A POLÍTICA NA ERA DO ALGORITMO
As Três Fontes do Poder
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 04-2023
I.
VEM AÍ A PÓS-DEMOCRACIA?
COMEÇO POR DIZER que quando usamos conceitos como pós-democracia ou pós-representação a referência é sempre a democracia representativa. Os teóricos têm de estar sempre a inovar, mesmo que isso represente alguma violência ao real. Mas a criatividade teórica, para ser eficaz, precisa de conceitos estimulantes e desafiadores. Ora estes dois conceitos parece indicarem que a democracia representativa está velha, se consumou, se gastou. O que não é verdade, porque ela é muito jovem, se a medida for o tempo histórico, a longa duração. E até poderemos afirmar, sem risco de errar, que a democracia representativa até pode ser considerada uma utopia difícil ou mesmo impossível de alcançar.
Sufrágio Universal e Democracia
Seja como for, a democracia representativa, que só existe desde que haja sufrágio universal, é, de facto, bastante jovem, pois ela não se identifica stricto sensu com sistema representativo, que é bem anterior, não sendo compatível com regimes censitários. O que tínhamos, pois, até ao sufrágio universal era simplesmente um sistema representativo em regime censitário. A sua história anda de braço dado com a assunção do sufrágio universal e, claro, com o sistema representativo. E é bastante jovem porque, neste sentido, a sua plena concretização histórica só se verificou verdadeiramente, passados três turbulentos e dramáticos decénios (1914-1945), na segunda metade do século XX, uma vez que, como disse, só da combinação do sistema representativo com o sufrágio universal poderá resultar a democracia representativa, sendo também certo que a pedra-de-toque que a distingue de todas as outras formas de democracia é o mandato não-imperativo. Ou seja, o mandato não revogável (sobre o conceito de representação veja-se o excelente texto de Diogo Pires Aurélio – Aurélio, 2009).
A Democracia como Utopia
DEPOIS, em boa verdade, ela configura-se como uma utopia se considerarmos que o voto, neste regime, tem poder constituinte, é individual, é secreto, é universal e convoca aquilo a que Kant chamou imperativo categórico, ou seja, que cada voto seja determinado pela ideia de que dele possa resultar uma legislação universal com poder impositivo. O que significa que este voto singular, exprimindo uma profunda convicção (fundamentada e argumentada), traz com ele uma responsabilidade absoluta, como se o mundo viesse a ser regulado por ele. Um acto singular com pretensões de validade universal e, consequentemente, associado ao princípio da responsabilidade. É neste princípio, difícil de atingir na sua plenitude, que se funda a democracia e que lhe dá um valor que nenhum outro regime consegue exibir. Um princípio que exige plena maturidade da cidadania. Através do princípio do mandato não imperativo o representante assume uma dimensão universal porque passa a ser titular do principal órgão de soberania, o Parlamento, esse mesmo que legisla segundo o mesmo princípio de universalidade, ou seja, de acordo com o interesse geral (da nação) e não de acordo com o interesse particular, seu, de classe ou regional. E nem sequer de acordo com o círculo eleitoral que o elege (1).
O Espaço Intermédio
Mas a verdade é que tudo está a mudar e, mantendo-se a matriz representativa originária, para a qual ainda ninguém conseguiu encontrar substituto válido, algo mudou no sistema representativo. E o que mudou reside, para além do sufrágio universal, na relação entre os representantes e os representados, aquilo a que alguém chamou “espaço intermédio” (Tagliagambe, 2009), aquele espaço que se situa entre a cidadania e o poder, entre a rua e o palácio, entre o acto do voto e o exercício do poder que resulta daquela relação e que se processa precisamente neste espaço. (2). Hoje tudo se sabe (a verdade e a mentira) e até é possível fazer política e comunicar para além daqueles que são os canais tradicionais de intermediação da política e da comunicação, partidos e media. Antes, não. E até era proibido (logo no século XVIII) informar acerca do que se passava no Parlamento. Ou seja, a participação política deixou de se reduzir ao (já tão reduzido, nos regimes censitários) acto de votar para designar a representação e legitimar o mandato. A ideia de participação cresce à medida que este “espaço intermédio” também cresce, ou melhor, à medida que ele vai sendo ocupado pelas plataformas de comunicação (social).
Desintermediação
e Democracia Deliberativa
Isto aconteceu sobretudo com o aparecimento da televisão e, nos nossos dias, viria a aprofundar-se com a emergência da rede, das TICs e das redes sociais, ou seja, com a possibilidade de aceder ao espaço público deliberativo sem interferência dos chamados gatekeepers, dos mediadores, seja da comunicação seja da política. E foi por isso que o discurso sobre a pós-democracia (representativa) ganhou uma forte acuidade, lá onde o processo de construção do consenso e o processo de formação da decisão passaram a correr também noutros canais que não os tradicionais. Numa palavra, a política e a comunicação já estão desintermediadas, tendo terminado o monopólio da intermediação pelos tradicionais meios, media e partidos (Biancalana, 2020). Por isso, alguns consideram que estamos perante uma pós-democracia (representativa) porque a representação deixou de ser a fórmula exclusiva para o exercício do poder; outros, como eu, consideram que esta nova fase pode ser favorável, não à pós-democracia ou à pós-representação, mas ao relançamento da democracia representativa se ela evoluir para uma democracia deliberativa, uma forma superior de democracia representativa que, em parte, vem resolver o problema do decisionismo e da fractura entre representantes e representados. Ou seja, uma forma de inclusão da cidadania na política e na democracia através de uma qualificação do consenso e do processo decisional, da metabolização política, informal e formal (não simplesmente instrumental), pelos representantes, dos fluxos que correm na esfera pública deliberativa, onde hoje a cidadania pode intervir directamente sem mediações e gatekeeping. Numa democracia deliberativa a representação política mantém-se com as características de sempre, mas incorpora esse “espaço intermédio” que nos primeiros tempos do sistema representativo estava completamente vazio (após o voto, de resto, censitário, não era permitido conhecer o que se passava no palácio do poder, sendo crime a sua divulgação). Diria mais. Se, de facto, a política convencional desconhecer esta mudança radical estará condenada porque surgirão (como já acontece) forças que ocuparão este “espaço intermédio” contra a própria democracia representativa. O que já aconteceu, como se sabe: a intervenção da Cambridge Analytica no Brexit e nas Presidenciais de 2016 nos USA. A partidocracia e a mediocracia, ambas endogâmicas, representam esta cegueira relativamente ao que mudou radicalmente desde a criação do sistema representativo: da ocultação, legalmente sancionada, do exercício do poder (no século XVIII) passou-se à transparência total quer do exercício do poder quer dos seus próprios bastidores, devido à evolução dos meios de comunicação, ao sufrágio universal, ao progresso constitucional e, agora, ao novo espaço público deliberativo, com a network society e suas componentes orgânicas, ou à novíssima algorithmic society.
Participação e Representação
Vem este discurso a propósito de um pequeno ensaio de Michele Sorice, director do Centro de Investigação da Universidade Luiss (“Centre for Conflict and Participation Studies), de Roma, publicado como introdução ao volume da revista Culture e Studi del Sociale sobre “Conflito e partecipazione democratica nella società digitale” (Sorice, 2020). O ensaio tem precisamente como título “A participação política no tempo da pós-democracia” e o autor utiliza uma linguagem conceptual muito eficaz para abordar estas novas tendências em curso.
Michele Sorice vai ao tema directamente e chama a atenção para o esvaziamento da ideia de conflito na competição política, para a diferença entre representação e participação, a redução da política a “governance”, a excessiva fragmentação da intervenção política na era digital (hiperfragmentação) e a consequente despolitização que tem vindo a ser associada à “network society”, o “imperialismo das plataformas”, reforçado pelo desenvolvimento do chamado “capitalismo digital”, designado como “capitalismo das plataformas”, e ainda para o conflito entre “os velhos espaços públicos da sociedade de massas” e a “hiperfragmentação” induzida pela “network society”. Sorice cita Colin Crouch, em Post-Democracy After the Crises (Crouch, 2020), numa passagem em que este autor afirma que se tornou necessário rever as relações das redes sociais com a democracia e a pós-democracia, visto o uso que as grandes plataformas fazem dos perfis de milhões e milhões de utilizadores para fins de construção de um novo poder global precisamente pós-democrático e alternativo às elites tradicionais. E associa-lhes também as hiperlideranças, os populismos, os processos de despolitização e a chamada pós-esfera pública, induzida pela “platformization”. E chama ainda a atenção para a deslocação do poder das oligarquias ideológicas da política tradicional para as elites tecnocráticas, plenamente funcionais às dinâmicas de comercialização da cidadania, a sua valorização mais como valor de troca do que como valor de uso. O que diz tudo. O autor liga o processo de plataformização à pós-democracia e à chamada pós-esfera pública. E é neste quadro, que, segundo ele, se coloca a crise de legitimidade dos partidos, a transformação dos movimentos sociais, a emergência de novas formas de agregação, como, por exemplo, os movimentos urbanos, o desenvolvimento da cidadania activa e a afirmação de novas formas de acção social directa. Crise dos partidos e emergência das plataformas de mobilização – é nesta encruzilhada que irrompem estes fluxos sociais que podem mudar o panorama da democracia representativa. E é aqui que bate o ponto, segundo o autor, ou seja, na necessidade de mobilização da ideia de conflito (por oposição ao processo de anestesia política em curso) para uma revitalização da participação e da política. Esta ideia permite superar, por um lado, a simples ideia de representação, mas também o simples direito generalizado a tomar a palavra como paradoxal anestesiante político de massas, ou seja, a participação de todos como redução do poder da cidadania, enquanto ela pode induzir a ilusão de um autogoverno que, afinal, não decorre automaticamente deste tipo de participação. Uma ilusão, sim, porque esta participação é “hiperfragmentada” e não se encontra ancorada em novas formas culturais alternativas, em conflito com as formas hegemónicas, e não está inscrita, diria, com Gramsci, num “bloco histórico” capaz de se constituir como alternativa hegemónica. Mesmo assim, considero que este “poder diluído” (mas não hiperdiluído) da cidadania é superior ao exclusivo poder de delegação (regular e cíclico), em eleições, na representação, que tende a remeter a participação política para uma esfera residual, considerada até como potencialmente subversiva, e no establishment mediático, enquanto detentor do poder de representação social. Além disso, Sorice vê na relação do neoliberalismo com esta hiperfragmentação da cidadania uma tendência fatal porque se trata de uma participação ilusória e politicamente inócua, ou seja, não conflitual nem alternativa.
O Capitalismo da Vigilância
Sem dúvida que não é possível ignorar as “dinâmicas de poder presentes no ecossistema mediático nem as lógicas económicas e os mecanismos proprietários que regulam a actividade dos próprios social media”, como diz Sorice. E para ilustrar este último aspecto bastaria ao autor referir o livro da Shoshana Zuboff, “The Age of Surveillance Capitalism” (Zuboff, 2019), uma análise impiedosa do poder das grandes plataformas e da forma como o obtêm, evidenciando assim a desigualdade estrutural entre plataforma e utente, traduzida no uso abusivo de dados pessoais para efeitos de tratamento dos big data e de previsão dos comportamentos para fins comerciais e de poder financeiro, sim, mas também políticos. O autor sintetiza, e muito bem, esta questão, traduzida no capitalismo e no imperialismo digital desenvolvido no processo de plataformização das sociedades, entendendo por isso o domínio das grandes plataformas, como, por exemplo, a Google ou o Facebook, sobre as sociedades.
Conceitos
Esta linha crítica já tinha sido avançada pelo autor no livro que coordenei sobre “Política e democracia na era digital” (Santos, 2020), no capítulo de sua autoria e de Emiliana de Blasio (“O partido-plataforma entre despolitização e novas formas de participação: que possibilidades para a esquerda na Europa?”, pp. 71-101). E aqui, neste ensaio, insiste em chamar a atenção para reais tendências que estão a ocorrer na sociedade em rede e para os seus perigos, desvirtuando aquelas que eram, no início, reconhecidas como virtudes da novas tecnologias da libertação. Mas usa também um corpo conceptual que importa integrar na análise política dos actuais fenómenos políticos, sendo certo que a academia teima em não sair do velho sistema conceptual. Com efeito, Sorice dá palco a conceitos como “eco-sistemas comunicativos digitais”, “hiperliderança”, hiperfragmentação”, diferença entre participação e representação e entre “governance” e “e-government”, “platformization”, capitalismo e imperialismo digital, pós-democracia, pós-representação, “capitalismo das plataformas”, “network society”, participação sem conflito, participação conflitual, “comercialização da cidadania”, “pós-esfera pública”. Conceitos interessantes e fundamentais para aceder à política e à comunicação tal como hoje se configuram. E é claro que acompanho o autor nesta análise crítica.
Diria, todavia, que falta agora ver o lado positivo da emergência da rede, das TIC e das redes sociais (social media) seja do ponto de vista da comunicação seja do ponto de vista da política.
Quem ler o livro da Shoshana Zuboff, já referido, ficará muito bem elucidado sobre o processo de acumulação do novo capitalismo digital, ou “capitalismo da vigilância”, e também sobre o seu poder, sobre a passagem das tecnologias da liberdade a instrumentos de acumulação capitalística. Processo a que o autor também alude. E também é verdade que o acesso universal ao espaço público, a participação de todos, a integração política virtual podem tender a anular o conflito e a anestesiar a verdadeira participação política, fragmentando excessivamente uma intervenção sem novas formas culturais alternativas, sem uma cartografia cognitiva e com a ilusão de participação pelo simples direito de acesso à nova esfera pública. E ainda a favorecer hiperlideranças de inspiração populista ancoradas na relação directa e carismática com o povo da rede. Sim, tudo isto pode acontecer e, em parte, já está a acontecer, até porque a política clássica tem vindo a evoluir cada vez mais para uma lógica endogâmica que a afasta da cidadania e da realidade.
O Novo Mundo Digital
Mas também é verdade que a rede, em geral, as TIC e as redes sociais abriram canais de acesso e de participação absolutamente novos e praticamente livres de gatekeeping, essa forma de controlo do acesso ao espaço público. Acesso em dois sentidos: a) para obter informação em múltiplos suportes e em diversificadas fontes; b) e para intervir livremente no processo comunicacional e no processo político acedendo sem mediadores ao espaço público deliberativo. Estes canais de acesso valorizaram extremamente o espaço público deliberativo e deram origem a formas de organização autónomas do poder partidário, as plataformas digitais temáticas, como, por exemplo, moveon.org ou meetup, em condições de dar voz ao conflito e de mobilizar a cidadania. O exemplo da plataforma moveon.org nos USA é muito significativo. Por exemplo, apoiando Bernie Sanders, Barack Obama ou o Obamacare.
O que quero significar é que aos media tradicionais se veio juntar uma nova e poderosa realidade, a que chamo “espaço intermédio”, que permite um mais aberto e livre acesso ao espaço público na dupla dimensão da recepção de conteúdos e da produção de conteúdos, dando origem a um novo tipo de cidadania: a do prosumer. Este facto veio reforçar a importância do “espaço intermédio” enquanto espaço público deliberativo – por onde corre a relação entre representados e representantes – e tornar possível designadamente um revigoramento da democracia representativa e uma maior accountability quer do poder político quer do poder mediático, seu irmão gémeo. Na verdade, a mudança é profunda porquanto não só representa o alargamento do espaço público e o fim do gatekeeping, mas também porque representa uma mudança qualitativa na relação comunicacional com a evolução da “mass communication” para “mass self-communication” e com a transformação do cidadão em prosumer, em receptor e produtor de comunicação e política, dando assim efectividade política ao conceito criado por Alvin Tofler, em The Third Wave, em 1980 (Tofler, 1980; e Castells, 2007).
Não vejo, todavia, esta expansão gigantesca do acesso ao espaço público deliberativo nos dois sentidos acima referidos sem um enquadramento, uma cartografia cognitiva, uma bússola que conduza a cidadania num certo sentido. Neste caso, mais do que falar em novas formas de mediação, falaria em hegemonia, em conquista ético-política da esfera reticular e em capacidade de polarização da cidadania por novas formas culturais alternativas. Na verdade, do que se trata, com o novo espaço público deliberativo e com o novo tipo de acesso, é simplesmente da sua enorme expansão e de uma lógica de funcionamento totalmente distinta da que era dominada pelos senhores do gatekeeping comunicacional, mas também político. Nada mais. Mas que já é muito, lá isso é. E é por isso que concordo com Michele Sorice na ideia de que são necessárias novas formas culturais, que podem ser interpretadas e accionadas pelos partidos políticos desde que sejam capazes de responder, não transformisticamente, aos novos desafios. O fim dos monopólios que sirva, ao menos, para isso. E não creio que o chamado “capitalismo da vigilância” consiga controlar totalmente este novo mundo, tal como nem os chineses o conseguem controlar, apesar de, esses sim, procurarem hegemonizá-lo através das ideologias do nacionalismo e do consumismo, sem deixarem, todavia, de usar todos os instrumentos de controlo disponíveis, que são muitos e diversificados (Santos, 2017).
Não creio, pois, que seja boa ou viável a proposta pós-democrática ou pós-representativa porque, na verdade, os fundamentos e as funcionalidades da representação se mantêm. Pelo contrário, a democracia deliberativa, mantendo intacta a representação, reabre os canais de acesso à informação e à política e rompe com o monopólio e o exclusivismo da representação porque dão à cidadania a possibilidade de entrar em cena no palco da deliberação pública, influenciando não só a o processo de construção do consenso, mas também a própria produção da decisão. A política deliberativa enriquece a democracia representativa, mas não a substitui nem a diminui. Por um lado, ampliando o leque de possibilidades de empoderamento político da cidadania e, por outro, revigorando a própria representação e os partidos políticos, enquanto portadores de visões do mundo capazes de agregar a cidadania de acordo com as pertenças de cada um e com cartografias cognitivas que lhe sirvam de bússola. As plataformas temáticas têm o poder de se constituir como canais complementares de acesso ao espaço público deliberativo e deste modo influenciar decisivamente a política e a representação. A rede é um “espaço intermédio” incontornável e as redes sociais não são mais do que derivados orgânicos desta realidade. E por isso não é possível falar delas como se fala de media, tendo estrutura e lógica diferentes dos media convencionais. E também por isso não creio que seja útil abordá-las com a dicotomia tornada famosa por Umberto Eco: a dos apocalípticos e dos integrados.
II.
O DOCUMENTÁRIO DA NETFLIX
SOBRE “O DILEMA DAS REDES SOCIAIS”
Muito ilustrativo, mas unilateral, a respeito do que estou a dizer é o documentário da NETFLIX “O Dilema das Redes Sociais”, uma impiedosa análise crítica deste novo mundo a que me refiro. Unilateral sobretudo porque todo o enfoque consiste numa crítica apocalíptica, devastadora, não mostrando o que de positivo as redes sociais (a rede em geral) trouxeram à cidadania. E fez-me lembrar, de facto, os debates sobre apocalípticos e integrados a propósito da comunicação de massas e das indústrias culturais. E, naturalmente, o próprio livro de Umberto Eco, “Apocalittici e Integrati” (Eco, 1999), saído em 1964. A crítica devastadora à nascente cultura de massas, sobretudo à televisão, pelos apocalípticos, em geral identificados com as elites da alta cultura e maioritariamente de esquerda. E também me fez lembrar, claro, o grito contra o fim da sociabilidade com a irrupção deste tertium que passou a polarizar toda a atenção das salas, públicas ou privadas, ignorando a dimensão física do convívio a favor da dimensão simulacral. O mesmo que agora o documentário discute com dramatismo a propósito do domínio viciante das plataformas móveis sobre os adolescentes e sobre nós próprios, quando substituímos a conviviabilidade pelo fecho no universo digital próprio, de cada um. A força magnética das plataformas móveis, mais poderosa e individualizada do que o magnetismo da televisão. Já publiquei, em duas edições, um livro sobre esta questão, a propósito da televisão: “Homo Zappiens. O feitiço da televisão” (Santos, 2019). As críticas, muitas delas, eram e são justas. A sua diabolização, pelo contrário, é errada e irrealista. Afinal, a televisão continuou e permitiu o acesso à informação e ao entretenimento a milhões de pessoas e assumiu uma dimensão universal. Aponta-se o início dos anos noventa do século passado, com a Guerra do Golfo, como o início da era da televisão universal, com a CNN. Agora, depois do seu aparecimento como meio de comunicação já radicado socialmente, nos anos cinquenta, a televisão continua, com os seus defeitos e as suas virtudes, mas está a passar por um processo onde a sua dominância está a ser posta em causa pela emergência recente das redes sociais, com todo o cortejo de apocalípticos a voltar de novo à boca de cena, a gritar o caos e o fim do mundo.
Prosumer
Ao ver o Documentário (precisamente na NETFLIX, no meu IMac, não na televisão nem no cinema) fiquei até com a sensação de que este alinha claramente no combate radical que o poder convencional (mediático e político) está a promover contra as redes sociais e a rede em geral (um dos personagens diz que estava viciado em e-mails). E não me chega que no fim venham dar conselhos de bom comportamento na relação com a rede, até porque logo são acompanhados de conselhos militantes em defesa do abandono radical das redes sociais. Insinua-se a ideia errada de que a rede tem por detrás uma intencionalidade malévola, quando, afinal, ela é mais um espaço livre onde cada um pode, ao contrário da televisão, intervir em duas direcções: como receptor e como emissor, ou seja, como prosumer. O nível de controlo é aqui muito baixo e algumas vezes até é desejável, como no combate à desinformação (que já aconteceu, por exemplo, nas eleições para o Parlamento Europeu, em 2019, através de um protocolo assinado entre as grandes plataformas, Google, Facebook, Twitter, Youtube e a Comissão Europeia, e com resultados assinaláveis).
Crítica ou Apocalipse?
Bem sei que há nelas um potencial viciante, que é um imenso mundo onde tudo acontece, um gigantesco “espaço intermédio”, que são uma revolução na comunicação e que se torna necessário metabolizar racionalmente o seu uso, que os administradores dispõem de um potencial de vigilância enorme e que o poderão usar de forma abusiva (como já aconteceu com a Cambridge Analytica). Sei tudo isto. E sei ainda mais, agora que me apercebo do impacto mundial do fenómeno (viciante) do Tik Tok. E que estes elementos críticos são para levar a sério pelos poderes nacionais e supranacionais e por cada um, individualmente. E também sei que esta é uma revolução civilizacional como talvez nunca tenha existido na história da humanidade, pela sua rapidez e, sobretudo, por atingir a dimensão da inteligência e da comunicação com uma profundidade nunca vista. Sei isto e, neste aspecto, o documentário é útil porque alerta para os perigos. Mas é excessivo na crítica. Diria mesmo excessivamente militante e demolidor, com os operadores destas redes (que participaram no documentário) alcandorados à posição de filósofos do caos e do apocalipse, mais até do que da distopia a que se referem. Apetece-me dizer: a dependência nasceu com as redes sociais? Antes só conhecíamos a virtude?
Antes das Redes Sociais
Muitas coisas devem ser esclarecidas porque contrariam a posição de fundo do documentário, a começar pela militância dos intervenientes e do estratega do documentário. No fim, até se passou das redes sociais e das fake news para os perigos da inteligência artificial, em geral. Que são reais, como se compreende, mas algo desviantes, neste contexto. Falou-se excessivamente de dinheiro e de negócio, como se estes não fossem legítimos e estas multinacionais fossem as primeiras a existir no mundo globalizado. Leiam o excelente livro da Naomi Klein, No Logo, e logo verão o que já existia (e existe) antes das redes sociais e das grandes plataformas digitais. E falou-se também da educação dos próprios filhos, ensinados a estar longe das redes sociais, por eles, que, pelos vistos, as criaram e administraram. Não, não gostei porque mais me pareceram defensores militantes do poder convencional, assustados com o poder que as redes sociais podem dar e já estão a dar à cidadania. Depois, o tabloidismo desbragado da violência nas ruas, imputada implicitamente às redes sociais, como se não tivesse havido antes destas, e em pleno século XX, no arco de 30 anos, duas guerras mundiais que mataram dezenas de milhões de pessoas.
Os Filósofos do Apocalipse
Estes ex-funcionários das redes sociais surgem aqui como filósofos, psicólogos, políticos, sociólogos mais do que como técnicos, operadores, engenheiros e gestores das redes sociais a explicar-nos que vem aí o caos e o apocalipse. Só faltou mesmo dizer que boa era a ordem exclusiva do poder mediático e do poder das organizações mediadoras da política. Temo que o artigo alucinado de Miguel Sousa Tavares (“Desculpem-me se volto ao mesmo”), publicado no “Expresso” de 03.10.2020, sobre as redes sociais tenha sido agravado pelo visionamento deste documentário. Documentário por documentário, achei muito mais interessante o da jornalista do “The Observer”, Carole Cadwalladr, sobre “O papel do Facebook no Brexit e a ameaça à democracia” (2019) e a Cambridge Analytica, a que correspondera um ensaio seu e de Emma Graham-Harrison sobre a mesma matéria publicado pelo “The Guardian” (17.03.2018).
Mas vamos mais directamente ao assunto. Até há quem lhes chame tecnologias da liberdade. Isto lê-se nos livros de Castells, o grande sociólogo catalão (que foi Ministro do Governo de Pedro Sánchez), que tem desenvolvido abundante investigação sobre esta matéria. E lê-se no excelente ensaio de Jack Linchuan Qiu, investigador da Annenberg School for Communication, da Universidade da Califórnia do Sul e cofundador do “Grupo Electrónico de Investigação em Internet na China”, sobre “Internet na China: Tecnologias de liberdade numa sociedade estatista”, incluído no livro de Castells (Ed.) sobre “La Sociedad Red: Una Visión Global” (Castells, 2011: 137-167). A ele me refiro abundantemente no Ensaio que publiquei no número 17/2017 da Revista ResPublica (“A Emergência da Rede na Política. Os Casos Italiano e Chinês” – Santos, 2017: 51-78). O documentário não vê esta parte, a da liberdade, a que está confiada à cidadania, o processo de desintermediação da comunicação e da política, o livre acesso ao espaço público, o fim da exclusividade editorial e programática dos agentes orgânicos do poder mediático e do poder político, o fim do seu monopólio de “gatekeeping” sobre o espaço público. E depois não vê que o cidadão pode, também ele, protagonizar-se na Net, intervir no espaço público sem pedir licença aos “gatekeepers” de sempre (conhecemo-los bem, os “Donos de Toda esta Informação”), a maior parte das vezes descaradamente política, económica e ideologicamente alinhados. Sim, os nossos hábitos de acesso à rede são registados e analisados pelo algoritmo que depois torna possível vender-nos como consumidores de certos produtos, simbólicos ou não simbólicos. Sim, são os nossos hábitos, mas, no fim, só compramos se quisermos. E, pergunto, não somos também vendidos como consumidores enquanto espectadores das televisões? Bem sei que agora a comunicação de massas tem outra característica diferente porque se tornou “mass self-communication”, “comunicação individualizada de massas”, sendo possível devolver propostas de consumo em linha com as nossas preferências pessoais dominantes. É verdade, mas mantém-se a possibilidade de recusa em amplo espectro. O marketing 4.0 deve ser banido, por lei? Aliás, todo o marketing deverá ser banido, por nos instrumentalizar? Antes das redes sociais o mundo era perfeito? Segundo Miguel Sousa Tavares parece que sim.
Contra o Novo “Capitalismo da Vigilância”
Parece que este Documentário foi feito para combater o chamado “Capitalismo da Vigilância”, protagonizado pelos gigantes das plataformas digitais, Google, Facebook, Instagram, Twitter, Youtube, etc., mais do que para entender o que realmente é a rede e o que são as redes sociais. Na verdade, do que se trata, com a rede, é de um mundo digital onde se vive, se comunica e se produz. Mas este mundo não é alternativo ao mundo real. É complementar e dá oportunidades de que os cidadãos antes não dispunham. Quando a televisão apareceu e se impôs na política muitos diziam que, assim, a política não passaria de espectáculo enganador. É verdade, o palco televisivo permite encenações e representações que equivalem ao teatro e ao cinema. Mas também é verdade que levou a política a milhões, que permite ao mais humilde e pouco cultivado cidadão escolher o representante com base nos mesmos mecanismos cognitivos de escolha que usa na sua vida quotidiana (“olhando para o seu rosto, a este político eu não compraria um carro em segunda mão”), democratizou a informação e personalizou a política. E é aqui que o assunto bate com mais força: a rede, inaugurando um processo de desintermediação, permite uma vasta democratização dos processos comunicacionais e políticos. Sim, na rede não há uma certificação da comunicação como existe no mundo mediático, existindo apenas protocolos (assinados entre as plataformas e organismos nacionais ou supranacionais, como, por exemplo, a Comissão Europeia) que permitem aos gestores eliminar desinformação e conteúdos intoleráveis à luz das grandes cartas universais de direitos, sendo necessário promover a educação e uma vasta literacia digital, a começar logo na escola, que permitam uma efectiva auto-regulação, normas de uso inteligente da rede, cidadania digital. Mas, digam-me lá, o tabloidismo desbragado que todos os dias passa, em prime time, nas televisões de canal aberto é uma boa alternativa à rede? O “Correio da Manhã”, Jornal e Televisão, é uma boa alternativa à rede? E que dizer da Fox News? Os códigos éticos do jornalismo são praticados pelos próprios que os assinaram? Não, não são. E esta, ao contrário da rede, é informação que se pretende certificada, apesar de contrariar gravemente os próprios códigos éticos que criou e adoptou (e que, de resto, deve adoptar).
Uma Campanha Radical
A campanha dos poderosos contra as redes sociais existe. E continua. Nela entram as elites que estão nos interfaces da comunicação e que até há pouco detinham o poder exclusivo de acesso ao espaço público e ao espaço público deliberativo. O poder de “gatekeeping”. E entram os grandes meios de comunicação, argumentando que só eles podem dar informação certificada e em linha com as normas dos respectivos códigos éticos. E entra a política convencional porque também o seu poder exclusivo de intermediação começa a ser posto em causa. Há grandes plataformas digitais, como, por exemplo, a MoveOn.org, que já mobilizam mais a cidadania do que os partidos tradicionais. E já se fala de (e já existem) partidos-plataforma que partem da rede para a política e não da política para a rede. E este novo mundo já tem um novo conceito de cidadão: prosumer, simultaneamente consumidor e produtor de informação e de política. E, como disse, também a comunicação de massas está a ser substituída pela “comunicação individual de massas” de matriz digital. É uma revolução que o Documentário não regista, mas que torna possível uma enorme viragem civilizacional, cultural, na informação e na política, assim saibamos usar estes poderosos meios. O que, de resto, só acontecerá se os poderes maiores o permitirem, a começar pelo poder político. Mas até aqui a cidadania poderá obrigá-los a proceder em conformidade, usando a rede.
Este documentário inscreve-se na doutrina dos apocalípticos, que, neste caso, e paradoxalmente, são mais integrados do que os outros, os que estão a metabolizar a mudança reconhecendo que esta está inscrita na normal evolução das sociedades, sendo necessário metabolizá-la. E creio mesmo que, tal como aconteceu com a televisão, esta revolução será devidamente metabolizada pela História e conhecerá o destino que formos capazes de construir, agora que a cidadania tem meios para o fazer como nunca teve no passado.
III.
ALGORITMOCRACIA
Este mundo é objecto de um interessante livro de Giovanni Gregorio, investigador na Universidade de Oxford, sobre Digital Constitutionalism in Europe. Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society (Gregorio, 2022). Sociedade algorítmica, um nível acima da chamada digital and network society. O assunto é sério, urgente e interessante. E responde, em parte, às questões que têm sido levantadas, precisamente por Shoshana Zuboff, no seu A Era do Capitalismo da Vigilância (Zuboff, 2020), de resto, citado no livro ou pelo referido documentário da NETFLIX sobre as redes sociais. Vejamos, então, do que se trata.
Novos Conceitos
O autor usa interessantes conceitos para analisar a sociedade algorítmica. Vale a pena referir alguns: “algorithmic society”, “algocracy”, “automated decision-making processes”, “digital environment”, “extraction of value from information”, “online platforms vertically order”, “digital capitalism”, “digital liberalism”, “modulated democracy”, “constitutionalisation of online spaces”, “functional sovereignity” (que substitui a “territorial sovereignity”). Nos conceitos usados adivinha-se toda uma doutrina avançada sobre esta nova realidade, que muitos teimam em não reconhecer e assumir como algo a considerar muito seriamente, sobretudo nos domínios da política, da comunicação e do direito. “Sociedade algorítmica” – parece ser o conceito que vem substituir o de “sociedade digital e em rede” para indicar uma evolução das TICS e uma maior intervenção social da Inteligência Artificial (IA), o crescimento dos “automated decision-making processes”, subtraídos aos normais processos de “accountability”, a montante e a jusante. Tanto que até pode dar origem a uma Algocracy, a um sedutor regime do algoritmo, sucedâneo da Democracy. Bastaria para tal dar forma política à “sociedade algorítmica” e à correspondente automatização generalizada dos processos sociais. Uma utopia que parece ao nosso alcance e a breve prazo. Outro conceito a registar poderá ser o de soberania funcional, uma soberania pós-territorial, global, a das grandes plataformas digitais. Uma soberania diferente, que não reside na nação, no povo ou até nos grandes credores financeiros internacionais, mas nas grandes plataformas digitais privadas. Ou, ainda, a extracção da mais-valia, agora não já do trabalho, como em Marx, pelo prolongamento não remunerado da jornada de trabalho (a famosa mais-valia absoluta), mas pela informação acerca dos perfis dos seus utilizadores/consumidores para futura venda de preditivos comportamentais aos seus novos clientes. Poderia continuar, mas creio que já ficou claro o caminho traçado.
Soberania Funcional
Estamos, pois, a pisar terreno inovador, muito complexo, polémico e vital. O centro do problema reside na relação entre as grandes plataformas digitais, a cidadania e a autoridade pública, estando cada vez mais as grandes plataformas digitais privadas e globais a interpor-se entre a autoridade pública e a cidadania, gerando o que julgo ser já um problema de “constituency”, de uma nova “constituency”, vista a natureza e o alcance destes poderes privados globais. O conceito de soberania funcional é isso mesmo que indicia. Sim, um problema de “constituency” exactamente como acontece no caso das grandes plataformas financeiras, como veremos. Diferente, mas equivalente. Se estas actuam perante os Estados endividados como credores protegidos por contratos que intervêm no processo de gestão financeira dos Estados e até nos seus programas de governo (veja-se, como exemplo, o documento assinado – um autêntico programa de governo – entre o governo português e a troika que nos financiou), reivindicando o direito a verem satisfeitos os termos dos contratos de financiamento público, estas plataformas intervêm directamente sobre a cidadania consumidora de produtos digitais, gerindo um vastíssimo espaço social não regulado ou, então, ainda pouco e mal regulado, podendo mesmo, vista a matéria sobre a qual trabalha, condicionar a génese e a constituição do próprio poder político e, por essa via, condicionar decisivamente os processos de “decision-making” e os programas, a um nível que nunca o velho poder mediático atingiu. A passagem do conceito de mass communication (media) a mass self-communication (rede) dá-nos bem ideia da mudança. Esse terreno foi, por exemplo, e como já referido, explorado e usado para condicionar a eleição de Donald Trump e para favorecer o BREXIT. Ou seja, foi usado politicamente para instalar no poder determinadas soluções políticas. Uma nova “constituency”, portanto, a das plataformas.
As grandes plataformas movem-se num espaço global, interpelam biliões de consumidores, estabelecem códigos não contratualizados com eles e substituem-se aos Estados nacionais numa parte relevante da vida social, assumindo até funções que antes estavam exclusivamente confiadas aos poderes públicos, e têm orçamentos maiores do que muitos Estados nacionais. E, muito importante, intervêm directamente sobre os comportamentos, analisando-os e explorando-os comercial e politicamente. Há como que uma dualidade na relação dos poderes públicos e privados com a cidadania, podendo classificar-se como verdadeira partilha. Só que se uns respondem perante a cidadania, outros exercem directamente uma soberania funcional sem necessidade de prestarem contas, não estando o seu poder dependente de processos electivos. A rede é uma camada que está cada vez mais a sobrepor-se à realidade social e é governada segundo regras que não constam de uma constituição, não estando sujeitas a “accountability”, dispondo de informações sobre os cidadãos considerados individualmente numa dimensão tão profunda que nem os Estados nacionais se lhes podem comparar. Na verdade, esta transferência de funções e poderes para as plataformas digitais não conhece, pois, nenhum tipo de “accountability”, nenhum tipo de controlo, precisamente porque não estão sob a alçada de um constitucionalismo digital e funcional. O constitucionalismo digital constituir-se-ia, assim, como uma reacção aos novos poderes digitais. Reacção que nem é muito difícil de compreender e de aceitar – veja-se, por exemplo, o poder dos vários oligopólios instalados na sociedade portuguesa (operadoras de telecomunicações, redes de distribuição, marcas de combustíveis) e a impotência do cidadão singular perante os ditames destes oligopólios. No caso das plataformas digitais esta dimensão agiganta-se e não só em extensão, mas também em intensidade e em qualidade. Sim, estamos perante algo que precisa de ser regulado para que os seus efeitos positivos não desapareçam dando lugar a uma nova “constituency”, onde os cidadãos se transformam em súbditos e matéria-prima financeiramente explorada.
Da Sociedade Digital e em Rede
à Sociedade Algorítmica
Na verdade, se, no início, as grandes plataformas representavam um incomensurável alargamento de direitos, de liberdade de comunicação e de participação nos processos de decision-making da cidadania, centrando-se a relação entre as plataformas e a cidadania exclusivamente neste plano, disputando poder ao establishment mediático para o devolver à cidadania (na figura dos users), depois haveria de se verificar um desvio de função, passando as plataformas a considerar como clientes, não os users, mas as empresas interessadas na determinação da previsão comportamental, tendo aqueles sido transformados em matéria-prima a ser trabalhada para extracção de mais-valia processada a partir da informação acumulada nos servidores e gerida pelas plataformas digitais junto dos seus novos clientes, que tanto podem ser empresas como forças políticas interessadas em sucesso eleitoral.
Como diz o autor: “Este é um livro sobre direitos e poderes na era digital. É uma tentativa de reformular o papel das democracias constitucionais na sociedade da informação ou em rede, que, nos últimos vinte anos, se transmudou em sociedade algorítmica como atual base societal que apresenta grandes plataformas sociais multinacionais ‘situadas entre os Estados-Nação tradicionais e os indivíduos comuns e o uso de algoritmos e de agentes de inteligência artificial para governar populações’” (Gregorio, 2022: 1). Portanto, forças intermédias dotadas de potentes e sofisticados meios de IA para gestão de processos sociais, económicos e comportamentais.
Estamos, pois, perante uma transição da “sociedade digital e em rede” para a “sociedade algorítmica”, a sociedade governada pelo algoritmo, pela inteligência artificial, através de “automated decision-making processes” que vêm a afectar “os valores constitucionais que sustentam o contrato social”, que superam a lógica de Vestefália, substituindo a soberania territorial por uma nova soberania funcional desterritorializada e global. É assim que funcionam as grandes plataformas digitais. Como diz, no prefácio Oreste Polliccino, “Giovanni explora a transformação de plataformas online de simples atores económicos em poderes privados capazes de competir com autoridades públicas” (Gregorio, 2022: xiii). A geometria do poder já não se resume a uma relação vertical, mas acontece cada vez mais na relação horizontal que “conecta indivíduos com poderes digitais privados que competem com, e muitas vezes prevalecem sobre, poderes públicos na sociedade algorítmica” (Gregorio, 2022: xiv). Assim sendo, “atores não estatais, corporações privadas e instituições supranacionais de governança contribuem para definir as suas regras e códigos de conduta cujo alcance global se sobrepõe à expressão tradicional do poder soberano nacional” (Gregorio, 2022: 311):
“Google, Facebook, Amazon or Apple are paradigmatic examples of digital forces competing with public authorities in the exercise of powers online. Within this framework, constitutional democracies are increasingly marginalised in the algorithmic society”.
Glosando o Michel Foucault de Surveiller et Punir, o autor afirma que “the paradigmatic idea of a public panopticon can be considered one of the primary concerns in the algorithmic society” (2022: 8; 15). É assim que:
“Digital firms are no longer market participants, since they ‘aspire to displace more government roles over time, replacing the logic of territorial sovereignty with functional sovereignty”. “These actors have been already named ‘gatekeepers’ to underline their high degree of control in online spaces. As Mark Zuckerberg stressed, ‘[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company’” (2022: 17; itálicos meus).
Substancialmente, o que acontece é um verdadeiro processo de livre constitucionalização dos espaços online, mas feito por instrumentos de ordenamento privado que moldam o alcance dos direitos e liberdades fundamentais de biliões de pessoas, adotando uma rígida abordagem top-down, sem exigências de accountability. E a pergunta poderia ser a mesma que faz Daniel Innerarity num artigo em “El País” (13.05.2022): não dispondo nós ainda de um dispositivo conceptual que nos instrua sobre a natureza do novo espaço digital e o seu significado democrático, teremos de começar por perguntar quem, neste novo universo digital, “é o soberano: o algoritmo, o consumidor ou o Estado?”.
Do Poder Económico ao Poder Político
Já temos que chegue. Está, de facto, a emergir uma terceira constituency, depois da dos contribuintes e da dos credores internacionais, que financiam a dívida pública (Streeck, 2013): a das grandes plataformas digitais que paulatinamente vão criando o seu universo societário de acordo com as suas próprias normas, superando o nível económico e atingindo já a dimensão da própria soberania (territorial): a soberania funcional. Basta pensar, como disse, na sua intervenção na eleição de Trump ou no Brexit. Se antes se podiam considerar verdadeiramente tecnologias da libertação relativamente aos poderes públicos instalados e aos poderes que os acompanhavam e reflectiam (o establishment mediático), agora, com a determinação preditiva de comportamentos em larga escala, elas dão lugar a uma intervenção que já supera a mera dimensão económica: “[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company”. Se antes o poder do establishment mediático já era enorme, colocando-se mesmo em directa competição com o poder político (3), agora, as plataformas digitais online representam um enorme upgrade, um poder muito mais forte que deve ser constitucionalmente regulado para que “dentro deste modelo, os indivíduos” não se encontrem eles próprios “in a situation which resembles that of a new digital status subjectionis”. Um novo estado de sujeição, súbditos, em vez de cidadãos. Bem pelo contrário, diz, seguindo Vestager, podendo ter as plataformas um enorme impacto no modo como vemos o mundo à nossa volta e tornando-se, por isso, um sério desafio à nossa democracia “so we can’t just leave decisions which affect the future of our democracy to be made in the secrecy of a few corporate boardrooms” (2022: 287). Existindo uma regulação constitucional feita pelos poderes públicos através de correctos procedimentos políticos e institucionais seria possível recuperar o primeiro impulso destas tecnologias, valorizando-as como tecnologias de libertação, sem as impedir de desenvolverem o seu processo de acumulação, mas respeitando os direitos e as garantias individuais, sendo certo que elas fornecem à cidadania, aos utilizadores, fantásticos instrumentos de comunicação, de automobilização, de participação e de conhecimento a custo zero e numa escala de liberdade que nunca os media conseguiram atingir. O que naturalmente tem um custo. Que tem, todavia, de corresponder a um “preço justo”. O autor sublinha bem este aspecto positivo das grandes plataformas, mas considera que se torna necessário reconduzir todo o processo à “constituency” originária, aquela que verdadeiramente é a legítima e com dimensão ontológica porque o segundo fôlego das plataformas as levou por um caminho que pode atingir o coração da democracia e daquilo que ela tem de mais sagrado: a ideia de soberania popular ou de soberania da nação, centradas na autodeterminação individual. O que não é possível é os poderes públicos continuarem a proceder como se esta realidade não existisse, emitindo deliberações que são totalmente desprovidas de valor perante estas novas realidades. Por exemplo, se a ERC para reconhecer uma publicação “on line” lhe aplicar os critérios que, no essencial, são aplicáveis às publicações “on paper”, então, a entidade reguladora revelará (mais uma vez) a sua perfeita inutilidade. Mas este é um simples e minúsculo exemplo. De resto, nem me parece que a ERC esteja muito preocupada em compreender este gigantesco universo com o qual nos estamos já a confrontar em larga escala.
É claro que esta transição para a sociedade algorítmica permite reforçar os argumentos contra as plataformas por parte daqueles que antes tinham o monopólio do acesso ao espaço público e o monopólio da opinião socializada. Por outro lado, de repente, os radicais descobriram um novo imperialismo, a que chamaram capitalismo da vigilância, evidenciando somente o enorme poder das plataformas on line e imputando-lhes o roubo de direitos e de titularidades aos cidadãos. Precisamente aquilo que aqui está em causa e que merece um novo e necessário constitucionalismo digital que possa regular as relações destes poderes quer com os Estados nacionais ou a União Europeia (sobretudo com esta) quer com a cidadania, não se limitando a simples códigos de conduta, como o que já foi (e bem) assinado, a códigos próprios assumidos de forma discricionária ou a disposições legais de aplicação meramente comercial. Como diz Gregorio, só assim será possível usufruir do melhor que as grandes plataformas digitais podem dar, evitando que deslizem para a produção de lucro puro e duro sem regras nem fronteiras ou de poder de natureza política. O que não se deve é ver nelas apenas poder, totalitarismo, capitalismo globalitário e imperialismo digital. História com barbas – o radicalismo reinventa-se sempre para sobreviver, mantendo acesa a velha chama. Como se para ele nada significasse esta enorme possibilidade que o cidadão passou a ter de acesso ao espaço público deliberativo, de se informar sem limites a partir de casa, de se automobilizar sem intermediações, de retirar o monopólio do acesso ao espaço público ao establishment mediático e às respectivas elites (o poder de gatekeeping), de se protagonizar singularmente e de se organizar autonomamente através de plataformas livres que possibilitam uma eficaz conectividade democrática bottom-up, em condições de promover uma autêntica democracia deliberativa. Sim, tudo isto. Mas, sim, também à necessidade de se construir um novo constitucionalismo digital à escala europeia (a que melhor pode dialogar com as poderosas plataformas digitais) que, interpelando com seriedade estas plataformas para promover uma resposta integrada às ameaças e aos riscos, dê maior protagonismo digital aos Estados nacionais e à União, inovando politicamente para melhor consolidar e aprofundar a ainda jovem democracia representativa, hoje seriamente ameaçada por forças que, à esquerda e à direita, vêem na sua matriz liberal originária o inimigo a abater. “The rise of European digital constitutionalism”, diz Gregorio, “can also be read as a reaction against the power of online platforms to set their values on a global scale on a discretionary basis” (2022: 287). Mas reacção como uma “terceira via” entre humanismo digital e capitalismo digital (2022: 284) – uma Europa consciente do papel que a IA pode representar para o progresso e o próprio empoderamento da cidadania, mas também dos riscos de concentração de poder sem controlo, não só do ponto de vista da caça ao lucro desmesurado e desumano, mas também de um poder capaz de condicionar decisivamente o curso da democracia e até mesmo de a destruir. A famosa transição digital tem de contemplar não só os progressos da IA, assumindo um protagonismo que lhe tem faltado e promovendo um fortíssimo investimento nesta área, designadamente na infraestruturação das redes digitais, na construção de próprios motores de busca e na literacia digital, mas terá também de integrar esta revolução num novo paradigma constitucional que a reconduza aos parâmetros e às exigências de uma autêntica democracia deliberativa. A ideia de um constitucionalismo digital europeu é fundamental sobretudo porque estamos a falar de poderes muito fortes e muito sensíveis e num terreno onde tem faltado não só regulação, mas também sensibilidade constitucional para a desenvolver.
IV.
GLOBALIZAÇÃO, CAPITALISMO E DEMOCRACIA
No momento conturbado como o que vivemos à escala global com a pandemia e, agora, com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, com um ameaçador alarme comunicacional mundial, numa crise que representa um sério risco, por um lado, de perigosa escalada de uma guerra convencional, e por outro, de uma guerra económica e financeira global, atingindo todos, faz todo o sentido reflectir sobre a ideia de globalização e os seus efeitos sobre a democracia, ao dar origem àquilo que já designei por segunda constituency, entre a do cidadão que paga impostos (a primeira: “no taxation without representation) e a das plataformas (a terceira, a que já me referi).
Posto isto, começo por dizer que a ideia de globalização corresponde a um processo e só depois, consequentemente, se torna também um posicionamento cognitivo. É por isso que continua a ser muito importante clarificar o conceito de globalização, para melhor compreender os seus efeitos. Segundo alguns, o conceito estará a cair em desuso e com isso talvez a perder clareza conceptual, em parte certamente por ter caído na esfera da linguagem comum, da trivialidade discursiva. O que é verdade. Mas também por algum afunilamento que sofreu ao deslizar progressivamente para a esfera da economia, mais concretamente, confundindo-se com esses mesmos mercados financeiros globais que têm vindo a capturar irremediavelmente a política e a confiscar soberania ao cidadão. No plano financeiro, esta tendência até já conheceu uma sofisticada teorização por parte de um reputado académico alemão, Wolfgang Streeck, em Gekaufte Zeit. Die vertragte Krise des democratischen Kapitalismus (Streeck, 2013), quando fala da emergência de uma segunda constituency ao lado da constituency da cidadania. Ou seja, da “constituency” dos credores. Credores que na maior parte dos casos são, de facto, players globais. Não partilho da visão de Streeck, um regresso à moeda nacional, mas reconheço pertinência e originalidade à sua sugestiva análise. Sobretudo porque ela ajuda a explicar a evolução para a terceira constituency, protagonizada pelas grandes plataformas digitais.
Mas antes de entrar directamente no mérito da questão permitam-me que faça um pequeno excursus e chame a atenção para a obra de Naomi Klein, No Logo, a bíblia dos movimentos anti-globalização, publicada em 1999. E começo, citando, a este propósito, Ulrich Beck, na sua obra sobre “O que é a Globalização”:
«poder-se-ia dizer que aquilo que, para o movimento dos trabalhadores do século XIX, foi a questão de classe, no limiar do século XXI é, para as empresas que agem numa dimensão transnacional, a questão da globalização. Com a diferença essencial, todavia, de que o movimento dos trabalhadores agia como um contra-poder, enquanto as empresas globais até agora agem sem um contra-poder (transnacional)» (Beck, 1999: 13-14; itálico meu).
Estamos a falar de um mundo novo e de uma realidade que configurou o mercado de trabalho à escala mundial. Mais: um mundo que deslocalizou o processo produtivo de tal modo que também deslocalizou o emprego, fazendo recair o ónus, por um lado, sobre os trabalhadores do chamado primeiro mundo e, por outro, sobre os trabalhadores que vivem a sua situação laboral em regime de tipo militar. Estou a falar das famosas EPZ, referidas abundantemente por Naomi Klein. Ou seja: as pessoas que trabalham nas cerca de 1000 EPZ (Export Processing Zones) são (ou eram, há mais de vinte anos) 27 milhões, em todo o mundo e em cerca de setenta países. Indonésia, China, Sri Lanka, México, Filipinas, Nigéria, Coreia do Sul (conhecida nos anos oitenta como a «capital mundial dos ténis para ginástica»), Hong Kong, Guatemala, etc., etc., para outras tantas marcas multinacionais, Nike, Reebok, Burger King, Disney, Levi’s, Wall-Mart, Champion, General Motors, Shell, McDonald’s, Coca-Cola, Starbucks, Pepsi-Cola, Microsoft. De resto, algumas destas multinacionais têm PIBs superiores aos de muitos Estados. Entre os cem melhores sistemas económicos do mundo 49 são países e 51 são empresas multinacionais (Klein, 2001).
Globalização
Vejamos, então, este conceito-chave. Na verdade, a globalização não é propriamente uma doutrina ou uma teoria a partir da qual possamos compreender o mundo, como se se tratasse de uma alavanca cognitiva arquimediana. A globalização é, sim, antes de mais, um processo que está aí e perante o qual temos de nos posicionar, agindo material e intelectualmente. A globalização é, antes de mais, a coisa anterior à teoria. Assunto diferente é o que diz respeito à lógica globalitária ou à mundividência globalitária, ou seja, por um lado, à dinâmica que está inscrita nela, por outro, ao modo como, a partir dela, olhamos para a realidade. Estas, sim, surgem como visões que tendem a impor comportamentos e chaves de leitura do mundo contemporâneo. Mas, no essencial, a ideia de globalização tem sido associada sobretudo à dimensão financeira. Esta dimensão, sendo global, está de tal modo no interior dos territórios nacionais que, como disse, já se fala de uma nova constituency (precisamente a nível nacional), a dos credores, ao lado da cidadania. Todos sabem do que falo, sobretudo se a explicitar referindo-me aos famosos mercados financeiros internacionais, essa estranha relação que se transformou num fetiche parecido com aquele que Marx identificava no primeiro livro de Das Kapital com a mercadoria, ou seja, um estranho sujeito relacional, mas também sensitivo, com qualidades e sensações humanas, ou, então, referindo-me aos globalitários fundos de pensões ou às famosas agências de rating, sobretudo às três (Moody’s, Standard&Poors e Fitch) que detêm 96% do mercado de notação financeira e que em 2011 exibiram um volume de negócios de cerca de 46 mil milhões de dólares, sendo detidas sobretudo por especuladores financeiros. Falando de globalização, também todos sabem do que falo se me referir à rede, às lógicas e aos processos universais induzidos por ela (para o bem e para o mal), sendo certo que, no plano comunicacional, antes do boom das redes sociais já existia uma televisão global, sobretudo a partir da primeira guerra do Golfo, a CNN, havendo até – imaginem – quem considere que foram os portugueses a promover a primeira globalização, no século XV, na época dos descobrimentos. Se bem me recordo era o que dizia Holland Cotter, do NYT, a propósito da exposição Encompassing the Globe, promovida por Portugal nos Estados Unidos, em 2007: “A little-known fact: A version of the Internet was invented in Portugal 500 years ago by a bunch of sailors with names like Pedro, Vasco and Bartolomeu” (NYT, 29.06.2007). Ou, então, se me referir aos processos migratórios que, sobretudo a partir da presidência de George W. Bush, alastraram como mancha de óleo sobre os territórios nacionais, designadamente da União Europeia, por via marítima, aérea ou terrestre. Ou ainda se me referir, como já fiz, às famosas EPZ, Export Processing Zones, tão bem retratadas por Naomi Klein, em No Logo.
Uma globalização com estes ingredientes suscita certos requisitos críticos. Ou seja, trata-se, sim, de uma certa globalização. A mesma a que nos referimos quando falamos das lógicas neoliberais. E, já agora, também pode ser uma globalização que num certo momento parecia conhecer um único player com força para se impor hegemonicamente no mundo, o Império, de que falavam Michael Hardt e Antonio Negri, os Estados Unidos da América, sobretudo logo após a fracassada tentativa de Gorbatchov de reformar o sistema soviético e o fim do bipolarismo estratégico, político, económico e ideológico. Mas sendo certo que bem depressa se viu que o jogo internacional se estava a tornar bem mais complexo e que a lógica da guerra convencional já estava ultrapassada em grande medida por outras lógicas, sobretudo pela lógica financeira e pela lógica comunicacional. Como, de resto, já se está a verificar nesta crise, onde a dimensão global, do ponto de vista estratégico, comunicacional e económico-financeiro está a sobrepor-se ao real conflito armado convencional e localizado, na Ucrânia.
Cosmopolitismo
NA VERDADE, embora a globalização tenha vindo a conhecer uma lógica sobretudo de tipo globalitário, ela também tem desenvolvimentos num sentido bem mais interessante e progressivo, ou seja, em sentido cosmopolítico. E a polémica em torno da globalização não pode também deixar de reconhecer este sentido preciso. O que se passou, verdadeiramente, foi o seguinte: 1. na modernidade, a lógica comunitária fragmentou-se e deu lugar à lógica societária; 2. esta, por sua vez, expandiu-se e deu lugar a uma lógica cosmopolítica. Ou seja, da comunidade, à sociedade, à cosmopolis. O que, entretanto, aconteceu por via da afirmação e do triunfo do neoliberalismo foi que a lógica cosmopolítica de inspiração iluminista acabou por dar lugar a uma lógica globalitária centrada na financiarização da economia e num mercado financeiro mundial.
Esta expansão – e com estas características – provocou implosões internas e produziu, à maneira hegeliana, um efeito de superação, fragmentando e integrando numa unidade superior. O que aconteceu foi que a extrema expansão do sistema o levou a afastar-se do seu núcleo duro, a lógica comunitária, tornando-se extremamente volátil. Isso implicou que o velho núcleo comunitário se tivesse fragmentado cada vez mais em microcomunidades e que a sua função aglutinadora originária fosse substituída por uma nova função de tipo mais superestrutural e volátil. Na nova cosmopolis, de forma reactiva, tendem, pois, a formar-se microcomunidades resistentes às novas funções globalitárias e superestruturais que acabaram por se impor. Foi esta evolução da cosmopolis que motivou os movimentos antiglobalização de vários matizes e expressões.
O que, com isto, pretendo dizer é que a nova cosmopolis global é favorável ao desenvolvimento de microcomunidades sectoriais, de natureza localista, mas também de natureza ético-política (os movimentos por causas), tendencialmente resistentes às novas funções globalitárias. É que elas pretendem exprimir a estrutura enquanto a nova função é essencialmente de tipo superestrutural. Uma função que inclui, como disse, uma dimensão essencialmente económica, mas sobretudo financeira (globalização), e uma dimensão essencialmente comunicacional cosmopolita ou globalitária, quando ancorada nos colossos – grupos de media e plataformas digitais – da informação mundial.
A função globalitária possui, pois, duas dimensões: a primeira é identificada com a expansão universal de um concentrado poder económico-financeiro; a segunda, com a lógica da comunicação global. A primeira é dominantemente intensiva (as concentrações mundiais de natureza económico-financeira, incluídas as do sector mediático); a segunda é dominantemente extensiva (a expansão universal e capilar da comunicação). Esta função tende a homogeneizar os conteúdos e a tudo transformar em mercadoria. Incluída a própria informação. E para isso contribuem decisivamente as grandes concentrações de poder. A globalização, induzida pela lógica globalitária, nasce assim a partir dos vértices dos poderes económico-financeiro e mediático. Para se afirmar democraticamente, ela deveria, pelo contrário, partir das exigências concretas de vida, da base dos sistemas sociais, como parece já estar a acontecer, em parte, com a expansão da rede, ao serviço do indivíduo singular. De qualquer modo, a rede possui uma virtualidade insurgente que não se verifica nos media tradicionais. Assim não sendo, há que a considerar potencialmente perigosa para as próprias democracias nacionais. Só assim se explica a polémica em torno da globalização. Mesmo no plano da rede e das chamadas tecnologias da libertação aquilo a que também estamos a assistir é a uma excepcional concentração de poder por parte das grandes plataformas, dando lugar àquilo que Shoshana Zuboff chama capitalismo da vigilância e ao seu poder preditivo do comportamento humano vertido, depois, em manipulação comercial e política da cidadania mundial.
Esta tendência está a gerar contestações porque surge como uma imposição unilateral, sem base de legitimação e sem eficazes e legítimos controlos políticos, porque sem referentes políticos equivalentes. O conceito de função globalitária serve assim, apropriadamente, para designar a unificação forçada daquilo que se mantém substancialmente diferente. Outra coisa é a cosmopolis, legítima herdeira do iluminismo progressista. A construção progressiva de uma democracia europeia representa esta herança, já que se funda num movimento ascensional que evolui para uma concreta forma de cosmopolitismo, bem radicado em exigências internas dos próprios Estados nacionais. Ela constitui, assim, exemplo virtuoso de um cosmopolitismo politicamente sustentado, bem diferente, pois, da globalização económico-financeira. O verdadeiro cosmopolitismo é incompatível com o «colonialismo» tendencial das funções globalitárias. Mas, felizmente, parece que começa a emergir um novo cosmopolitismo de natureza reticular muito resistente à natureza impositiva da lógica globalitária, porque orgânico ou funcional a uma dinâmica ascendente da livre expressão das expectativas individuais. Isto, apesar de também ele trazer consigo uma correspondente função globalitária, precisamente a das grandes plataformas e da gestão da informação acerca dos perfis dos utilizadores para efeitos de desenvolvimento de estratégias preditivas do comportamento humano com objectivos comerciais e políticos, oportunamente denunciados pela Zuboff e pela NETFLIX no seu documentário sobre as redes sociais. Duas dimensões presentes na rede, mas onde a componente libertária tem um papel que pode ser decisivo para esse novo cosmopolitismo antiglobalitário e que, por isso, aguarda, também ele, desenvolvimentos virtuosos que contrariem a evolução negativa do controlo mundial da informação pelas plataformas. E aqui cabe, como já vimos, o constitucionalismo digital, regulador e que reconduz o poder das plataformas ao fundamento legitimador da cidadania.
A Crise Adiada
do Capitalismo Democrático
A crise que teve início em 2008 é uma típica crise da globalização: das finanças à economia real, às dívidas soberanas, ao euro, à União Europeia. Insegurança, incerteza, volatilidade, retracção no investimento, desemprego, recessão, instabilidade social e política. Estas palavras traduzem-na bem. A solução passou por uma forte intervenção dos Estados com injecção de dinheiro nas economias, gerando aumentos insustentáveis da dívida pública em muitos países, com as agências de rating a sublinharem a incerteza acerca da capacidade de os países pagarem as suas dívidas. E com o consequente serviço da dívida a atingir níveis incomportáveis pelas brutais subidas de juros que se seguiram às notações das agências, criando-se um problema verdadeiramente novo nos processos críticos.
E é precisamente por estas razões que esta minha incursão no tema da globalização presta atenção às reflexões de Wolfgang Streeck sobre esse modelo que ele designa por “Estado democrático endividado”, (2013: 127-143), ou seja, daquele Estado que se seguiu ao “Estado democrático fiscal” e que passou a apresentar uma dupla e nova constituency: a dos cidadãos e a dos credores, que já enunciei antes. Entro, por isso, agora, directamente neste tema, ou seja, na questão da dívida soberana e suas incidências na estrutura nuclear da democracia representativa e no modelo que, nas últimas décadas, lhe está associado, o modelo social europeu, que, como sabemos, se viria a tornar crucial na crise pandémica e na crise bélica que estamos a viver. Com este modelo, o do Estado endividado, sem dúvida muito sugestivo e, no meu entendimento, muito eficaz, na medida em que gera automaticamente um link entre economia e política, será possível compreender as principais variáveis envolvidas na crise que classifico como crise da globalização (4). Como diz Streeck, na obra já referida:
“Há muitos motivos para considerar que o surgimento do capital financeiro como um segundo povo – um povo do mercado, que rivaliza com o povo do Estado – constitui uma nova fase da relação entre o capitalismo e a democracia na qual o capital deixou de influenciar a política apenas indiretamente – através do investimento ou não em economias nacionais -, e passou a influenciá-la diretamente – através do financiamento ou não do próprio Estado” (2013: 134; itálico meu).
Quem tem prioridade, nesta equação, o povo do mercado ou o povo do Estado? Os credores internacionais ou os cidadãos? Deve-se evitar a “inquietação” dos mercados ou a dos pensionistas e dos cidadãos/clientes do Estado Social/contribuintes fiscais (2013: 137-138)? É por isso que, para responder com eficácia a este dilema, Streeck afirma que “o melhor Estado endividado é um Estado com uma grande coligação, pelo menos na política financeira e fiscal” (2013: 138-139). É que, deste modo, é possível garantir a confiança dos mercados, na medida em que desaparece a alternativa às políticas restritivas e de austeridade, ficando os eleitores impossibilitados de provocar mudanças políticas. Compreendem? Estão a ver bem por que razão muitos queriam o bloco central, em Portugal ou na Espanha? A verdade é que esta solução amputaria a democracia de um instrumento essencial: a possibilidade de escolha em alternativa. Confiscaria poder aos cidadãos. Por outro lado, como diz Streeck, “o facto de a governance internacional ter sido encarregada da supervisão e regulação orçamental de governos nacionais ameaça fazer com que o conflito entre o capitalismo e a democracia seja decidido durante muito tempo, se não para sempre, a favor do primeiro, dada a expropriação dos meios políticos de produção dos Estados” (2013: 144). A posição de Streeck é muito clara: o neoliberalismo tem vindo a impor, sobretudo a partir dos fins dos anos ’70, o triunfo da justiça de mercado sobre a justiça social (5), através da confiscação do poder da cidadania pelo poder dos mercados. O modelo de Streeck centra-se em três momentos essenciais na evolução do Estado: o Estado democrático fiscal, que alimentava o orçamento do Estado através dos impostos, deu origem ao Estado democrático endividado, através da dívida pública, que alimentava os orçamentos sobretudo através do endividamento externo, do recurso aos mercados financeiros internacionais (e não tanto do mercado interno); depois, segundo Streeck, passou-se à fase do Estado de Consolidação, que é o ponto em que nos encontramos. O modelo é assim formulado por Streeck:
“O Estado democrático governado pelos seus cidadãos e, enquanto Estado fiscal, alimentado pelos mesmos, transforma-se no Estado democrático endividado mal a sua subsistência deixa de depender exclusivamente das contribuições dos seus cidadãos para passar a depender, em grande parte, também da confiança dos credores. Ao contrário do povo do Estado fiscal, o povo do mercado do Estado endividado está integrado a nível transnacional. A única ligação que existe entre os membros do povo do mercado e os Estados nacionais é a dos contratos: estão ligados como investidores e não como cidadãos. Os seus direitos perante o Estado não são públicos, mas sim privados: não se baseiam numa constituição, mas no direito civil. Em vez de direitos civis difusos, passíveis de ser alargados do ponto de vista político, os membros do povo do mercado possuem direitos perante o Estado cuja aplicação pode ser exigida em tribunais cíveis e terminar através do cumprimento do contrato. Enquanto credores, não podem eleger outro governo em vez daquele que não lhes agrada; mas podem vender os seus títulos de dívida ou não participar nos leilões de novos títulos de dívida. O juro pago por estes títulos, que reflete o risco estimado pelos investidores de não recuperação total ou parcial dos seus investimentos, constitui a ‘opinião pública’ do povo do mercado – e uma vez que esta é expressa de forma quantificada, é muito mais precisa e legível do que a do povo do Estado. O Estado endividado pode esperar lealdade do seu povo, enquanto dever cívico, enquanto no que diz respeito ao povo do mercado tem de procurar conquistar a sua ‘confiança’, pagando devidamente as suas dívidas e provando que poderá e quererá fazê-lo também no futuro” (2013: 130-131).
Este modelo explica a crise através de uma mudança nas relações entre administração fiscal, cidadão, credor, eleições, mercado e Estado. É um modelo sugestivo e parece ter sido extraído directamente da crise de 2008, designadamente inspirando-se nos casos dos países intervencionados: Grécia, Irlanda e Portugal. É um modelo muito sugestivo, mas continua subsidiário do subsistema económico-financeiro. Nisto não se desvia dos modelos tradicionais de explicação da crise, sendo certo que a sua própria solução, a de Streeck, acaba por afunilar na proposta de reposição das moedas nacionais e na reintrodução do mecanismo da desvalorização. Neste sentido, não me revejo nele.
Com efeito, a perspectiva de Streeck, que vê na União monetária e na União política uma tentativa de coroamento do percurso neoliberal iniciado nos anos setenta, além de errada e, diria mesmo, injusta, resume-se, afinal, ao fim do euro (ou à sua conversão em simples moeda-referência) e à reposição das moedas nacionais para que possa ser repristinado o mecanismo de desvalorização, enquanto único meio que, a seu ver, poderá repor a liberdade e a autonomia nacionais, evitando a confiscação da democracia pelo sistema financeiro internacional, ou seja, pelo capitalismo, em face da tentativa totalizante (ou mesmo totalitária) de construção de um mercado mundial autorregulado e autorregulador, uma espécie de “mão invisível” mundial, para fazer jus aos diletos discípulos de Smith e de Hayek. Como diz o próprio:
“Nas circunstâncias actuais, uma estratégia que aposta numa democracia pós-nacional, na sequência funcionalista do progresso capitalista, não serve senão os interesses dos engenheiros sociais de um capitalismo de mercado global e autorregulador; a crise de 2008 constituiu uma antevisão daquilo que este mercado pode provocar” (Streeck, 2013: 274).
Mas Streeck acaba por citar (favoravelmente) uma interessante resposta de Juergen Habermas relativa ao actual panorama crítico da União no sentido de uma abertura no plano do mercado, mas também de uma evolução política com um nível mais elevado e alargado de integração social: uma “dinâmica capitalista (…) que pode ser descrita como uma interação entre uma abertura forçada em termos funcionais e um fecho integrador do ponto de vista social a um nível cada vez mais alto”. É claro que quem conhece a obra de Habermas sabe que se trata de fazer interagir de forma mais intensa a integração sistémica, no plano económico-financeiro, com a integração social, mas agora num plano pós-nacional (de cidadania e institucional), desencadeando um novo e mais alargado processo de relegitimação e integração social. Esta perspectiva é, no meu entendimento, a única que poderá responder à actual crise europeia. E, na verdade, Habermas, num ensaio publicado em Maio de 2013, na Revista alemã “Blätter für Deutsche und Internationale Politik” (Habermas, 2013), critica exaustivamente a posição de Streeck, acusando-o de querer, contraditoriamente, responder com soluções nacionais a uma crise que está centrada em mercados irreversivelmente globalizados: “não é o reforço democrático de uma união europeia até agora construída só a metade a dever recolocar num equilíbrio democrático a relação tresloucada entre política e mercado” – diz Habermas, criticamente, referindo-se à posição de Streeck. “Wolfgang Streek não se propõe completar a construção europeia, mas sim desmontá-la” – continua; “quer regressar às fortalezas nacionais dos anos sessenta e setenta, com o objectivo de ‘defender e reparar tanto quanto possível os restos daquelas instituições políticas graças às quais talvez se pudesse modificar e substituir a justiça do mercado com a justiça social’. Esta opção de nostálgico fechamento em concha na soberana impotência de nações já arrasadas é surpreendente se considerarmos as transformações epocais dos Estados nacionais que antes tinham os mercados territoriais ainda sob controlo e que, hoje, pelo contrário, estão reduzidos ao papel de autores enfraquecidos e inseridos, por sua vez, nos mercados globalizados” (Habermas, 2013).
A posição de Habermas é conhecida. E aqui parece haver um grande consenso: é preciso encontrar soluções políticas supranacionais para problemas globais. Romper com o desfasamento entre problemas globais e soluções nacionais. Esta é também a posição do neoconservador Fareed Zakaria, no seu famoso “Capitalist Manifesto: Greed is Good”. E a do francês e ex-colaborador de Pierre Mauroy, Jean Peyrelevade: “a política de que temos necessidade para regular a mundialização deve ser, ela própria, mundializada” – (2008: 104; a obra é de 2005, muito anterior à crise de 2008). A posição de Habermas, no plano europeu, aponta, de facto, para um reforço da União política europeia, chegando a propor, por um lado, (a) “uma moldura institucional para uma política europeia fiscal, económica e social comum que pudesse criar as condições necessárias para a possível superação dos limites estruturais de uma união monetária imperfeita”; e, por outro, (b) uma “participação paritária do Parlamento e do Conselho na legislação e uma Comissão que responda a ambas as instituições” (Habermas, 2013).
Os cidadãos, neste processo, desempenhariam um importante papel quer enquanto membros dos Estados nacionais quer enquanto membros da União Europeia. Esta posição, está bem de ver, não confina nem a explicação nem a solução da crise em mecanismos meramente sistémicos (de controlo) ou, mais especificamente, a puros mecanismos de carácter financeiro, ainda por cima centrados numa solução política e financeira nacional, como propõe Streeck. Ela não prescinde da política e da integração social, ou seja, na resolução da crise é imprescindível a intervenção da componente subjectiva das sociedades, seja no plano da cidadania seja no plano institucional. Teoricamente, Habermas considera que o conceito de crise engloba necessariamente uma componente subjectiva (6). De resto, sabemos que a crise de ’29 e a subsequente Grande Depressão não foram corrigidas somente com mecanismos sistémicos e financeiros, mas sim com um relançamento da capacidade política de intervenção do Estado, designadamente com o New Deal. Embora saibamos também que, pelo menos na interpretação de Peyrelevade, “os Estados Unidos chegaram mais cedo que nós a um capitalismo amplamente desintermediado”, graças precisamente à crise de 1929: “O desmoronar da Bolsa causou a falência de centenas de bancos que tinham considerado boa ideia investir nela as poupanças que lhes estavam confiadas e, depois, por ricochete, a ruína de milhões de depositantes”. As estruturas de intermediação falharam e, por isso, acabaram por antecipar o nascimento nos Estados Unidos do capitalismo directo, a entrada em cena no mercado financeiro dos detentores individuais de capital, que está na origem do actual modelo financeiro mundial (2008: 36-37).
De qualquer modo – e não obstante a solução proposta por Streeck, aqui criticada, por errada -, temos, portanto, um primeiro modelo explicativo da crise, o do Estado fiscal que se torna Estado endividado e que, assim, altera profundamente a estrutura de suporte do edifício democrático, transferindo soberania do cidadão para o credor e transformando, deste modo, os mandatos de natureza política em mandatos de natureza financeira. Sabemos bem o que é isso por via da entrada da Troika no nosso País, onde o programa de governo pós-eleições, em Junho de 2011, ficou consignado em memorando de natureza financeira negociado com os credores. Houve eleições, sim, para os representantes, mas o programa de governo dos partidos candidatos ao executivo (PS e PSD) até poderia ter sido exactamente o mesmo memorando, porque seria esse a ser realmente executado.
Este modelo de análise tem a virtude de conjugar conceptualmente política e economia na óptica da tendência de confiscação daquela por esta, lá onde, como muito bem demonstra Peyrelevade (2008), a emergência dos mercados financeiros globalizados leva à confiscação da soberania de um cidadão doravante politicamente impotente perante a força sistémica dos mercados globais, pelo menos enquanto não dispuser de equivalentes alavancas políticas supranacionais com suficiente força para substituir, num plano mais elevado, aquela que foi a tradicional regulação centrada no poder dos velhos Estados nacionais territoriais. Peyrelevade expõe o problema de forma muito interessante e convincente:
“Assim, o cidadão, cuja existência está ligada ao território nacional, é vítima da sua própria esquizofrenia, dado que as suas escolhas, na qualidade de consumidor ou, se for esse o caso, de acionista, alimentam e reforçam um capitalismo mundializado que implica a diminuição da sua própria soberania. (…) Exemplo puro de dissociação individual, o desejo de enriquecimento que têm leva-os a repudiar a sua própria cidadania” (2008: 118; itálico meu).
O que Peyrelevade diz poderia ser transposto para o caso do poder das plataformas digitais e para a relação que se estabeleceu entre elas e os users. Sem tirar nem pôr. E também aqui a solução parece ter de residir na criação de um modelo supranacional de regulação que impeça que os cidadãos se transformem em obedientes, voluntários e dissociados súbditos que abdicam da própria cidadania em troca do acesso ao maravilhoso e libertário mundo das redes sociais.
Greed Is Good
FAREED ZAKARIA tem da crise uma visão optimista. Apesar de tudo, ainda iremos querer, no futuro, mais capitalismo. Mas não centrado no Estado-Nação. Porque a crise não se resolve regressando a uma soberania nacional que já acabou de fazer todo aquele percurso que iniciou com a construção dos Estados nacionais, no início da Modernidade. Na verdade, esta crise é também resultado de uma globalização que não conhece ainda meios (políticos e institucionais) de autorregulação e de governo, tal como ele defende no seu ensaio “A Capitalist Manifesto: Greed is Good” (2009). Diz-nos Zakaria:
“More, the fundamental crisis we face is of globalization itself. We have globalized the economies of nations. Trade, travel and tourism are bringing people together. Technology has created worldwide supply chains, companies and costumers. But our politics remains resolutely national. This tension is at the heart of the many crashes of this era – a mismatch between interconnected economies that are producing global problems but no matching political process that can effect global solutions”.
E esta ideia colhe uma das principais questões que se pode pôr hoje a propósito da própria ideia de crise. O desfasamento entre a dimensão do problema e a dimensão da solução. Ou o desfasamento entre o patamar da crise e o patamar da solução. Em primeiro lugar, é importante perceber como uma crise que surgiu, tal como já foi referido, nos EUA, em 2008, acabou por ser uma crise que afectou ou implicou o mundo inteiro; em segundo lugar, é muito importante aquilo que Zakaria diz quanto ao facto de, apesar de ser uma crise global, apesar das “empresas e dos clientes” serem do mundo inteiro, a resolução política se ter mantido a um nível nacional ou local; ou, então, como, paradoxalmente, o próprio Streeck acaba por propor como solução aquilo que, na realidade, se configura como o problema. Na verdade, parece ser difícil resolver um problema global, e criado por todos, sem ser de uma forma igualmente forte e institucionalmente concertada, mas sobretudo sem ser através de mecanismos adequados, que só podem ser supranacionais. Um problema global exige uma solução global. Mas Zakaria avança mais na sua reflexão sobre esta crise de 2008 no seu todo e toca em pontos fundamentais: a instabilidade como condição inerente ao capitalismo e/ou à evolução, logo, como condição inerente à crise; e a moralidade, ou a falta dela, como possível razão de escolhas que agravam a própria crise. Este último aspecto, mas também aquela dimensão subjectiva da crise, de que fala Habermas no livro Spaetkapitalismus, ficou bem patente na crise de ’29, tanto do lado dos economistas e dos jornalistas (muitos), como do lado dos políticos (que quiseram lavar as mãos deste processo, como se vê claramente na descrição milimétrica que nos oferece Galbraith na obra de 1954 sobre a crise de 1929) ou do lado dos banqueiros, financeiros e especuladores. Zakaria acaba mesmo o seu ensaio com uma frase elucidativa em contexto de crise, ao dizer que “há muitas coisas para resolver, no sistema internacional, nos governos nacionais e nas próprias empresas, mas a maior mudança tem de ser em cada um de nós”.
Em boa verdade, e sem colocar a questão na ótica de uma ruptura radical do sistema, “do que se trata, de facto, é de uma profunda mudança de paradigma em todas as esferas da sociedade” (Santos, 2013). Ou seja, a crise de 2008 só é compreensível no quadro de uma mudança de paradigmas. Incluído o civilizacional e o cultural. E não só o político, o jurídico, o económico, o tecnológico ou o comunicacional. Uma compreensão de fundo capaz de nos ajudar a fazer face à crise, já que ela está inscrita no nosso próprio processo evolutivo. Capaz, pois, de nos ajudar a sobreviver no interior dela, não a olhando de forma negativa. Bem pelo contrário, olhando para ela de forma positiva. Na verdade, quando se fala em “crise de crescimento” ou em “resultados do sucesso”, como faz Fareed Zakaria no seu ensaio, é disso mesmo que se fala: da crise que nos faz crescer. Outra coisa é a ruptura radical, para a qual aponta a teoria marxista da crise e de que são exemplo a ruptura com o Ancien Regime e, em parte, a Revolução Soviética, a famosa “revolução contra o capital” (de Marx), na expressão de Antonio Gramsci. Só que esta acabaria por ser reabsorvida setenta anos depois, em 1989.
Diz ele, Zakaria (7) (mas sobre o assunto também Galbraith reflecte no seu livro “ The Culture of Contentment”), que os bons tempos levam sempre a uma espécie de auto-satisfação que privilegia o bem-estar e o lucro imediatos. E também que, de facto, se estava num período em que se verificara um enorme crescimento: num longo período de estabilidade política, a economia global cresceu exponencialmente, duplicando entre 1999 e 2008 e tendo, entre 2006 e 2007, 124 países crescido ao ritmo de 4% ao ano, ou mais; a inflação baixou para níveis jamais vistos; as recessões passaram a ser controladas muito mais rapidamente do que outrora; milhões de pessoas foram retiradas da pobreza; deu-se a revolução da informação e da Internet; emergiram novas potências económicas, como a China, gerando novas interdependências financeiras com fortes consequências no crédito ao consumo (designadamente nos USA; veja-se os índices apontados por Peyrelevade, 2008: 74-75). Uma visão optimista da crise, a de Zakaria, ainda que a exigir uma resposta capaz de a pilotar no sentido do progresso, em particular através da criação de mecanismos globais que respondam a problemas que já são também eles globais.
V.
CONCLUSÃO
Na verdade, tudo isto viria a gerar efeitos em cadeia para os quais não havia mecanismos de gestão e de controlo. Zakaria usa a metáfora do carro sofisticado que já ninguém sabe conduzir. Daqui, o desastre ou, melhor, a crise. Daqui também que ainda não se tenham verificado respostas eficazes para uma crise que acabou por se revelar como, certamente, crise financeira, mas também da democracia, da globalização e mesmo da ética. Auto-satisfação, como resultado do crescimento, que produziu lassidão, sofreguidão e processos especulativos em escala alargada? Certamente. Mas o que está em jogo é provavelmente muito mais do que isto. O que está em jogo são os vários paradigmas que enquadram o nosso funcionamento societário e que, em grande parte, são subsidiários da revolução moderna que se iniciou no século XVIII ou mesmo com o próprio Renascimento e as revoluções científicas que se lhe seguiram. A questão que se põe a propósito deste ensaio de Zakaria é a de saber se será verdade que “daqui por alguns anos, por estranho que isso possa parecer, nós podemos todos achar que estamos ávidos de (mais) capitalismo, não de menos”. Zakaria está certamente a pensar que, tal como a democracia, o capitalismo é o pior dos sistemas, à excepção de todos os outros. Não acontecerá, pois, na sua óptica, uma derrocada do capitalismo como fora profetizado pela teoria marxista. Como sabemos, o que viria a acontecer seria precisamente o contrário, a derrocada do socialismo de Estado e a sua reabsorção histórica. Mas de que capitalismo estamos a falar, do capitalismo total, financeiro, accionista, daquele que se separou da economia real, passando, depois, a dirigi-la de acordo com as suas próprias performances em matéria de lucro? Daquele “capitalismo sem projecto” (Patrick Artus) que se identifica exclusivamente com o lucro e, se possível, com o lucro imediato, constante e progressivo (Peyrelevade, 2008: 90)? Do capitalismo da vigilância, de que fala a Soshana Zuboff, que gera essa terceira “constituency” e que transforma o cidadão em súbdito voluntário mediante a troca entre acesso ao espaço digital e a cedência de dados biográficos para a determinação de modelos preditivos de comportamento de natureza económica, mas também de natureza política, com a consequência de, com isso, se dissociar, abdicar da sua soberania individual, necessária à legitimação do poder político?
Se, com a globalização, for este o capitalismo que acabará por se impor, então, o que acontecerá será a sua libertação dos vínculos da política, do Estado, do trabalho e, finalmente, da própria cidadania, que acabará substituída pela soberania dos accionistas e dos credores, das grandes plataformas financeiras e digitais, numa palavra por uma soberania dominantemente funcional,. que prescinde da velha soberania territorial. O que parece que hoje já temos é uma convivência ainda um pouco indefinida entre três “constituencies”: a do cidadão, a dos credores e a das plataformas digitais. Esta situação nebulosa não poderá manter-se, devendo ser clarificada, pelo menos, por um lado, através do reforço da resposta financeira própria às exigências das dívidas soberanas e, por outro, através da criação de um constitucionalismo digital que regule o novo mundo digital. Mas isto só pode ser feito através de uma política que não esteja capturada por aqueles poderes, mas esteja centrada na própria cidadania.
NOTAS
1.Veja-se sobre a natureza do mandato o Art. 7, Secção III, Cap. I, Título III, da Constituição francesa de 1791.
2. Sobre o “espaço intermédio” veja também “A Política, o Digital e a Democracia Deliberativa”, capítulo de minha autoria, em Camponez, Ferreira e Rodríguez-Diaz, Estudos do Agendamento, Covillhã, Labcom, 2020, pp. 137-167.
3. Veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 259-264).
4. Isto não significa que partilhe da perspectiva de Streeck, que assume, nesta obra, uma posição completamente diferente da que advogo, ou seja, a necessidade de um aprofundamento político da estrutura institucional da União Europeia e de uma constituição para a União.
5. Veja-se, a este propósito, a posição do Prémio Nobel Friedrich von Hayek, e pai dos neoliberais, sobre a desvalorização do próprio conceito de justiça social (Hayek, 1978), que ele próprio afirma nem saber o que é.
6. Sobre o conceito de crise. Olhemos para a origem da palavra crise. A palavra crise vem do grego: krísis (-eôs): 1. separação, discórdia, disputa; 2. Escolha; 3. decisão, êxito, sucesso; decisão: a) decisão judiciária; pôr um processo a alguém, juízo, condenação; b) tribunal, direito, castigo; c) crítica estética. São estes os significados que encontramos num bom dicionário de grego antigo. A palavra (um substantivo) vem do verbo krínô e tem a ver com: separar, dividir, decidir, julgar, condenar. Poder-se-ia dizer que, no sentido etimológico, há uma ideia de rotura, de separação, de decisão com reais efeitos, mas também de intervenção da vontade, da razão e da consciência (podendo implicar juízos de valor, como veremos). E é na decisão que separa, com intervenção da razão, da consciência e da vontade, ou seja, na intervenção do elemento subjectivo, que assentará a ideia de Crise, muito ligada à ideia de revolução. Num importante livro de 1973, Legitimationsprobleme im Spaetkapitalismus (Habermas, 1973), Juergen Habermas analisa o conceito de crise nas suas várias dimensões, desde a dimensão simplesmente médica, onde a crise é provocada por algo que é exterior ao paciente, algo objectivo sobre o qual ele não pode influir, por agentes externos. E, todavia, essa crise não é separável da visão interna de quem a ela está sujeito. Ou seja: com as crises, nós ligamos a ideia de uma potência objectiva que subtrai a um sujeito uma parte da soberania que lhe é normalmente garantida. E, todavia, no seu entendimento, a ideia de crise só é compreensível se incluir a percepção dela por parte dos agentes a ela sujeitos, mesmo que não tenham poder para interferir nela enquanto provocada por agentes externos. Com efeito, segundo Habermas, a ideia de crise na dramaturgia clássica – de Aristóteles a Hegel – já implica a presença de sujeitos, de protagonistas. A crise, na verdade, só se configura como tal quando, de algum modo, os que a ela estão sujeitos têm dela consciência, mesmo que a sofram sem terem capacidade para nela interferir. Esta variável subjectiva torna-se ainda mais decisiva no plano histórico-social. Trata-se aqui da relação entre consciência-vontade e estados de facto. Pode não haver ligação, mas estes elementos têm de estar presentes na Crise e na própria ideia de Crise. Habermas: “Die Krise ist nicht von der Innenansicht dessen zu loesen, der ihr ausgeliefert ist” (Habermas, 1973: 9). “Mit Krisen verbinden wir die Vorstellung einer objektiven Gewalt, die einem Subjekt ein Stueck Souveraenitaet entzieht, die ihm normalerweise zusteht” (1973: 10).
7. Sigo aqui a interpretação de Santos (2013: 43-45).
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