Poesia-Pintura

OÁSIS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Sonho”.
Original de minha autoria.
Abril de 2023.
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“Sonho”. JAS. 04-2023

POEMA – “OÁSIS”

SONHEI-TE.
Atravessava o deserto
Há muito,
Nada via
À minha frente,
Areia, só areia
No caminho...
.............
E uma miragem
Ardente.

NEM SABIA SE
Encontraria
Um oásis
Onde molhar
As palavras
E os lábios
Já gretados
Da aridez
Do deserto.

MAS HOJE SONHEI-TE,
De novo,
E reencontrei
O oásis perdido...
....................
Nas pupilas dos teus
Olhos.

TIVE-TE ASSIM
A meu lado,
Ofereci-te
Uma história
Onde conto
Como te perdi
E te conservei
No meu fio
De memória.

FALÁMOS DE ARTE,
Imagina,
E de como a vida
Nela se resolve
E se lê
Quando na força
Do sonho
Se confia
E absolutamente
Se crê.

SONHEI-TE
Esta noite
E acordei de ti
Embriagado,
Mesmo sem te ter
Comigo,
Ali mesmo,
A meu lado.

AH, HABITUEI-ME
A estar contigo
Em sonho
E em palavras,
A dizer-te
Em poemas,
A ouvir
O teu silêncio,
A procurar-te
Com o vento
Que te sopra
Na alma
Meus poéticos
Murmúrios...

TENHO-TE
Em palavras
Um pouco
Já gastas
E nem sei
O que seria
Encontrar-te,
Olhar de perto
Teus olhos
Negros
E profundos,
Sentir
O teu perfume,
Perdido
No mistério
Insondável
De tão enigmático
Rosto.

TALVEZ TE VOLTASSE
A perder,
Nesse instante,
Nesse dia,
Por excesso de ti
Ou por só já
Te reconhecer
Nas estrofes
Da minha confessada
E melancólica
Nostalgia.

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Artigo

“25 DE ABRIL DE 2023 NA GUARDA”

UMA NOTÍCIA E UMA REFLEXÃO

Por João de Almeida Santos

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O Quadro oferecido à Freguesia da Guarda. JAS. 25-04-2023

I.

PASSEI o meu dia 25 de Abril na Cidade da Guarda, onde, durante a manhã, na Sala da Assembleia Municipal, recebi, das mãos do Senhor Presidente da Assembleia Municipal, Dr. José Relva, e na presença do Senhor Presidente da Câmara e do Senhor Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, a “Medalha de Honra do Município – Grau Ouro” e o “Título de Cidadão Honorário da Guarda”.

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O momento em que recebi a Medalha de Ouro do Município e o Título de Cidadão Honorário da Guarda.

Uma enorme honra. Foi nesta Cidade que fiz os estudos secundários, no Liceu Nacional da Guarda, sendo natural de Famalicão da Serra, uma freguesia deste Concelho. E foi nesta Cidade que, durante oito anos (2005/2013), desempenhei as funções de Presidente da Assembleia Municipal da Guarda e, decorrendo da minha condição de deputado municipal, desempenhei, durante sete anos (2006/2013), as funções de Presidente eleito da Assembleia da Comunidade Intermunicipal “COMURBEIRAS”.

Depois, pelas 16:30, foi inaugurado, na Sala de Actos da Junta de Freguesia da Guarda, um quadro alusivo à Cidade da Guarda, de minha autoria, que tive o gosto de oferecer à Freguesia da Guarda no ano em que comemora o seu décimo aniversário. Ainda por cima ficará num edifício – a Sede da Junta – onde nos meus tempos de liceu me treinava diariamente, com o meu amigo Henrique Martins, para os campeonatos distritais de ping pong, em que ainda cheguei a participar. A esta minha oferta não é alheio o papel que desempenhei no processo de agregação das freguesias do Concelho da Guarda (de 55 passámos para 43 freguesias) e, por isso, na decisão de criar uma só freguesia urbana, enquanto Presidente da Comissão que levou por diante o processo, num clima de grande consenso.

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Na Sala de Actos da Junta de Freguesia da Guarda, no momento da inauguração do Quadro

Um dia cheio, para mim, este, o do 49.º aniversário do 25 de Abril, esse momento mágico em que Portugal recuperou a sua liberdade, depois de 48 anos de ditadura.

Fico grato ao Município e à Freguesia da Guarda por terem tornado possível ficar deste modo simbólico associado àquela que é a minha Cidade de origem.

II.

O 25 de Abril de 1974 representou uma ruptura no nosso tempo histórico. Passámos de um regime autoritário e retrógrado, que subsistiu 48 anos (1926-1974), a uma democracia representativa aberta ao futuro e livre. Estávamos em guerra há cerca de treze anos, o interior do país desertificava-se, com a emigração clandestina (“a salto”), não havia liberdade nem desenvolvimento e sofríamos um pesado isolamento internacional. O 25 de Abril abriu o país ao futuro e ao mundo. Mas, passados 49 anos, as promessas estão a ser cumpridas? No essencial, sim. Basta comparar os dois mundos, mesmo subtraindo o natural desenvolvimento que o tempo, só por si, gera. A diferença vê-se bem se olharmos, no arco de umas dezenas de anos, para as aldeias do interior. E, todavia, a aceleração do tempo histórico está a exigir respostas que parece que o país não está a conhecer, mesmo subtraindo também os problemas internacionais que não pudemos controlar, a crise de 2008, a pandemia e, agora, esta guerra estúpida que o senhor Putin lançou contra um país independente, a Ucrânia. Sim, é necessário fazer algo para acompanharmos o ritmo acelerado da história, em todas as suas frentes, incluída a da política. E creio que o primeiro passo, talvez mesmo o mais importante, deva ser o de reconhecer humildemente o que somos e a nossa própria dimensão, sem nos enganarmos, como vai acontecendo, com um discurso sobranceiro, como se ocupássemos no mundo um lugar que de facto não ocupamos. Recomeçar a partir daquele que é o nosso lugar talvez seja verdadeiramente o que de fundamental há a fazer para conquistarmos um futuro mais sólido e avançado. A “consciência de si” é sempre o primeiro e devido passo que devemos dar para com segurança prosseguirmos na nossa própria  construção. Se isto é válido para cada um de nós, também o é para os países. E, nele, verdadeiramente importante é a política, não aquela que se limita a conquistar o poder e a usá-lo para se perpetuar, mas aquela que se põe ao serviço da colectividade, com sensibilidade, determinação, saber e movida exclusivamente pela ética pública. E, por isso, a pergunta sobre as promessas cumpridas ou não cumpridas da nossa democracia, deverá ser dirigida aos seus intérpretes, estejam eles no governo ou na oposição. E, seguramente, este dia 25 de Abril será sempre o momento ideal não só para formular esta pergunta, mas também para lhe responder cabalmente sem preocupações de agradar, ou não, à opinião pública e ao eleitorado, tratando-se, como se trata, de uma questão crucial para o futuro do país. É que a “consciência de si” prescinde totalmente da retórica do convencimento e do consenso, porque se trata de um confronto directo com a verdade. E, sem verdade, a política não serve.

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Detalhe do meu Quadro “Liberdade”.

Poesia-Pintura

LIBERDADE

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Liberdade”.
Original de minha autoria.
23 de Abril de 2023.
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“Liberdade”. JAS. 04-2023

POEMA – “LIBERDADE”

PERGUNTEI-TE,
Num dia
De sol:
“Voas comigo
Prà linha
Do horizonte?".
Deste-me a mão
E sorriste:
“Voo, sim,
Pois preciso
De ar puro
Lá bem no alto
Do Monte”.

E PARTIMOS.
Tu levaste
O arco-íris
Que tinhas
Dentro de ti
E eu as letras
Que tinha
Comigo,
Guardadas
Na alma,
 Seu porto
De abrigo.

ENREDÁMOS
Todas as cores
Com linhas
De palavras
Deslaçadas,
Construímos
Asas em forma
De verso
E voámos
No céu
De um poema
Pintado todo
De azul...

ANDEI CONTIGO
Por lá
Anos a fio,
Vagueando
Ao sabor da
Inspiração,
Levados
Pela brisa
Que sopra fria
No Monte,
Mas afaga
O coração.

E COMO GOSTEI
De voar contigo,
Livres como
Pássaros
Sobre o vale
Onde te encontrei
Um dia,
Construindo
Castelos
Na areia
Com a força
Da magia.

É ASSIM QUE EU
Te vejo,
Tecendo a vida
Com sopro
De alma
E as cores
Do arco-íris
Pintadas
Por tua mão
Como pauta
Colorida
Da nossa bela
Canção.

FOI ASSIM
Que nos dissemos
Nesse tempo,
Livres de amarras
Que não nos deixam
Voar,
Traçando
Em arte
Um destino
Marcado
Pela vontade
De fazer
Da nossa vida
Caminho
De liberdade.

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Artigo

CINQUENTA ANOS – E AGORA, PS?

Por João de Almeida Santos

Geometria - cópia

“S/Título”. JAS. 04-2023

O PS FAZ HOJE CINQUENTA ANOS, se não considerarmos como início da sua vida a iniciativa política de Antero de Quental, de Azedo Gneco e de José Fontana, entre outros, em 1875. Fixemo-nos, pois, em Abril de 1973, para concluirmos que ninguém poderá esquecer o papel que o PS teve na construção da democracia representativa que hoje temos e o rosto que o protagonizou, Mário Soares. Mais, os avanços significativos da nossa democracia tiveram sempre o PS como seu protagonista essencial. O seu espaço político foi e é um espaço virtuoso porque procura combinar de forma harmoniosa a liberdade e a igualdade, o papel fundamental do Estado com a vitalidade da sociedade civil, a convivência das forças mais conservadoras com as forças mais radicais, desde que se inscrevam nos nossos valores constitucionais, ou seja, desde que pratiquem aquilo que um dia Habermas designou, falando da União Europeia, como “patriotismo constitucional” (Habermas, “Cittadinanza e Identità Nazionale”, In Micromega, 5/91, 123-146).  O passado deste partido é algo de que os portugueses se devem orgulhar. Os erros também acontecem, mas o legado é altamente positivo, durante os cerca de 25 anos em que o PS governou este País.

E AGORA, PS?

E, hoje, perguntarão? Respondo, neste dia de aniversário, não com considerações sobre o passado, mas sim, numa lógica prospectiva, olhando mais para o futuro do que para o passado. Se o diagnóstico é sobre o que temos, o objectivo, todavia, é a resposta aos desafios que temos pela frente e a mudança para melhor, como forma de honrar esse passado de prestígio.

E a primeira observação que me parece dever avançar é a que resulta do reconhecimento das profundas mudanças que estão a acontecer nas sociedades contemporâneas e, consequentemente, da pergunta que se impõe: está o PS a mover-se tendo realmente em conta estas mudanças? Temo que a minha resposta não possa ser inteiramente positiva. Não me parece que o PS esteja hoje a responder com criatividade, eficácia e empenho prospectivo aos desafios que estão aí à nossa frente. E se não o fizer enquanto partido, dificilmente o poderá fazer enquanto governo, por razões que são fáceis de compreender. Enquanto partido, sofre, em geral, as dificuldades que todos os partidos socialistas e sociais-democratas estão a sentir e que já se estão a traduzir em resultados eleitorais (refiro-me às recentes sondagens disponíveis) pouco entusiasmantes, na Espanha, na França, na Alemanha, na Itália ou na Grécia. Mais, sofre, em geral, as dificuldades que os partidos do chamado establishment, os da alternância democrática, os do centro-esquerda e do centro-direita, estão a sofrer e que se estão a traduzir na progressiva fragmentação dos sistemas de partidos. Esta fragmentação já está em curso também em Portugal. Ou seja, sofre os efeitos da progressiva redução da política à sua dimensão de puro “management”, à identificação de governo com governança (“governance”),  a uma prática política sem alma e à perda de uma vocação hegemónica que possa conduzi-lo à formação de um bloco histórico (Gramsci), envolvendo as forças sociais com maior capacidade de propulsão histórica, capaz de conduzir o país para um futuro sólido, em vez de promover cada vez mais um discurso de comiseração ao mesmo tempo que mantém taxas de sobrecarga fiscal sobre a classe média absolutamente incomportáveis. Ou seja, o PS está a praticar uma política de movimento por inércia, fundada num pragmatismo táctico que não prenuncia tempos de esperança, como devia ser sua vocação enquanto partido de esquerda. Internamente, o PS mantém uma estrutura orgânica pouco dinâmica ou mesmo inadequada aos tempos que vivemos: totalmente dependente do Estado; paralisado nas suas estruturas orgânicas (por exemplo, no gabinete de estudos, na fundação, no “jornal” de partido, nas revistas de pensamento político); presença diminuta e apagada no universo sindical e, em geral, nas organizações da sociedade civil (veja-se o que tem acontecido na área do socorro de emergência, nos bombeiros), designadamente nos novos movimentos por causas, na comunicação social, nas universidades;  alheamento em relação ao papel das grandes plataformas digitais e ao seu papel na mobilização da cidadania; posição incerta sobre o futuro da União Europeia (a opção seria ou pela constitucionalização da União ou pela lógica simplesmente intergovernamental ou funcionalista).  O PS parece estar a mover-se exclusivamente concebendo a política como pura comunicação instrumental para o consenso, em linha com a sua visão de puro pragmatismo governamental e com a sua dependência do aparelho de Estado, incapaz de metabolizar as profundas mudanças que estão a acontecer no plano da sociedade civil, designadamente graças à rede, à inteligência artificial e à globalização, sobretudo a globalização financeira, migratória e das grandes plataformas digitais.

A POLÍTICA DEMOCRÁTICA
E A QUESTÃO DAS FONTES DO PODER

Num ensaio que aqui publiquei na passada Quarta-Feira, “A Política na Era do Algoritmo”(https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/11/ensaio-29/), falava de três “constituencies” que hoje estão na origem constitutiva do poder, mesmo no plano do Estado-Nação: a do cidadão contribuinte (a original), a dos credores financeiros internacionais que financiam, através do mercado financeiro internacional, as dívidas soberanas e a das grandes plataformas digitais que contratualizam informalmente com a cidadania prestação de serviços e acesso à informação e à produção de conteúdos, numa dimensão que é profunda, individualizada e simplesmente gigantesca, com fortes efeitos sobre o comportamento político da cidadania, como se sabe.

Esta composição das fontes do poder e da soberania deverá ser objecto de cuidada ponderação pelas forças de governo e pela União Europeia de forma a evitar a erosão definitiva da “constituency” originária, a única sujeita a “accountability” pela cidadania, e, com isso, evitar a destruição da própria democracia representativa.

A não assunção crítica destes factores implicará um esvaziamento da política democrática e da deliberação pública, grave sobretudo ao nível de partidos que têm o particular dever, enquanto se reivindicam de esquerda, de garantir a sustentabilidade e a promoção da política democrática e representativa, ou seja, de garantir que a soberania do cidadão não é definitivamente confiscada por poderes não sujeitos a “accountability” política. Bem pelo contrário, é seu dever promoverem a evolução para uma democracia deliberativa, a única que, mantendo a representação, pode resolver o problema da cisão entre representantes e representados (veja o meu texto sobre a democracia deliberativa em Camponês, Ferreira e Rodríguez-Díaz,  Estudos do Agendamento, Covilhã, Labcom, 2020, pp. 137-167 –  https://labcomca.ubi.pt/estudos-do-agendamento-teoria-desenvolvimentos-e-desafios-50-anos-depois/).

A INFILTRAÇÃO IDEOLÓGICA 
E A IDENTIDADE DO PS

Acresce a tudo isto que a este desvio para um excessivo pragmatismo (eleitoral) de governo, sem alma nem clareza ideológica, sem uma cartografia cognitiva exigente ou sem o suporte de uma grande narrativa ou de uma utopia mobilizadora (recentemente, em artigo em “El País”, o presidente de Más País, e um dos fundadores de Podemos, Iñigo Errejón, falava da necessidade de regressar a uma “política que volte a ser ingénua e utópica”, 14.04.23, pág. 11), que até pode ser a de uma democracia deliberativa (Santos, 2020), que confira mais poder ao cidadão no interior do sistema representativo, se veio a juntar a importação de perigosos produtos ideologicamente tóxicos, assumidos como se neles pudesse acontecer a redenção ideológica de um partido que deixou de cuidar das questões doutrinárias e da sua própria identidade político-ideal. Refiro-me à ideologia woke, ao politicamente correcto, à conversa enjoativa da linguagem inclusiva e neutra, ao radicalismo da ideologia de género, que vê a relação homem-mulher como uma mera relação de poder, e ao revisionismo histórico (veja a minha crítica a estas ideologias em: https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/04/manifesto/ ). A forma como estas ideologias têm vindo a evoluir, designadamente galgando os espaços partidários dos partidos do establishment e os espaços institucionais, assumindo cada vez mais dimensão normativa nas instituições nacionais e internacionais e impondo-se na opinião pública e na sociedade através de estereótipos com força de coação moral, em muito tem contribuído para alimentar a ideologia iliberal da extrema-direita que as identifica, embora errada e instrumentalmente, com a própria mundividência liberal, sua inimiga jurada, desde os tempos do romantismo do século XIX. A intrusão daquelas ideologias – que de liberais, afinal, nada têm, sendo, pelo contrário, suas adversárias – na mundividência dos partidos socialistas e sociais-democratas, que, pelo contrário, radicam e se filiam no iluminismo, é facilitada por uma ideologia de tipo orgânico que, por um lado, rejeita o próprio património liberal (que está na matriz da nossa própria civilização – veja-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789) e, por outro, se afastou da tradição marxista, sem se  preocupar em encontrar uma consistente mundividência alternativa em linha com os novos tempos. Eu próprio tentei uma redefinição da doutrina em Política e Democracia na Era Digital (Lisboa, Parsifal, 2020, pp. 15-47 e 133-153), desenvolvendo, neste livro, a que já apresentara na Universidade de Verão do PS, em Santarém,  em 2015. Os trabalhistas ingleses tentaram esse aggiornamento nos anos cinquenta, com Hugh Gaitskell, mas somente em 1985, com Neil Kinnock, e, depois, com John Smith e Tony Blair, viria a ser desenvolvido na forma de New Labour ou de Terceira Via, tão execrada pelos sociais-democratas tradicionais e, mais tarde, até pelo próprio Labour de Jeremy Corbyn, com os magníficos resultados que se conhece (e que aqui critiquei várias vezes, durante o período da liderança de JC). O recomeço do Labour a partir de 1997 (data em que, após a consolidação interna do New Labour, Blair iniciou a sua caminhada governativa), assumido explicitamente pela liderança de Keir Starmer, está a projectar o Labour de tal modo que poderá vir a ser vencedor absoluto nas próximas eleições (549 mandatos em 650, previstos por uma recente sondagem). Por sua vez, o SPD fez esta operação de libertação da tradição marxista em 1959 e de regresso ao iluminismo, no famoso Congresso de Bad Godesberg. Um e o outro, na sequência destas mudanças, viriam a conquistar o poder e exercê-lo durante bastante tempo. Na verdade, tratou-se do abandono da sua identidade como partidos-igreja para assumirem mais a forma de catch all parties, na sequência do crescimento da “middle class” e da necessidade de lhe corresponder politicamente.  O PS de Abril manteve, todavia, na sua Declaração de Princípios de 1974, uma posição, certamente por força da conjuntura que então se vivia, muito alinhada com as teses e os princípios marxistas (“sociedade sem classes” e colectivização dos meios de produção e de distribuição”, 1.2.), só mais tarde evoluindo paulatinamente para posições mais moderadas, mas sem grandes rupturas de fundo, designadamente em dois aspectos essenciais: na manutenção da sua rejeição do património liberal clássico (e apesar de o iluminismo ser a filosofia em que necessariamente se inscreve), que sempre considerou como sendo de direita (apesar de existir um filão chamado socialismo liberal, que vai de Stuart Mill a Hobhouse, Hobson, Capitini e Calogero, Rosselli, Dewey, Bobbio e o Partito d’Azione italiano – veja-se o meu livro Paradoxos da Democracia, Lisboa, Fenda, 1998, pp. 65-68), e na assunção orgânica do predomínio da ideia de comunidade sobre a ideia de sociedade, um velho resquício sobrevivente do marxismo, e não tanto da teoria de Toennies ou de Weber. Na verdade, o PS, ocupado regularmente nas tarefas da governação durante cerca de 25 anos nos 49 da nossa democracia (em rigor, mais 47 do que 49), nunca chegou a efectuar um verdadeiro aggiornamento de fundo da sua doutrina no sentido de um esclarecimento ideológico equivalente ao que o Labour ou o SPD fizeram, sobretudo nestes dois aspectos que referi, o da compatibilidade da tradição liberal com a sua própria tradição e identidade (o que tem implicações muito relevantes sobre o modo como são vistos os direitos individuais) e o da remoção desse resquício comunitário (com o equivalente sentimento de pertença, que neste partido ainda é quase exclusivo), que persiste. Falta clareza sobre os limites da intervenção do Estado, o papel dos partidos políticos na sociedade, a dinâmica da relação entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade (não se sabendo, hoje, bem qual destes dois princípios tem a primazia, embora o discurso acentue cada vez mais o da igualdade), a chamada classe “gardée” ou referência social dominante no discurso do PS, a questão do peso fiscal sobre a cidadania (que está ligada à questão do papel e funções do Estado, que, sendo Estado Social, não é seguramente um “Estado-Caritas”, amigo caritativo dos “pobrezinhos”), a questão da hegemonia, a relação com os movimentos sociais por causas, a estratégia para a projecção no futuro do país e da própria União, entre tantas outras coisas.

O PS VISTO MAIS DE PERTO

A recente tentativa feita por um centro de investigação do ISCTE, encomendada pelo PS, sobre o partido e o poder local não veio alterar no essencial as coisas, nem, de resto, parece ter tido grande sucesso ou sequer divulgação interna como documento fundamental. Por outro lado, a tentativa de criar uma (bela, de resto) revista semestral de pensamento político, Portugal Socialista – Revista Política, bilingue (português-inglês), na altura dirigida pelo actual presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo, Luís Pita Ameixa, parece ter ficado pelo caminho, creio que pelo seu número dois. A própria Revista Finisterra (que era propriedade da Fundação José Fontana e que agora é propriedade da Fundação Res Publica), que há muito parece estar um pouco abandonada, mas agora dirigida por Fernando Pereira Marques, em dez anos limitou-se a publicar onze números, acabando por ter somente uma periodicidade anual e não desempenhando, designadamente com iniciativas de mobilização, uma função orgânica e propulsora para a revitalização do universo intelectual e doutrinário em que se inscreve o PS. O Acção Socialista, que tive a honra de dirigir durante três anos e de informatizar, e que, há anos, é sido dirigido pela deputada Edite Estrela, pouco ou nada contribuiu, nesses anos, para promover o aggiornamento doutrinário do PS, limitando-se a ser um repositório de artigos de pura política interna e de propaganda, sem ambições doutrinárias e ideológicas, até pura e simplesmente desaparecer, ao ser convertido em mero espaço noticioso do site do PS, embora com a designação de Acção Socialista Digital. Na verdade, Edite Estrela, ao tornar o Acção Socialista um “jornal” diário ou uma Newsletter semanal, o que fez foi acabar mesmo com ele. Se já era pouco, agora é mesmo nada. O PS deixou de ter um jornal próprio. Restam o nome e a Directora. Dois nomes, somente, porque a coisa já não existe. A própria Fundação Res Publica, dirigida por Pedro Silva Pereira, que absorveu a Fundação José Fontana e a Fundação Antero de Quental, pouco ou nada tem feito, estando certamente o seu presidente mais ocupado com o Parlamento Europeu, de que é Vice-Presidente, do que com a gestão e a programação da Fundação. Mas ainda houve tempo para criar, entretanto, em Abril de 2021, uma Revista, Res Publica – Revista de Ensaios Políticos, dirigida por si, que publicou, até ao momento, três números. A Fundação Res Publica tem, pois, neste momento, duas Revistas de pensamento político (Finisterra e Res Publica), ambas, na realidade, de periodicidade anual.  Uma abundância que, na prática, se converte em nula função orgânica, quando a revitalização ideológica e doutrinária é aquilo de que o PS mais precisa.  Em tempos, e é um mero exemplo, a Fundação Antero de Quental, dirigida por Jorge Lacão, foi um importante centro de estudos e de actividade dirigidos ao poder local. Mas, hoje, o que me parece realmente é que o PS, nesta área, anda ao sabor das idiossincracias ou dos humores pessoais de certos seus dirigentes, numa vaga que não se entende.

AFINAL, O QUE É A POLÍTICA?

Tudo isto, que não é pouco, porque se trata de instrumentos preciosos para o robustecimento cultural, ideológico e doutrinário do PS e para a promoção da literacia política dos seus militantes, deverá ser objecto de uma profunda reflexão, pelo menos por aqueles que se preparam para avançar para a liderança no pós-António Costa, preparando um futuro que não seja simplesmente o de fazer cálculos tácticos e eleitorais para a conquista do poder político institucional e para a ocupação do aparelho de Estado, deixando como mero adereço o trabalho no campo estritamente político, ideológico, doutrinário e cultural. Isso é o que se tem verificado, estando o PS transformado num mero partido-veículo (para conduzir ao Estado) e tornando residual a sua relação com a sociedade civil, a não ser numa lógica exclusivamente eleitoral e de redução da política à sua dimensão puramente táctica. O que acontece é que a política é algo mais vasto e mais denso do que a mera competição eleitoral e, seguramente, também é muito mais do que uma mera “arte  do  equilíbrio”, como a definiu, na passada Segunda-Feira, Fernando Medina, até porque é ela que deve ser a base sobre a qual devem ser construídos os projectos políticos, as próprias competições eleitorais e as soluções de governo. Mas essa função só pode ser desempenhada por um partido que seja já um pequeno universo onde se desenvolve uma vida autónoma e plural capaz de vir a alimentar as forças necessárias para a conquista da hegemonia ético-política e cultural, para a construção de um sólido bloco histórico e para a formação de governos competentes, densos e movidos exclusivamente pela ética pública. A política não é, de facto, uma arte para equilibristas talentosos, mas muito mais. E não é desvitalizando e tornando anémico o partido que depois se pode esperar sucesso na relação com a sociedade civil, nas políticas a desenvolver e nos agentes que têm por missão executá-las e promovê-las.

QUE DOUTRINA PARA O FUTURO
DA UNIÃO EUROPEIA?

O mesmo vale para a política internacional e, sobretudo, para a política europeia, onde não se vê preocupação em posicionar o PS sobre as grandes questões que se põem à União Europeia no plano da sua evolução institucional como entidade política e como protagonista à escala mundial, vendo-se, isso sim, designadamente no Facebook, uns ou umas eurodeputadas a fazerem alegremente turismo pelo mundo fora. Nem se vê também preocupação da Foundation for European Progressive Studies, sediada em Bruxelas e dirigida por uma portuguesa, Maria João Rodrigues, produzir doutrina de fundo sobre o futuro da Europa, nem que seja para ajudar a que o PS tenha uma posição clara (que não tem) sobre o futuro da União e, em geral, para responder com novas ideias e propostas à crise por que estão a passar os partidos socialistas ou sociais-democratas da União Europeia. O que é grave, conhecendo nós a matriz europeísta do próprio partido, para a qual muito contribuiu o seu fundador Mário Soares.

Estamos, pois, numa situação que mereceria, agora que o PS tem meio século, uma atenção particular, fazendo um aggiornamento  profundo que toque em todos estes aspectos e superando essa ideia que começa a singrar na opinião pública de que este partido já mais não é do que uma enorme federação de interesses pessoais em busca de colo na gigantesca máquina do Estado e uma boa plataforma para descolar em direcção a Bruxelas e a Estrasburgo. Mas não é essa a vocação do PS, nem o seu passado é compatível com essa condição.

OS MEUS PARABÉNS

É este o meu voto, crítico, mas auspicioso, no dia em que o PS  faz 50 anos. Os meus parabéns pelo seu honroso passado e o meu desejo de que saiba sair desta situação anémica ou pantanosa em que se encontra para que o seu passado seja honrado com um futuro digno também de boa memória.

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Poesia-Pintura

INESPERADO ENCONTRO

Poema de João de Almeida Santos
inspirado no romance
“Via dei Portoghesi”.
Ilustração: “Piazza Navona”.
Original de minha autoria.
Abril de 2023.
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“Piazza Navona”. JAS. 04-2023

POEMA – “INESPERADO ENCONTRO”

CHEGASTE SÓ,
Em silêncio,
Austera,
Rosto crispado,
Ficaste, triste,
À espera
Que te servissem
Gelado...
............
Era outono
Profundo
E os sinos
De Sant’Agnese
Tocavam ali,
A meu lado.

VI-TE DISCRETA
Chegar
A esse bar
Onde estava,
Mudei logo
De lugar,
E, ao ver-te,
Estranhava,
Eras ilha
No meu mar,
Mas o brilho
Dos teus olhos
Fascinava,
Não deixava
Navegar.

E DE NOVO
Estremeci
Desse olhar
Tão penetrante
Que, sem me ver,
Me fitava
Como olhar
De amante.

QUIS DESENHAR
Essa tua silhueta,
Tremeram
As mãos do pintor,
Voltou a voz
Do poeta.
Com palavras
E com dor
Voltei a ser
O que era:
Artista
Com vocação
De asceta.

ESFUMOU-SE
No olhar
A beleza
Do teu rosto
E não pude
Desenhar
Esse perfil
De que gosto.

FICOU-ME
A poesia
Com as palavras
Que tinha,
Com elas,
Eu bem sabia,
Pintava quadros
Em tela
E pautas
Com melodia.

DEPOIS, PARTISTE
E ombro a ombro
Caminhámos,
Estranhos
Numa só via
Por onde nunca
Passámos.

E ASSIM EU VOU
Sonhando
Histórias da utopia,
Terão fim,
Só não sei quando,
Até chegar esse dia.

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Ensaio

A POLÍTICA NA ERA DO ALGORITMO

As Três Fontes do Poder

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 04-2023

I.
VEM AÍ A PÓS-DEMOCRACIA?

COMEÇO POR DIZER que quando usamos conceitos como pós-democracia ou pós-representação a referência é sempre a democracia representativa. Os teóricos têm de estar sempre a inovar, mesmo que isso represente alguma violência ao real. Mas a criatividade teórica, para ser eficaz, precisa de conceitos estimulantes e desafiadores. Ora estes dois conceitos parece indicarem que a democracia representativa está velha, se consumou, se gastou. O que não é verdade, porque ela é muito jovem, se a medida for o tempo histórico, a longa duração. E até poderemos afirmar, sem risco de errar, que a democracia representativa até pode ser considerada uma utopia difícil ou mesmo impossível de alcançar.

Sufrágio Universal e Democracia

Seja como for, a democracia representativa, que só existe desde que haja sufrágio universal, é, de facto, bastante jovem, pois ela não se identifica stricto sensu com sistema representativo, que é bem anterior, não sendo compatível com regimes censitários. O que tínhamos, pois, até ao sufrágio universal era simplesmente um sistema representativo em regime censitário. A sua história anda de braço dado com a assunção do sufrágio universal e, claro, com o sistema representativo. E é bastante jovem porque, neste sentido, a sua plena concretização histórica só se verificou verdadeiramente, passados três turbulentos e dramáticos decénios (1914-1945), na segunda metade do século XX, uma vez que, como disse, só da combinação do sistema representativo com o sufrágio universal poderá resultar a democracia representativa, sendo também certo que a pedra-de-toque que a distingue de todas as outras formas de democracia é o mandato não-imperativo. Ou seja, o mandato não revogável (sobre o conceito de representação veja-se o excelente texto de Diogo Pires Aurélio – Aurélio, 2009).

A Democracia como Utopia

DEPOIS, em boa verdade, ela configura-se como uma utopia se considerarmos que o voto, neste regime, tem poder constituinte, é individual, é secreto, é universal e convoca aquilo a que Kant chamou imperativo categórico, ou seja, que cada voto seja determinado pela ideia de que dele possa resultar uma legislação universal com poder impositivo. O que significa que este voto singular, exprimindo uma profunda convicção (fundamentada e argumentada), traz com ele uma responsabilidade absoluta, como se o mundo viesse a ser regulado por ele. Um acto singular com pretensões de validade universal e, consequentemente, associado ao princípio da responsabilidade. É neste princípio, difícil de atingir na sua plenitude, que se funda a democracia e que lhe dá um valor que nenhum outro regime consegue exibir. Um princípio que exige plena maturidade da cidadania.  Através do princípio do mandato não imperativo o representante assume uma dimensão universal porque passa a ser titular do principal órgão de soberania, o Parlamento, esse mesmo que legisla segundo o mesmo princípio de universalidade, ou seja, de acordo com o interesse geral (da nação) e não de acordo com o interesse particular, seu, de classe ou regional. E nem sequer de acordo com o círculo eleitoral que o elege (1).

O Espaço Intermédio

Mas a verdade é que tudo está a mudar e, mantendo-se a matriz representativa originária, para a qual ainda ninguém conseguiu encontrar substituto válido, algo mudou no sistema representativo. E o que mudou reside, para além do sufrágio universal, na relação entre os representantes e os representados, aquilo a que alguém chamou “espaço intermédio” (Tagliagambe, 2009), aquele espaço que se situa entre a cidadania e o poder, entre a rua e o palácio, entre o acto do voto e o exercício do poder que resulta daquela relação e que se processa precisamente neste espaço. (2). Hoje tudo se sabe (a verdade e a mentira) e até é possível fazer política e comunicar para além daqueles que são os canais tradicionais de intermediação da política e da comunicação, partidos e media. Antes, não. E até era proibido (logo no século XVIII) informar acerca do que se passava no Parlamento. Ou seja, a participação política deixou de se reduzir ao (já tão reduzido, nos regimes censitários) acto de votar para designar a representação e legitimar o mandato. A ideia de participação cresce à medida que este “espaço intermédio” também cresce, ou melhor, à medida que ele vai sendo ocupado pelas plataformas de comunicação (social).

Desintermediação 
e Democracia Deliberativa

Isto aconteceu sobretudo com o aparecimento da televisão e, nos nossos dias, viria a aprofundar-se com a emergência da rede, das TICs e das redes sociais, ou seja, com a possibilidade de aceder ao espaço público deliberativo sem interferência dos chamados gatekeepers, dos mediadores, seja da comunicação seja da política. E foi por isso que o discurso sobre a pós-democracia (representativa) ganhou uma forte acuidade, lá onde o processo de construção do consenso e o processo de formação da decisão passaram a correr também noutros canais que não os tradicionais. Numa palavra, a política e a comunicação já estão desintermediadas, tendo terminado o monopólio da intermediação pelos tradicionais meios, media e partidos (Biancalana, 2020). Por isso, alguns consideram que estamos perante uma pós-democracia (representativa) porque a representação deixou de ser a fórmula exclusiva para o exercício do poder; outros, como eu, consideram que esta nova fase pode ser favorável, não à pós-democracia ou à pós-representação, mas ao relançamento da democracia representativa se ela evoluir para uma democracia deliberativa, uma forma superior de democracia representativa que, em parte, vem resolver o problema do decisionismo e da fractura entre representantes e representados. Ou seja, uma forma de inclusão da cidadania na política e na democracia através de uma qualificação do consenso e do processo decisional, da metabolização política, informal e formal (não simplesmente instrumental), pelos representantes, dos fluxos que correm na esfera pública deliberativa, onde hoje a cidadania pode intervir directamente sem mediações e gatekeeping. Numa democracia deliberativa a representação política mantém-se com as características de sempre, mas incorpora esse “espaço intermédio” que nos primeiros tempos do sistema representativo estava completamente vazio (após o voto, de resto, censitário, não era permitido conhecer o que se passava no palácio do poder, sendo crime a sua divulgação).  Diria mais. Se, de facto, a política convencional desconhecer esta mudança radical estará condenada porque surgirão (como já acontece) forças que ocuparão este “espaço intermédio” contra a própria democracia representativa. O que já aconteceu, como se sabe: a intervenção da Cambridge Analytica no Brexit e nas Presidenciais de 2016 nos USA. A partidocracia e a mediocracia, ambas endogâmicas, representam esta cegueira relativamente ao que mudou radicalmente desde a criação do sistema representativo: da ocultação, legalmente sancionada, do exercício do poder (no século XVIII) passou-se à transparência total quer do exercício do poder quer dos seus próprios bastidores, devido à evolução dos meios de comunicação, ao sufrágio universal, ao progresso constitucional e, agora, ao novo espaço público deliberativo, com a network society e suas componentes orgânicas, ou à novíssima algorithmic society.

Participação e Representação

Vem este discurso a propósito de um pequeno ensaio de Michele Sorice, director do Centro de Investigação da Universidade Luiss (“Centre for Conflict and Participation  Studies), de Roma, publicado como introdução ao volume da revista Culture e Studi del Sociale  sobre “Conflito e partecipazione democratica nella società digitale” (Sorice, 2020).  O ensaio tem precisamente como título “A participação política no tempo da pós-democracia” e o autor utiliza uma linguagem conceptual muito eficaz para abordar estas novas tendências em curso.

Michele Sorice vai ao tema directamente e chama a atenção para o esvaziamento da ideia de conflito na competição política, para a diferença entre representação e participação, a redução da política a “governance”, a excessiva fragmentação da intervenção política na era digital (hiperfragmentação) e a consequente despolitização que tem vindo a ser associada à “network society”, o “imperialismo das plataformas”, reforçado pelo desenvolvimento do chamado “capitalismo digital”, designado como “capitalismo das plataformas”, e ainda para o conflito entre “os velhos espaços públicos da sociedade de massas” e a “hiperfragmentação” induzida pela “network society”.  Sorice cita Colin Crouch, em Post-Democracy After the Crises (Crouch, 2020), numa passagem em que este autor afirma que  se tornou necessário rever as relações das redes sociais com a democracia e a pós-democracia, visto o uso que as grandes plataformas fazem dos perfis de milhões e milhões de utilizadores para fins de construção de um novo poder global precisamente pós-democrático e alternativo às elites tradicionais. E associa-lhes também as hiperlideranças, os populismos, os processos de despolitização e a chamada pós-esfera pública, induzida pela “platformization”. E chama ainda a atenção para a deslocação do poder das oligarquias ideológicas da política tradicional para as elites tecnocráticas, plenamente funcionais às dinâmicas de comercialização da cidadania, a sua valorização mais como valor de troca do que como valor de uso. O que diz tudo. O autor liga o processo de plataformização à pós-democracia e à chamada pós-esfera pública. E é neste quadro, que, segundo ele, se coloca a crise de legitimidade dos partidos, a transformação dos movimentos sociais, a emergência de novas formas de agregação, como, por exemplo, os movimentos urbanos, o desenvolvimento da cidadania activa e a afirmação de novas formas de acção social directa. Crise dos partidos e emergência das plataformas de mobilização – é nesta encruzilhada que irrompem estes fluxos sociais que podem mudar o panorama da democracia representativa. E é aqui que bate o ponto, segundo o autor, ou seja, na necessidade de mobilização da ideia de conflito (por oposição ao processo de anestesia política em curso) para uma revitalização da participação e da política. Esta ideia permite superar, por um lado, a simples ideia de representação, mas também o simples direito generalizado a tomar a palavra como paradoxal anestesiante político de massas, ou seja, a participação de todos como redução do poder da cidadania, enquanto ela pode induzir a ilusão de um autogoverno que, afinal, não decorre automaticamente deste tipo de participação. Uma ilusão, sim, porque esta participação é “hiperfragmentada” e não se encontra ancorada em novas formas culturais alternativas, em conflito com as formas hegemónicas, e não está inscrita, diria, com Gramsci, num “bloco histórico” capaz de se constituir como alternativa hegemónica. Mesmo assim, considero que este “poder diluído” (mas não hiperdiluído) da cidadania é superior ao exclusivo poder de delegação (regular e cíclico), em eleições, na representação, que tende a remeter a participação política para uma esfera residual, considerada até como potencialmente subversiva, e no establishment mediático, enquanto detentor do poder de representação social. Além disso, Sorice vê na relação do neoliberalismo com esta hiperfragmentação da cidadania uma tendência fatal porque se trata de uma participação ilusória e politicamente inócua, ou seja, não conflitual nem alternativa.

O Capitalismo da Vigilância

Sem dúvida que não é possível ignorar as “dinâmicas de poder presentes no ecossistema mediático nem as lógicas económicas e os mecanismos proprietários que regulam a actividade dos próprios social media”, como diz Sorice. E para ilustrar este último aspecto bastaria ao autor referir o livro da Shoshana Zuboff, “The Age of Surveillance Capitalism” (Zuboff, 2019), uma análise impiedosa do poder das grandes plataformas e da forma como o obtêm, evidenciando assim a desigualdade estrutural entre plataforma e utente, traduzida no uso abusivo de dados pessoais para efeitos de tratamento dos big data e de previsão dos comportamentos para fins comerciais e de poder financeiro, sim, mas também políticos. O autor sintetiza, e muito bem, esta questão, traduzida no capitalismo e no imperialismo digital desenvolvido no processo de plataformização das sociedades, entendendo por isso o domínio das grandes plataformas, como, por exemplo, a Google ou o Facebook, sobre as sociedades.

Conceitos

Esta linha crítica já tinha sido avançada pelo autor no livro que coordenei sobre “Política e democracia na era digital” (Santos, 2020), no capítulo de sua autoria e de Emiliana de Blasio (“O partido-plataforma entre despolitização e novas formas de participação: que possibilidades para a esquerda na Europa?”, pp. 71-101). E aqui, neste ensaio, insiste em chamar a atenção para reais tendências que estão a ocorrer na sociedade em rede e para os seus perigos, desvirtuando aquelas que eram, no início, reconhecidas como virtudes da novas tecnologias da libertação. Mas usa também um corpo conceptual que importa integrar na análise política dos actuais fenómenos políticos, sendo certo que a academia teima em não sair do velho sistema conceptual. Com efeito, Sorice dá palco a conceitos como “eco-sistemas comunicativos digitais”, “hiperliderança”, hiperfragmentação”, diferença entre participação e representação e entre “governance” e “e-government”, “platformization”, capitalismo e imperialismo digital, pós-democracia, pós-representação, “capitalismo das plataformas”, “network society”, participação sem conflito, participação conflitual, “comercialização da cidadania”, “pós-esfera pública”. Conceitos interessantes e fundamentais para aceder à política e à comunicação tal como hoje se configuram. E é claro que acompanho o autor nesta análise crítica.

Diria, todavia, que falta agora ver o lado positivo da emergência da rede, das TIC e das redes sociais (social media) seja do ponto de vista da comunicação seja do ponto de vista da política.

Quem ler o livro da Shoshana Zuboff, já referido, ficará muito bem elucidado sobre o processo de acumulação do novo capitalismo digital, ou “capitalismo da vigilância”, e também sobre o seu poder, sobre a passagem das tecnologias da liberdade a instrumentos de acumulação capitalística. Processo a que o autor também alude. E também é verdade que o acesso universal ao espaço público, a participação de todos, a integração política virtual podem tender a anular o conflito e a anestesiar a verdadeira participação política, fragmentando excessivamente uma intervenção sem novas formas culturais alternativas, sem uma cartografia cognitiva e com a ilusão de participação pelo simples direito de acesso à nova esfera pública. E ainda a favorecer hiperlideranças de inspiração populista ancoradas na relação directa e carismática com o povo da rede. Sim, tudo isto pode acontecer e, em parte, já está a acontecer, até porque a política clássica tem vindo a evoluir cada vez mais para uma lógica endogâmica que a afasta da cidadania e da realidade.

O Novo Mundo Digital

Mas também é verdade que a rede, em geral, as TIC e as redes sociais abriram canais de acesso e de participação absolutamente novos e praticamente livres de gatekeeping, essa forma de controlo do acesso ao espaço público. Acesso em dois sentidos: a) para obter informação em múltiplos suportes e em diversificadas fontes; b) e para intervir livremente no processo comunicacional e no processo político acedendo sem mediadores ao espaço público deliberativo. Estes canais de acesso valorizaram extremamente o espaço público deliberativo e deram origem a formas de organização autónomas do poder partidário, as plataformas digitais temáticas, como, por exemplo, moveon.org ou meetup, em condições de dar voz ao conflito e de mobilizar a cidadania. O exemplo da plataforma moveon.org nos USA é muito significativo. Por exemplo, apoiando Bernie Sanders, Barack Obama ou o Obamacare.

O que quero significar é que aos media tradicionais se veio juntar uma nova e poderosa realidade, a que chamo “espaço intermédio”, que permite um mais aberto e livre acesso ao espaço público na dupla dimensão da recepção de conteúdos e da produção de conteúdos, dando origem a um novo tipo de cidadania: a do prosumer. Este facto veio reforçar a importância do “espaço intermédio” enquanto espaço público deliberativo – por onde corre a relação entre representados e representantes – e tornar possível designadamente um revigoramento da democracia representativa e uma maior accountability quer do poder político quer do poder mediático, seu irmão gémeo.  Na verdade, a mudança é profunda porquanto não só representa o alargamento do espaço público e o fim do gatekeeping, mas também porque representa uma mudança qualitativa na relação comunicacional com a evolução da “mass communication” para “mass self-communication” e com a transformação do cidadão em prosumer, em receptor e produtor de comunicação e política, dando assim efectividade política ao conceito criado por Alvin Tofler, em The Third Wave, em 1980 (Tofler, 1980; e Castells, 2007).

Não vejo, todavia, esta expansão gigantesca do acesso ao espaço público deliberativo nos dois sentidos acima referidos sem um enquadramento, uma cartografia cognitiva, uma bússola que conduza a cidadania num certo sentido. Neste caso, mais do que falar em novas formas de mediação, falaria em hegemonia, em conquista ético-política da esfera reticular e em capacidade de polarização da cidadania por novas formas culturais alternativas. Na verdade, do que se trata, com o novo espaço público deliberativo e com o novo tipo de acesso, é simplesmente da sua enorme expansão e de uma lógica de funcionamento totalmente distinta da que era dominada pelos senhores do gatekeeping comunicacional, mas também político. Nada mais. Mas que já é muito, lá isso é. E é por isso que concordo com Michele Sorice na ideia de que são necessárias novas formas culturais, que podem ser interpretadas e accionadas pelos partidos políticos desde que sejam capazes de responder, não transformisticamente, aos novos desafios. O fim dos monopólios que sirva, ao menos, para isso. E não creio que o chamado “capitalismo da vigilância” consiga controlar totalmente este novo mundo, tal como nem os chineses o conseguem controlar, apesar de, esses sim, procurarem hegemonizá-lo através das ideologias do nacionalismo e do consumismo, sem deixarem, todavia, de usar todos os instrumentos de controlo disponíveis, que são muitos e diversificados (Santos, 2017).

Não creio, pois, que seja boa ou viável a proposta pós-democrática ou pós-representativa porque, na verdade, os fundamentos e as funcionalidades da representação se mantêm. Pelo contrário, a democracia deliberativa, mantendo intacta a representação, reabre os canais de acesso à informação e à política e rompe com o monopólio e o exclusivismo da representação porque dão à cidadania a possibilidade de entrar em cena no palco da deliberação pública, influenciando não só a o processo de construção do consenso, mas também a própria produção da decisão. A política deliberativa enriquece a democracia representativa, mas não a substitui nem a diminui. Por um lado, ampliando o leque de possibilidades de empoderamento político da cidadania e, por outro, revigorando a própria representação e os partidos políticos, enquanto portadores de visões do mundo capazes de agregar a cidadania de acordo com as pertenças de cada um e com cartografias cognitivas que lhe sirvam de bússola. As plataformas temáticas têm o poder de se constituir como canais complementares de acesso ao espaço público deliberativo e deste modo influenciar decisivamente a política e a representação. A rede é um “espaço intermédio” incontornável e as redes sociais não são mais do que derivados orgânicos desta realidade. E por isso não é possível falar delas como se fala de media, tendo estrutura e lógica diferentes dos media convencionais. E também por isso não creio que seja útil abordá-las com a dicotomia tornada famosa por Umberto Eco: a dos apocalípticos e dos integrados.

II.
O DOCUMENTÁRIO DA NETFLIX
SOBRE “O DILEMA DAS REDES SOCIAIS”

Muito ilustrativo, mas unilateral, a respeito do que estou a dizer é o documentário da NETFLIX “O Dilema das Redes Sociais”, uma impiedosa análise crítica deste novo mundo a que me refiro. Unilateral sobretudo porque todo o enfoque consiste numa crítica apocalíptica, devastadora, não mostrando o que de positivo as redes sociais (a rede em geral) trouxeram à cidadania. E fez-me lembrar, de facto, os debates sobre apocalípticos e integrados a propósito da comunicação de massas e das indústrias culturais. E, naturalmente, o próprio livro de Umberto Eco, “Apocalittici e Integrati” (Eco, 1999), saído em 1964. A crítica devastadora à nascente cultura de massas, sobretudo à televisão, pelos apocalípticos, em geral identificados com as elites da alta cultura e maioritariamente de esquerda. E também me fez lembrar, claro, o grito contra o fim da sociabilidade com a irrupção deste tertium que passou a polarizar toda a atenção das salas, públicas ou privadas, ignorando a dimensão física do convívio a favor da dimensão simulacral. O mesmo que agora o documentário discute com dramatismo a propósito do domínio viciante das plataformas móveis sobre os adolescentes e sobre nós próprios, quando substituímos a conviviabilidade pelo fecho no universo digital próprio, de cada um. A força magnética das plataformas móveis, mais poderosa e individualizada do que o magnetismo da televisão. Já publiquei, em duas edições, um livro sobre esta questão, a propósito da televisão: “Homo Zappiens. O feitiço da televisão” (Santos, 2019). As críticas, muitas delas, eram e são justas. A sua diabolização, pelo contrário, é errada e irrealista. Afinal, a televisão continuou e permitiu o acesso à informação e ao entretenimento a milhões de pessoas e assumiu uma dimensão universal. Aponta-se o início dos anos noventa do século passado, com a Guerra do Golfo, como o início da era da televisão universal, com a CNN. Agora, depois do seu aparecimento como meio de comunicação já radicado socialmente, nos anos cinquenta, a televisão continua, com os seus defeitos e as suas virtudes, mas está a passar por um processo onde a sua dominância está a ser posta em causa pela emergência recente das redes sociais, com todo o cortejo de apocalípticos a voltar de novo à boca de cena, a gritar o caos e o fim do mundo.

Prosumer

Ao ver o Documentário (precisamente na NETFLIX, no meu IMac, não na televisão nem no cinema) fiquei até com a sensação de que este alinha claramente no combate radical que o poder convencional (mediático e político) está a promover contra as redes sociais e a rede em geral (um dos personagens diz que estava viciado em e-mails). E não me chega que no fim venham dar conselhos de bom comportamento na relação com a rede, até porque logo são acompanhados de conselhos militantes em defesa do abandono radical das redes sociais. Insinua-se a ideia errada de que a rede tem por detrás uma intencionalidade malévola, quando, afinal, ela é mais um espaço livre onde cada um pode, ao contrário da televisão, intervir em duas direcções: como receptor e como emissor, ou seja, como prosumer. O nível de controlo é aqui muito baixo e algumas vezes até é desejável, como no combate à desinformação (que já aconteceu, por exemplo, nas eleições para o Parlamento Europeu, em 2019, através de um protocolo assinado entre as grandes plataformas, Google, Facebook, Twitter, Youtube e a Comissão Europeia, e com resultados assinaláveis).

Crítica ou Apocalipse?

Bem sei que há nelas um potencial viciante, que é um imenso mundo onde tudo acontece,  um gigantesco “espaço intermédio”, que são uma revolução na comunicação e que se torna necessário metabolizar racionalmente o seu uso, que os administradores dispõem de um potencial de vigilância enorme e que o poderão usar de forma abusiva (como já aconteceu com a Cambridge Analytica). Sei tudo isto. E sei ainda mais, agora que me apercebo do impacto mundial do fenómeno (viciante) do Tik Tok. E que estes elementos críticos são para levar a sério pelos poderes nacionais e supranacionais e por cada um, individualmente. E também sei que esta é uma revolução civilizacional como talvez nunca tenha existido na história da humanidade, pela sua rapidez e, sobretudo, por atingir a dimensão da inteligência e da comunicação com uma profundidade nunca vista. Sei isto e, neste aspecto, o documentário é útil porque alerta para os perigos. Mas é excessivo na crítica. Diria mesmo excessivamente militante e demolidor, com os operadores destas redes (que participaram no documentário) alcandorados à posição de filósofos do caos e do apocalipse, mais até do que da distopia a que se referem. Apetece-me dizer: a dependência nasceu com as redes sociais? Antes só conhecíamos a virtude?

Antes das Redes Sociais

Muitas coisas devem ser esclarecidas porque contrariam a posição de fundo do documentário, a começar pela militância dos intervenientes e do estratega do documentário. No fim, até se passou das redes sociais e das fake news para os perigos da inteligência artificial, em geral. Que são reais, como se compreende, mas algo desviantes, neste contexto. Falou-se excessivamente de dinheiro e de negócio, como se estes não fossem legítimos e estas multinacionais fossem as primeiras a existir no mundo globalizado. Leiam o excelente livro da Naomi Klein, No Logo, e logo verão o que já existia (e existe) antes das redes sociais e das grandes plataformas digitais. E falou-se também da educação dos próprios filhos, ensinados a estar longe das redes sociais, por eles, que, pelos vistos, as criaram e administraram. Não, não gostei porque mais me pareceram defensores militantes do poder convencional, assustados com o poder que as redes sociais podem dar e já estão a dar à cidadania. Depois, o tabloidismo desbragado da violência nas ruas, imputada implicitamente às redes sociais, como se não tivesse havido antes destas, e em pleno século XX, no arco de 30 anos, duas guerras mundiais que mataram dezenas de milhões de pessoas.

Os Filósofos do Apocalipse

Estes ex-funcionários das redes sociais surgem aqui como filósofos, psicólogos, políticos, sociólogos mais do que como técnicos, operadores, engenheiros e gestores das redes sociais a explicar-nos que vem aí o caos e o apocalipse. Só faltou mesmo dizer que boa era a ordem exclusiva do poder mediático e do poder das organizações mediadoras da política. Temo que o artigo alucinado de Miguel Sousa Tavares (“Desculpem-me se volto ao mesmo”), publicado no “Expresso” de 03.10.2020, sobre as redes sociais tenha sido agravado pelo visionamento deste documentário. Documentário por documentário, achei muito mais interessante o da jornalista do “The Observer”, Carole Cadwalladr, sobre “O papel do Facebook no Brexit e a ameaça à democracia” (2019) e a Cambridge Analytica, a que correspondera um ensaio seu e de Emma Graham-Harrison sobre a mesma matéria publicado pelo “The Guardian” (17.03.2018).

Mas vamos mais directamente ao assunto. Até há quem lhes chame tecnologias da liberdade. Isto lê-se nos livros de Castells, o grande sociólogo catalão (que foi Ministro do Governo de Pedro Sánchez), que tem desenvolvido abundante investigação sobre esta matéria. E lê-se no excelente ensaio de Jack Linchuan Qiu, investigador da Annenberg School for Communication, da Universidade da Califórnia do Sul e cofundador do “Grupo Electrónico de Investigação em Internet na China”, sobre “Internet na China: Tecnologias de liberdade numa sociedade estatista”, incluído no livro de Castells (Ed.) sobre “La Sociedad Red: Una Visión Global” (Castells, 2011: 137-167). A ele me refiro abundantemente no Ensaio que publiquei no número 17/2017 da Revista ResPublica (“A Emergência da Rede na Política. Os Casos Italiano e Chinês” – Santos, 2017: 51-78). O documentário não vê esta parte, a da liberdade, a que está confiada à cidadania, o processo de desintermediação da comunicação e da política, o livre acesso ao espaço público, o fim da exclusividade editorial e programática dos agentes orgânicos do poder mediático e do poder político, o fim do seu monopólio de “gatekeeping” sobre o espaço público. E depois não vê que o cidadão pode, também ele, protagonizar-se na Net, intervir no espaço público sem pedir licença aos “gatekeepers” de sempre (conhecemo-los bem, os “Donos de Toda esta Informação”), a maior parte das vezes descaradamente política, económica e ideologicamente alinhados. Sim, os nossos hábitos de acesso à rede são registados e analisados pelo algoritmo que depois torna possível vender-nos como consumidores de certos produtos, simbólicos ou não simbólicos. Sim, são os nossos hábitos, mas, no fim, só compramos se quisermos. E, pergunto, não somos também vendidos como consumidores enquanto espectadores das televisões? Bem sei que agora a comunicação de massas tem outra característica diferente porque se tornou “mass self-communication”, “comunicação individualizada de massas”, sendo possível devolver propostas de consumo em linha com as nossas preferências pessoais dominantes. É verdade, mas mantém-se a possibilidade de recusa em amplo espectro. O marketing 4.0 deve ser banido, por lei? Aliás, todo o marketing deverá ser banido, por nos instrumentalizar? Antes das redes sociais o mundo era perfeito? Segundo Miguel Sousa Tavares parece que sim.

Contra o Novo “Capitalismo da Vigilância”

Parece que este Documentário foi feito para combater o chamado “Capitalismo da Vigilância”, protagonizado pelos gigantes das plataformas digitais, Google, Facebook, Instagram, Twitter,  Youtube, etc., mais do que para entender o que realmente é a rede e o que são as redes sociais. Na verdade, do que se trata, com a rede, é de um mundo digital onde se vive, se comunica e se produz. Mas este mundo não é alternativo ao mundo real. É complementar e dá oportunidades de que os cidadãos antes não dispunham. Quando a televisão apareceu e se impôs na política muitos diziam que, assim, a política não passaria de espectáculo enganador. É verdade, o palco televisivo permite encenações e representações que equivalem ao teatro e ao cinema. Mas também é verdade que levou a política a milhões, que permite ao mais humilde e pouco cultivado cidadão escolher o representante com base nos mesmos mecanismos cognitivos de escolha que usa na sua vida quotidiana (“olhando para o seu rosto, a este político eu não compraria um carro em segunda mão”), democratizou a informação e personalizou a política. E é aqui que o assunto bate com mais força: a rede, inaugurando um processo de desintermediação, permite uma vasta democratização dos processos comunicacionais e políticos. Sim, na rede não há uma certificação da comunicação como existe no mundo mediático, existindo apenas protocolos (assinados entre as plataformas e organismos nacionais ou supranacionais, como, por exemplo, a Comissão Europeia) que permitem aos gestores eliminar desinformação e conteúdos intoleráveis à luz das grandes cartas universais de direitos, sendo necessário promover a educação e uma vasta literacia digital, a começar logo na escola, que permitam uma efectiva auto-regulação, normas de uso inteligente da rede, cidadania digital. Mas, digam-me lá, o tabloidismo desbragado que todos os dias passa, em prime time, nas televisões de canal aberto é uma boa alternativa à rede? O “Correio da Manhã”, Jornal e Televisão, é uma boa alternativa à rede? E que dizer da Fox News? Os códigos éticos do jornalismo são praticados pelos próprios que os assinaram? Não, não são. E esta, ao contrário da rede, é informação que se pretende certificada, apesar de contrariar gravemente os próprios códigos éticos que criou e adoptou (e que, de resto, deve adoptar).

Uma Campanha Radical

A campanha dos poderosos contra as redes sociais existe. E continua. Nela entram as elites que estão nos interfaces da comunicação e que até há pouco detinham o poder exclusivo de acesso ao espaço público e ao espaço público deliberativo. O poder de “gatekeeping”. E entram os grandes meios de comunicação, argumentando que só eles podem dar informação certificada e em linha com as normas dos respectivos códigos éticos. E entra a política convencional porque também o seu poder exclusivo de intermediação começa a ser posto em causa. Há grandes plataformas digitais, como, por exemplo, a MoveOn.org, que já mobilizam mais a cidadania do que os partidos tradicionais. E já se fala de (e já existem) partidos-plataforma que partem da rede para a política e não da política para a rede. E este novo mundo já tem um novo conceito de cidadão: prosumer, simultaneamente consumidor e produtor de informação e de política. E, como disse, também a comunicação de massas está a ser substituída pela “comunicação individual de massas” de matriz digital. É uma revolução que o Documentário não regista, mas que torna possível uma enorme viragem civilizacional, cultural, na informação e na política, assim saibamos usar estes poderosos meios. O que, de resto, só acontecerá se os poderes maiores o permitirem, a começar pelo poder político. Mas até aqui a cidadania poderá obrigá-los a proceder em conformidade, usando a rede.

Este documentário inscreve-se na doutrina dos apocalípticos, que, neste caso, e paradoxalmente, são mais integrados do que os outros, os que estão a metabolizar a mudança reconhecendo que esta está inscrita na normal evolução das sociedades, sendo necessário metabolizá-la. E creio mesmo que, tal como aconteceu com a televisão, esta revolução será devidamente metabolizada pela História e conhecerá o destino que formos capazes de construir, agora que a cidadania tem meios para o fazer como nunca teve no passado.

III.
ALGORITMOCRACIA

Este mundo é objecto de um interessante livro de Giovanni Gregorio, investigador na Universidade de Oxford, sobre Digital Constitutionalism in Europe. Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society (Gregorio, 2022). Sociedade algorítmica, um nível acima da chamada digital and network society. O assunto é sério, urgente e interessante. E responde, em parte, às questões que têm sido levantadas, precisamente por Shoshana Zuboff, no seu A Era do Capitalismo da Vigilância (Zuboff, 2020), de resto, citado no livro ou pelo referido documentário da NETFLIX sobre as redes sociais. Vejamos, então, do que se trata.

Novos Conceitos

O autor usa interessantes conceitos para analisar a  sociedade algorítmica. Vale a pena referir alguns: “algorithmic society”,  “algocracy”, “automated decision-making processes”, “digital environment”,  “extraction of value from information”, “online platforms vertically order”, “digital capitalism”, “digital liberalism”, “modulated democracy”, “constitutionalisation of online spaces”, “functional sovereignity” (que substitui a “territorial sovereignity”). Nos conceitos usados adivinha-se toda uma doutrina avançada sobre esta nova realidade, que muitos teimam em não reconhecer e assumir como algo a considerar muito seriamente, sobretudo nos domínios da política, da comunicação e do direito. “Sociedade algorítmica” – parece ser o conceito que vem substituir o de “sociedade digital e em rede” para indicar uma evolução das TICS e uma maior intervenção social da Inteligência Artificial (IA), o crescimento dos “automated decision-making processes”, subtraídos aos normais processos de “accountability”, a montante e a jusante. Tanto que até pode dar origem a uma Algocracy, a um sedutor regime do algoritmo, sucedâneo da Democracy. Bastaria para tal dar forma política à “sociedade algorítmica” e à correspondente automatização generalizada dos processos sociais. Uma utopia que parece ao nosso alcance e a breve prazo. Outro conceito a registar poderá ser o de soberania funcional, uma soberania pós-territorial, global, a das grandes plataformas digitais. Uma soberania diferente, que não reside na nação, no povo ou até nos grandes credores financeiros internacionais, mas nas grandes plataformas digitais privadas. Ou, ainda, a extracção da mais-valia, agora não já do trabalho, como em Marx, pelo prolongamento não remunerado da jornada de trabalho (a famosa mais-valia absoluta), mas pela informação acerca dos perfis dos seus utilizadores/consumidores para futura venda de preditivos comportamentais aos seus novos clientes. Poderia continuar, mas creio que já ficou claro o caminho traçado.

Soberania Funcional

Estamos, pois, a pisar terreno inovador, muito complexo, polémico e vital. O centro do problema reside na relação entre as grandes plataformas digitais, a cidadania e a autoridade pública, estando cada vez mais as grandes plataformas digitais privadas e globais a interpor-se entre a autoridade pública e a cidadania, gerando o que julgo ser já um problema de “constituency”, de uma nova “constituency”, vista a natureza e o alcance destes poderes privados globais. O conceito de soberania funcional é isso mesmo que indicia.  Sim, um problema de “constituency” exactamente como acontece no caso das grandes plataformas financeiras, como veremos. Diferente, mas equivalente. Se estas actuam perante os Estados endividados como credores protegidos por contratos que intervêm no processo de gestão financeira dos Estados e até nos seus programas de governo (veja-se, como exemplo, o documento assinado – um autêntico programa de governo – entre o governo português e a troika que nos financiou), reivindicando o direito a verem satisfeitos os termos dos contratos de financiamento público, estas plataformas intervêm directamente sobre a cidadania consumidora de produtos digitais, gerindo um vastíssimo espaço social não regulado ou, então, ainda pouco e mal regulado, podendo mesmo, vista a matéria sobre a qual trabalha, condicionar a génese e a constituição do próprio poder político e, por essa via, condicionar decisivamente os processos de “decision-making” e os programas, a um nível que nunca o velho poder mediático atingiu. A passagem do conceito de mass communication (media) a mass self-communication (rede) dá-nos bem ideia da mudança. Esse terreno foi, por exemplo, e como já referido, explorado e usado para condicionar a eleição de Donald Trump e para favorecer o BREXIT. Ou seja, foi usado politicamente para instalar no poder determinadas soluções políticas. Uma nova “constituency”, portanto, a das plataformas.

As grandes plataformas movem-se num espaço global, interpelam biliões de consumidores, estabelecem códigos não contratualizados com eles e substituem-se aos Estados nacionais numa parte relevante da vida social, assumindo até funções que antes estavam exclusivamente confiadas aos poderes públicos, e têm orçamentos maiores do que muitos Estados nacionais. E, muito importante, intervêm directamente sobre os comportamentos, analisando-os e explorando-os comercial e politicamente. Há como que uma dualidade na relação dos poderes públicos e privados com a cidadania, podendo classificar-se como verdadeira partilha. Só que se uns respondem perante a cidadania, outros exercem directamente uma soberania funcional sem necessidade de prestarem contas, não estando o seu poder dependente de processos electivos. A rede é uma camada que está cada vez mais a sobrepor-se à realidade social e é governada segundo regras que não constam de uma constituição, não estando sujeitas a “accountability”, dispondo de informações sobre os cidadãos considerados individualmente numa dimensão tão profunda que nem os Estados nacionais se lhes podem comparar. Na verdade, esta transferência de funções e poderes para as plataformas digitais não conhece, pois, nenhum tipo de “accountability”, nenhum tipo de controlo, precisamente porque não estão sob a alçada de um constitucionalismo digital e funcional. O constitucionalismo digital constituir-se-ia, assim, como uma reacção aos novos poderes digitais. Reacção que nem é muito difícil de compreender e de aceitar – veja-se, por exemplo, o poder dos vários oligopólios instalados na sociedade portuguesa (operadoras de telecomunicações, redes de distribuição, marcas de  combustíveis) e a impotência do cidadão singular perante os ditames destes oligopólios. No caso das plataformas digitais esta dimensão agiganta-se e não só em extensão, mas também em intensidade e em qualidade. Sim, estamos perante algo que precisa de ser regulado para que os seus efeitos positivos não desapareçam dando lugar a uma nova “constituency”, onde os cidadãos se transformam em súbditos e matéria-prima financeiramente explorada.

Da Sociedade Digital e em Rede
à Sociedade Algorítmica

Na verdade, se, no início, as grandes plataformas representavam um incomensurável alargamento de direitos, de liberdade de comunicação e de participação nos processos de decision-making da cidadania, centrando-se a relação entre as plataformas e a cidadania exclusivamente neste plano, disputando poder ao establishment mediático para o devolver à cidadania (na figura dos users), depois haveria de se verificar um desvio de função, passando as plataformas a considerar como clientes, não os users, mas as empresas interessadas na determinação da previsão comportamental, tendo aqueles sido transformados em matéria-prima a ser trabalhada para extracção de mais-valia processada a partir da informação acumulada nos servidores e gerida pelas plataformas digitais junto dos seus novos clientes, que tanto podem ser empresas como forças políticas interessadas em sucesso eleitoral.

Como diz o autor: “Este é um livro sobre direitos e poderes na era digital. É uma tentativa de reformular o papel das democracias constitucionais na sociedade da informação ou em rede, que, nos últimos vinte anos, se transmudou em sociedade algorítmica como atual base societal que apresenta grandes plataformas sociais multinacionais ‘situadas entre os Estados-Nação tradicionais e os indivíduos comuns e o uso de algoritmos e de agentes de inteligência artificial para governar populações’” (Gregorio, 2022: 1). Portanto, forças intermédias dotadas de potentes e sofisticados meios de IA para gestão de processos sociais, económicos e comportamentais.

Estamos, pois, perante uma transição da “sociedade digital e em rede” para a “sociedade algorítmica”, a sociedade governada pelo algoritmo, pela inteligência artificial, através de “automated decision-making processes” que vêm a afectar “os valores constitucionais que sustentam o contrato social”, que superam a lógica de Vestefália, substituindo a soberania territorial  por uma nova soberania funcional desterritorializada e global. É assim que funcionam as grandes plataformas digitais. Como diz, no prefácio Oreste Polliccino, “Giovanni explora a transformação de plataformas online de simples atores económicos em poderes privados capazes de competir com autoridades públicas” (Gregorio, 2022: xiii). A geometria do poder já não se resume a uma relação vertical, mas acontece cada vez mais na relação horizontal que “conecta indivíduos com poderes digitais privados que competem com, e muitas vezes prevalecem sobre, poderes públicos na sociedade algorítmica” (Gregorio, 2022: xiv). Assim sendo, “atores não estatais, corporações privadas e instituições supranacionais de governança contribuem para definir as suas regras e códigos de conduta cujo alcance global se sobrepõe à expressão tradicional do poder soberano nacional” (Gregorio, 2022: 311):

“Google, Facebook, Amazon or Apple are paradigmatic examples of digital forces competing with public authorities in the exercise of powers online. Within this framework, constitutional democracies are increasingly marginalised in the algorithmic society”.

Glosando o Michel Foucault de Surveiller et Punir, o autor afirma que “the paradigmatic idea of a public panopticon can be considered one of the primary concerns in the algorithmic society” (2022: 8; 15). É assim que:

“Digital firms are no longer market participants, since they ‘aspire to displace more government roles over time, replacing the logic of territorial sovereignty with functional sovereignty”. “These actors have been already named ‘gatekeepers’ to underline their high degree of control in online spaces. As Mark Zuckerberg stressed, ‘[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company’” (2022: 17; itálicos meus).

Substancialmente, o que acontece é um verdadeiro processo de livre constitucionalização dos espaços online, mas feito por instrumentos de ordenamento privado que moldam o alcance dos direitos e liberdades fundamentais de biliões de pessoas, adotando uma rígida abordagem top-down, sem exigências de accountability. E a pergunta poderia ser a mesma que faz Daniel Innerarity num artigo em “El País” (13.05.2022): não dispondo nós ainda de um dispositivo conceptual que nos instrua sobre a natureza do novo espaço digital e o seu significado democrático, teremos de começar por perguntar quem, neste novo universo digital, “é o soberano: o algoritmo, o consumidor ou o Estado?”.

Do Poder Económico ao Poder Político

Já temos que chegue. Está, de facto, a emergir uma terceira constituency, depois da dos contribuintes e da dos credores internacionais, que financiam a dívida pública (Streeck, 2013): a das grandes plataformas digitais que paulatinamente vão criando o seu universo societário de acordo com as suas próprias normas, superando o nível económico e atingindo já a dimensão da própria soberania (territorial): a soberania funcional. Basta pensar, como disse, na sua intervenção na eleição de Trump ou no Brexit. Se antes se podiam considerar verdadeiramente tecnologias da libertação relativamente aos poderes públicos instalados e aos poderes que os acompanhavam e reflectiam (o establishment mediático), agora, com a determinação preditiva de comportamentos em larga escala, elas dão lugar a uma intervenção que já supera a mera dimensão económica:     “[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company”. Se antes o poder do establishment mediático já era enorme, colocando-se mesmo em directa competição com o poder político (3), agora, as plataformas digitais online representam um enorme upgrade, um poder muito mais forte que deve ser constitucionalmente regulado para que “dentro deste modelo, os indivíduos” não se encontrem eles próprios “in a situation which resembles that of a new digital status subjectionis”. Um novo estado de sujeição, súbditos, em vez de cidadãos. Bem pelo contrário, diz, seguindo Vestager, podendo ter as plataformas um enorme impacto no modo como vemos o mundo à nossa volta e tornando-se, por isso, um sério desafio à nossa democracia “so we can’t just leave decisions which affect the future of our democracy to be made in the secrecy of a few corporate boardrooms” (2022: 287). Existindo uma regulação constitucional feita pelos poderes públicos através de correctos procedimentos políticos e institucionais seria possível recuperar o primeiro impulso destas tecnologias, valorizando-as como tecnologias de libertação, sem as impedir de desenvolverem o seu processo de acumulação, mas respeitando os direitos e as garantias individuais, sendo certo que elas fornecem à cidadania, aos utilizadores, fantásticos instrumentos de comunicação, de automobilização, de participação e de conhecimento a custo zero e numa escala de liberdade que nunca os media conseguiram atingir. O que naturalmente tem um custo. Que tem, todavia, de corresponder a um “preço justo”. O autor sublinha bem este aspecto positivo das grandes plataformas, mas considera que se torna necessário reconduzir todo o processo à “constituency” originária, aquela que verdadeiramente é a legítima e com dimensão ontológica porque o segundo fôlego das plataformas as levou por um caminho que pode atingir o coração da democracia e daquilo que ela tem de mais sagrado: a ideia de soberania popular ou de soberania da nação, centradas na autodeterminação individual. O que não é possível é os poderes públicos continuarem a proceder como se esta realidade não existisse, emitindo deliberações que são totalmente desprovidas de valor perante estas novas realidades. Por exemplo, se a ERC para reconhecer uma publicação “on line” lhe aplicar os critérios que, no essencial, são aplicáveis às publicações “on paper”, então, a entidade reguladora revelará (mais uma vez) a sua perfeita inutilidade. Mas este é um simples e minúsculo exemplo. De resto, nem me parece que a ERC esteja muito preocupada em compreender este gigantesco universo com o qual nos estamos já a confrontar em larga escala.

É claro que esta transição para a sociedade algorítmica permite reforçar os argumentos contra as plataformas por parte daqueles que antes tinham o monopólio do acesso ao espaço público e o monopólio da opinião socializada. Por outro lado, de repente, os radicais descobriram um novo imperialismo, a que chamaram capitalismo da vigilância, evidenciando somente o  enorme poder das plataformas on line e imputando-lhes o roubo de direitos e de titularidades aos cidadãos. Precisamente aquilo que aqui está em causa e que merece um novo e necessário constitucionalismo digital que possa regular as relações destes poderes quer com os Estados nacionais ou a União Europeia (sobretudo com esta) quer com a cidadania, não se limitando a simples códigos de conduta, como o que já foi (e bem) assinado, a códigos próprios assumidos de forma discricionária  ou a disposições legais de aplicação meramente comercial. Como diz Gregorio, só assim será possível usufruir do melhor que as grandes plataformas digitais podem dar, evitando que deslizem para a produção de lucro puro e duro sem regras nem fronteiras ou de poder de natureza política. O que não se deve é ver nelas apenas poder, totalitarismo, capitalismo globalitário e imperialismo digital. História com barbas – o radicalismo reinventa-se sempre para sobreviver, mantendo acesa a velha chama. Como se para ele nada significasse esta enorme possibilidade que o cidadão passou a ter de acesso ao espaço público deliberativo, de se informar sem limites a partir de casa, de se automobilizar sem intermediações, de retirar o monopólio do acesso ao espaço público ao establishment mediático e às respectivas elites (o poder de gatekeeping), de se protagonizar singularmente e de se organizar autonomamente através de plataformas livres que possibilitam uma eficaz conectividade democrática bottom-up, em condições de promover uma autêntica democracia deliberativa. Sim, tudo isto. Mas, sim, também à necessidade de se construir um novo constitucionalismo digital à escala europeia (a que melhor pode dialogar com as poderosas plataformas digitais) que, interpelando com seriedade estas plataformas para promover uma resposta integrada às ameaças e aos riscos, dê maior protagonismo digital aos Estados nacionais e à União, inovando politicamente para melhor consolidar e aprofundar a ainda jovem democracia representativa, hoje seriamente ameaçada por forças que, à esquerda e à direita, vêem na sua matriz liberal originária o inimigo a abater. “The rise of European digital constitutionalism”, diz Gregorio, “can also be read as a reaction against the power of online platforms to set their values on a global scale on a discretionary basis” (2022: 287). Mas reacção como uma “terceira via” entre humanismo digital e capitalismo digital (2022: 284) – uma Europa consciente do papel que a IA pode representar para o progresso e o próprio empoderamento da cidadania, mas também dos riscos de concentração de poder sem controlo, não só do ponto de vista da caça ao lucro desmesurado e desumano, mas também de um poder capaz de condicionar decisivamente o curso da democracia e até mesmo de a destruir. A famosa transição digital tem de contemplar não só os progressos da IA, assumindo um protagonismo que lhe tem faltado e promovendo um fortíssimo investimento nesta área, designadamente na infraestruturação das redes digitais, na construção de próprios motores de busca e na literacia digital, mas terá também de integrar esta revolução num novo paradigma constitucional que a reconduza aos parâmetros e às exigências de uma autêntica democracia deliberativa. A ideia de um constitucionalismo digital europeu é fundamental sobretudo porque estamos a falar de poderes muito fortes e muito sensíveis e num terreno onde tem faltado não só regulação, mas também sensibilidade constitucional para a desenvolver.

IV.
GLOBALIZAÇÃO, CAPITALISMO E DEMOCRACIA

No momento conturbado como o que vivemos à escala global com a pandemia e, agora, com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, com um ameaçador alarme comunicacional mundial, numa crise que representa um sério risco, por um lado, de perigosa escalada de uma guerra convencional, e por outro, de uma guerra económica e financeira global, atingindo todos, faz todo o sentido reflectir sobre a ideia de globalização e os seus efeitos sobre a democracia, ao dar origem àquilo que já designei por segunda constituency, entre a do cidadão que paga impostos (a primeira: “no taxation without representation) e a das plataformas (a terceira, a que já me referi).

Posto isto, começo por dizer que a ideia de globalização corresponde a um processo e só depois, consequentemente, se torna também um posicionamento cognitivo. É por isso que continua a ser muito importante clarificar o conceito de globalização, para melhor compreender os seus efeitos. Segundo alguns, o conceito estará a cair em desuso e com isso talvez a perder clareza conceptual, em parte certamente por ter caído na esfera da linguagem comum, da trivialidade discursiva. O que é verdade. Mas também por algum afunilamento que sofreu ao deslizar progressivamente para a esfera da economia, mais concretamente, confundindo-se com esses mesmos mercados financeiros globais que têm vindo a capturar irremediavelmente a política e a confiscar soberania ao cidadão. No plano financeiro, esta tendência até já conheceu uma sofisticada teorização por parte de um reputado académico alemão, Wolfgang Streeck, em Gekaufte Zeit. Die vertragte Krise des democratischen Kapitalismus (Streeck, 2013), quando fala da emergência de uma segunda constituency ao lado da constituency da cidadania. Ou seja, da “constituency” dos credores. Credores que na maior parte dos casos são, de facto, players globais. Não partilho da visão de Streeck, um regresso à moeda nacional, mas reconheço pertinência e originalidade à sua sugestiva análise. Sobretudo porque ela ajuda a explicar a evolução para a terceira constituency, protagonizada pelas grandes plataformas digitais.

Mas antes de entrar directamente no mérito da questão permitam-me que faça um pequeno excursus e chame a atenção para a obra de Naomi Klein, No Logo, a bíblia dos movimentos anti-globalização, publicada em 1999. E começo, citando, a este propósito, Ulrich Beck, na sua obra sobre “O que é a Globalização”:

«poder-se-ia dizer que aquilo que, para o movimento dos trabalhadores do século XIX, foi a questão de classe, no limiar do século XXI é, para as empresas que agem numa dimensão transnacional, a questão da globalização. Com a diferença essencial, todavia, de que o movimento dos trabalhadores agia como um contra-poder, enquanto as empresas globais até agora agem sem um contra-poder (transnacional)» (Beck, 1999: 13-14; itálico meu).

Estamos a falar de um mundo novo e de uma realidade que configurou o mercado de trabalho à escala mundial. Mais: um mundo que deslocalizou o processo produtivo de tal modo que também deslocalizou o emprego, fazendo recair o ónus, por um lado, sobre os trabalhadores do chamado primeiro mundo e, por outro, sobre os trabalhadores que vivem a sua situação laboral em regime de tipo militar. Estou a falar das famosas EPZ, referidas abundantemente por Naomi Klein.  Ou seja: as pessoas que trabalham nas cerca de 1000 EPZ (Export Processing Zones) são (ou eram, há mais de vinte anos) 27 milhões, em todo o mundo e em cerca de setenta países. Indonésia, China, Sri Lanka, México, Filipinas, Nigéria, Coreia do Sul (conhecida nos anos oitenta como a «capital mundial dos ténis para ginástica»), Hong Kong, Guatemala, etc., etc., para outras tantas marcas multinacionais, Nike, Reebok, Burger King, Disney, Levi’s, Wall-Mart, Champion, General Motors, Shell, McDonald’s, Coca-Cola, Starbucks, Pepsi-Cola, Microsoft. De resto, algumas destas multinacionais têm PIBs superiores aos de muitos Estados. Entre os cem melhores sistemas económicos do mundo 49 são países e 51 são empresas multinacionais (Klein, 2001).

Globalização

Vejamos, então, este conceito-chave. Na verdade, a globalização não é propriamente uma doutrina ou uma teoria a partir da qual possamos compreender o mundo, como se se tratasse de uma alavanca cognitiva arquimediana. A globalização é, sim, antes de mais, um processo que está aí e perante o qual temos de nos posicionar, agindo material e intelectualmente. A globalização é, antes de mais, a coisa anterior à teoria. Assunto diferente é o que diz respeito à lógica globalitária ou à mundividência globalitária, ou seja, por um lado, à dinâmica que está inscrita nela, por outro, ao modo como, a partir dela, olhamos para a realidade. Estas, sim, surgem como visões que tendem a impor comportamentos e chaves de leitura do mundo contemporâneo. Mas, no essencial, a ideia de globalização tem sido associada sobretudo à dimensão financeira. Esta dimensão, sendo global, está de tal modo no interior dos territórios nacionais que, como disse, já se fala de uma nova constituency (precisamente a nível nacional), a dos credores, ao lado da cidadania. Todos sabem do que falo, sobretudo se a explicitar referindo-me aos famosos mercados financeiros internacionais, essa estranha relação que se transformou num fetiche parecido com aquele que Marx identificava no primeiro livro de Das Kapital com a mercadoria, ou seja, um estranho sujeito relacional, mas também sensitivo, com qualidades e sensações humanas, ou, então, referindo-me aos globalitários fundos de pensões ou às famosas agências de rating, sobretudo às três (Moody’s, Standard&Poors e Fitch) que detêm 96% do mercado de notação financeira e que em 2011 exibiram um volume de negócios de cerca de 46 mil milhões de dólares, sendo detidas sobretudo por especuladores financeiros. Falando de globalização, também todos sabem do que falo se me referir à rede, às lógicas e aos processos universais induzidos por ela (para o bem e para o mal), sendo certo que, no plano comunicacional, antes do boom das redes sociais já existia uma televisão global, sobretudo a partir da primeira guerra do Golfo, a CNN, havendo até – imaginem – quem considere que foram os portugueses a promover a primeira globalização, no século XV, na época dos descobrimentos. Se bem me recordo era o que dizia Holland Cotter, do NYT, a propósito da exposição Encompassing the Globe, promovida por Portugal nos Estados Unidos, em 2007: “A little-known fact: A version of the Internet was invented in Portugal 500 years ago by a bunch of sailors with names like Pedro, Vasco and Bartolomeu” (NYT, 29.06.2007). Ou, então, se me referir aos processos migratórios que, sobretudo a partir da presidência de George W. Bush, alastraram como mancha de óleo sobre os territórios nacionais, designadamente da União Europeia, por via marítima, aérea ou terrestre. Ou ainda se me referir, como já fiz, às famosas EPZ, Export Processing Zones, tão bem retratadas por Naomi Klein, em No Logo.

Uma globalização com estes ingredientes suscita certos requisitos críticos. Ou seja, trata-se, sim, de uma certa globalização. A mesma a que nos referimos quando falamos das lógicas neoliberais. E, já agora, também pode ser uma globalização que num certo momento parecia conhecer um único player com força para se impor hegemonicamente no mundo, o Império, de que falavam Michael Hardt e Antonio Negri, os Estados Unidos da América, sobretudo logo após a fracassada tentativa de Gorbatchov de reformar o sistema soviético e o fim do bipolarismo estratégico, político, económico e ideológico. Mas sendo certo que bem depressa se viu que o jogo internacional se estava a tornar bem mais complexo e que a lógica da guerra convencional já estava ultrapassada em grande medida por outras lógicas, sobretudo pela lógica financeira e pela lógica comunicacional. Como, de resto, já se está a verificar nesta crise, onde a dimensão global, do ponto de vista estratégico, comunicacional e económico-financeiro está a sobrepor-se ao real conflito armado convencional e localizado, na Ucrânia.

Cosmopolitismo

NA VERDADE, embora a globalização tenha vindo a conhecer uma lógica sobretudo de tipo globalitário, ela também tem desenvolvimentos num sentido bem mais interessante e progressivo, ou seja, em sentido cosmopolítico. E a polémica em torno da globalização não pode também deixar de reconhecer este sentido preciso. O que se passou, verdadeiramente, foi o seguinte: 1. na modernidade, a lógica comunitária fragmentou-se e deu lugar à lógica societária; 2. esta, por sua vez, expandiu-se e deu lugar a uma lógica cosmopolítica. Ou seja, da comunidade, à sociedade, à cosmopolis. O que, entretanto, aconteceu por via da afirmação e do triunfo do neoliberalismo foi que a lógica cosmopolítica de inspiração iluminista acabou por dar lugar a uma lógica globalitária centrada na financiarização da economia e num mercado financeiro mundial.

Esta expansão – e com estas características – provocou implosões internas e produziu, à maneira hegeliana, um efeito de superação, fragmentando e integrando numa unidade superior. O que aconteceu foi que a extrema expansão do sistema o levou a afastar-se do seu núcleo duro, a lógica comunitária, tornando-se extremamente volátil. Isso implicou que o velho núcleo comunitário se tivesse fragmentado cada vez mais em microcomunidades e que a sua função aglutinadora originária fosse substituída por uma nova função de tipo mais superestrutural e volátil. Na nova cosmopolis, de forma reactiva, tendem, pois, a formar-se microcomunidades resistentes às novas funções globalitárias e superestruturais que acabaram por se impor. Foi esta evolução da cosmopolis que motivou os movimentos antiglobalização de vários matizes e expressões.

O que, com isto, pretendo dizer é que a nova cosmopolis global é favorável ao desenvolvimento de microcomunidades sectoriais, de natureza localista, mas também de natureza ético-política (os movimentos por causas), tendencialmente resistentes às novas funções globalitárias. É que elas pretendem exprimir a estrutura enquanto a nova função é essencialmente de tipo superestrutural. Uma função que inclui, como disse, uma dimensão essencialmente económica, mas sobretudo financeira (globalização), e uma dimensão essencialmente comunicacional cosmopolita ou globalitária, quando ancorada nos colossos – grupos de media e plataformas digitais – da informação mundial.

função globalitária possui, pois, duas dimensões: a primeira é identificada com a expansão universal de um concentrado poder económico-financeiro; a segunda, com a lógica da comunicação global. A primeira é dominantemente intensiva (as concentrações mundiais de natureza económico-financeira, incluídas as do sector mediático); a segunda é dominantemente extensiva (a expansão universal e capilar da comunicação). Esta função tende a homogeneizar os conteúdos e a tudo transformar em mercadoria. Incluída a própria informação. E para isso contribuem decisivamente as grandes concentrações de poder. A globalização, induzida pela lógica globalitária, nasce assim a partir dos vértices dos poderes económico-financeiro e mediático. Para se afirmar democraticamente, ela deveria, pelo contrário, partir das exigências concretas de vida, da base dos sistemas sociais, como parece já estar a acontecer, em parte, com a expansão da rede, ao serviço do indivíduo singular. De qualquer modo, a rede possui uma virtualidade insurgente que não se verifica nos media tradicionais.  Assim não sendo, há que a considerar potencialmente perigosa para as próprias democracias nacionais. Só assim se explica a polémica em torno da globalização. Mesmo no plano da rede e das chamadas tecnologias da libertação aquilo a que também estamos a assistir é a uma excepcional concentração de poder por parte das grandes plataformas, dando lugar àquilo que Shoshana Zuboff  chama capitalismo da vigilância e ao seu poder preditivo do comportamento humano vertido, depois, em manipulação comercial e política da cidadania mundial.

Esta tendência está a gerar contestações porque surge como uma imposição unilateral, sem base de legitimação e sem eficazes e legítimos controlos políticos, porque sem referentes políticos equivalentes. O conceito de função globalitária serve assim, apropriadamente, para designar a unificação forçada daquilo que se mantém substancialmente diferente. Outra coisa é a cosmopolis, legítima herdeira do iluminismo progressista. A construção progressiva de uma democracia europeia representa esta herança, já que se funda num movimento ascensional que evolui para uma concreta forma de cosmopolitismo, bem radicado em exigências internas dos próprios Estados nacionais. Ela constitui, assim, exemplo virtuoso de um cosmopolitismo politicamente sustentado, bem diferente, pois, da globalização económico-financeira. O verdadeiro cosmopolitismo é incompatível com o «colonialismo» tendencial das funções globalitárias. Mas, felizmente, parece que começa a emergir um novo cosmopolitismo de natureza reticular muito resistente à natureza impositiva da lógica globalitária, porque orgânico ou funcional a uma dinâmica ascendente da livre expressão das expectativas individuais. Isto, apesar de também ele trazer consigo uma correspondente função globalitária, precisamente a das grandes plataformas e da gestão da informação acerca dos perfis dos utilizadores para efeitos de desenvolvimento de estratégias preditivas do comportamento humano com objectivos comerciais e políticos, oportunamente denunciados pela Zuboff e pela NETFLIX no seu documentário sobre as redes sociais. Duas dimensões presentes na rede, mas onde a componente libertária tem um papel que pode ser decisivo para esse novo cosmopolitismo antiglobalitário e que, por isso, aguarda, também ele, desenvolvimentos virtuosos que contrariem a evolução negativa do controlo mundial da informação pelas plataformas. E aqui cabe, como já vimos, o constitucionalismo digital, regulador e que reconduz o poder das plataformas ao fundamento legitimador da cidadania.

A Crise Adiada
do Capitalismo Democrático

A crise que teve início em 2008 é uma típica crise da globalização: das finanças à economia real, às dívidas soberanas, ao euro, à União Europeia. Insegurança, incerteza, volatilidade, retracção no investimento, desemprego, recessão, instabilidade social e política. Estas palavras traduzem-na bem. A solução passou por uma forte intervenção dos Estados com injecção de dinheiro nas economias, gerando aumentos insustentáveis da dívida pública em muitos países, com as agências de rating a sublinharem a incerteza acerca da capacidade de os países pagarem as suas dívidas. E com o consequente serviço da dívida a atingir níveis incomportáveis pelas brutais subidas de juros que se seguiram às notações das agências, criando-se um problema verdadeiramente novo nos processos críticos.

E é precisamente por estas razões que esta minha incursão no tema da globalização presta atenção às reflexões de Wolfgang Streeck sobre esse modelo que ele designa por “Estado democrático endividado”, (2013: 127-143), ou seja, daquele Estado que se seguiu ao “Estado democrático fiscal” e que passou a apresentar uma dupla e nova constituency: a dos cidadãos e a dos credores, que já enunciei antes. Entro, por isso, agora, directamente neste tema, ou seja, na questão da dívida soberana e suas incidências na estrutura nuclear da democracia representativa e no modelo que, nas últimas décadas, lhe está associado, o modelo social europeu, que, como sabemos, se viria a tornar crucial na crise pandémica e na crise bélica que estamos a viver. Com este modelo, o do Estado endividado, sem dúvida muito sugestivo e, no meu entendimento, muito eficaz, na medida em que gera automaticamente um link entre economia e política, será possível compreender as principais variáveis envolvidas na crise que classifico como crise da globalização (4). Como diz Streeck, na obra já referida:

“Há muitos motivos para considerar que o surgimento do capital financeiro como um segundo povo – um povo do mercado, que rivaliza com o povo do Estado – constitui uma nova fase da relação entre o capitalismo e a democracia na qual o capital deixou de influenciar a política apenas indiretamente – através do investimento ou não em economias nacionais -, e passou a influenciá-la diretamente – através do financiamento ou não do próprio Estado” (2013: 134; itálico meu).

Quem tem prioridade, nesta equação, o povo do mercado ou o povo do Estado? Os credores internacionais ou os cidadãos? Deve-se evitar a “inquietação” dos mercados ou a dos pensionistas e dos cidadãos/clientes do Estado Social/contribuintes fiscais (2013: 137-138)? É por isso que, para responder com eficácia a este dilema, Streeck afirma que “o melhor Estado endividado é um Estado com uma grande coligação, pelo menos na política financeira e fiscal” (2013: 138-139). É que, deste modo, é possível garantir a confiança dos mercados, na medida em que desaparece a alternativa às políticas restritivas e de austeridade, ficando os eleitores impossibilitados de provocar mudanças políticas. Compreendem? Estão a ver bem por que razão muitos queriam o bloco central, em Portugal ou na Espanha? A verdade é que esta solução amputaria a democracia de um instrumento essencial: a possibilidade de escolha em alternativa. Confiscaria poder aos cidadãos. Por outro lado, como diz Streeck, “o facto de a governance internacional ter sido encarregada da supervisão e regulação orçamental de governos nacionais ameaça fazer com que o conflito entre o capitalismo e a democracia seja decidido durante muito tempo, se não para sempre, a favor do primeiro, dada a expropriação dos meios políticos de produção dos Estados” (2013: 144). A posição de Streeck é muito clara: o neoliberalismo tem vindo a impor, sobretudo a partir dos fins dos anos ’70, o triunfo da justiça de mercado sobre a justiça social (5), através da confiscação do poder da cidadania pelo poder dos mercados. O modelo de Streeck centra-se em três momentos essenciais na evolução do Estado: o Estado democrático fiscal, que alimentava o orçamento do Estado através dos impostos, deu origem ao Estado democrático endividado, através da dívida pública, que alimentava os orçamentos sobretudo através do endividamento externo, do recurso aos mercados financeiros internacionais (e não tanto do mercado interno); depois, segundo Streeck, passou-se à fase do Estado de Consolidação, que é o ponto em que nos encontramos. O modelo é assim formulado por Streeck:

“O Estado democrático governado pelos seus cidadãos e, enquanto Estado fiscal, alimentado pelos mesmos, transforma-se no Estado democrático endividado mal a sua subsistência deixa de depender exclusivamente das contribuições dos seus cidadãos para passar a depender, em grande parte, também da confiança dos credores. Ao contrário do povo do Estado fiscal, o povo do mercado do Estado endividado está integrado a nível transnacional. A única ligação que existe entre os membros do povo do mercado e os Estados nacionais é a dos contratos: estão ligados como investidores e não como cidadãos. Os seus direitos perante o Estado não são públicos, mas sim privados: não se baseiam numa constituição, mas no direito civil. Em vez de direitos civis difusos, passíveis de ser alargados do ponto de vista político, os membros do povo do mercado possuem direitos perante o Estado cuja aplicação pode ser exigida em tribunais cíveis e terminar através do cumprimento do contrato. Enquanto credores, não podem eleger outro governo em vez daquele que não lhes agrada; mas podem vender os seus títulos de dívida ou não participar nos leilões de novos títulos de dívida. O juro pago por estes títulos, que reflete o risco estimado pelos investidores de não recuperação total ou parcial dos seus investimentos, constitui a ‘opinião pública’ do povo do mercado – e uma vez que esta é expressa de forma quantificada, é muito mais precisa e legível do que a do povo do Estado. O Estado endividado pode esperar lealdade do seu povo, enquanto dever cívico, enquanto no que diz respeito ao povo do mercado tem de procurar conquistar a sua ‘confiança’, pagando devidamente as suas dívidas e provando que poderá e quererá fazê-lo também no futuro” (2013: 130-131).

Este modelo explica a crise através de uma mudança nas relações entre administração fiscal, cidadão, credor, eleições, mercado e Estado. É um modelo sugestivo e parece ter sido extraído directamente da crise de 2008, designadamente inspirando-se nos casos dos países intervencionados: Grécia, Irlanda e Portugal. É um modelo muito sugestivo, mas continua subsidiário do subsistema económico-financeiro. Nisto não se desvia dos modelos tradicionais de explicação da crise, sendo certo que a sua própria solução, a de Streeck, acaba por afunilar na proposta de reposição das moedas nacionais e na reintrodução do mecanismo da desvalorização. Neste sentido, não me revejo nele.

Com efeito, a perspectiva de Streeck, que vê na União monetária e na União política uma tentativa de coroamento do percurso neoliberal iniciado nos anos setenta, além de errada e, diria mesmo, injusta, resume-se, afinal, ao fim do euro (ou à sua conversão em simples moeda-referência) e à reposição das moedas nacionais para que possa ser repristinado o mecanismo de desvalorização, enquanto único meio que, a seu ver, poderá repor a liberdade e a autonomia nacionais, evitando a confiscação da democracia pelo sistema financeiro internacional, ou seja, pelo capitalismo, em face da tentativa totalizante (ou mesmo totalitária) de construção de um mercado mundial autorregulado e autorregulador, uma espécie de “mão invisível” mundial, para fazer jus aos diletos discípulos de Smith e de Hayek. Como diz o próprio:

“Nas circunstâncias actuais, uma estratégia que aposta numa democracia pós-nacional, na sequência funcionalista do progresso capitalista, não serve senão os interesses dos engenheiros sociais de um capitalismo de mercado global e autorregulador; a crise de 2008 constituiu uma antevisão daquilo que este mercado pode provocar” (Streeck, 2013: 274).

Mas Streeck acaba por citar (favoravelmente) uma interessante resposta de Juergen Habermas relativa ao actual panorama crítico da União no sentido de uma abertura no plano do mercado, mas também de uma evolução política com um nível mais elevado e alargado de integração social: uma “dinâmica capitalista (…) que pode ser descrita como uma interação entre uma abertura forçada em termos funcionais e um fecho integrador do ponto de vista social a um nível cada vez mais alto”. É claro que quem conhece a obra de Habermas sabe que se trata de fazer interagir de forma mais intensa a integração sistémica, no plano económico-financeiro, com a integração social, mas agora num plano pós-nacional (de cidadania e institucional), desencadeando um novo e mais alargado processo de relegitimação e integração social. Esta perspectiva é, no meu entendimento, a única que poderá responder à actual crise europeia. E, na verdade, Habermas, num ensaio publicado em Maio de 2013, na Revista alemã “Blätter für Deutsche und Internationale Politik” (Habermas, 2013), critica exaustivamente a posição de Streeck, acusando-o de querer, contraditoriamente, responder com soluções nacionais a uma crise que está centrada em mercados irreversivelmente globalizados: “não é o reforço democrático de uma união europeia até agora construída só a metade a dever recolocar num equilíbrio democrático a relação tresloucada entre política e mercado” – diz Habermas, criticamente, referindo-se à posição de Streeck. “Wolfgang Streek não se propõe completar a construção europeia, mas sim desmontá-la” – continua; “quer regressar às fortalezas nacionais dos anos sessenta e setenta, com o objectivo de ‘defender e reparar tanto quanto possível os restos daquelas instituições políticas graças às quais talvez se pudesse modificar e substituir a justiça do mercado com a justiça social’. Esta opção de nostálgico fechamento em concha na soberana impotência de nações já arrasadas é surpreendente se considerarmos as transformações epocais dos Estados nacionais que antes tinham os mercados territoriais ainda sob controlo e que, hoje, pelo contrário, estão reduzidos ao papel de autores enfraquecidos e inseridos, por sua vez, nos mercados globalizados” (Habermas, 2013).

A posição de Habermas é conhecida. E aqui parece haver um grande consenso: é preciso encontrar soluções políticas supranacionais para problemas globais. Romper com o desfasamento entre problemas globais e soluções nacionais. Esta é também a posição do neoconservador Fareed Zakaria, no seu famoso “Capitalist Manifesto: Greed is Good”. E a do francês e ex-colaborador de Pierre Mauroy, Jean Peyrelevade: “a política de que temos necessidade para regular a mundialização deve ser, ela própria, mundializada”  – (2008: 104; a obra é de 2005, muito anterior à crise de 2008). A posição de Habermas, no plano europeu, aponta, de facto, para um reforço da União política europeia, chegando a propor, por um lado, (a) “uma moldura institucional para uma política europeia fiscal, económica e social comum que pudesse criar as condições necessárias para a possível superação dos limites estruturais de uma união monetária imperfeita”; e, por outro,  (b) uma “participação paritária do Parlamento e do Conselho na legislação e uma Comissão que responda a ambas as instituições” (Habermas, 2013).

Os cidadãos, neste processo, desempenhariam um importante papel quer enquanto membros dos Estados nacionais quer enquanto membros da União Europeia. Esta posição, está bem de ver, não confina nem a explicação nem a solução da crise em mecanismos meramente sistémicos (de controlo) ou, mais especificamente, a puros mecanismos de carácter financeiro, ainda por cima centrados numa solução política e financeira nacional, como propõe Streeck. Ela não prescinde da política e da integração social, ou seja, na resolução da crise é imprescindível a intervenção da componente subjectiva das sociedades, seja no plano da cidadania seja no plano institucional. Teoricamente, Habermas considera que o conceito de crise engloba necessariamente uma componente subjectiva (6). De resto, sabemos que a crise de ’29 e a subsequente Grande Depressão não foram corrigidas somente com mecanismos sistémicos e financeiros, mas sim com um relançamento da capacidade política de intervenção do Estado, designadamente com o New Deal. Embora saibamos também que, pelo menos na interpretação de Peyrelevade, “os Estados Unidos chegaram mais cedo que nós a um capitalismo amplamente desintermediado”, graças precisamente à crise de 1929: “O desmoronar da Bolsa causou a falência de centenas de bancos que tinham considerado boa ideia investir nela as poupanças que lhes estavam confiadas e, depois, por ricochete, a ruína de milhões de depositantes”. As estruturas de intermediação falharam e, por isso, acabaram por antecipar o nascimento nos Estados Unidos do capitalismo directo, a entrada em cena no mercado financeiro dos detentores individuais de capital, que está na origem do actual modelo financeiro mundial (2008: 36-37).

De qualquer modo – e não obstante a solução proposta por Streeck, aqui criticada, por errada -, temos, portanto, um primeiro modelo explicativo da crise, o do Estado fiscal que se torna Estado endividado e que, assim, altera profundamente a estrutura de suporte do edifício democrático, transferindo soberania do cidadão para o credor e transformando, deste modo, os mandatos de natureza política em mandatos de natureza financeira. Sabemos bem o que é isso por via da entrada da Troika no nosso País, onde o programa de governo pós-eleições, em Junho de 2011, ficou consignado em memorando de natureza financeira negociado com os credores. Houve eleições, sim, para os representantes, mas o programa de governo dos partidos candidatos ao executivo (PS e PSD) até poderia ter sido exactamente o mesmo memorando, porque seria esse a ser realmente executado.

Este modelo de análise tem a virtude de conjugar conceptualmente política e economia na óptica da tendência de confiscação daquela por esta, lá onde, como muito bem demonstra Peyrelevade (2008), a emergência dos mercados financeiros globalizados leva à confiscação da soberania de um cidadão doravante politicamente impotente perante a força sistémica dos mercados globais, pelo menos enquanto não dispuser de equivalentes alavancas políticas supranacionais com suficiente força para substituir, num plano mais elevado, aquela que foi a tradicional regulação centrada no poder dos velhos Estados nacionais territoriais. Peyrelevade expõe o problema de forma muito interessante e convincente:

“Assim, o cidadão, cuja existência está ligada ao território nacional, é vítima da sua própria esquizofrenia, dado que as suas escolhas, na qualidade de consumidor ou, se for esse o caso, de acionista, alimentam e reforçam um capitalismo mundializado que implica a diminuição da sua própria soberania. (…) Exemplo puro de dissociação individual, o desejo de enriquecimento que têm leva-os a repudiar a sua própria cidadania” (2008: 118; itálico meu).

O que Peyrelevade diz poderia ser transposto para o caso do poder das plataformas digitais e para a relação que se estabeleceu entre elas e os users. Sem tirar nem pôr. E também aqui a solução parece ter de residir na criação de um modelo supranacional de regulação que impeça que os cidadãos se transformem em obedientes, voluntários e dissociados súbditos que abdicam da própria cidadania em troca do acesso ao maravilhoso e libertário mundo das redes sociais.

 Greed Is Good

 FAREED ZAKARIA tem da crise uma visão optimista. Apesar de tudo, ainda iremos querer, no futuro, mais capitalismo. Mas não centrado no Estado-Nação. Porque a crise não se resolve regressando a uma soberania nacional que já acabou de fazer todo aquele percurso que iniciou com a construção dos Estados nacionais, no início da Modernidade. Na verdade, esta crise é também resultado de uma globalização que não conhece ainda meios (políticos e institucionais) de autorregulação e de governo, tal como ele defende no seu ensaio “A Capitalist Manifesto: Greed is Good” (2009). Diz-nos Zakaria:

“More, the fundamental crisis we face is of globalization itself. We have globalized the economies of nations. Trade, travel and tourism are bringing people together. Technology has created worldwide supply chains, companies and costumers. But our politics remains resolutely national. This tension is at the heart of the many crashes of this era – a mismatch between interconnected economies that are producing global problems but no matching political process that can effect global solutions”.

E esta ideia colhe uma das principais questões que se pode pôr hoje a propósito da própria ideia de crise. O desfasamento entre a dimensão do problema e a dimensão da solução. Ou o desfasamento entre o patamar da crise e o patamar da solução. Em primeiro lugar, é importante perceber como uma crise que surgiu, tal como já foi referido, nos EUA, em 2008, acabou por ser uma crise que afectou ou implicou o mundo inteiro; em segundo lugar, é muito importante aquilo que Zakaria diz quanto ao facto de, apesar de ser uma crise global, apesar das “empresas e dos clientes” serem do mundo inteiro, a resolução política se ter mantido a um nível nacional ou local; ou, então, como, paradoxalmente, o próprio Streeck acaba por propor como solução aquilo que, na realidade, se configura como o problema. Na verdade, parece ser difícil resolver um problema global, e criado por todos, sem ser de uma forma igualmente forte e institucionalmente concertada, mas sobretudo sem ser através de mecanismos adequados, que só podem ser supranacionais. Um problema global exige uma solução global. Mas Zakaria avança mais na sua reflexão sobre esta crise de 2008 no seu todo e toca em pontos fundamentais: a instabilidade como condição inerente ao capitalismo e/ou à evolução, logo, como condição inerente à crise; e a moralidade, ou a falta dela, como possível razão de escolhas que agravam a própria crise. Este último aspecto, mas também aquela dimensão subjectiva da crise, de que fala Habermas no livro Spaetkapitalismus, ficou bem patente na crise de ’29, tanto do lado dos economistas e dos jornalistas (muitos), como do lado dos políticos (que quiseram lavar as mãos deste processo, como se vê claramente na descrição milimétrica que nos oferece Galbraith na obra de 1954 sobre a crise de 1929) ou do lado dos banqueiros, financeiros e especuladores. Zakaria acaba mesmo o seu ensaio com uma frase elucidativa em contexto de crise, ao dizer que “há muitas coisas para resolver, no sistema internacional, nos governos nacionais e nas próprias empresas, mas a maior mudança tem de ser em cada um de nós”.

Em boa verdade, e sem colocar a questão na ótica de uma ruptura radical do sistema, “do que se trata, de facto, é de uma profunda mudança de paradigma em todas as esferas da sociedade” (Santos, 2013). Ou seja, a crise de 2008 só é compreensível no quadro de uma mudança de paradigmas. Incluído o civilizacional e o cultural. E não só o político, o jurídico, o económico, o tecnológico ou o comunicacional. Uma compreensão de fundo capaz de nos ajudar a fazer face à crise, já que ela está inscrita no nosso próprio processo evolutivo. Capaz, pois, de nos ajudar a sobreviver no interior dela, não a olhando de forma negativa. Bem pelo contrário, olhando para ela de forma positiva. Na verdade, quando se fala em “crise de crescimento” ou em “resultados do sucesso”, como faz Fareed Zakaria no seu ensaio, é disso mesmo que se fala: da crise que nos faz crescer. Outra coisa é a ruptura radical, para a qual aponta a teoria marxista da crise e de que são exemplo a ruptura com o Ancien Regime e, em parte, a Revolução Soviética, a famosa “revolução contra o capital” (de Marx), na expressão de Antonio Gramsci. Só que esta acabaria por ser reabsorvida setenta anos depois, em 1989.

Diz ele, Zakaria (7) (mas sobre o assunto também Galbraith reflecte no seu livro “ The Culture of Contentment”), que os bons tempos levam sempre a uma espécie de auto-satisfação que privilegia o bem-estar e o lucro imediatos. E também que, de facto, se estava num período em que se verificara um enorme crescimento: num longo período de estabilidade política, a economia global cresceu exponencialmente, duplicando entre 1999 e 2008 e tendo, entre 2006 e 2007, 124 países crescido ao ritmo de 4% ao ano, ou mais; a inflação baixou para níveis jamais vistos; as recessões passaram a ser controladas muito mais rapidamente do que outrora; milhões de pessoas foram retiradas da pobreza; deu-se a revolução da informação e da Internet; emergiram novas potências económicas, como a China, gerando novas interdependências financeiras com fortes consequências no crédito ao consumo (designadamente nos USA; veja-se os índices apontados por Peyrelevade, 2008: 74-75). Uma visão optimista da crise, a de Zakaria, ainda que a exigir uma resposta capaz de a pilotar no sentido do progresso, em particular através da criação de mecanismos globais que respondam a problemas que já são também eles globais.

V.
CONCLUSÃO

Na verdade, tudo isto viria a gerar efeitos em cadeia para os quais não havia mecanismos de gestão e de controlo. Zakaria usa a metáfora do carro sofisticado que já ninguém sabe conduzir. Daqui, o desastre ou, melhor, a crise. Daqui também que ainda não se tenham verificado respostas eficazes para uma crise que acabou por se revelar como, certamente, crise financeira, mas também da democracia, da globalização e mesmo da ética. Auto-satisfação, como resultado do crescimento, que produziu lassidão, sofreguidão e processos especulativos em escala alargada? Certamente. Mas o que está em jogo é provavelmente muito mais do que isto. O que está em jogo são os vários paradigmas que enquadram o nosso funcionamento societário e que, em grande parte, são subsidiários da revolução moderna que se iniciou no século XVIII ou mesmo com o próprio Renascimento e as revoluções científicas que se lhe seguiram. A questão que se põe a propósito deste ensaio de Zakaria é a de saber se será verdade que “daqui por alguns anos, por estranho que isso possa parecer, nós podemos todos achar que estamos ávidos de (mais) capitalismo, não de menos”. Zakaria está certamente a pensar que, tal como a democracia, o capitalismo é o pior dos sistemas, à excepção de todos os outros. Não acontecerá, pois, na sua óptica, uma derrocada do capitalismo como fora profetizado pela teoria marxista. Como sabemos, o que viria a acontecer seria precisamente o contrário, a derrocada do socialismo de Estado e a sua reabsorção histórica. Mas de que capitalismo estamos a falar, do capitalismo total, financeiro, accionista, daquele que se separou da economia real, passando, depois, a dirigi-la de acordo com as suas próprias performances em matéria de lucro? Daquele “capitalismo sem projecto” (Patrick Artus) que se identifica exclusivamente com o lucro e, se possível, com o lucro imediato, constante e progressivo (Peyrelevade, 2008: 90)? Do capitalismo da vigilância, de que fala a Soshana Zuboff, que gera essa terceira “constituency” e que transforma o cidadão em súbdito voluntário mediante a troca entre acesso ao espaço digital e a cedência de dados biográficos para a determinação de modelos preditivos de comportamento de natureza económica, mas também de natureza política, com a consequência de, com isso, se dissociar, abdicar da sua soberania individual, necessária à legitimação do poder político?

Se, com a globalização, for este o capitalismo que acabará por se impor, então, o que acontecerá será a sua libertação dos vínculos da política, do Estado, do trabalho e, finalmente, da própria cidadania, que acabará substituída pela soberania dos accionistas e dos credores, das grandes plataformas financeiras e digitais, numa palavra por uma soberania dominantemente funcional,. que prescinde da velha soberania territorial. O que parece que hoje já temos é uma convivência ainda um pouco indefinida entre três “constituencies”: a do cidadão, a dos credores e a das plataformas digitais. Esta situação nebulosa não poderá manter-se, devendo ser clarificada, pelo menos, por um lado, através do reforço da resposta financeira própria às exigências das dívidas soberanas e, por outro, através da criação de um constitucionalismo digital que regule o novo mundo digital. Mas isto só pode ser feito através de uma política que não esteja capturada por aqueles poderes, mas esteja centrada na própria cidadania.

NOTAS

1.Veja-se sobre a natureza do mandato o Art. 7, Secção III, Cap. I, Título III, da Constituição francesa de 1791.

2. Sobre o “espaço intermédio” veja também “A Política, o Digital e a Democracia Deliberativa”, capítulo de minha autoria, em Camponez, Ferreira e Rodríguez-Diaz, Estudos do Agendamento, Covillhã, Labcom, 2020, pp. 137-167.

3. Veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 259-264).

4. Isto não significa que partilhe da perspectiva de Streeck, que assume, nesta obra, uma posição completamente diferente da que advogo, ou seja, a necessidade de um aprofundamento político da estrutura institucional da União Europeia e de uma constituição para a União.

5. Veja-se, a este propósito, a posição do Prémio Nobel Friedrich von Hayek, e pai dos neoliberais, sobre a desvalorização do próprio conceito de justiça social (Hayek, 1978), que ele próprio afirma nem saber o que é.

6. Sobre o conceito de crise. Olhemos para a origem da palavra crise. A palavra crise vem do grego: krísis (-eôs): 1. separação, discórdia, disputa; 2. Escolha; 3. decisão, êxito, sucesso; decisão: a) decisão judiciária; pôr um processo a alguém, juízo, condenação; b) tribunal, direito, castigo; c) crítica estética. São estes os significados que encontramos num bom dicionário de grego antigo. A palavra (um substantivo) vem do verbo krínô e tem a ver com: separar, dividir, decidir, julgar, condenar. Poder-se-ia dizer que, no sentido etimológico, há uma ideia de rotura, de separação, de decisão com reais efeitos, mas também de intervenção da vontade, da razão e da consciência (podendo implicar juízos de valor, como veremos). E é na decisão que separa, com intervenção da razão, da consciência e da vontade, ou seja, na intervenção do elemento subjectivo, que assentará a ideia de Crise, muito ligada à ideia de revolução. Num importante livro de 1973, Legitimationsprobleme im Spaetkapitalismus (Habermas, 1973), Juergen Habermas analisa o conceito de crise nas suas várias dimensões, desde a dimensão simplesmente médica, onde a crise é provocada por algo que é exterior ao paciente, algo objectivo sobre o qual ele não pode influir, por agentes externos. E, todavia, essa crise não é separável da visão interna de quem a ela está sujeito. Ou seja: com as crises, nós ligamos a ideia de uma potência objectiva que subtrai a um sujeito uma parte da soberania que lhe é normalmente garantida. E, todavia, no seu entendimento, a ideia de crise só é compreensível se incluir a percepção dela por parte dos agentes a ela sujeitos, mesmo que não tenham poder para interferir nela enquanto provocada por agentes externos. Com efeito, segundo Habermas, a ideia de crise na dramaturgia clássica – de Aristóteles a Hegel – já implica a presença de sujeitos, de protagonistas. A crise, na verdade, só se configura como tal quando, de algum modo, os que a ela estão sujeitos têm dela consciência, mesmo que a sofram sem terem capacidade para nela interferir. Esta variável subjectiva torna-se ainda mais decisiva no plano histórico-social. Trata-se aqui da relação entre consciência-vontade e estados de facto. Pode não haver ligação, mas estes elementos têm de estar presentes na Crise e na própria ideia de Crise. Habermas: “Die Krise ist nicht von der Innenansicht dessen zu loesen, der ihr ausgeliefert ist” (Habermas, 1973: 9).  “Mit Krisen verbinden wir die Vorstellung einer objektiven Gewalt, die einem Subjekt ein Stueck Souveraenitaet entzieht, die ihm normalerweise zusteht” (1973: 10).

7. Sigo aqui a interpretação de Santos (2013: 43-45).

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JAS_Democracia2023Rec

Poesia-Pintura

REENCONTRO
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Magnólia Branca”.
Original de minha autoria.
Abril de 2023.
Magnolia2023Branco

“Magnólia Branca”. JAS. 04-2023

POEMA - REENCONTRO
ELA FASCINA-ME
Como a magnólia
Branca,
Em Março,
Lá no alto
Da Montanha,
Ali, a meu lado,
Mistério
Da natureza
No meu Jardim
Encantado.

BRANCO SOLTO
Em farrapos
Delicados
Que me libertam
Do silêncio
Invernal
E convidam
A voar
Suspenso
Num rio de luz
Desenhado
Num poema
Onde a possa
Cantar.

E RESPIRO
Com as cores
Que ela
Em silêncio
Compõe
Sobre folhas
 De papel
Em forma de
Aguarela
Ou pintadas
A pastel,
Rápida
E certeira,
Como Hermes
E Athena,
Perfeita
Geometria
Que a alma 
Me serena
Em suave
Liturgia.

É BELISSIMA
E gosto
De a olhar
Cá de baixo,
Da gruta
Luminosa
Das minhas
Metáforas,
Quieto,
Em sintonia
Com seu sorriso
Doce 
Como um beijo
De criança.

ELA É MAGNÓLIA
Branca
Que me atrai
Para encontros
Fatais
Com palavras
Rebeldes,
Vitais,
Lá no alto
Desse azul
Infinito
Onde sinto
Que à beleza
Proibida
Falta a palavra
 Sentida 
Que um dia
Se perdeu.

POR ISSO,
Nestes meus versos
Regressa
O que há muito
Vou sentindo
Como longa
Melancolia
Na forma 
De uma sofrida
E tantas vezes
 Cantada
Forte e doce
Nostalgia.

Magnolia2023BrancoRec

Manifesto

A LAVANDARIA SEMIÓTICA

E Outras Coisas Do Mesmo Jaez 
MANIFESTO

Por João de Almeida Santos

Lavandaria

“S/Título”. JAS. 04-2023

I.

POLITICAMENTE CORRECTO

COMEÇA A SER PREOCUPANTE esta higienização da língua, da arte e da história que grassa por aí. Agora são os livros da Agatha Christie, os de Roald Dahl ou os de Ian Fleming sobre o famoso James Bond, o Agente 007, a sofrerem a purga linguística; há também a correcção de títulos de documentos históricos, bem datados; ou a professora que, numa escola dos Estados Unidos, teve de se demitir por ter mostrado aos alunos fotos do David de Michelangelo; a cobertura dos genitais em obras de arte de grandes e historicamente consagrados artistas por ofenderem a moral pública – pornografia da pura, corruptora dos grandiosos princípios da moral; o derrube de monumentos de arte pública, num denodado esforço de punição do passado que sobreviveu sob forma de obra de arte; a Universidade de Manchester que, em nome de uma linguagem inclusiva e neutra, criou um guia de boas práticas linguísticas, um “guide outlines how to use inclusive language to avoid biases”, para seu uso e consumo. Ou seja, uma enorme galeria de gestos purificadores, procurando trazer o passado e o presente aos princípios destes apóstolos da virtude, desta santidade ideológica que não admite que o real tal como ele foi ou tal como é seja sequer nomeado. Uma autêntica revolução semiótica em busca de hegemonia universal. Vamos, pois, a isso, que se faz tarde.

1.

Nem mais nem menos – é mesmo assim. Agora até as palavras pai e mãe, irmão e irmã, homem e mulher e marido e mulher saem do culto glossário manchesteriano para serem substituídas preferencialmente (rather than, é a fórmula usada) por parent ou guardian, por sibling, por person ou por partner, respectivamente. Tudo deve ser asséptico.  Isto numa Universidade de um país que se preza de conservar e dignificar as suas tradições. Não numa creche (e ainda bem). Eu, que tenho dois filhos, se algum deles me tratar por guardian não vou mesmo gostar. Sou pai e esta palavra traz consigo um imenso afecto que não pode ser reduzido à categoria de guardião, de tutor ou do que lhe quiserem chamar os arautos do linguajar puro e cristalino.

2.

Esta visão clínica, ou mesmo cínica, da linguagem, esta limpeza linguística, esta lavandaria semiótica ao serviço de uma visão do mundo politicamente correcta e woke, devidamente esterilizada e pasteurizada, já está mais institucionalizada do que parece e acompanha, naturalmente, aquela outra desse revisionismo histórico que já está a chegar também à literatura, passando pelos monumentos e pela pintura. O revisionismo em todo o seu esplendor. Uma cruzada em pleno desenvolvimento pronta a bater-se pela novilíngua universal contra os infiéis, os apóstatas sem vergonha perante as malfeitorias dos seus antepassados. Uma nova santa inquisição que espreita à esquina, com manuais de boa conduta à mão, e que promove blitzkriege contra os símbolos da opressão línguística, artística e histórica. Eles, os apóstolos da nova inquisição, já andam a catar a gramática e a semântica, já andam pelos museus e pela arte pública a punir os desmandos do passado e seus testemunhos. Ainda os havemos de ver a chicotearem estátuas no pelourinho electrónico, tal a fúria castigadora destes arautos da novilíngua. A minha linguagem, dirão, é pura, foi devidamente descontaminada das abomináveis componentes tóxicas da história, desinfectada, esterilizada e pasteurizada, podendo ser tomada em grandes doses sem perigo de infecção e de contágio.

É preciso começar por algum lado, acham eles. Pois então comece-se pela língua, pela arte e pela história. A língua espelha a história de um país e, se condenarmos o seu passado, como condenamos, pelas suas práticas incorrectas e imorais, ao longo de séculos ou mesmo de milénios, desde o tempo dos homens das cavernas, em nome dos valores que hoje consideramos absolutamente correctos, então temos de efectuar uma limpeza, não só da língua e dos rastos e restos que a iniquidade histórica deixou nela, higienizando-a, esterilizando-a, pasteurizando-a e purificando-a das impurezas e das bactérias que historicamente se foram sedimentando até nas suas próprias estruturas formais (exemplo, o domínio do género masculino na gramática e os sinais de diferença sexual ou mesmo de classe no próprio direito, também com inadmissíveis marcas masculinas ou burguesas), mas também das obras de arte onde possam ser encontrados resquícios ou marcas de um passado construído com os valores que hoje execramos (na arquitectura, na escultura, na literatura, na pintura, na música). Marcas que nem para a sucata hão-de servir, não vão os sucateiros reciclar tão deletérios produtos. Produtos-símbolo da exploração, mas também do sexismo unilateral e dsavergonhado que lhes estava associado.

3.

O que é curioso é que isto está a acontecer nos países que mais progressos civilizacionais fizeram e que coexistem com outros países onde o básico nem sequer está garantido à generalidade das populações. Um gigantesco salto em frente – esperando-se que não seja para o precipício -, em vez de uma viagem aos passados que coexistem connosco e que estão aqui ao nosso lado, bem à vista, merecendo uma preocupação absolutamente prioritária relativamente às marcas visíveis do passado na gramática, na semântica ou na arte. Estes passados estão a chegar à União Europeia pelo Mediterrâneo, querendo tornar-se  presente. Sim, mas o passado ficou lá nas suas terras, nas suas casas. E é lá que reside o problema principal.

Mas é por aqui, pela limpeza semiótica, que esta luta civilizacional está a avançar com enormes vitórias nas próprias instituições internacionais, com sinais que são verdadeiramente preocupantes porque nos arriscamos a que esta se torne uma visão hegemónica, com expressão jurídico-normativa, e que acabe por assumir uma natureza inquisitorial, um policiamento das consciências, através da língua, da arte e da história e que nos amarre ao universo da narrativa e das palavras autorizadas. Numa sintomática revisitação de Orwell. Uma matriz claramente antiliberal e uma palavra de ordem que é o oposto do que ficou consignado no documento que representa a matriz da nossa modernidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – Art. 5: “Tout ce qui n’est pas défendu par la loi ne peut être empêché, et nul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne pas”. Pelo contrário, é proibido tudo aquilo que não é permitido. Não só proíbem determinadas palavras, como também impõem o uso de outras. Começa-se logo pelo dicionário, pelo uso de certas palavras, o que lembra os tempos da ditadura. Por exemplo, não é permitido (ou, pelo menos, não é aconselhável) o uso das palavras mãe ou pai. O problema é que esta é a zona onde a liberdade vive de mãos dadas com o afecto, ficando o seu exercício seriamente diminuído, precisamente num tempo em que os mesmos gritam pela defesa da privacidade e pela liberdade individual. Se nem numa Universidade inglesa, onde a liberdade deve ser o primeiro princípio a estar garantido, já se podem usar as palavras homem-mulher, pai-mãe, marido-mulher, irmão-irmã que acontecerá noutras áreas de grande intensidade social?

4.

Do que se trata verdadeiramente é de uma luta pela hegemonia, uma luta que não tem verdadeiramente o sabor de um confronto cultural, mas sim o de uma batalha administrativa pelo controlo formal da língua e da narrativa acerca da história, da arte, da moral e da sociabilidade. E de onde é que lhes vem tanta força, aos revisionistas da língua e da história e arautos de uma nova moralidade? A força vem do facto de se considerarem os verdadeiros intérpretes das declarações universais de direitos. Numa lógica de kamikaze. É daqui que lhes vem a força e a legitimidade. Só que o que eles verdadeiramente fazem é uma luta pela imposição administrativa e directa, sem mediações, destes direitos, princípios e valores, num discurso de pensamento único que absolutiza valores que são tão históricos como os outros o foram, no seu tempo. O que eles postulam verdadeiramente é o fim da história. Um momento omega que seja a medida de todas as coisas e do próprio tempo. O Fukuyama deve estar a rir-se. Na verdade, o que praticam é um absolutismo axiológico que querem ver imposto administrativamente naquelas que são as sociedades mais avançadas do planeta, numa vertiginosa fuga para a frente relativamente a sociedades que ainda não viram satisfeitas sequer as condições básicas da existência. E, claro, esta fuga administrativa para a frente deixa-os insensíveis à necessidade da sua presença lá onde eles seriam mais precisos, ou seja, nas sociedades que precisam de conhecer um mínimo de desenvolvimento, de direitos e de bem-estar. Mas isso daria imenso trabalho, seria desconfortável e muito arriscado, preferindo, pois, fazer a sua luta nos lugares onde já há liberdade, segurança e bem-estar. O tempo de revolucionários como Che Guevara já passou. A revolução faz-se em casa, eventualmente à frente de um computador e com ar condicionado. Sem riscos ou até mesmo como oportunidade para singrar comodamente na vida. Ousaria até dizer: como um novo nicho de mercado.

5.

Mas o problema é que os progressos civilizacionais e culturais não se podem impor administrativamente. A sua conquista levou séculos, lutas, sacrifícios, morte. Não se obtiveram ao virar da esquina, com a redacção de um manual, pela simples razão de que a vida e a história não cabem em dois ou três breviários. Bem sei que eles têm pressa, muita pressa, eventualmente o tempo que a sua construção psicológica lhes impõe, porque têm noção de que o tempo de hoje é um tempo tão acelerado que já nem parece ser tempo histórico. Sim, é isso mesmo: o problema parece ser o do reconhecimento da temporalidade histórica. Mas a verdade é que os progressos requerem investimento projectado num tempo com profundidade, para o passado e para o futuro, trabalho complexo, longo e livre de formação, de educação, de cultura, de ciência. Um processo que não pode começar pelo confinamento da língua, da história ou da arte, ou seja, pelo confinamento dos espaços onde a liberdade deve ditar lei, mas sim pelo investimento público na educação, na cultura, na arte e na dotação pública das respectivas infraestruturas como condição essencial do crescimento e da autonomia individual para um futuro exercício consciente e plenamente responsável da cidadania, sem necessidade de guiões morais que pré-determinem o comportamento. Tomo como referência as visões do alemão Friedrich Schiller, nas Cartas sobre a Educação Estética do Homem (de 1792), e do poeta americano Walt Whitman, em Democratic Vistas (de 1871), e as suas propostas sobre a arte como motor de uma sociabilidade humana harmoniosa e sensível. No caso do poeta de Leaves of Grass, o lugar destinado à essencialidade histórica da poesia. Uma arte que nunca poderá ser encapsulada em códigos ou manuais de bom comportamento linguístico. Ou seja, o desenvolvimento é algo bem diferente das cartilhas que nos querem impor como padrão que impede comportamentos moral e civilizacionalmente desviantes e até puníveis por lei ou por regulamentos administrativos. Um admirável mundo novo com sacerdotes que aspiram a guiar as nossas vidas.

6.

Como se sabe, o famoso acordo ortográfico, a forma como se escreve as palavras, não conhecerá paz enquanto o poder político não fizer uma reflexão profunda sobre a língua portuguesa, maltratada por alguns académicos pouco sensíveis à delicadeza da cultura e da ciência, e enquanto várias gerações se mantiverem em vida. Trata-se simplesmente da forma de escrever algumas palavras. Imaginemos, então, acordos semióticos na língua portuguesa em chave inclusiva e neutra (um extraordinário incentivo ao culto da poesia, diga-se) e a dureza da batalha que os seus fautores terão de enfrentar antes mesmo que isso se converta numa ainda mais dura batalha política, quando os nacionalistas se aperceberem de que essa é a batalha das suas vidas, a batalha que mais lhes interessa porque é aí que melhor poderão afirmar as suas razões, contra os novíssimos “chiens de garde” do politicamente correcto e da ideologia woke.

A verdade é que esta higienização da língua, esta limpeza linguística e cultural imposta por via administrativa, mas que aspira a transformar-se em hegemonia ético-polítca e cultural nas sociedades mais avançadas, enquanto crescem e se impõem ditaduras, regimes de cariz populista e regimes de miséria um pouco por todo o lado, não deixa de ser preocupante até por abrir um vasto flanco à entrada em cena de todos aqueles que são pouco amigos da democracia, da igualdade e da liberdade. Parece-me até que os mais acérrimos defensores da limpeza semiótica, da arte e da história mascaram de progressismo a sua indigência cultural e científica ou mesmo a sua indisfarçável e prepotente ignorância. Afinal, empenham-se nestas batalhas porque não têm outras bem mais importantes e urgentes para propor.

Não tarda, estarão a propor uma alteração do nome da Declaração de 1789.

II.

WOKE

Afinal, o que é a ideologia woke? É uma ideologia? Sim, é, e tem todas as características de uma ideologia: uma visão parcial da realidade que aspira a tornar-se norma de comportamento universal, invertendo a ordem das coisas. Etimologicamente, deriva de wake, woken (acordar, acordado). E há duas referências que importa assinalar: o famoso artigo de William Melvin Kelley, no New York Times, em Maio de 1962, “You’re woke, dig it” e o activismo do movimento Black Lives Matter. Segundo Juan Meseguer, este movimento “combate a injustiça social, mas também tudo aquilo que considera fonte de opressão: a heteronormatividade, o ‘privilégio cisgénero’, o modelo da família nuclear, o capitalismo, etc.” (Meseguer, 2022).

ideologia woke refere-se, pois, à injustiça racial e social, podendo-se mesmo entendê-la como uma vasta moldura que integra a política identitária, o politicamente correcto, a famosa teoria crítica da raça e, em geral, a luta contra a discriminação de género, racial e de orientação sexual.  A ideologia woke é protagonizada por uma certa esquerda de elite e de um bom nível económico. Não representa necessariamente, do ponto de vista sociológico, os grupos sociais a que se aplica. É uma ideologia de vanguarda e tem todas as características de uma ideologia: apresenta-se como uma mundividência com valor universal, apesar de ela própria combater o universalismo. Sim, a ideologia woke, a que nos diz para estarmos acordados, atentos, congrega a política identitária, a ideologia de género, o anti-racismo radical, o revisionismo histórico, o politicamente correcto, a cultura do cancelamento, o triunfalismo e o orgulho LGBTo maximalismo da velha teoria da diferença sexual (tão em voga em Itália nos anos oitenta), o multiculturalismo radical. É forte no mundo universitário e já penetrou em importantes instituições nacionais e internacionais. Identifica-se como nova esquerda e, mais uma vez, o seu adversário histórico é o liberalismo. O mesmo que, curiosamente, é também o adversário histórico da direita radical. A história repete-se mais do que parece, como veremos.

1.

Com certeza que devemos estar atentos às injustiças raciais, sociais e de género, mas também devemos estar atentos às próprias formas de combate, seja à esquerda seja à direita. Sim, atentos desde que estar atento não signifique partilhar formas absolutas de intolerância que ponham em causa o universalismo que integra a matriz da nossa civilização, fonte de tantos e reconhecidos progressos civilizacionais, provavelmente os maiores que o mundo alcançou até hoje, e que promovam uma lógica de antagonismo radical, sucedânea da luta de classes, como lei fundamental da sociedade. Porque é disso que se trata. Na verdade, a matriz da nossa civilização acolhe a diferença e procura integrá-la, exprimindo-a em cartas universais de princípios que são já património mundial: a Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000-2009. E esta matriz não é mesmo compatível com formas de policiamento da linguagem e do pensamento, com a intolerância moral e histórica, com a dialéctica negativa amigo-inimigo como lei fundamental da realidade societária, com o cancelamento da temporalidade histórica e a absolutização do presente como norma selectiva do passado, com a fragmentação identitária da sociedade ou com o neocorporativismo orgânico, disfarçado de religião da igualdade.

2.

O combate woke ao universalismo de matriz liberal é uma discriminante fundamental que precisa de ser clarificada. Pelas razões que Juan Meseguer evidencia:

Nos anos oitenta, um grupo de juristas jovens retomaram a preocupação de Derrick Bell (…) para demonstrar como o Direito servia para mascarar o ‘racismo sistémico’ ou ‘institucional’. (…) Inspirando-se na teoria crítica da Escola de Frankfurt, de orientação neomarxista, estes juristas propõem o estudo crítico do Direito e tentam demonstrar como a moldura jurídica da democracia liberal joga a favor da ‘hegemonia branca’ através de ideias como o Estado de direito, a objectividade da lei, a neutralidade do Estado ou o mérito” (Meseguer, 2022).

Ora aqui está uma boa formulação do problema: um claro desafio aos fundamentos da ordem liberal. A mesma que está na matriz da nossa ordem civilizacional. Mas esta visão não é nova. Já os românticos os combateram, ao combaterem o iluminismo, o liberalismo e o legado da Revolução Francesa. Sobre a convergência do pensamento conservador com o pensamento marxista fala Karl Mannheim num belo ensaio sobre “O Pensamento Conservador” (veja Santos, 1999: 71-87), não só na marcação de um inimigo comum, o Iluminismo, mas também naquele elemento comum a que Mannheim chama “quiliástico”. Estas visões tiveram, naturalmente, os seus intérpretes e a sua representação política ao longo da história, como se sabe. Por exemplo, num plano mais radical, o nacional-socialismo construiu a sua visão do mundo a partir de Arthur de Gobineau (1816-1882) e da sua teoria da raça, no Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de 1855, ou seja, tentou reconstruir a unidade humana a partir de uma sua parte, a raça ariana. O socialismo real fê-lo a partir da ideia de classe. Hipóstases que – tal como nos movimentos identitários – elevam artificialmente à universalidade uma parte do real, de onde, depois, toda a realidade passa a ser derivada, deduzida de forma apodíctica. O mesmo mecanismo de construção e de funcionamento da ideologia (veja Santos, 2019, pp. 67-85). O filósofo italiano Galvano della Volpe e a sua escola desenvolveram uma sofisticadíssima rede conceptual de desmontagem deste processo. Sintetizando: as categorias ideológicas funcionam como abstracções indeterminadas (della Volpe) ou como significantes vazios (E. Laclau) que se elevam acima das concretas determinações do real para que, depois, as possam sobredeterminar (Althusser) – por exemplo, a classe ou a raça que, por um passe de magia ideológica, se convertem em povo, de onde, depois, derivam todas as consequências políticas. A obra de Hegel assenta na tentativa de fundação da universalidade do Estado e do direito ao desenvolver a dialéctica do conceito não a partir da ideia de interesse (como acontecia com os contratualistas, contaminando, deste modo, a ideia de Estado), mas, sim, a partir de uma exigência lógica (a da relação entre a unidade e a multiplicidade, o uno e o múltiplo). Por exemplo, a igualdade de todos (multiplicidade) concebida a partir da lei (unidade), que é geral e abstracta. O que não é o caso, por exemplo, do chamado direito soviético, o direito de classe, ou o caso onde as discriminações (na lei) ditas positivas têm a pretensão, em nome de critérios sociológicos, de ser a regra no universo do direito ou, ainda, onde se considera que o secular património jurídico ocidental está ferido irremediavelmente pela diferença de género (a favor do género masculino). A questão real é a da universalidade do Estado e da lei perante a contingência e a particularidade do real, da sociedade civil. Este processo é muito diferente do processo ideológico, sendo mais sólido. E, todavia, estas escolas que acabo de referir reduzem-no a pura ideologia.

Vejamos o caso da crítica do conservador e precursor do romantismo Joseph de Maîstre.  Ficou famosa a sua afirmação, nas Considerações sobre França, de 1797, sobre este legado: “A constituição de 1795, como em todas as suas predecessoras, é feita para o homem. Ora não existe homem no mundo. Vi na minha vida Franceses, Italianos, Russos, etc.; até sei, graças a Montesquieu, que é possível ser persa; mas, quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei na minha vida; a não ser que exista sem que eu saiba” (De Maistre, 1829: 94). De que falam, afinal, estas constituições? Precisamente de direitos do homem. Em comentário a esta posição, Karl Mannheim, no seu excelente Conservative Thought, junta-lhe, depois, uma afirmação vinda da esquerda, de Marx, na Introdução à Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito: “Mas o homem não é um ser abstracto, aninhado fora do mundo” (“Aber der Mensch, das ist kein abstraktes, ausser der Welt hockendes Wesen”, Marx, 1981, I, 378). Há nesta posição uma evidente identidade entre os conservadores e a esquerda marxista, de resto já assinalada por Mannheim: a recusa do homem abstracto, político, artificial, alegórico, sob forma de cidadão, por exemplo, em Zur Judenfrage (Marx, 1981,I, 369-370). Com efeito, Marx, nesta obra e na Kritik des Hegelschen Staatsrechts desenvolve uma crítica estrutural quer do Estado representativo, como formulado por Hegel nos Princípios de Filosofia do Direito (Hegel, 1976), quer dessa universalidade abstracta e irreal do cidadão. No fundo, o que ele diz é que esta universalidade irreal (unwirkliche Allgemeinheit) e abstracta aprofunda a separação, o fosso entre o cidadão (Staatsbuerger) e o homem concreto e privado (Lebendigen Individuum), permitindo que as desigualdades efectivas se intensifiquem e reproduzam na sociedade civil, no lugar próprio do homem privado e egoísta, legitimando e preservando, deste modo, a ordem instalada (veja Santos, 1986: 117-148). Esta universalidade abstracta fora teorizada pelos contratualistas e, depois, embora de forma diferente, precisamente por Hegel, naquela obra. Ora é precisamente por aqui que, consciente ou inconscientemente (com ou sem Harvard a legitimá-los cientificamente), navegam os identitários, embora alargando a esfera das identidades ou dos sujeitos históricos para além do indivíduo concreto ou da classe social, por exemplo, à mulher ou à raça, enquanto comunidades. Mas há mais. Em relação à universalidade do direito, desenvolveu-se mesmo uma doutrina marxista do direito (o chamado direito soviético) que reconduz o ordenamento normativo à classe dominante. Falo de Pashukanis, de Stuchka e de Vishynsky, entre outros, este último o famoso procurador-geral de Stalin. O que diziam eles? Que o direito é de classe, não universal. Ou burguês ou operário e socialista. Mas de classe. Um identitarismo de classe, aqui não de raça ou de género, mas mais geral e abstracto, no qual assentaria a redenção futura do ser humano, através da reapropriação da sua identidade, através da reabsorção daquele cidadão abstracto no ser humano concreto e emancipado, enquanto tal (na sociedade sem classes), promovida por este sujeito histórico axialmente centrado na verdadeira linha evolutiva da história, a classe operária. Esta posição está muito bem exposta no famoso livro de Lukács, História e Consciência de Classe, de 1923. Todos os teóricos do direito soviético consideram que a universalidade do direito é uma ficção para mascarar o efectivo domínio de classe (independentemente das discussões que houve sobre saber se o direito era, ou não, um ordenamento normativo). Posição que viria a ser totalmente refutada nos anos cinquenta por Hans Kelsen no célebre livro sobre A Teoria Comunista do Direito (Kelsen, 1981). O que daqui resultou foi que o sujeito da história era uma classe, uma concreta identidade, que se afirmaria por supressão de outra identidade (a burguesia), no interior de uma dialéctica negativa (a da luta de classes). A recusa do universalismo é a isto que conduz.

3.

Por que razão falo disto? Porque a política identitária também nega esta universalidade, considerando-a fictícia, enganosa e instrumental, em nome da verdade que se exprime nas diversas identidades que compõem o corpo social, sejam elas de género, étnicas ou de orientação sexual. O facto é que, segundo Kelsen ou Bobbio, o direito (e para além do conteúdo concreto das normas) tanto pode ser válido numa formação social capitalista como socialista, precisamente porque não é de classe nem pode ser identificado com um sujeito histórico em particular. Mas a sociedade, contrapõem os identitários, como já o tinham feito os marxistas, não se resolve na abstracção normativa, que cobre o real domínio de uma raça sobre outra ou de um género sobre outro, tornando-se necessário promover uma viragem que ponha no centro do discurso as identidades sufocadas por essa ficção da universalidade abstracta da lei ao serviço do domínio dos mesmos de sempre (brancos e homens). Ou seja, eles apontam ao universalismo (formal) do direito e do Estado a mesma crítica que a teoria crítica da ideologia aponta à ficção ideológica, que acima expliquei. Neste sentido, a linguagem torna-se decisiva, sendo imperativo e urgente proceder à sua revisão institucional para a corrigir, a tornar politicamente correcta e resolver os desvios e as marcas de classe, de género ou de raça que ela transporta consigo como linguagem de dominação, através da sua inscrição no direito e no Estado. O mesmo vale para a história, que conta a longa dominação de uns pelos outros, tornando-se necessário proceder também à sua revisão institucional e ao cancelamento dos seus símbolos mais odiosos, aos seus testemunhos de rua, de praça ou de museu, nas cidades, por esse mundo fora (revisionismo histórico). É, pois, também urgente e necessário reconhecer as sociedades como realidades multiculturais integradas por identidades ou sujeitos irredutíveis ao velho universalismo abstracto, irreal e artificial. Esta ideologia woke é animada por um revanchismo histórico que põe no centro do discurso as diversas identidades, anulando a sua pertença a uma dimensão integradora e comum, logo, universal. O Estado e o direito têm essa dimensão e, por isso, falam esta linguagem. O direito, por exemplo: a lei é geral e abstracta. É essa a regra e não a excepção, ao contrário do que dizem os identitários e os apóstolos da ideologia woke. Precisamente porque quer o Estado quer o direito são universais e constituem a unidade da diversidade, o uno do múltiplo, o comum do diferente, tornando assim possível a promoção da intercambialidade entre aquilo que é diferente, entre as diferentes identidades, partilhando e participando no que é comum. E é comum enquanto forma reguladora das relações sociais (independentemente do conteúdo concreto da norma). Pelo contrário, elevar a diferença a norma significa torná-la irredutível, convertendo, deste modo, a lei social em dialéctica do conflito por falta de terreno comum para a partilha e a composição de interesses e valores. Alguém disse, e com razão, que as identidades não são negociáveis e por isso a sua lei é a do conflito permanente (Fernandes, 2022).  A narrativa contratualista sobre o Estado e sobre o direito (centrada na ideia de interesse) ou a sua conceptualização hegeliana (centrada numa exigência lógica) tinham precisamente este objectivo: resolver superiormente a guerra de todos contra todos, dando unidade à diversidade caótica da sociedade civil. É precisamente esta unidade que torna possível a afirmação livre e pacífica de todas as diferenças, a sua intercambiabilidade, o compromisso e a composição de interesses. Um terreno comum de negociação, portanto. E hoje este terreno comum até tem uma tradução constitucional, que se funda precisamente no património universal dos princípios constantes das cartas universais. Juergen Habermas, falando da União Europeia e das identidades nacionais que a integram, propôs um “Verfassungspatriotismus”, um “patriotismo constitucional” referido a um universo comum (a constituição) que torne possível a livre expressão de todas as identidades, nacionais, étnicas, regionais, de sexo, de língua, etc., etc. (Habermas, 1991: 132). Pelo contrário, a política identitária não tem chão comum, precisamente porque nega esta universalidade e afirma a primazia das identidades sobre a lógica e a unidade societárias, ao identificá-las como pura máscara do domínio do homem branco e masculino sobre a raça negra e sobre a mulher ou sobre outras identidades. Como se só uma viragem, que antes se chamava revolução, pudesse acabar com esta evolução por inércia (ou por defeito, como diria uma deputada do PS, como veremos) do domínio histórico de um sobre todos (homem e branco), através do artifício da pretensa universalidade. As identidades, sendo irredutíveis, inegociáveis e não intercambiáveis, por falta de um espaço comum, desencadeiam uma lógica que só pode ser a da dialéctica amigo-inimigo, uma dialéctica negativa e uma lógica de conflito radical que visa a aniquilação do outro, precisamente como se verificava com a luta de classes: a eliminação da burguesia. O universalismo, dizem, encobre o domínio de uns sobre os outros e é nele que se centra a representação política, a passagem do particular para o universal, do indivíduo para o cidadão, da sociedade civil para o Estado e para o ordenamento jurídico. Acabar com um significará, pois, acabar com a outra, repondo a centralidade das múltiplas identidades como expressão orgânica ou corporativa de interesses e valores próprios. Entramos, assim numa lógica puramente corporativa que anula a representação e a individualidade singular e repõe a centralidade e a exclusividade da pertença comunitária. Não se vê, deste modo, como poderá falar-se de interesse geral e de vontade geral, uma vez que estes conceitos implicam um plano que só pode ser o de uma universalidade integrativa, que tem na constituição a sua carta expressiva, a única que, aliás, pode permitir uma pacífica dialéctica de identidades, com os seus interesses e valores, desde que no interior de um efectivo “patriotismo constitucional”.

4.

O que aqui temos, na ideologia woke, é, de facto, uma alteração substancial do sistema representativo ou mesmo a sua supressão: não há “representação política” do indivíduo singular, mas a projecção institucional da comunidade em que se integra (somente através dela a singularidade pode ser reconhecida), numa lógica corporativa ou de comissariado; não há “mandato não imperativo”, porque este resulta de uma separação ou corte entre a génese do mandato e o mandato propriamente dito, como acontece no sistema representativo clássico; o mandato deixa de se referir à nação ou ao povo, mas sim à identidade, ao sujeito identitário, ou seja, não é universal, como o “mandato não imperativo”. Mesmo assim, coisa bem diferente era a classe como identidade ou sujeito, pois ela coincidia com a totalidade, ou seja, ocupava o eixo histórico evolutivo da história, como teorizado por Lukács na obra acima referida, não correspondendo a concretas determinações, como a de raça ou a de género, por exemplo, porque a classe podia integrar em si todas as determinações que hoje são diferenciadas como identidades ou sujeitos sociais comunitários (por exemplo, no chamado “Estado de todo o povo” soviético, gerido pela classe). E só por isso a teoria podia postular que, no fim, as diferenças de classe iriam desaparecer, na “sociedade sem classes”. A classe operária teria em si o gérmen da sua própria anulação/superação. A fase do “Estado de todo o povo” é já uma fase de transição para a de uma sociedade sem classes.  O que é de todo inconcebível com as identidades – por exemplo, a extinção dos géneros ou das raças.

Estas são as consequências desta teoria elevada a modelo de sistema social, não contendo sequer alguns dos pressupostos que a teoria marxista podia apresentar, ao elevar a classe a sujeito histórico apontado ao futuro. Mas estas são características das chamadas teorias críticas, que mais não são do que puras ideologias de combate. E, por isso mesmo, elas devem ser também combatidas com as armas da crítica, sim, mas também com as da democracia representativa.

5.

Esta conversa, como se vê, tem barbas e nada tem de original. E até possui menos coerência do que as suas antecessoras. O que foi (ou foram) e onde levou (ou levaram) todos sabemos. E onde levará, se a cavalgada da ideologia woke continuar, também todos sabemos. Os únicos que parece não saberem são os tradicionais partidos da alternância que já se deixaram infiltrar, à grande, por este falso progressismo pós-moderno que hoje se tornou o principal alimento do combate da direita radical, com os sucessos que todos lhe conhecemos. Se quisermos encontrar entre nós esta presença da linguagem “woke” basta ler alguns projectos de revisão constitucional que estão em debate parlamentar. Com uma agravante: a direita radical atribui esta mundividência a forças políticas que na sua matriz nada têm a ver com a ideologia woke ou a política identitária, mas que se deixaram seduzir por elas quando lhes faltou o conteúdo ideal que não souberam renovar ou que trocaram por um pragmatismo de governo axiologicamente asséptico e em molho “algebrótico”, como diria um psicanalista meu amigo, ao resumir, com uma só palavra, o linguajar exclusivo dos números e das estatísticas que a maior parte dos políticos exibe a propósito e a despropósito. As linhas de força deste universo problemático estão aí bem visíveis e se as forças moderadas que se reconhecem na matriz moderna do nosso quadro civilizacional não puserem cobro a esta cavalgada será a direita radical a promover o seu combate e a ganhar com isso fortes consensos eleitorais que continuarão a levá-la ao poder, como tem vindo a acontecer.

III.

OS NOVOS PROGRESSISTAS

Há algum tempo publiquei um pequeno ensaio sobre “A Esquerda e a Natureza Humana” (Santos, 2021). A questão era mais ou menos a mesma que aqui estou a analisar, embora o ângulo de abordagem fosse diferente porque se centrava sobretudo na esquerda clássica e nos seus desafios. Mas o que hoje me interessa, com a crise da esquerda clássica e do seu paradigma, é saber como está ela a ser representada pelos novos movimentos. A clarificação é delicada e um pouco complexa, mas oportuna e necessária, sobretudo quando nos defrontamos com uma tendência que, supostamente à esquerda, está a tentar impor a sua hegemonia no terreno da sociedade civil, estando a conseguir bons resultados até nos chamados “aparelhos de hegemonia” ou mesmo nas próprias instituições internacionais. Refiro-me ao multiculturalismo, à chamada política identitária à ideologia woke, aos paladinos do politicamente correcto. Não há, no meu entendimento, uma linha clara de evolução da esquerda clássica para estas formas de esquerda ou progressismo de tipo civilizacional, apesar de algumas afinidades, designadamente no seu organicismo antiliberal.

Tradicionalmente, os progressistas identificavam-se com “grandes narrativas” que propunham uma visão articulada, com profundidade temporal, da história como horizonte a partir do qual era assumido o compromisso político. Estas “grandes narrativas” estavam ancoradas em classes sociais, propunham uma utopia como objectivo último da sociedade, promoviam a transformação social através da vontade política das classes sociais e das elites (através de partidos ou movimentos) e centravam em clivagens estruturais (como, por exemplo, o antagonismo entre capital e trabalho) o funcionamento da sociedade, propondo-se intervir sobre elas rumo à utopia, situada no futuro. Eram animadas por um optimismo histórico com profundidade temporal que dava alento à esperança em dias melhores, para todos. A revolução (ou a reforma, nas tendências mais moderadas) era a solução e a chave do progresso.

1.

Estas “grandes narrativas” políticas perderam a centralidade, dando lugar ao que Jean-François Lyotard, em “La Condition Postmoderne” (Lyotard, 1979), chamou sociedade pós-moderna. A “grande narrativa” ancorada no industrialismo e em classes sociais antagonistas tornou-se residual, sendo substituída por outras formas mais ancoradas na “superestrutura” do que nas fracturas estruturais. E é aqui que nos encontramos. Num mundo sem profundidade temporal e fragmentário, mas globalizado e de alta mobilidade migratória a caminho de um melting pot global. E é neste mundo fragmentário que nasce o discurso multiculturalista, o identitarismo comunitário e o politicamente correcto, ou seja, uma linguagem asséptica para a identificação das identidades comunitárias politicamente emergentes, sejam elas de género, de raça, de orientação sexual, de cultura ou de língua. Um desvio e uma significativa mudança na natureza das novas fracturas relativamente às clássicas fracturas estruturais. Por exemplo, a identidade de género e a sua dialéctica interna não tem características que possam ser identificadas com as da dialéctica entre classes. A sociedade é vista não como um complexo integrativo de indivíduos singulares, qualquer que seja a sua identidade (a visão liberal), nem como resultado de um antagonismo estrutural entre duas classes fundamentais (o marxismo), mas como um complexo de comunidades diferenciadas, cada uma com a sua identidade e a sua densidade histórica e social, a que é preciso dar voz, emancipar, autonomizar e protagonizar, reconhecendo-a na linguagem dos novos direitos emergentes ancorados numa sociedade multicultural, sem centro nem periferia e onde o direito à diferença rivaliza com o direito à igualdade, podendo até sobrepor-se-lhe. Mas a falta de uma “grande narrativa” deu lugar à busca de um colante que permitisse repor a hegemonia ético-política e cultural progressista. Encontraram-na numa leitura focada e extensiva das grandes cartas universais de direitos e deram início a uma tentativa em larga escala de transformar certos direitos nelas consignados não só em normas de comportamento universais obrigatórias e moralmente vinculativas, mas também em mundividências ancoradas em concretas comunidades sociais que passaram a funcionar como ordens de valor absoluto e com pregnância social formal e linguisticamente reconhecida e formalizada. Do que se trata, então, é de promover essas comunidades a eixo decisivo das sociedades modernas, considerado condição nuclear da harmonia social e do progresso civilizacional. Essas comunidades são os novos sujeitos (ainda) subalternos a que é necessário e justo dar voz. As linhas de fractura situam-se todas elas entre a sedimentação histórica resultante do processo evolutivo das sociedades desenvolvidas e o presente, reconfigurado à luz dos novos direitos. Elas não só aspiram à igualdade universal de direitos como também aspiram ao direito à diferença, a uma identidade própria não subsumível na totalidade social e ao alargamento do espectro das diferenças no interior do sistema social, plasmadas numa linguagem limpa das conotações negativas ou discriminatórias do legado histórico, ao reconhecimento social e formal da própria identidade e até a um poder socialmente reparador e sancionatório. O objectivo é o da igualdade de reconhecimento colectivo, mas inscrita no direito à diferença. Atingir a igualdade através do reconhecimento do direito substantivo à diferença. Estas comunidades vêem assim as suas identidades ser catapultadas a modelos a partir dos quais juízos de moralidade poderão ser pronunciados em função da medida dos novos direitos identitários. Identidades de género, de raça, de orientação sexual, de cultura e de língua, tratadas historicamente, no passado, como comunidades subalternas e discriminadas, a exigirem, agora, reconhecimento através de uma nova visão do mundo e da história centrada nos direitos multiculturais e às quais a linguagem comum se deve adaptar para não carrear consigo a marca e a mancha da sua génese histórica e das respectivas contingências ao longo do martirizado processo histórico. Linguagem expurgada das sedimentações históricas que se foram depositando nela e que são testemunho da iniquidade histórica.

2.

Vejamos um pequeno exemplo de resgate da iniquidade histórica. Bia Ferreira, conhecida cantora negra, brasileira, activista da comunidade LGBT: “eu vou”, à festa do Avante, “para denunciar os estragos que o povo português deixou aqui no Brasil”; “o que incomoda mesmo é a denúncia que eu faço: que o seu antepassado escravizou o meu povo, aqui no Brasil, e que a gente paga essa conta até hoje” (Expresso, 26.07.2022). Os portugueses considerados como causa remota dos males que hoje atravessam a sociedade brasileira, isto dito por uma militante orgânica e qualificada de uma (ou mesmo de várias) destas comunidades. Ditadura, Bolsonaro, qual quê? Portugueses. Está tudo dito. Agigantar uma causa, ainda que remota e explicável pelo tempo histórico em que aconteceu, cobre outras causas, mais próximas, mais reais e mais activas. Trata-se de um perigoso desvio anacrónico que polariza a atenção para uma falsa explicação, encobrindo e deixando por explicar a realidade efectiva. Um exemplo concreto muito elucidativo.

Do que se trata verdadeiramente é de um processo de conquista da hegemonia que já vai bastante avançado porque está a ser assumido acriticamente pelas instituições nacionais e internacionais como uma forma de progressismo civilizacional, construído à revelia da matriz iluminista e liberal.

Outros exemplos: em plena União Europeia classifica-se uma Unidade de Investigação e Desenvolvimento  (UI&D) com base na ideia de simetria de género (transpondo para a ciência um critério especificamente social); exige-se o uso generalizado de linguagem neutra e inclusiva (através de uma limpeza ética do património histórico de uma língua ou do próprio património histórico em geral); ou, como no caso ridículo da empresa EMEL, do Município de Lisboa, fazem-se inquéritos a cisgéneros masculinos e femininos,  a transgéneros masculinos e femininos e, mais interessante ainda, a outros (sexos), talvez géneros neutros. Isto para não falar da credibilidade mundial que vem sendo dada às inacreditáveis iniciativas do movimento #Me Too, algo que me faz pensar a um processo de streeptease emocional em diferido (vista a distância temporal entre o acto e a sua denúncia judicial e moral). Ou seja, está a propagar-se uma tendência ideológica multiforme que já capturou as instituições nacionais e internacionais e que está a assumir a forma de controlo administrativo e moral da linguagem e dos comportamentos inscritos nessa linguagem, não explicitamente enquanto directo controlo estatal dos comportamentos (com graves incidências sobre o Estado), mas enquanto controlo social sancionatório dos comportamentos e da linguagem que os exprime. A isto chama-se hegemonia, no seu sentido mais amplo, que não o estritamente político. Uma hegemonia, contudo, que, mais do que ético-política e cultural (no sentido gramsciano), é imposição administrativa, moral e institucionalmente coerciva, de tipo policial (polícia dos costumes).

3.

Como em todas as ideologias a carga semântica destas identidades elevou-se a absoluto, dando vida àquilo que Max Weber um dia designou como wertrational, racional em relação ao valor, substitutivo quer do zweckrational (próprio do capitalismo e da sociedade mercantil) quer do traditional (próprio das sociedades onde impera a tradição). O valor passou a ocupar, em linguagem weberiana, o centro do discurso identitário, alcandorando-se a politicamente correcto. Nada havendo contra a elevação do valor a critério comportamental, como é óbvio, o que não é defensável é que ele se torne absoluto e exclusivo polarizador do comportamento social, como nas religiões (nas teocracias) ou nas grandes narrativas políticas. A identidade comunitária passou a ocupar o centro do discurso progressista, num registo totalmente diferente da ideia de comunidade defendida pela esquerda clássica, porque agora se trata de múltiplas comunidades, novas identidades ou novos sujeitos sociais multiculturais, sem centro nem periferia e não subsumíveis numa qualquer ordem ou unidade superior nem remissíveis a uma fractura socialmente estruturante. Do que se trata é de uma luta pelo reconhecimento ancorada no direito à diferença e no valor da diferença. Uma lógica que contrasta com a matriz liberal da nossa civilização, como, de resto, acontecia com a visão marxista, mas que se diferencia do organicismo da esquerda clássica, ancorado na centralidade da classe. As comunidades são agora os sujeitos para onde remete a vida societária. A igualdade tem agora na diferença o seu contraponto reconhecido e validado pela sociedade, no direito, na língua, na política, na economia e na cultura. Em todas estas instâncias as identidades comunitárias devem ver garantido o reconhecimento institucional e social em formas substantivas. Uma dinâmica que tem demonstrado capacidade de imposição hegemónica na sociedade civil e até nas instituições.

4.

E é aqui que estamos. As tradicionais classes sociais do marxismo deram lugar ao multiculturalismo e às identidades comunitárias, que se elevaram a alfa e omega do progresso social e da linguagem societária, num processo que só poderia evoluir mediante uma filosofia organicista de novo tipo e uma crítica do universalismo iluminista e liberal. As comunidades integram a sociedade de forma orgânica. Se o centro era o indivíduo ou, então, a classe, agora não há centro porque há multiculturalismo, múltiplas identidades diferenciadas sem centro nem periferia. Tudo se esbate perante o emergir das comunidades e da diferença que aspira a tornar-se a regra número um das sociedades. É o multiculturalismo pós-nacional que resiste à cultura dominante, à matriz nacional do Estado, a qualquer tipo de integração superior, que é vista sempre como ameaça de domínio ilegítimo. O Estado passa a ser um conglomerado de comunidades e o garante da diversidade multicultural e das identidades comunitárias. O indivíduo cede o lugar à comunidade e a classe fragmenta-se em microcomunidades. As fracturas estruturais tornam-se “superestruturais” e a dialéctica é a da luta pelo reconhecimento e pela afirmação da identidade comunitária, seja étnica, de género, de orientação sexual, de língua ou de cultura. Assim se dilui a matriz e o património liberal, emergindo mesmo o problema da unidade nacional, da universalidade da lei e do Estado e da língua como colante nacional. Esta passa a ter como função a promoção identitária das comunidades, erradicando (de si própria) todos os vestígios que possam evidenciar marcas e manchas do passado histórico, sedimentações consideradas impróprias à luz dos supremos critérios da nova visão multicultural e da novilíngua que a exprime. O revisionismo histórico e linguístico passou a ser a marca de água da nova mundividência. Nada é mais importante do que a identidade comunitária. Tudo o resto fica na sombra, de tão intensa ser a luz multicultural e identitária e de tão imperativa ser a sua moralidade. O reconhecimento comunitário e identitário passou a ser a nova palavra de ordem em nome dos novos direitos, do progresso e da moralidade social. A assepsia linguística é a garantia visível e palpável do reconhecimento e equivale ao triunfo do presente sobre a profundidade temporal e os desvarios da história e da contingência própria do tempo histórico.

Nem a esquerda clássica aqui cabe, tal como não cabe a sua leitura acerca da fractura estrutural da sociedade capitalista, nem a visão liberal, com o seu universalismo e a promoção da centralidade do indivíduo e direitos correlativos, é compatível com esta doutrina. Findas as grandes narrativas irrompem os movimentos por causas centrados nas identidades comunitárias. Renasce um organicismo de novo tipo, agora ancorado no direito pleno à diferença em nome da afirmação da identidade das comunidades que passaram a ocupar o centro discursivo da sociedade como forma única de emancipação numa sociedade entendida como conglomerado multicultural, onde a diferença é a lei que domina. Uma inversão relativamente à conquista liberal da igualdade contra o privilégio. Mas também uma regressão nos próprios conceitos de Estado e de sociedade.

É aqui que se inscreve o politicamente correcto com pretensões de poder sancionatório e de reconfiguração “superestrutural” da sociedade, pondo na sombra, nesta luta, as questões que antes a esquerda punha no centro do combate político, a classe ou o povo oprimido, os sujeitos onde se ancorava a revolução. Mas pondo também em causa o universalismo liberal e a defesa dos direitos individuais. A comunidade orgânica, não a sociedade, é o lugar deputado onde se pode afirmar a individualidade. É através dela que o indivíduo se pode afirmar na sociedade. A lógica societária já não pode prescindir da lógica comunitária, acabando por lhe ficar subordinada. A centralidade do indivíduo passa a ser uma ficção que a nova mundividência nega e combate em nome da identidade comunitária e da sua pregnância social. Um certo retorno ao pré-mopderno.

5.

Será, portanto, este progressismo aceitável na forma como se tem vindo a exprimir, ou seja, nas suas pretensões hegemónicas e na sua vocação totalizadora, para a social-democracia ou para o socialismo democrático? No meu entendimento, não. Logo a começar pela sua caracterização como movimento orgânico e fragmentário que ilude fracturas que são essenciais para o progresso dos povos, mas também porque é um movimento sem densidade e profundidade temporal ao querer resolver no presente toda a temporalidade histórica, chegando ao extremo de querer anular radicalmente a diferença histórica, extirpando-a da própria linguagem comum e das formas de expressão pública (da arte pública, por exemplo, ou dos livros de ensino público) do tempo histórico. Por outro lado, o organicismo é tão inimigo da democracia representativa como amigo do corporativismo. E aqui a ideia de liberdade sofre uma contracção inadmissível para quem se revê na nossa matriz civilizacional e na própria razão de ser da social-democracia. A ideia de contingência histórica é recusada por imposição dos valores do presente como valores absolutos, como fim da história, como triunfo do wertrational – a orientação menos conforme à lógica inscrita nas democracias representativas e na sua matriz liberal.  É claro que a própria social-democracia deverá reinventar-se para além das clássicas formas que foi assumindo ao longo do tempo, designadamente do Estado Social e de um certo comunitarismo tradicional radicado num classismo residual que nunca foi plenamente extirpado. Mas deverá também, et pour cause, rever a sua resistência espontânea e matricial à filiação no primeiro liberalismo anti-absolutista e anti-privilégio que determinou a matriz da nossa actual civilização e das mais avançadas formas de gestão política das nossas sociedades: o sistema representativo, a democracia representativa, o Estado de direito e a racionalidade do mercado. Basta ler a Declaração dos Direitos do Homem (palavra que na novilíngua acabará substituída por Ser Humano ou por Direitos Humanose do Cidadão. É certo que esta tendência teria sentido e seria até desejável se absorvida por uma política progressista que fosse capaz de a reposicionar no seu devido lugar histórico, limitando a sua pretensão hegemónica em vez de a promover no interior das suas fileiras, sem compreender que esta tendência hegemónica que vai avançando assume cada vez mais a forma de uma inaceitável opressão simbólica, de vigilância policial da história, da palavra e do pensamento, incompatíveis com a vida democrática e com a liberdade que lhe está na raiz. Parecendo constituir um progresso, esta mundividência, com as pretensões hegemónicas que tem vindo a revelar e com o seu organicismo, na realidade é um profundo recuo relativamente à matriz liberal da nossa civilização e um grave atentado à liberdade.

IV.

IGUALDADE DE GÉNERO 
E LUTA DE CLASSES

Não é raro encontrar tomadas de posição, pelas defensoras de uma política para a igualdade de género, que, de tão radicais, mais pareça transporem para a luta política a lógica da luta de classes. Uma luta pelo poder entre quem o tem e quem o não tem. Assim, sem mais. Ou seja, a mesma filosofia e a mesma lógica que viam a classe operária como classe explorada pelo poder derivado da revolução industrial. Marx explicou bem a razão desta posição. As duas classes centrais na sociedade e na história eram a classe dos proprietários dos meios de produção e a classe dos produtores. Uma detinha todo o poder, a outra sofria-o. Hoje, nesta visão aggiornata, as mulheres representariam o grupo social dominado e explorado pela própria dinâmica interna de um sistema construído segundo a lógica do poder masculino. Um sistema, afinal, muito mais antigo do que a própria revolução industrial. No discurso feminista radical esta foi, é e continua a ser a contradição principal, apesar da igualdade perante a lei e das conquistas que foram alcançadas, sobretudo ao longo do século XX. E convenhamos que, apesar dos enormes progressos alcançados relativamente ao que se verificou durante séculos e séculos, a generalidade das sociedades desenvolvidas ainda não conseguiu atingir a igualdade substantiva, que não a legal, entre homens e mulheres. Até porque a lei não está concebida para tratar das identidades de forma diferenciada, porque, por definição, é geral e abstracta, sendo o seu referente a cidadania, e não as identidades. Não há, na matriz liberal do direito, nem um direito de classe, como queriam os teóricos do chamado direito soviético, nem de género ou de raça. E isto faz a diferença.

1.

Poderia fazer aqui uma exaustiva análise das etapas de evolução da relação homem-mulher, desde o conceito romano de filiae loco (e não de uxor) até Kant, onde à mulher não é reconhecida “personalidade civil”, sendo a sua “existência de qualquer modo somente inerência”, “porque a conservação da sua existência” não depende do próprio impulso, mas do comando de outrem (“Metafísica dos Costumes”, II, §46). Por isso, não lhe é reconhecido, pelos liberais, em geral, o direito de voto. Ou, depois, a situação nos USA até à XIX Emenda da Constituição, de 1920, onde finalmente acabaria por lhe ser reconhecido o direito de voto.  Ou ainda toda a legislação que determinou uma sua dependência formal do marido. E por aí em diante, numa clara discriminação histórica de metade da humanidade. Bastaria ver a evolução do sufrágio universal para se ficar logo com uma visão dos termos e da iniquidade política desta relação ao longo da história.

Na verdade, se as desigualdades subsistem – e não é só, ou particularmente, entre homens e mulheres, mas entre homens e homens e entre mulheres e mulheres -, o objectivo deverá ser o da promoção progressiva de condições gerais que tornem possível a qualquer cidadão dispor das mesmas oportunidades. O Tocqueville chamava-lhe “igualdade de condições”. O Estado e a lei devem distribuir os bens públicos necessários a essa igualdade geral de condições e de oportunidades. Mas isso não significará automaticamente que todos aproveitem essas condições de base para atingirem os mesmos resultados, por várias e complexas razões. Justiça distributiva e justiça comutativa são os dois conceitos que distinguem, neste aspecto, a visão liberal da visão social-democrata e socialista. No caso da relação homem-mulher a questão é mais clara e pode ser isolada, removendo, finalmente, todos os obstáculos a que uma mulher, seja de que condição for, possa atingir com sucesso os mesmos resultados que os homens. E a primeira dessas condições deve ser, claro, a igualdade perante a lei, devendo-se, depois, proteger as diferenças específicas de género de modo a que não sejam impeditivas de obter resultados equivalentes. Por exemplo, a condição de mãe e todas as variáveis que decorrem dessa condição.

Políticas progressivas na relação homem-mulher tal como nas relações de cidadania são necessárias. Até mesmo recorrendo a medidas de discriminação positiva que ajudem a promover a igualdade de condições e de oportunidades, na relação homem-mulher ou, por exemplo, nas relações entre um interior deprimido e um litoral desenvolvido, desde que isso não se transforme em regra, castigando a universalidade e o carácter abstracto da lei.

2.

Mas o que não me parece aceitável é identificar a relação homem-mulher simplesmente como uma relação de poder, centrando nela toda a atenção e transformando-a na clivagem central das sociedades desenvolvidas. Até porque nestas sociedades o que legalmente é possível fazer já foi feito ou está a ser feito. E se é verdade que a relação homem-mulher é central na sociedade, ela não o é porque se trate fundamentalmente de uma relação de poder de um sobre o outro. É central porque é uma relação ontológica que garante a reprodução da espécie. Sendo uma relação social, ela é também uma relação natural. E é, e também por isso, uma relação com uma dialéctica de afectos que vai para além da própria relação de espécie, elevando-se à dimensão universal de género, sem perder a sua dimensão natural. Sobre isto Marx tem uma página muito interessante nos “Manuscritos de 1844”, no 3.º Manuscrito. Cito duas frases (MEW, 1981: I, 535): “A relação imediata, natural, necessária do ser humano com o ser humano (Menschen) é a relação do homem (Mannes) com a mulher (Weibe). (…).  A relação do homem (Mannes) com a mulher (Weib) é a mais natural relação do ser humano com o ser humano (Menschen zum Menschen)”. Sublinho: relação natural do ser humano com o ser humano. Ou seja, nesta relação a natureza humaniza-se e o ser humano exprime-se como ser natural.  Melhor ainda, com Umberto Cerroni: a relação homem-mulher “torna-se a medida de toda a civilização no específico sentido de que ela é a primeira relação natural do género humano e a primeira relação humana da sensibilidade natural” (Cerroni, 1976: 59). Mas ela é também constitutiva dessa comunidade de base que é a família com toda a série de vínculos inerentes, a começar nas relações de parentalidade e nas responsabilidades inerentes a essa condição. Esta relação é, pois, muito mais complexa do que uma relação de poder. Identificá-la, como faz, por exemplo, a deputada socialista Isabel Moreira (num artigo no “Expresso”, de 07.05.2021), como relação de poder é amputá-la das outras dimensões ou talvez seja mesmo amputá-la da sua dimensão essencial. Uma sociedade que veja desse modo esta relação – como relação de poder – tornar-se-á uma sociedade onde não se poderá viver porque atravessada por uma tensão permanente que destruirá a própria essencialidade, complexidade, riqueza e extrema delicadeza desta relação. Ela é uma relação ontológica que traduz não só o grau civilizacional de uma sociedade, mas também a sua moralidade, a sua cultura, a sua relação com o afecto, com a sensibilidade, com a beleza e com o futuro. Numa palavra: ela é mais, muito mais do que uma relação de poder. Identificá-la assim significa diminuí-la e reduzi-la a uma mera relação política, esquecendo que ela é uma relação ontológica primordial, como muito bem viu Marx, em 1843.

3.

Confesso que fiquei impressionado com este artigo da deputada, pelo seu radicalismo. Se este artigo fosse um poema, até teria gostado. Mas não, este é um grito de uma mulher que se sente assediada pelo mundo masculino mesmo na sua posição de poder, como deputada da Nação, titular de soberania no poder legislativo, mas também no poder comunicacional, onde também ocupa uma posição regular. Dir-se-á: é o grito de uma representante. Só que ela não representa as mulheres, representa a Nação. Não pode, pois, pôr o Parlamento, a que pertence, a gritar contra a outra parte da Nação.

Cito o início do seu artigo, que é todo um programa de combate:

Todas as mulheres sabem que lhes falta poder. Aquele poder. O poder que o sistema atribui por defeito aos homens. O mundo avança, mas o mundo ainda é (em tudo) ‘masculino por defeito’ (…) e qualquer comportamento nosso é filtrado, e por isso enviesado, por essa distorção”.

O poder masculino não é, pois, conquistado pelos homens, mas funcionalmente atribuído pelo sistema, “por defeito”, ou seja, automaticamente. O sistema tem sexo e é masculino. Consequência? Mudar o sistema. Pela revolução?

Outra citação:

“As múltiplas convenções internacionais (…) deviam fazer pensar que a nossa morte acontece porque há um sistema de poder machista que passa por tudo, sim, por tudo, desde a linguagem que nos omite à organização do poder político”.

É mesmo uma questão de sistema. Faça-se o que se fizer, o sistema estará sempre lá para atribuir o poder aos homens e silenciar as mulheres. Consequência? Mudar o sistema. Pela revolução?

Finalmente:

“Todas as mulheres sabem o que é não ter poder, o mesmo é dizer que todas as mulheres sabem o que é ser mulher”.

Todas as mulheres sabem o que é não ter poder. Todas? É um problema de poder dito por uma mulher de poder a milhões de homens sem poder algum. O outro lado do poder é a mulher, na sua visão. Definir o poder pela negativa, por aquilo que não é, só é possível pela definição do que é ser mulher, o seu contrário. A contradição principal que se deduz de toda esta narrativa é a que se verifica entre poder (masculino) e mulher. No mínimo, é um modo um pouco estranho de encarar o poder e as desigualdades sociais. Muda-se o sistema para resolver esta contradição e, ipso facto, resolve-se todas as outras? Marx dizia que esta era uma relação natural já com dimensão social e que era a primeira relação social com dimensão natural. Dimensões que superam de longe a relação de poder entre ambos (uma relação social), porque se trata, afinal, de uma relação constituinte, enquanto relação de espécie e relação social primigénia, onde a dimensão cooperativa é, sem dúvida, determinante.

4.

A mim parece-me exagerada esta maneira de ver o mundo, sobretudo nos países desenvolvidos, onde a igualdade perante a lei, a igualdade de condições e a igualdade de oportunidades atingiram níveis de concretização muito assinaláveis. É um olhar zangado sobre o mundo. Depois, é uma visão anti-sistema, vinda de alguém que ocupa um importante lugar no sistema, pertencendo a um partido que não é, julgo eu, anti-sistema. Vendo bem, a culpa nem é da masculinidade em si, mas do sistema que a adoptou, uma espécie de “mão invisível” que tudo controla e domina. Um sistema com sexo pré-determinado no seu ADN. Sexualidade sistémica, diria. Masculina, por defeito. Depois, a consequência: a ruptura com o sistema e com o poder que dele resulta. E a pergunta natural: para populismo anti-sistema não chega já o CHEGA ou é preciso que os deputados eleitos nas listas do PS também passem a interpretar este papel?

Resumindo, poderia dizer que na relação homem-mulher converge o essencial da ideia de vida (Lebenswelt) e, por isso, não é me parece aceitável reduzi-la a uma mera relação de poder.

V.

OS REVISIONISTAS E OS SEUS AMIGOS

É por estas e por outras que as agendas pública e política andam estranhas, com enchentes diárias de notícias alarmistas e de desperdício informativo nos telejornais, no prime time, que não há algeroz que as escoe. Sim, mas também com as notícias que referi no início deste Manifesto. O imenso lamaçal do revisionismo histórico, levado às costas sobretudo pelos talibãs do politicamente correcto e pelos profissionais de causas fracturantes, que aparecem sempre de mãos dadas com os cruzados radicais da ideologia de género, os que substituíram a luta de classes pela luta de género, num mortal combate corpo-a-corpo entre homens e mulheres, produzirá resultados políticos catastróficos se não fizermos, nós, a cidadania, um combate frontal, num tempo em que a gravidade do presente está a dificultar o olhar sobre o futuro. Na verdade, o novo progressismo  dá cada vez mais o melhor de si, propondo uma limpeza ético-política da nossa história, que nem em D. Afonso Henriques acabará. Viu-se já um debate inflamado sobre heróis da guerra colonial, falando de uns (fracturantes) e esquecendo outros (não fracturantes), trazendo ao topo da agenda o tema do ódio racial – mate-se o homem branco colonialista, assassino e racista que existe em cada um de nós, desde tempos imemoriais -, num país que convivia tranquilo com o bom e o mau da sua história passada e que já estava a confiar os juízos sobre o passado aos historiadores, em espelho mais ou menos fiel e desapaixonado, onde cada um de nós serenamente poderia sempre rever, com a objectividade possível, o nosso passado colectivo. Vê-se pretensos académicos a catarem o racismo nas obras-primas da literatura portuguesa (onde se vislumbra “uma descomunal admiração pela brancura” ou crises “de melancolia negra”) e outros que, inadvertidamente (por enquanto), mas por imperativo de coerência lógica, acabarão por mandar derrubar esse pecaminoso (mas não por causa do Canto IX) cântico aos descobrimentos que tem por nome “Os Lusíadas”, esses colonialistas. Vê-se gente a considerar o colonialismo mais mortífero do que o antissemitismo germânico, numa lúgubre contagem de milhões de mortos com a lente da doutrina pós-colonial, quando a querer fazer contagens bem podia mais facilmente somar as vítimas das duas grandes guerras e constatar que nelas houve (na Europa, do Atlântico aos Urais) dezenas e dezenas de milhões de mortos, pondo, assim, o holocausto no devido lugar, em vez de, desta forma, o branquear, ainda por cima invocando vizinhança académica com a Vice-Presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Vê-se gente que quanto mais fala de colonialismo menos informação nos dá sobre a actual cartografia política, económica e social da África descolonizada ou da América Latina de hoje. Vê-se gente a questionar se os portugueses foram vítimas ou cúmplices da polícia política do regime do Estado Novo, sem cuidar de não generalizar, logo no título, o que indicia uma imensa ignorância e simplismo – desrespeitando os tantos que activamente ou em silêncio sofrido execraram este regime e, em geral, a generalidade dos portugueses. Vê-se gente – que ainda por cima representa, ou representava, a Nação – a clamar por um sofisticado corte epistemológico, com sangue e mortos, que, diz, não teria acontecido, mas que, na verdade, aconteceu, e da melhor maneira possível, ao passarmos, sem violência digna de registo histórico, de uma ditadura para um regime livre e democrático e para o fim da guerra colonial. Vê-se gente a clamar pela destruição de monumentos históricos em nome da sua visão clínica da história e da sua epistemologia caseira, até que numa progressão lógica do seu avançado pensamento acabe por abjurar “Os Lusiadas”, qual cântico ao pecado original que estaria na origem do colonialismo. Vê-se gente a usar o ofício de jornalista para promover e publicar aterradoras agendas doutrinárias inquisitoriais mais próprias de um procurador-geral ao estilo de Vichinsky e de uma visão policial da linguagem publicamente expressa do que de um jornalismo são, imparcial, objectivo e neutral, que deixa que seja o cidadão a avaliar a informação e não a encharcá-lo com idiossincrasias e agendas militantes pouco jornalísticas, fazendo da profissão um autêntico púlpito militante de causas idiossincráticas. Sim, infelizmente, vê-se isto e muito mais.

VI.

FALAR NEUTRO E INCLUSIVO 
- Um exercício de divagação
em torno da novilíngua, 
para desanuviar

EU ESCREVO MUITO, como se vê. Se calhar até escrevo demais. E ainda por cima em português, não em inglês, o que seria mais aceitável. Por isso, já comecei os treinos de escrita – embora timidamente, porque ainda pouco convencido da justeza da causa – em neutro e inclusivo. Nada fácil. Sobretudo escrever em neutro, porque gosto sempre de tomar posição. Não necessariamente pelo masculino ou pelo feminino. Pode até ser pelo neutro. Mas confesso que depois de tantos anos a escrever – e em várias línguas – tenho tido muitas dificuldades em escrever nesta novilíngua, apesar de estar habituado ao grego, ao latim ou ao alemão. Todas estas línguas têm o neutro. Por exemplo, derdiedas, em alemão, onde, inexplicavelmente, até a palavra cavalo é neutra: das Pferd. Mas em português, em italiano, em espanhol ou em francês não há neutro, julgo eu, embora haja sobrevivências latinas. Por exemplo, curriculum, em português. É neutro, em latim, mas não inclusivo (felizmente): o meu (não o teu) curriculum. Em português passou a ser masculino. Mesmo para mulheres. No inglês é mais fácil: o artigo é só um, nem masculino nem feminino nem neutro (nem plural): “the”. Que distância (e não só temporal) vai entre o inglês e o grego antigo! Três a um… para o grego. Mas se, mesmo com curriculum neutro (convertido, agora, em masculino), falar e escrever em neutro é difícil, já em inclusivo é mais fácil, apesar de tantas vezes termos de praticar e de exibir o exclusivo. Por exemplo, em textos originais, sobretudo em dissertações e em teses (o que é cada vez mais raro). Mesmo assim, a dificuldade é menor. Agora, o neutro é quase impossível. À primeira, escrever em neutro significa não tomar posição. Nem os jornalistas o praticam, apesar de a neutralidade (e a imparcialidade) estar inscrita como princípio em quase todos os códigos éticos. Escrever sobre um assunto é também refutar certas posições que se considera erradas, ou não? Não se deve ser neutro, na minha humilde opinião. Mesmo onde ainda sobrevive, na língua, o neutro. Andar de bissetriz em bissetriz é que não. Isso é o que fazem os temperadinhos do Camilo Castelo Branco. Eu creio que escrever e falar neutro equivale a não escolher e, logo, a nada fazer. Tenho, por isso, tido muitas dificuldades em escrever correcto, pela primeira vez na minha vida, depois de passar décadas a escrever como profissional. Até dificuldades de natureza psicológica. Logo eu, que gosto tanto de fazer coisas e, sim, de tomar posição. Mesmo em textos simples e formais. Um toque pessoal fica sempre bem, não é? Mas agora imaginem o que é escrever um poema ou pintar um quadro… em neutro e inclusivo. E nem sei o que pensará disto um compositor, mesmo que já tenha sido inventada uma notação musical neutra e inclusiva. Aqui fica-se mesmo literalmente perdido. Sem palavras.  E sem cores. E sem notas. Fica-se neutro, parado. Nem inclusivo nem exclusivo. E, chegado aqui, é assim que, paradoxalmente, me sinto: neutro. Para começar, o que já não é mau.

1.

Não sei quem inventou esta novilíngua, não, mas a verdade é que os manuais já proliferam por aí. Manuais de bom comportamento linguístico. E até leis (por exemplo, a lei 4/2018, de 09.02, art. 4). A escola primária (e até o liceu ou mesmo a universidade) já não chega. Agora é aprendizagem ao longo da vida. E têm razão, tal como Sócrates, o grego, a tinha: só sabia que nada sabia. Neutralidade  primordial. Por isso, declaro que hei-de estudar todos os manuais (num gesto inclusivo), por exemplo, o Manual de Linguagem Inclusiva do Conselho Económico Económico e Social ou o Guia da CCIG,  para ver se aprendo a escrever sem erros semiológicos. Bem li e estudei o da Universidade de Manchester, mas soube-me a pouco. E confesso que até me assustou. O problema é que – e tenho bem consciência disso -, falando e escrevendo assim, para além da dificuldade (e até da canseira) de estar sempre a ser neutro e inclusivo, gastando toda a minha criatividade e todo o latim, o grego ou o alemão nisso, o risco é nunca tomar qualquer decisão, porque decidir é escolher e escolher é excluir, ou seja, é não ser neutro nem inclusivo.  Mas a verdade é que as musas são nove, correndo-se sempre o risco de excluir alguma delas. Eu temo sempre esquecer-me de Terpsicore ou de Melpomene em algum dos meus poemas, excluindo-as, como Musas, e arriscando-me a ser atingido por um raio lançado a partir do Monte Parnaso ou do Olimpo. Se já é tão difícil escrever um poema, mais difícil será escreve-los na novilíngua. Uma nova tendência poética ainda pouco conhecida. Ouvir dizer “a poética do JAS é neutra e inclusiva” talvez fosse lindo. Mas temo que isso não venha a acontecer. Porque se já era difícil escrever, por exemplo, poemas meta-semânticos, esta nova escola é, por certo, muito mais difícil e complexa. Digamos, é meta difícil de alcançar, vista a escassez de recursos que se prenuncia. Naquela, pelo menos, sempre há um Fosco Maraini, com quem aprender. O “Lonfo” tanto pode ser neutro e inclusivo, como parcial e exclusivo. Será aquilo que um poeta quiser. Até porque “Il lonfo non vaterca né gluisce e molto raramente barigatta”. Não há, pois, na poesia meta-semântica problemas de maior com o neutro e o inclusivo. O “Lonfo” só aparentemente é masculino. Na verdade, ele “non vaterca né gluisce”. Mas, agora, com esta nova tendência, aprendo com quem? Só se for com a senhora deputada do PS Isabel Moreira. Se calhar, uma língua meta-semântica poderia ser a solução. Depois, pintar também de forma neutra e inclusiva é tremendo. Digo eu, que pinto. As cores, ah, as cores, como faço a ser neutro e inclusivo? Pintando sempre com todas as cores, sejam elas apropriadas ou não? E, depois, quem me compra os quadros? Os que gostam de azul, mas não de verde nem de vermelho (e são imensos)? Os que gostam de cores quentes, mas não suportam cores frias, nem sequer em Agosto? A preto e branco ainda vá que não vá: fifty/fifty. Mas, sendo neutro, não será inclusivo porque deixa de fora todas as (outras) cores. Bom, sempre poderei ficar conhecido como o pintor do preto e branco, ou do branco e preto (não sei se aqui a ordem dos factores será arbitrária), embora não saiba se estas duas palavras são eticamente aceitáveis na estética e na semiótica da novilíngua. Creio que não e, então, desabafando, perguntar-me-ei: “Ora bolas, como faço?”.

2.

O PROBLEMA já nem será conseguir escolher, num mais restrito léxico, as palavras (ou as cores) e com elas montar um belo texto (ou um belo quadro) e dizer alguma coisa que valha a pena. Não, a tarefa principal será escolher e usar (dicionário, pincel e manual à mão) palavras (e cores) neutras e inclusivas. Isto é que interessa. E, já agora, dizer e pintar o menos possível, porque quanto mais dizes e pintas mais escolhes e, logo, excluis. Que diabo, não se pode estar sempre a incluir. Até porque cansa. Incluir, cansa mesmo, apesar de o velho Marx dos “Grundrisse” ter dito, acerca da realidade, que o concreto é a síntese de múltiplas determinações (não confundir, todavia, com múltiplas e com terminações). Ou seja, o concreto até parece, pois, ser, pelo menos tendencialmente, inclusivo, na visão do grande intelectual da luta de classes. Oxímoro? Talvez. Mas disse. E o concreto também é neutro? Suponho que não, porque, caso contrário, não haveria línguas com o masculino, o feminino e o neutro, como o alemão. Mas, mesmo assim, vem-me a dúvida. E o pior é que nem lhe, ao Marx, posso perguntar, porque já se finou há muito tempo. E que pensar do velho Jean-Paul Sarte, que dizia, na peça “Huis Clos”: “l’enfer c’est les autres”? Inclusivo, ele, o pai do existencialismo? Não, claro que não… e muito menos neutro. Bom, se calhar era a influência de uma guerra que matou dezenas de milhões de pessoas. Ali, ou matavas ou morrias. Ali, o inferno eram mesmo os outros, os que estavam do outro lado das trincheiras. A inclusividade e a neutralidade não eram possíveis. Mas eram outros tempos. Agora, o que é preciso é ser neutro e inclusivo, precisamente para não haver guerras, a não ser, claro, contra os que não são neutros e inclusivos. Oh, é mesmo isso. Uma nova teoria da paz. Vou perguntar ao Johan Galtung se esta teoria é possível e desejável. Uma teoria da paz neutra e inclusiva, mas que não dê tréguas aos que não são neutros nem inclusivos? Hum…

3.

Seja como for, se com esse monumento à simplicidade e à estupidez, diga-se em abono da verdade, que é o acordo ortográfico, nunca se consegue escrever um texto sem misturar a velha ortografia com a nova (e é por isso que eu nem tento, e aqui não sou militante neutro nem inclusivo, sou mesmo contra), mesmo andando com manuais de neo-ortografia no bolso, imagine-se o que será construir um texto com algum nexo e sentido totalmente neutro e inclusivo. Porque ou me preocupo em ser neutro e inclusivo ou me preocupo em dizer e fazer alguma coisa de jeito, sem pôr travões às quatro rodas na linguagem. As duas coisas ao mesmo tempo é difícil, a não ser para os profissionais do semioticamente correcto. Mas, mesmo esses, duvido que consigam. E até duvido que consigam vender um livro que seja. Artigos, vá que não vá, sempre podem publicá-los no “Expresso”. Mas é difícil, talvez porque se trate de coisas contraditórias (conjugar liberdade com manuais). Não sei, porque ainda não consegui entrar nos meandros desta novilíngua, na sua deontologia, na sua semântica, mas sobretudo na sua especialidade estética. Até porque, certamente, será preciso muito estudo, muito treino e sobretudo longas investigações sobre obras exclusivas e parciais (se é que este é o verdadeiro antónimo de neutro) para sabermos como não deveremos falar e escrever. Talvez estudando, por exemplo, o Eça de Queiroz (já comecei com “Os Maias”). O certo é que a literatura terá de recomeçar, voltar a ter fraldas para chegar a um vestuário neutro e inclusivo. Sobretudo no inverno, que faz frio. Bom, mas confesso que, infelizmente, talvez já não tenha idade para recomeçar tudo de novo. Tentarei, mas, se não conseguir, que é o mais provável (a idade não perdoa), continuarei com o fato e as gravatas que tenho vestido até aqui, sem receio de ser execrado pelos sacerdotes e sacerdotisas do semioticamente correcto, ficando de consciência tranquila porque, ao menos, e embora cheio de dúvidas, comprei e estudei todos os manuais da novilíngua (num generoso gesto inclusivo, como disse). Tudo bem, mas talvez seja também uma questão de liberdade e não só de dificuldade. Poder-se ser não-neutro, apesar de se tentar ser o máximo inclusivo. E se calhar é mesmo por isso que não me entendo com esta novilíngua. Aqui sou mesmo muito sensível. A verdade é que, durante o “Estado Novo”, me treinei a resistir aos manuais do politicamente integrado, inclusivo e neutro e a lutar por uma linguagem livre, tendo sido apanhado, pelo menos duas vezes, por não ter usado linguagem neutra, que era o que os do regime queriam. E assim continuarei – acabo de decidir, quase já no fim do Manifesto -, seguindo o conselho da Anne Rosencher em “L’Express” (1-7.04.2021, p. 8), que referia uma espécie de “espiral do silêncio” (E. Noelle-Neumann) que já está a tomar conta dos franceses, tendendo estes cada vez mais a silenciar-se com receio de se verem socialmente execrados por um uso menos politicamente correcto da linguagem. E o caso acontece logo com o francês, uma língua bué difícil, sofisticada e até um pouco exclusiva e “chic”, confessemos (as senhoras, antigamente, eram consideradas prendadas quando “parlaient français e jouaient le piano”). Mas, citando Marcel Gauchet, ia mesmo mais longe: falava de uma espécie de denegação linguística dos franceses. O seu conselho foi, pois, o de que “il faut se donner un peu de courage”, antes que a “espiral do silêncio” se instale e a novilíngua tome conta definitivamente de nós, nos entre pela boca adentro e acabe por nos sufocar a alma e o verbo. Que assim não seja. Amen.

REFERÊNCIAS

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WHITMAN, W. (2009) Democratic Vistas. Iowa: University of Iowa Press. JAS@04-2023

LavandariaRec

Poesia-Pintura

SINESTESIA

Entre Riscos
e Palavras
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Voo da Magnólia”-
91x115, em papel de algodão
Hahnemühle. JAS, 2021.
Abril de 2023.
JasMag210321_Pub - cópia

“O Voo da Magnólia”. JAS, 2021. 91×115, em papel de algodão Hahnemühle. 

POEMA – “SINESTESIA – Entre Riscos e Palavras”

RISCOS E CORES
Saem espontâneos
De minhas mãos,
Voando
Para dentro
Da estrofe,
Celebração
Da beleza
Em tempo de
Primavera.

BELEZA
Que se expande
Em poemas
Filhos
De um encontro
Fatal
Que fez nascer
O poeta.

DEPOIS, AH,
Depois,
Mais encontros
Em verso
E versos
Em cor
E traços
E ruas
Ou praças
E amor
Em corpos
Desenhados
À procura
Do céu,
Movidos
Pelo desejo.

CRESCEM
Juntos,
Os riscos
E as palavras,
Entrelaçados
Em fugazes
Diálogos
Atirados
Às nuvens.

DEPOIS,VOAM
No espaço
Onde o poema
Pousa
Em equilíbrio
Precário
Sobre um ténue
Risco
Desenhado
No azul
Que se esfuma,
Lento,
No fio do
Horizonte.

PERDERAM-SE
No real?
Encontram-se
Nas nuvens,
Espaço
Em forma
De elipse
E cores
Em fuga
Que deslizam
Para o infinito.

PINTOR, SALTO
Para cima
De um risco
E nele voo
Colado ao azul
Do céu
Com o poeta,
Esse outro
De mim.

E PERDEMO-NOS
Nas nuvens,
Enlaçados
Em raios
De Luz
À procura
De formas
Que projectem
O olhar
E a inquietude
Da alma.

SÃO ENCONTROS
Imaginados
Que nos elevam
Ao céu
Da inspiração
Para recriar
O que deles
Nos sobrar.

AH, SE TUDO FOSSE
Harmonia
Cá em baixo
No vale
Da nossa vida
Não haveria
Dor
Nem riscos
Nem cor
Nem poeta
Ou pintor
Não haveria
Palavras
Nem resgate
De almas
Em constante
Sobressalto.­­­­..

JasMag210321_PubRec