutoramento e, em particular, tendo em conta a excepcionalidade da obra onde o encontrei (Meyrowitz, por esta sua obra, foi justamente considerado como um segundo McLuhan). Mas hoje, depois de ter reflectido sobre esta obra de Silvano Tagliagambe, ter-lhe-ia dado, sem qualquer dúvida, uma importância muito maior. Rezava assim, a passagem de «No Sense of Place», tendo como pano de fundo os media electrónicos:

«partindo dos conceitos de espaço de bastidores e de palco, o novo comportamento produzido pela fusão das situações [a de palco e a de bastidor] pode ser definido como “espaço intermédio” (…). E continua Meyrowitz: «Instaura-se um comportamento de espaço intermédio quando os espectadores assumem uma perspectiva “de palco lateral”. Isto é, eles vêem algumas partes dos bastidores tradicionais e algumas partes do palco tradicional; vêem o actor passar dos bastidores para o palco e vice-versa».

A antiga fronteira passa, pois, de muro separador a ponto de contacto. Ou melhor: acaba a fronteira. E diria mais, entrando a fundo na tese de Meyrowitz: com os media electrónicos, as fronteiras convencionais, sejam elas geracionais, sexuais ou políticas, desaparecem, alterando-se, assim, a própria geografia situacional dos indivíduos. Ou seja, todos eles passam a ocupar um espaço intermédio a partir do qual se relacionam cognitivamente com o real e com os outros. Ou melhor, a separação radical tradicional entre público e representação desaparece no «espaço intermédio», uma vez que desaparece a separação entre bastidores e palco, desencadeando, assim, uma real interacção entre a representação e o público. Com efeito, ao conhecer os bastidores da representação, o público passa a ser também virtualmente actor, sem deixar de ser espectador. Ou seja, a fronteira que demarcava estes dois territórios desaparece, dando lugar a uma outra fronteira que já não só separa, mas também une, põe em relação, liga, funcionando como ponte, permitindo que o espectador interaja com o palco, com os actores e a própria representação. A invasão do olhar do público sobre os bastidores não pode deixar de condicionar a própria representação em todas as suas dimensões.
Também Jesús Timoteo, no seu excelente «Gestión del poder diluído», de 2005 (Madrid, Pearson: 244), refere este conceito aos media:

os media, diz ele, «conseguiram que os níveis de decisão dos indivíduos não estejam situados nem em âmbitos de massas nem sequer num âmbito de isolamento pessoal, mas sim num espaço intermédio de esfera social».

3. Eu acrescentaria que este é precisamente o ponto de passagem onde se estrutura o novo espaço público deliberativo e onde entram a política deliberativa e a democracia deliberativa, no sentido em que as concebe o Habermas de «A inclusão do Outro» («Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie», Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1996) ou de «Facticidade e validade» («Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats», Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1992), ou seja, lá onde o «espaço intermédio» é o lugar onde ocorre essencialmente esse processo que conduz à conversão e à institucionalização política e institucional da opinião pública que nele se exprime. É isso mesmo que diz Habermas:

«No interior e no exterior dos corpos políticos programados para deliberar, estas comunicações sem sujeito formam “arenas” onde – acerca de temas relevantes para toda a sociedade e em torno de matérias que necessitam de regulação – pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade. A formação informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em deliberações legislativas através das quais o poder comunicativamente produzido é transformado em poder administrativamente utilizável» («L’inclusione dell’altro, Milano, Feltrinelli, 1998: 244-245).

4. O que encontramos, portanto, nesta obra do Prof. Tagliagambe, quase como a confirmar esta sintonia, é uma formulação da emergência de um «espaço intermédio» que parece coincidir com a Habermas, mas sobretudo com a de Meyrowitz, ao concebê-lo como uma nova, palavras suas, «intimidade entre público e privado» ou como o «go between entre individual e social» (2009: 213). Uma intimidade só possível quando as fronteiras deixam de ser muros inultrapassáveis para passarem a ser espaços de intermediação e de conexão, onde, portanto, o individual se converte em social e o social retro-age sobre o individual. Mas uma retro-acção de novo tipo, já que o individual, neste modelo, nunca pode ser subsumido por esse universal que é o público ou o social. E não pode precisamente porque ele já reside num «espaço intermédio».
Pois bem, este livro do Prof. Tagliagambe é uma vasta e variegada fundamentação da pregnância actual do conceito de «espaço intermédio» e da ruptura que ele opera com o velho individualismo metodológico. Uma fundamentação que encontra suporte num complexo disciplinar e científico muito vasto e rico. Aliás, o título do livro condensa muito bem o programa que vem desenvolvido no seu interior. Vejamos o título: O Espaço Intermédio – rede, indivíduo, comunidade.

5. Comecemos pela Rede. A Rede é um «espaço entre», comandado por uma lógica relacional, não convertível numa lógica substancialista, aristotélica, nem na relação sujeito-objecto. Ou seja, colocando o meu discurso mais perto do discurso do autor: com a rede verifica-se uma passagem do pensamento centrado na ideia de substância (que os gregos designavam por tò hypokeímenon, e, que, depois, o racionalismo e o idealismo modernos haveriam de converter em sujeito), para o pensamento centrado na ideia de relação, enquanto «modalidade primitiva do real», lá onde o sujeito é constituído por uma matriz relacional, seja no plano diacrónico seja no plano da sincrónico, seja no plano interno seja no plano externo. Lá onde, afinal, o sujeito adquire também o estatuto de uma variável, ou seja – para usar as palavras do Habermas da «Querela sobre o Positivismo» – onde se pode dar uma síntese entre substância e função.
Na rede, desenvolve-se um saber relacional e uma «inteligência conectiva» que é, ao mesmo tempo, uma «inteligência colectiva», mas multipolar – eu diria também «with no sense of place», glosando o título do livro de Meyrowitz -, uma inteligência, pois, que reside nesse «espaço intermédio» que é a própria rede.

6. Depois, o Indivíduo. O indivíduo não é aqui concebido como o sujeito próprio da lógica aristotélica. O indivíduo constitui-se como um processo mediado. Precisamente no sentido em que o concebe Gramsci: l’uomo è ciò che può diventare, o homem é aquilo em que se pode tornar. Vale a pena citá-lo, a partir dos «Quaderni del Carcere»:

«ponendoci la domanda che cosa è l’uomo, vogliamo dire: che cosa può diventare», ou «l’uomo è un processo e precisamente è il processo dei suoi atti» ou, ainda, aproximando-nos mais, «ogni individuo non è solo la sintesi dei rapporti esistenti, ma anche della storia di questi rapporti, cioè il riassunto di tutto il passato» (Quaderni del Carcere, Torino, Einaudi, 1975: 1343-1346; Q., 10).

Esse indivíduo de que Gramsci fala faz parte do género humano precisamente através das várias comunidades em que participa, sendo, portanto, também, modelado e construído por elas. É claro que em Gramsci a vontade e a razão individuais também lá estão para desempenhar o seu papel naquela que se poderia conceber como uma ontologia social, onde o homem seria mais um resultado do que um processo onde ele próprio participaria activamente:

«occorre concepire l’uomo», diz ele, «come una serie di rapporti attivi (un processo) in cui se l’individualità ha la massima importanza, non è però il solo elemento da considerare», porque, para Gramsci, a humanidade é composta pelo indivíduo, pelos outros homens e pela natureza, e onde as relações são orgânicas (Q., 1345).

Ou seja, retomando o livro aqui em causa, o indivíduo torna-se cada vez mais comunidade, na medida em que a comunidade o «sobredetermina», para usar o feliz conceito do Althusser de «Pour Marx» [1965] (Paris, Maspero, 1973, 87-116; 206-224), modelando-o, ao mesmo tempo que o obriga a olhar para si próprio como um ser-em-comunidade, complexo, que contém em si uma vasta sedimentação dos seus próprios estádios de desenvolvimento num processo evolutivo e interactivo com o exterior. É por isso que Tagliagambe fala também, não de «pertença» do indivíduo ou sujeito na sua relação com uma organização, mas de «multipertença» (de diferentes nível, significado e valor) e fala da natureza anfíbia do homem (seguindo Hegel), a significar a sua relação de equilíbrio dinâmica, activa, aberta e plural com o mundo exterior (2009: 105-106), que retro-age sobre ele, modificando-o e articulando-o (2009: 108-110).
Trata-se, pois, de um conceito de homem bem afastado das visões essencialistas, metafísicas ou subjectivistas da natureza humana.

7. Finalmente, a Comunidade. A interpenetração entre indivíduo e comunidade compreende-se muito bem se a pensarmos a partir da rede: nem o indivíduo é subsumido nela, nem a comunidade é subsumida no indivíduo/sujeito. Pelo contrário, a comunidade que se constitui no ciberespaço pressupõe uma fortíssima afirmação do indivíduo singular, possibilidade que não era visível na era dos media convencionais, porquanto ele sofria uma inevitável compressão a cargo de mediadores centrados subjectivamente, quer como sujeitos produtores de informação quer como organização-emissora de informação, ou seja, como sujeitos detentores de um exlusivo poder administrativo, discricionário e instrumental: editores, «gatekeepers», managers, proprietários. De resto, a lógica «broadcasting» é uma lógica própria da relação sujeito-objecto, emissor-receptor, produtor-consumidor. Ou seja, é uma lógica de natureza instrumental, para usar a modulação conceptual da Escola de Frankfurt.
Ora acontece que, com a Rede, esta comunidade se constitui como um verdadeiro «espaço intermédio» onde não há extremos em oposição directa ou relações puramente instrumentais, mas sim variáveis em relação, dotadas de densidade ontológica.
Castells estabeleceu uma interessante distinção entre a lógica tradicional – de tipo sujeito/objecto, substancialista e virtualmente instrumental, presente nos media convencionais, que se movem segundo o módulo «broadcasting» e no interior de uma relação de tipo one-to-many – e a lógica relacional, que está presente na rede e nas comunidades que nela estão integradas. A comunidade virtual do ciberespaço é uma comunidade que não tende a anular a liberdade do sujeito individual, como acontecia na generalidade das comunidades tradicionais. Antes, pelo contrário, ela devolve-lhe uma centralidade que não possuía sequer na sociedade mediática, abrindo-lhe um espaço de intervenção activa na comunidade, livre de mediações de tipo administrativo, próprias dos velhos e poderosos «gatekeepers» ou senhores da opinião.


8. O que aqui se passa é, afinal, algo que os filósofos sempre procuraram, ao pretenderem resolver aquilo a que Tagliagambe chama «ansiedade cartesiana», resultante do dualismo incomponível entre a ideia e o real, o género e o indivíduo, o sujeito e o objecto, o universal e o particular. O «espaço intermédio» é a solução que escapa aos problemas de subsunção recíproca quando o dualismo entre ser-pensamento procura superar-se sem sair de si. Uma solução diferente da que Heidegger propõe com esse grande mediador que é o Ser, esse «transcentente puro e simples» («Sein ist das transcendens schlechthin», de que fala na Carta sobre o Humanismo (Paris, Aubier, 1964, 92-93), mas mais próxima daquela que vê na instituição jurídica um «espaço intermédio» que tem como missão desenvolver um processo de funcionalização do singular ao universal, e vice-versa, e que representa, ao mesmo tempo, esse hibridismo que Hegel vê no homem e que já Maquiavel também via, quando, no «Príncipe», falava da necessidade de conjugar no exercício do poder «la golpe e il lione», o leão e a raposa, o pensamento e a força, vista essa natureza centáurica ou híbrida do homem.

9. Só que o novo «espaço intermédio» é algo que verdadeiramente conserva e supera, mas para além do registo hegeliano da Aufhebung, ainda demasiado prisioneira de uma filosofia do sujeito. Como se se tratasse de uma espécie de ontologia da relação. Este espaço tem, assim, muitas virtualidades, sobretudo no processo evolutivo de uma democracia que está a encontrar limites tais que a podem tornar funcionalmente inútil. Este «espaço intermédio», que não é uma utopia, já que ele é visível em todos os planos do sistema-vida em que nos inserimos e movemos, como tão bem este livro do Prof. Silvano Tagliagambe nos demonstra, pode constituir, se o intensificarmos, o assumirmos e fizermos dele o nosso verdadeiro «habitat» humano, uma poderosa alavanca para sairmos dos impasses que nos estão a bater à porta cada vez com mais intensidade, desde o equilíbrio do ecossistema até aos desequilíbrios de uma democracia electivamente cada vez mais anémica. E o livro do Prof. Tagliagambe, pelo seu vigor argumentativo, pode muito bem constituir um excelente tónico para a luta daqueles que aliam a emancipação individual, cívica e cultural, ao compromisso para com o próprio, e cada vez mais ameaçado, ecossistema.

10. O espaço intermédio é, afinal, o ambiente onde melhor pode desenvolver-se uma interacção produtiva e sustentável entre indivíduo e sistema, substância e função, vontade e meio. Traduzindo socialmente estas relações, podemos dizer que o espaço intermédio é o meio onde melhor se conjugam a «ética de convicção» e a «ética da responsabilidade». E é a rede que constitui essa teia inovadora onde, finalmente, é possível conjugar a ideia de comunidade com a plena afirmação da singularidade individual. Onde a máxima liberdade pode, de facto, conviver com a máxima responsabilidade, dando, assim, voz ao kantiano imperativo categórico: «age como se a máxima da tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, E., 1966, Critique de la raison pratique, Paris, PUF, p. 30).