Artigo

O INFAUSTO DESTINO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA

Por João de Almeida Santos

Politica1

“S/Título”. Jas. 03-2021.

MUITAS FORMAÇÕES POLÍTICAS com um historial já longo e muitos políticos experimentados ainda não se deram conta das profundas transformações que alteraram as condições de exercício da política, preferindo continuar a agir no interior de um paradigma que já está ultrapassado pela realidade. Um exemplo, para começar. O caso do Brasil e uma técnica inovadora de golpe de Estado – Lawfare. Usando o caso da Lava Jato, a incriminação de Lula, o impeachment de Dilma Rousseff, a condenação e a prisão de Lula chegou-se à eleição de Jair Bolsonaro, um ex-capitão do exército e deputado federal, protagonista político pouco qualificado, como Presidente da República. A isto chama-se Lawfare (sobre este tema ver artigo de 24.11.2020 – https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/24/artigo-23/?fbclid=IwAR24ZzCltCC0Qba-QPBJO9kvhVGz_kzyLjFU4EkzZZRhjeekhUwqCexg38s). Objectivo: remover o PT do Palácio do Planalto, instalar lá um ex-militar e uma multidão de militares (são milhares no poder político e na Administração) e promover os interesses dos que o lá colocaram (incluídas as Igrejas evangélicas).

Um desenho claríssimo com todos os ingredientes de um golpe longamente preparado e executado. Maquiavel e Curzio Malaparte não poderiam imaginar esta sofisticada técnica de conquista e conservação do poder. O novo golpe de Estado baseia-se no uso instrumental do direito para fins políticos no interior de um Estado de direito e de uma democracia representativa pluralista. As botas cardadas (ou a arma branca de que falava Maquiavel) são passado e já não são precisas a não ser em situações absolutamente extremas de mudança radical de regime. O caso brasileiro é bem ilustrativo da nova técnica, agora que são públicas as manobras de bastidor do poder judicial, com Sérgio Moro à cabeça, reveladas pelo Intercept Brasil e conhecido como Vaza Jato. Mas ficou ainda mais evidente depois de o processo de Lula da Silva ter sido anulado e Sérgio Moro acusado de parcialidade. Tudo clarinho: Lawfare. Tangentopoli foi o modelo, de resto, reivindicado por Moro. Baltazar Garzón também tentou, mas foi afastado. E muitas outras operações desta natureza andam por aí, ao serviço da política, numa aliança fatal entre o poder judicial e os media. Nesta técnica os tribunais limitam-se a ratificar os julgamentos “populares” promovidos por esta santa aliança, para usar a expressão usada por Alain Minc, no seu excelente L’ivresse Democratique (Paris,  Gallimard, 1985) e em Au Nom de la Loi (Paris, Gallimard, 1998). Mas não esqueço que os militares ainda estão politicamente no activo em certos países, como, por exemplo, em Myanmar.

FICÇÃO DEMOCRÁTICA

ISTO SERIA SUFICENTE para exigir das forças políticas responsáveis uma fortíssima atenção e medidas muito rigorosas porque vem alterar radicalmente a saudável competição política e o tranquilo exercício do poder, desde o momento em que a criminalização da política passou a espreitar a cada esquina: impedir candidaturas, derrubar governos e presidentes. Se, depois, juntarmos a isto a capacidade espantosa de as grandes plataformas digitais desenvolverem modelos preditivos, conhecendo e desenhando minuciosamente os perfis individuais dos cidadãos/eleitores e antecipando comportamentos políticos futuros, então a componente electiva dos sistemas políticos pode tornar-se pura ficção, inútil e enganadora. Regressaremos, assim, a uma época de absoluta instrumentalização da política e à sua redução a simples exercício do poder. A política identificar-se-á simplesmente com poder, puro e duro. Os efeitos sobre a política democrática serão devastadores e entraremos em grave regressão política, com um novo tipo de soft power a tudo gerir baseado numa legitimidade puramente artificial e em mandatos totalmente fungíveis em função dos interesses fortes, ocultos e poderosos. É este o problema central e o risco que as democracias representativas correm, sobretudo quando são governadas por aprendizes de feiticeiro cuja única ambição é o conforto financeiro e um fugaz tempo de fama e glória que a história seguramente não registará.

MUDANÇAS PROFUNDAS

Mas a mudança é ainda mais profunda e traduz-se, por exemplo, no novo tipo de cidadania que está a emergir: a cidadania das plataformas móveis, que está em crescimento acelerado, sobrepondo-se à crise das ideologias clássicas, das grandes narrativas, e dando lugar a um cidadão de múltiplas pertenças orgânicas, civilizacionais ou culturais que, na área política, já não decide exclusivamente com base no velho “sentimento de pertença” a um partido e a uma ideologia. Acresce que este cidadão tem acesso directo, não mediado, ao espaço público. Ou seja, a organicidade política perdeu muita da sua importância para a decisão e para a mobilização política. O inorgânico está a tomar conta da dialéctica política. Na verdade, está-se a verificar uma progressiva divergência entre a cidadania e o establishment político, em grande parte devido ao desencontro ente o modelo de gestão política e a identidade da nova cidadania.

Depois, a personalização da política, em termos de autoria da proposta política como forma de ultrapassar a fraqueza da componente orgânica, está a aprofundar-se relativamente ao período da chamada “democracia do público”, precisamente pela centralidade que as novas vias da comunicação digital conquistaram também no processo político. Alguns falam de hiperpersonalização e ela corresponde ao esgotamento da mediação orgânica da política.

Mas também há que evidenciar a fortíssima irrupção política directa dos poderes corporativos no espaço público deliberativo, transpondo para a comunicação pública o seu poder efectivo nos centros nevrálgicos do sistema social (pense-se, por exemplo, nos oligopólios das redes de comunicação e das redes de distribuição). Estes poderes corporativos são decisivos porque as sociedades já funcionam em rede enquanto sistemas sociais, detendo eles o controlo dos seus centros vitais. Eles podem paralisar o sistema com uma simples decisão corporativa.

Depois, há ainda o poder financeiro internacional que já está instalado nos centros nevrálgicos dos países e cujo poder ultrapassa o poder político nacional (veja-se o caso de Portugal). A que acresce o poder das agências de notação com a sua capacidade de influenciar os juros da dívida pública (e o valor das empresas) no mercado de capitais.

Estes e outros factores só por si já exigiriam um repensamento do modelo de acção e de organização das formações políticas democráticas se estas quisessem efectivamente representar a cidadania e as sociedades em que se movem. Não o fazendo deixam que o sistema se degrade e se torne cada vez mais difícil actuar eficazmente sobre ele com a independência que exige a representação da vontade geral e do interesse geral. As políticas identitárias, depois, vêm ajudar à festa, juntando-se às corporações para fragmentar ainda mais e enfraquecer a gestão unitária das sociedades. Alguns falam de tribalização da sociedade, mas eu prefiro continuar a chamar-lhe corporativização da política pelos grupos de interesse.

CONCLUSÃO

PODERIA CONTINUAR para demonstrar uma coisa muito simples: nos moldes pragmáticos e realistas em que tem vindo a funcionar o establishment político verificam-se hoje fortíssimos condicionamentos que lhe exigem, por um lado, flexibilidade na acção e, por outro, capacidade de risco na decisão, de acordo com um quadro de valores firmes a defender e a praticar. Por isso, a política de simples gestão do status, de redistribuição em função de uma lógica de pura sobrevivência política e de reprodução no poder tem os dias contados e não augura, desde já, nada de bom. De forma mais clara ainda: gastar o tempo do exercício do poder simplesmente para o conservar equivale a puro desperdício. Hoje já nem as forças conservadoras mais clarividentes funcionam assim, apesar de representarem mais directamente os interesses instalados. Porque se funcionarem assim ficarão totalmente reféns dos poderes fortes, sendo certo que  a maior parte destes poderes se alimenta dos recursos do Estado e, consequentemente, dos impostos da cidadania, o que se repercutirá sempre na captação do consenso necessário para governar. Sempre houve, mesmo na política conservadora, uma diferença funcional entre poder económico e poder político. Não será, pois, compreensível que uma política de centro-esquerda aceite suportar, ficando refém, sem visível distanciação ou mesmo directo confronto, o protagonismo político directo das corporações ou das tendências identitárias. E muito menos quando estas têm o poder de alterar a natureza da própria competição electiva, confiscando esse direito à cidadania.

A questão deve, pois, pôr-se sobretudo ao centro-esquerda, exigindo-lhe que proceda à redefinição da sua cartografia cognitiva, um quadro de valores estruturais e estruturantes e um centro de poder eficaz e capaz de dar combate nas frentes em que for necessário, ao mesmo tempo que assume a ambição de se tornar hegemónico na sociedade e não só na política. Mas o que é verdade é que o centro-esquerda arrisca-se a deixar de saber verdadeiramente que a sua própria justificação está na sociedade civil e não no Estado. É aí que se conquista a hegemonia e, portanto, o poder democrático. Há muito que digo que por haver excesso de Estado no centro-esquerda ele tem tendido cada vez mais a esquecer a centralidade da sociedade civil, razão primeira e última da existência do Estado. O que não significa que a visão correcta seja a do Estado mínimo ou supletivo. Não, como a actual crise sanitária e económica tem mostrado e como têm mostrado as sucessivas crises das instituições financeiras e dos sectores nevrálgicos da sociedade. O que não pode acontecer é essa rampa deslizante que tende a tornar o Estado o alfa e o omega das sociedades e da mundividência da esquerda reformista ao mesmo tempo que cede cada vez mais o lugar da política pura e dura aos interesses corporativos e às idiossincrasias identitárias, num processo de efectiva captura do interesse geral, de desvitalização da política e de transformação do exercício governativo em mera governança ou gestão burocrática do poder, sem ambição estratégica e vocação hegemónica. Apetece-me terminar repetindo o que acima disse: o tempo do poder não deve ser desperdiçado com a única preocupação de o conservar. Não o digo eu, disse-o o antigo governador do BCE e actual Primeiro-Ministro de Itália, Mario Draghi, no seu discurso inaugural perante o Senado. Jas@03-2021.

Politica1Rec

“S/Título”. Detalhe.

Poesia-Pintura

SEGREDO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Deusa das Camélias”
Original de minha autoria
para este poema.
Março de 2021.

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“Deusa das Camélias”. Jas. 03-2021.

POEMA – “SEGREDO”

VOU CONTAR-TE
Um segredo:
Amei-te
Em poesia,
Oh, se amei!
As palavras eram
Graves
(Bem sei)
Mas sempre cheias
De cor,
As rimas
Eram suaves
Em melodia
Com dor,
Tudo o que
De ti
Me sobrou...
..........
Meu amor.

CONTEI-TE HISTÓRIAS
De desencontros
E dancei
Com palavras
Luminosas
Que inventei
Para por dentro
Te ver
Nesse jardim
De camélias
Que cultivas
No teu peito
E que eu pinto
Com desvelo
Pra deste modo
Te ter.

CANTEI
Pra te aquecer
Na fria dança
Do silêncio
E contigo levitar,
Voando,
Invisíveis,
Sobre ruas
E sobre praças,
Ao luar,
Para, depois,
Pela manhã,
Acordar
E um arco-íris
Erguer
Como ponte
Desse vale
Exuberante
Onde te sonho,
Neste meu
Entardecer.

SONHO, SIM,
Alheio ao bulício,
Ao indiscreto
Cochichar
Dos que vivem
Na rotina,
Dos que
Não sabem
Voar.

AH, QUE SONHO!
Não sei se
Pousaram
No parapeito da
Tua janela
As palavras
Que sonhei...
.................
E se alguém te
Contou
Que andavam
Borboletas
No ar,
Esvoaçando,
Perdidas,
À procura de pólen
Nos jardins
Verdejantes das
Nossas vidas...

MAS TU PERGUNTAS,
Agora,
Se ainda vivem
As borboletas
De vida breve,
Se regressam
Ou já pousaram
Noutro jardim,
Se há pólen,
Se há vento
Ou pensamento
Que as traga
De volta
Desse incerto
E imprudente
Confim...

E EU RESPONDO
Que a sua vida
E destino
São o brilho
Deste céu
Que vive
Dentro de mim.

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“Deusa das Camélias”. Detalhe.

Artigo

REFLEXÕES SOBRE A EUTANÁSIA

Porque sou a favor da despenalização

Por JOÃO DE ALMEIDA SANTOS

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“S/Título”. Jas. 03-2021.

OUSO CONTRARIAR O MILITANTISMO, dizendo que ninguém defende a eutanásia. Porque, por princípio, ninguém deseja a morte. O eros (a pulsão da vida) em condições normais sobreleva o thánatos (a pulsão da morte). De outro modo, estaria em risco a sobrevivência do género humano, da espécie. Se à ideia de morte está associada a ideia de dor e de fim, às ideias de vida e de reprodução da espécie estão associadas as ideias de prazer e de amor, uma dialéctica dos afectos. É o princípio da vida aquele que exibe argumentos mais fortes. Sem mais. A tal ponto que nas religiões esta ideia de vida é projectada para uma dimensão extraterrena, iludindo assim a ideia de fim, a ideia de morte a favor da ideia de fronteira. É por isso que quem defende o direito à eutanásia não poderá ser acusado de ser apologista da morte, a não ser por má-fé de quem acusa.  Porque em condições normais ninguém o é. Na verdade, trata-se, aqui, de um caso excepcional, assumido em circunstâncias excepcionais. E como tal deve ser entendido. Com todos os seus ingredientes e não com a linearidade de um pensamento maniqueísta ou de uma qualquer ortodoxia absolutista e acusatória. Mas vejamos.

DUAS POSIÇÕES

USANDO A DICOTOMIA como método de raciocínio, podemos dizer que sobre esta questão há duas posições extremas. A religiosa, que considera a vida um dom divino que transcende a esfera da vontade humana e que, por isso, não concede ao crente a liberdade de dispor da sua própria vida, essa dádiva transcendente; a construtivista, que considera que a vontade humana é soberana e pode, por isso, sobrepor-se a normas decorrentes do nosso estatuto societário, histórico e natural sem qualquer determinação ontológica. É clara, lógica e coerente a primeira posição e, por isso, respeito-a, embora não me identifique com ela. Já quanto à segunda, embora reconheça que muitas conquistas civilizacionais se devem a ela, em muitos casos acaba numa problemática e incerta engenharia biológica e social. O tema muito mais difícil e complexo da clonagem – proibida, por exemplo, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (número 2, alínea d do artigo 3.º) – poderia inscrever-se problematicamente num discurso com estas características. Tal como o da eugenia (número 2, alínea b do art. 3.º).

O PAPEL DO ESTADO

MENCIONEI ESTAS DUAS POSIÇÕES apenas porque elas nos permitem ver a questão com mais clareza. Não entro em questões estritamente jurídicas porque num assunto destes o que interessa é a posição de fundo que se assume, embora não seja de somenos o concreto articulado da lei, que, de resto, já acabou de motivar um chumbo do Tribunal Constitucional, sob iniciativa do Presidente da República, por insuficiente “densificação normativa”, ou seja, por indeterminação das condições (lesão definitiva, gravidade extrema e consenso científico”) em que pode ser praticada a morte medicamente assistida (pág.s 85-86 do Acórdão 123/2021, de 15.03.2021, do TC). Mas a questão que me ponho consiste em saber se ao Estado cabe, em nome da tutela do direito à vida e da sua inviolabilidade, produzir norma penal (activamente ou deixando que o acto se mantenha subsumido pela lei penal geral) que proíba um cidadão de, em determinadas condições e circunstâncias, decidir livremente pôr termo à sua vida recorrendo a assistência médica, tendo também em consideração que “no domínio da medicina e da biologia deve ser” respeitado “o consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei” (n. 2, alínea a do art. 3, da CDFUE). Eu creio que a tutela do direito à vida e da inviolabilidade da vida se refere no essencial à protecção relativa a qualquer atentado exógeno, incluído o do Estado (daqui a proibição da pena de morte), ao direito de viver. E é precisamente neste registo societário que a lei penal pune a assistência à morte, precisamente porque se trata de acto de natureza social, onde intervêm pessoas, organizações ou instituições na morte de um cidadão singular, ainda que a seu pedido. Interrogo-me se o Estado pode e deve criminalizar também (mas creio que não, não deve nem, de facto, criminaliza), por exemplo, e seguindo a inspiração da Igreja católica, o suicídio. Quem se suicida contraria o carácter inviolável e sagrado da vida e por isso deverá ser condenado? No além, sim, certamente, segundo a doutrina religiosa. Mas, no aquém? Depois de morto, vendo-se, nos termos da lei, privado de todos os rituais previstos para os finados certificados pelo baptismo ou pelos rituais sociais? E quem tenta, mas falha, o suicídio deverá ser penalmente condenado por ter atentado contra a sua própria vida, sem envolvimento de terceiros? Condenando-o a prisão? A lei não proíbe, por não envolver terceiros, mas a questão deve ser posta, invocando o dever de protecção. Na verdade, estes parecem raciocínios humorísticos, mas não são, porque vão ao fundo do problema. O que é preciso deixar absolutamente claro é que o Decreto da AR visa somente o que está escrito logo no início do texto: art. 1 -“A presente lei regula as condições especiais em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível”, alterando, pois, e para o efeito, o código penal (Decreto 109/XIV, de 29.01.2021, da AR). De resto, da leitura do Decreto fica claramente a noção de que a tutela legal do acto de eutanásia pelo Estado é minuciosa e institucionalmente exercida. Uma lei bem feita, no meu entendimento.

A questão é esta: o “direito à vida”, consagrado, por exemplo, na CDFUE, exclui o direito de dispor dela? Trata-se de um direito ou de um dever? Para os católicos trata-se de um dever, sim. E, em geral, para os cidadãos?

A questão põe-se quando alguém é chamado a cooperar, por competência técnica e formal (um médico), na livre decisão, devidamente enquadrada (aqui, sim, pelo Estado, enquanto regulador), de um cidadão pôr termo à própria vida. Se aceitar, esse médico deverá ser acusado por ter cometido assassínio? E se outro se opuser deverá ser acusado por se ter recusado a pôr fim ao sofrimento atroz de um ser humano, a pedido, consciente, esclarecido e fundamentado, dele? No meu entendimento, nem num caso nem no outro deverá haver acusação. E o que diz a lei é isso mesmo.

Do que se trata, no caso da eutanásia, é de clarificar a situação, definindo a posição do Estado relativamente a esta matéria. Não devem os católicos, por exemplo, pedir ao Estado que produza norma, activamente ou por omissão (ficando a eutanásia tipificada como assassínio, subsumida à lei geral), já que os verdadeiros católicos nunca praticarão a eutanásia, por óbvias razões de doutrina e de visão do mundo, não sendo, pois, a comunidade de fiéis afectada pela posição reguladora (que referirei) que um Estado venha a assumir. Mas será aceitável que queiram impor, através do Estado, a toda a sociedade a sua própria visão do mundo e da vida, tratando como dever o que é um direito inalienável? Não deve o Estado democrático, pelo contrário, ser o garante da livre afirmação das identidades, em todos os planos, político, cultural ou religioso, desde que enquadradas pelo que Habermas designa como “patriotismo constitucional”, ou seja, adesão aos grandes princípios civilizacionais adoptados pelo Estado e pelas cartas universais de direitos como sua lei fundamental? Do que aqui se trata é da laicidade da abstenção do Estado para uma livre dialéctica das identidades. Até mesmo neste caso, já que a decisão é remetida para a esfera da liberdade e da identidade pessoal. De resto, nem o Estado, numa civilização de matriz liberal, deve intervir numa matéria tão íntima e pessoal como esta, a não ser para proteger precisamente a liberdade que cada um deve ter de tutelar a própria integridade como entender. Ou seja, o Estado tem o dever de intervir, sim, mas para, também nesta circunstância excepcional, proteger a liberdade individual da interferência de factores externos à sua livre, esclarecida, racional e ponderada decisão relativamente à própria vida.

O ESTADO E OS DIREITOS INDIVIDUAIS

CONSIDERO, deste modo, que a intervenção do Estado em relação a esta matéria deve ser somente reguladora, garantindo o direito de cada um tutelar a sua vida ou a sua morte num caso verdadeiramente excepcional, legislando especificamente sobre ele, sendo certo que em condições normais o eros prevalecerá sempre sobre o thanatos, a vida sobre a morte. Esta é, de resto, a lei que garante a reprodução e a conservação da espécie.

Alguns Estados, como é sabido, e em países democráticos e civilizacionalmente avançados – por exemplo, nos Estados Unidos -, usam a pena de morte como punição máxima ou como salvaguarda de um bem superior, contrariando o disposto no número 2 do art. 2.º da CDFUE e, de certo modo, também o art. 2.º desse documento matricial da nossa civilização que é a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789: “O fim de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Este artigo, conjugado com o art. 5.º (“a lei não tem o direito de proibir a não ser as acções prejudiciais para a sociedade; tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei não ordena”), leva-me a concluir que, nesta matéria, o Estado somente deverá remover o que possa prejudicar, por um lado, a sociedade e, por outro, a livre tutela do cidadão sobre si próprio, clarificando as condições em que a morte assistida possa ser praticada. Assim, no caso em que um cidadão esteja na posse plena das suas próprias faculdades, mas em condições de insuportabilidade física (mesmo com cuidados paliativos) e de destino irreversível, o Estado tem a obrigação, isso sim, de garantir a certificação institucional e científica destas condições, seja do ponto de vista psicológico seja do ponto de vista médico, através de recurso a assistência médica. A verificar-se que não existem factores exógenos a determinar a decisão, o Estado não deve, nem que seja por omissão (deixando que a esta prática se aplique a lei penal geral), proibir a decisão de morrer com assistência médica nem, consequentemente, permitir que quem intervenha no processo, a pedido do cidadão em causa, e exclusivamente porque é detentor formal de competência técnica, seja acusado de assassínio. Tal como não deve permitir que quem se recuse, por razões de ética da convicção ou religiosas, sendo detentor formal de competência técnica, a cooperar no acto de eutanásia medicamente assistida, seja acusado. Tudo isto está devidamente acautelado no Decreto da Assembleia da República. Mas se for ainda mais acautelado, em sede de reapreciação pelo Parlamento, tanto melhor.

A FUNÇÃO REGULADORA E DE CONTROLO DO ESTADO

TRATANDO-SE DE ALGUÉM que comprovadamente esteja numa situação de sofrimento atroz, mas incapaz intelectualmente de tutelar a sua própria vida, estando, assim, dependente de outra tutela (por exemplo, familiar), o Estado teria o dever, perante uma decisão desta natureza, de reforçar a tutela dos direitos do cidadão em causa, accionando idóneos meios institucionais e científicos de controlo para verificar que não existiriam factores exógenos àquela que seria, supostamente, a sua vontade em condições de plena posse das suas faculdades. Mas a verdade é que no presente Decreto da AR nem sequer está previsto este caso, estando de qualquer modo previsto um robusto controlo para que não se verifique qualquer interferência exógena ao acto.  A iniciativa em causa deverá, no meu modesto entendimento, confinar-se à certificação de que na decisão não intervêm quaisquer factores externos ou exógenos, alheios ao que verdadeiramente está em causa. E nada mais, sob pena de, em qualquer dos casos acima referidos, o Estado estar a entrar na zona protegida de um direito individual inalienável, o da livre tutela da própria vida. Ou seja, defendo sobre esta matéria uma intervenção minimalista, mas reguladora e de controlo do Estado, deixando aos cidadãos a liberdade de accionarem, ou não, os mecanismos para poderem usufruir de uma morte medicamente assistida. O que não é admissível é pedir ao Estado que, em nome de uma mundividência, seja ela religiosa ou filosófica, anule a liberdade individual naquela que é a mais profunda e íntima esfera da própria personalidade. A eutanásia não pode ser tipificada como assassínio, porque não o é, e muito menos numa sociedade de matriz liberal onde a tutela da liberdade é um dos mais importantes princípios. E nesta visão da liberdade entram de pleno direito os católicos e a sua legítima discordância relativamente a posições diferentes da sua.

 FINALMENTE

EM SUMA, A MINHA POSIÇÃO sobre o assunto é, como se viu, ditada pela ideia que tenho acerca da legitimidade da intervenção da sociedade, através do Estado, sobre a esfera individual ou mesmo íntima. É minha convicção que numa sociedade com uma matriz liberal como a nossa esta é a posição mais sensata e conforme à sua matriz. E, sinceramente, e pelas mesmas razões, não vejo que esta matéria deva suscitar um referendo, uma vez que a lei se limita a evitar a criminalização de um acto que só ao próprio diz respeito por ser matéria do seu foro mais íntimo, que não interfere na liberdade de outrem ou com a sociedade, antes constituindo legítimo uso de um seu direito inalienável, o da tutela da sua própria vida. Na verdade, aquilo a que o Estado não tem direito é obrigar sob ameaça de sanção penal alguém a viver contra a sua própria vontade livremente manifestada, transformando um direito num dever. Esse seria um Estado ético, não um Estado liberal. E os Estados éticos já se sabe onde vão a acabar: na imposição paternalista de padrões comportamentais aos cidadãos – é proibido tudo aquilo que não é (explicitamente) permitido (e não: é permitido tudo aquilo que não é proibido, como previsto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão). O que equivaleria a restaurar uma identificação há muito superada: a do cidadão como súbdito, perante a vontade divina ou perante o Estado. E a cidadania, que é o plano em que a questão deve ser posta ao Estado, não é hoje, de modo algum, identificável nestes termos. #Jas@03-2021.

Poesia-Pintura

CAMINHOS PARALELOS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Voo da Magnólia”.
Original de minha autoria
para este poema.
Março de 2021.
JasMag210321_Pub

“O Voo da Magnólia”. Jas. 03-2021.

POEMA –  “CAMINHOS PARALELOS”

POR CAMINHOS
Paralelos
Nos seguimos
Ao infinito,
Pintei o meu
De vermelho,
Mas o teu
É mais bonito.

GASTEI
As minhas palavras,
Gastei cores,
Eu já nem sei,
Mas porque o silêncio
É de ouro
Só das palavras
Cuidei.

TIREI-LHES
Logo o som
Por saber
Que te doía,
O silêncio
Ficou rei...
.................
Até que falemos,
Um dia.

A ESTES SENDEIROS
Cheguei
Quando eu te
Conheci
Ao romper
Da primavera.
Foram-se anos,
Bem sei,
Desde que o
Destino  
Me pôs
Nessa rua
À tua espera.

AGORA SÃO
Caminhos
Paralelos,
Nisto, naquilo,
Talvez em tudo,
Sei lá,
Tu estás
Do outro lado
E eu não te vejo
Por cá,
Na rua
Da poesia
Que logo ficou
Deserta
Quando te
Foste embora
Dessa forma
Inesperada...
..................
Mas que o oráculo
Previa,
Pois a porta
Estava aberta
Sem fechadura,
Sem nada.

NO HORIZONTE
Que alcanço
Fica o ponto
Destas linhas
Paralelas,
Convergimos
No olhar,
Mas não caminhamos
Por elas
Porque a vida
Nos tirou
Da rua
Da poesia...
..............
E das tuas
Aguarelas.
JasMag210321_PubRec

“O Voo da Magnólia”. Detalhe.

Artigo

LAVANDARIA SEMIÓTICA

Por João De Almeida Santos

LLing

“S/Título”. Jas. 03-2021.

COMEÇA A SER PREOCUPANTE esta higienização da língua, da arte e da história que grassa por aí. Agora é a Universidade de Manchester que, em nome de uma linguagem inclusiva e neutra, cria um guia de boas práticas linguísticas, um “guide outlines how to use inclusive language to avoid biases”, para seu uso e consumo. Uma autêntica revolução semiótica. Regras de bom comportamento linguístico. Nem mais nem menos. Até as palavras pai e mãe, irmão e irmã, homem e mulher e marido e mulher saem do culto glossário manchesteriano para serem substituídas preferencialmente (rather than, é a fórmula usada) por parent ou guardian, por sibling, por person ou por partner, respectivamente. Isto numa Universidade de um país que se preza de conservar e dignificar as suas tradições. Não numa creche. Eu, que tenho dois filhos, se algum deles me tratar por guardian digo-lhe que vá chamar guardian a outro. Sou pai e esta palavra traz consigo um imenso afecto que não pode ser reduzido à categoria de guardião ou de tutor ou do que lhe quiserem chamar.

Naturalmente, Portugal não quis ficar atrás de Manchester e o Conselho Económico e Social, dirigido pelo socialista Francisco Assis,  que, creio, foi contra o acordo ortográfico, logo se apressou a (quase) aprovar também um manual de boas práticas linguísticas, não um manual de boas práticas de concertação entre parceiros do mundo económico e social. O CES, com Assis, a caminho de se concertar sobre um inédito acordo semiótico.

ARAUTOS DA NOVILÍNGUA

ESTA VISÃO CLÍNICA DA LINGUAGEM, esta limpeza linguística, esta lavandaria semiótica, ao serviço de uma visão do mundo politicamente correcta, devidamente esterilizada e pasteurizada, já está mais institucionalizada do que parece e acompanha, naturalmente, aquela outra desse revisionismo histórico que já está a chegar à literatura, passando pelos monumentos e pela pintura. O revisionismo em todo o seu esplendor – uma cruzada em pleno desenvolvimento pronta a bater-se pela novilíngua universal contra os infiéis, os apóstatas. Uma nova santa inquisição que espreita à esquina, com manuais de boa conduta à mão, e que promove blitzkriege contra os símbolos da opressão línguística, artística e histórica. Que o digam algumas obras de arte já castigadas pelos arautos da nova fé. Eles já andam pela gramática e pela semântica, pelos museus e pela arte pública a punir os desmandos do passado e os seus testemunhos. Ainda os hei-de ver a chicotearem  estátuas no pelourinho (talvez electrónico), tal a fúria castigadora dos arautos da novilíngua.

É preciso começar por algum lado, acham eles. Pois então comece-se pela língua, pela arte e pela história. A língua espelha a história de um país e, se condenarmos o seu passado, como condenamos, pelas suas práticas incorrectas e imorais, ao longo de séculos ou mesmo de milénios, desde o tempo dos homens das cavernas, em nome dos valores que hoje consideramos absolutamente correctos, então há que efectuar uma limpeza, mas não só da língua e dos rastos que a iniquidade deixou nela, higienizando-a, esterilizando-a, purificando-a das impurezas e das bactérias que historicamente se foram sedimentando até nas suas próprias estruturas formais (exemplo, o domínio do género masculino da gramática e os sinais de diferença sexual ou no próprio direito, também com inadmissíveis marcas masculinas), mas também das obras de arte onde possam ser encontrados resquícios ou marcas de um passado construído com os valores que hoje execramos (na escultura, na literatura, na história). Marcas que nem para a sucata hão-de servir, não vão os sucateiros reciclar tão deletérios produtos.

HEGEMONIA

O QUE É CURIOSO é que isto está a acontecer nos países que mais progressos civilizacionais fizeram e que coexistem com imensos países onde o básico nem sequer está garantido à generalidade das populações. Um gigantesco salto em frente – esperando-se que não seja para o precipício -, em vez de uma viagem aos passados que coexistem connosco e que estão aqui ao nosso lado, bem à vista, merecendo uma preocupação absolutamente prioritária relativamente às marcas visíveis na gramática, na semântica ou na arte. Estes passados estão a chegar à EU pelo Mediterrâneo, querendo tornar-se  presente. Sim, mas o passado ficou lá nas suas terras, nas suas casas. E é lá que reside o problema principal.

Mas é por aqui, pela limpeza semiótica, que esta luta civilizacional está a avançar com enormes vitórias nas próprias instituições internacionais, com sinais que são verdadeiramente preocupantes porque nos arriscamos a que esta se torne uma visão hegemónica e que acabe por assumir uma natureza inquisitorial, um policiamento das consciências, através da língua, da arte e da história e que nos amarre ao universo da narrativa e das palavras autorizadas. Uma matriz claramente antiliberal e uma palavra de ordem que é o oposto do que ficou consignado no documento que representa a matriz da nossa modernidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Art. 5: “Tout ce qui n’est pas défendu par la loi ne peut être empêché, et nul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne pas.”): é proibido tudo aquilo que não é permitido. Não só proíbem determinadas palavras, como também impõem o uso de outras, mesmo que elas toquem o mais profundo da natureza humana. Começa-se logo pelo dicionário, pelo uso de certas palavras, o que lembra os tempos da ditadura.. Por exemplo, não é permitido (ou, pelo menos, não é aconselhável) o uso das palavras mãe ou pai. O problema é que esta é a zona onde a liberdade habita, ficando o seu exercício seriamente diminuído, precisamente num tempo em que os mesmos gritam pela defesa da privacidade e pela liberdade individual. Se nem numa Universidade inglesa, onde a liberdade deve ser o primeiro princípio a estar garantido, já se podem usar as palavras homem-mulher, pai-mãe, marido-mulher, irmão-irmã que acontecerá noutras áreas de grande intensidade social?

A REVOLUÇÃO DO CHE GUEVARA
JÁ É PASSADO

DO QUE SE TRATA verdadeiramente é de uma luta pela hegemonia, uma luta que não tem verdadeiramente o sabor de um confronto cultural, mas sim o de uma batalha administrativa pelo controlo formal da língua e da narrativa acerca da história ou da arte.

E de onde é que lhes vem tanta força, aos revisionistas da língua e da história? A força vem do facto de se considerarem os verdadeiros intérpretes das declarações universais de direitos. Numa lógica de kamikaze. É daqui que lhes vem a força e a legitimidade. Só que o que eles verdadeiramente fazem é uma luta pela imposição administrativa e directa destes direitos, princípios e valores, num discurso de pensamento único que absolutiza valores que são históricos, como os outros o foram. O que eles postulam verdadeiramente é o fim da história. Um momento omega que é a medida de todas as coisas. O Fukuyama deve estar a rir-se. Na verdade, o que praticam é um absolutismo axiológico que querem ver imposto administrativamente naquelas que são as sociedades mais avançadas do planeta, numa vertiginosa fuga para a frente relativamente a sociedades que ainda não viram satisfeitas sequer as condições básicas da existência. E, claro, esta fuga administrativa para a frente deixa-os insensíveis à necessidade da sua presença lá onde eles seriam mais precisos, ou seja, nas sociedades que precisam de conhecer um mínimo de desenvolvimento, de direitos e de bem-estar. Mas isso daria imenso trabalho, seria desconfortável e muito arriscado, preferindo, pois, fazer a sua luta nos lugares onde já há liberdade, segurança e bem-estar. O tempo dos revolucionários como Che Guevara já passou. A revolução faz-se em casa, eventualmente à frente de um computador e com ar condicionado.

É A CULTURA, ESTÚPIDO

MAS A QUESTÃO é que os progressos civilizacionais e culturais não se podem impor administrativamente. A sua conquista levou séculos, lutas, sacrifícios, morte. Não se obtiveram ao virar da esquina, com a redacção de um manual, pela simples razão de que a vida e a história não cabem em dois ou três breviários. Bem sei que eles têm pressa, muita pressa, eventualmente o tempo que a sua construção psicológica lhes impõe, porque têm noção de que o tempo de hoje é um tempo tão acelerado que já nem parece ser tempo histórico. Sim, isso mesmo: o problema parece ser o do reconhecimento da temporalidade histórica. Mas a verdade é que os progressos requerem investimento projectado num tempo com profundidade, trabalho complexo, longo e livre de formação, de educação de cultura, de ciência. Um processo que não pode começar pelo confinamento da língua, da história ou da arte, ou seja, pelo confinamento dos espaços onde a liberdade deve ditar lei, mas sim pelo investimento público na educação, na cultura, na arte e na dotação pública das respectivas infraestruturas como condição essencial do crescimento e da autonomia individual para um futuro exercício consciente e plenamente responsável da cidadania, sem necessidade de guiões morais que pré-determinem o comportamento. Tomo como referência as visões do alemão Friedrich Schiller, nas Cartas sobre a Educação Estética do Homem (de 1792), e do poeta americano Walt Whitman, em Democratic Vistas (de 1871), e as suas propostas sobre a arte como motor de uma sociabilidade humana harmoniosa e sensível. No caso do poeta de Leaves of Grass, o lugar destinado à essencialidade histórica da poesia. Uma arte que nunca poderá ser encapsulada em códigos ou manuais de bom comportamento linguístico. Ou seja, o desenvolvimento é algo bem diferente das cartilhas que nos querem impor como padrão que impede comportamentos moral e civilizacionalmente desviantes e até puníveis por lei ou por regulamentos administrativos. Um admirável mundo novo com sacerdotes que aspiram a guiar as nossas vidas.

FINALMENTE

COMO SE SABE, o acordo ortográfico (AO), a forma como se escreve as palavras, não conhecerá paz enquanto o poder político não fizer uma reflexão profunda sobre a língua portuguesa, maltratada por alguns académicos pouco sensíveis à delicadeza da cultura e da ciência, e enquanto várias gerações se mantiverem em vida. Trata-se simplesmente da forma de escrever algumas palavras. Imaginemos, então, acordos semióticos na língua portuguesa (AS) em chave inclusiva e neutra (um extraordinário incentivo ao culto da poesia, diga-se) e a dureza da batalha que os seus fautores terão de enfrentar antes mesmo que isso se converta numa ainda mais dura batalha política, quando os nacionalistas se aperceberem de que essa é a batalha das suas vidas, a batalha que mais lhes interessa porque é aí que melhor poderão afirmar as suas razões, contra os novíssimos “chiens de garde” do politicamente correcto.

A verdade é que esta higienização da língua, esta limpeza linguística e cultural imposta por via administrativa, mas que aspira a transformar-se em hegemonia ético-polítca e cultural nas sociedades mais avançadas, enquanto crescem e se impõem ditaduras, regimes de cariz populista e regimes de miséria um pouco por todo o lado, não deixa de ser preocupante até por abrir um vasto flanco à entrada em cena de todos aqueles que são pouco amigos da democracia, da igualdade e da liberdade. Parece-me até que os mais acérrimos defensores da limpeza semiótica, da arte e da história mascaram de progressismo a sua indigência cultural e científica ou mesmo a sua indisfarçável e prepotente ignorância. Afinal, empenham-se nestas batalhas porque não têm outras bem mais importantes e urgentes para propor.

NOTA

Não tarda, estarão a propor uma alteração do nome da Declaração de 1789 e do título do livro de Schiller.

LLingRec

“S/Título”. Detalhe.

Poesia-Pintura

OLÁ

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Evocação 
de uma Magnólia”.
Original de minha autoria
para este poema.
Março de 2021.

Magnólia1103

“Evocação de uma Magnólia”. Jas. 03-2021.

POEMA – “OLÁ”

PEDI-TE UM DIA
Num poema
Que te fiz
Que me dissesses
 Olá.
Eu ficaria feliz
De ouvir a tua
Voz
Sussurrando
O meu nome
Como as águas
Do rio
Beijam as águas
Da foz.

E OLÁ TU ME
Disseste,
Mas rápido
Como o vento
Que sopra
Na minha alma
Quando cruzo
O teu olhar
E me sinto
Estremecer,
Não por fora,
Mas por dentro,
Onde sou livre
De amar.

BALBUCIEI
O teu nome
Já distante
Do olá
Sem saber
O que fazer,
Se chamar-te
Até mim
Ou para longe
Partir,
Por não saber
Que fazer,
Por não saber-te
Sorrir.

MAS QUANDO VIREI
O meu rosto
Vi-te de novo
Austera,
Muito fria
E distante...
............
Ignoravas
O passado
Que passara
Nesse instante.

E, DEPOIS,
Tantos olás
Te pedi,
Tantas vezes
Te chamei,
Os poemas
Que escrevi,
Palavras
Que derramei
Sabendo nada
De ti,
Mas sofrendo
Intensamente
Por tudo
O que já sei,
Por tudo
O que perdi.

TALVEZ O VENTO
Te chame,
Talvez esta flor
Te seduza,
As raízes te
Comovam
Ou o poema
Te diga
Que nunca
É tarde
Demais
E que em seu
Eco
Te encontre
E abrace
Por sinais.

Magnólia1003TRArec

“Evocação de uma Magnólia”. Detalhe de outra versão.

Artigo

MORDAÇA

Por João de Almeida Santos

MordaçaPin1_1003

“S/Título. Jas. 03-2021.

DIZEM POR AÍ que Portugal está amordaçado, que vivemos numa democracia amordaçada e imperfeita. Parece que sim, que alguém diz. Ah, digo eu, como a imperfeição das democracias pode gerar regimes de mordaça quando alguns acham que a devem melhorar, purificando-a e libertando-a da balbúrdia. No fim, é tudo uma questão de liberdade, valor supremo. Pois é.

“PORTUGAL AMORDAÇADO”

IMAGINO QUE O AUTOR deste sofrido lamento se sinta sufocado no seu retiro presidencial, mas não, como todos nós, por causa da vergonhosa COVID19. Sufocado, sim, mas por falta de liberdade, não por falta de ar. A COVID19 que se lixe, resolve-se com uma vacina nem que venha da China ou da Rússia, pois as vacinas não têm ideologia. Ele respira liberdade. E se lhe dizem que está a ser ameaçada decide de imediato ir para a rua, tomar ar e gritar, a plenos pulmões, ao lobo… como na famosa fábula de Esopo. Não por tédio, isso não, mas por falta de ar democrático. Por isso vai sem máscara. Para gritar mais alto. Ou, melhor, vai com a sua, a natural, a que protege do sufoco democrático. Mas compreende-se tanta angústia, tanto sufoco, tanto sofrimento. E também se compreende que a quietude e o silêncio em certos momentos de falta de ar não sejam bons para a saúde democrática. Sobretudo para ele, que conseguiu manter Portugal a respirar liberdade, livre da mordaça, durante os 20 anos em que esteve no poder, não lhe podendo ser atribuída responsabilidade por algo que possa ter corrido mal (e para isso está a escrever os livros de memórias onde faz a demonstração da brancura dos seus quatro mandatos). Sem mácula, mas combativo, de peito às balas, ele desenterra, hoje, com visível e preocupada angústia, a palavra usada por Mário Soares no livro sobre a ditadura do Estado Novo, “Portugal Amordaçado”, de 1972. E lança o grito de alarme.

MORDAÇA LIGHT

É certo que a palavra perdeu vigor com a democracia, regime que não tolera a mordaça, com ou sem ele no poder. Na verdade, relativizou-se, porque, afinal, há sempre um pouco de mordaça por aí, ainda que seja light ou privada. Nem que seja porque os jornais e as televisões só põem no espaço público os do costume, a debitar banalidades, nesse círculo fechado em que se comentam uns aos outros, sendo que uma boa parte parte deles o faz como his master’s voice. E nisso o nosso personagem até é doutor, ajudado que foi por um seu sagaz e saltitante assistente que hoje é um famoso áugure do oráculo televisivo. De tanto os controlar, em nome da liberdade, claro, acabou por se tornar um deles. Mas lembro-me muito bem das batalhas pela liberdade que ambos travaram quando estavam no poder. Os polícias que o digam.

Mas, sim, a mordaça veio para ficar. Regressa sempre. Um destino. Um fado. Já não tem a mesma força, convenhamos, porque não é tão sufocante como a da ditadura, aquela a que se refere o livro de Mário Soares. É mordaça light, mas é mordaça. Pelo menos parece. Pode vir de alguma corporação, sim, mas não é igual à autêntica. Acho eu. De uma coisa tenho, porém, a certeza: a mordaça perdeu força, desvitalizou-se durante os 20 anos em que o melancólico queixoso esteve no vértice dos poderes presidencial e governativo – de 1985 a 1995 e de 2006 a 2016. 20, em 45 anos.  Coisa não despicienda que os portugueses, sempre tão generosos, lhe facultaram. Em nome da sagrada liberdade. Dizia-se até, ao tempo, que o seu rosto se parecia com o rosto da liberdade. Mas o tempo no poder, sim, o tempo no poder, foi mais do que suficiente para escorraçar definitivamente do corpo e da alma de todos nós a mordaça política e consolidar a liberdade que tanto preza, que tanto prezamos. E bem tentou, pondo todas as suas forças, as que tinha e as que não tinha, ao serviço desse ideal. Que o digam os polícias,  secos ou molhados, não importa, ou os ex-ministros da Administração Interna Silveira Godinho e Dias Loureiro. Sim, que o digam eles. Mas, mesmo assim, depois de tanta abnegação, o que, afinal, se conclui é que de nada serviu esse gigantesco empenho – talvez o maior durante os seus longos tempos de poder, os mais longos em democracia  –  para  tornar irreversível o tempo da liberdade, impedindo o regresso da mordaça de má memória. Lembro-me bem da sua temerária denúncia pública, materializada num jornal de referência e de qualificado público, da tentativa de um outro primeiro-ministro socialista impor um regime de mordaça. Lembro-me, sim,  e muito bem, porque assisti, estupefacto, à movimentação dos carros armados em S. Bento, onde trabalhava, e da corajosa intervenção do nosso personagem, e de alguns temerários jornalistas, para impedir a mordaça já em movimento. Até porque parece que, logo a seguir à imprensa, ele seria o primeiro a ser amordaçado. Não se sabe em que grau, mas amordaçado. Sim, impediu, e por isso lhe estaremos eternamente gratos. E os madeirenses também.

Mas depois, pasme-se, veio outro socialista, António Costa, e com ele comunistas e bloquistas, para instalar finalmente a tão odiada mordaça: Portugal Reamordaçado. Os socialistas não pensam mesmo em mais nada senão em impor a mordaça, logo ali, ao virar de cada esquina. Uma autêntica obsessão. Ou, quem sabe, um defeito genético que nenhum líder consegue extirpar. Mal que vem da raiz, como demonstrarão futuras investigações académicas dos habituais cientistas políticos sobre a mordaça, imaginem, na obra política de Mário Soares, agora que a moda pegou com os estudos académicos sobre o racismo na obra de Eça de Queiroz. O nosso protagonista foi obrigado a dar-lhe posse, é verdade, e agora é o que se vê: mordaça por todo o lado. Até eu já me sinto amordaçado, duplamente, pela COVID19 e por António Costa. Acordo de manhã, levanto-me e logo sinto a mordaça que me oprime o peito e não me deixa respirar. E o pior é que nem posso ir para a rua gritar ao lobo, porque acabarei detido. Uma dor no corpo e na alma, sim. Mas… aleluia, felizmente chegou, qual Mário Soares revisitado (o da liberdade, entenda-se), de trotinete digital o homem do sul, ou do leme, já nem sei, a gritar a plenos pulmões, e com razão, contra o “Portugal Amordaçado”. Prepara, ao que consta, e para que conste, um novo livro: “Portugal Reamordaçado”. Pelos socialistas. Com um subtítulo muito elucidativo: “A atracção fatal do socialismo democrático”.

MORDACRACIA

Já antes houvera, como disse, uma tentativa de a impor, que ele corajosamente travou porque estava lá, no poder; mas, agora, que já não está, lá conseguiram eles impor (com a ajuda dos comunistas) o execrável regime da mordaça. Um novo tipo de regime que os cientistas políticos, esses que não saem do monitor televisivo, já estão a introduzir na novilíngua da ciência política: mordacracia. Nem ditadura nem democracia. Um hircocervus de rosto socialista.

Mas, seja como for, e ainda que me doa a alma, não posso deixar de interpolar algumas glosas nesta narrativa da mordaça: o personagem tem  algumas responsabilidades no estado de mordaça em que o país se encontra. Ah, tem mesmo. Oh, se tem. No melhor pano cai a nódoa. Não há regra sem excepção. Porque, das duas uma: ou a sua passagem pelo poder foi inócua (mas não foi, senão não teriam sido criados bancos livres de mordaça como, por exemplo, o BPN) ou então foi, também ele persistente e remoto obreiro no regime de mordaça em que nos encontramos. Porque vinte anos no poder em 45 de democracia (a Constituição é de 1976) correspondem quase a metade da nossa vida democrática. Tempo mais do que suficiente para que alguma responsabilidade lhe caia sobre os ombros… embora sem o derrubar.  Ou não? Que diabo, alguns erros, involuntários, claro, ele terá cometido, embora saibamos, por ele, que nunca erra e raramente se engana. Raramente. Oh, talvez esteja aqui a solução do enigma. Raramente. A não ser que algo muito parecido com os “corsi e ricorsi” do Giambattista Vico, ou seja, um longo tempo de intermitência, explique estes fortes altos e baixos, estas ondulações da história de Portugal:  mordaça/não mordaça. Tertium non datur.

O QUE DIZ A “FREEDOM HOUSE”?

Bom, mas parece que lá fora – excepto os do Economist, na sua dorida versão não acreditam que Portugal viva em regime de mordacracia. Espicaçado e preocupado pelos dolorosos gritos de dor do nosso personagem fui ver a mais recente classificação dos regimes políticos pela Freedom House (FH – ONG com sede em Washington, criada em 1941 e que teve como fundadora, entre outros, Eleanor Roosevelt). E comparei as tristes lamentações com o seu recentíssimo Relatório: Portugal surge quase no topo da tabela só atrás da Finlândia, da Noruega, da Suécia, todos com 100 pontos (fazendo o pleno), e da Irlanda, com 97 pontos. Portugal exibe, de facto, 96 pontos e está à frente de países como a Alemanha, com 94, o Reino Unido, com 93, a França e a Espanha, com 90, e os Estados Unidos, com 83 pontos. Podemos não ser lá grande coisa na economia, na cultura ou no combate à COVID19. Podemos, sim. Mas dizem eles que em matéria de liberdade, isto é, de não-mordaça, estamos entre os melhores do mundo. Ainda que isso custe aos do Economist, que tanto preocupam o nosso protagonista. Mas até creio que ele tem a maior consideração por esta ONG, por onde têm passado inúmeros personagens da sua família ideológica, ou seja, do partido republicano americano.

RESSENTIMENTO OU RANCOR?

Eu não sei que influência o socialista António Costa tem em Washington, na Freedom House, mas o que é certo é que esta classificação deveria levar o autor da denúncia a sentir-se um pouco mais aliviado, menos oprimido, libertando-se desse atroz ressentimento e do rancor que o oprimem pelo estado de mordaça que lhe impuseram, por fora, e que lhe está a fazer tantos estragos morais e psicológicos, por dentro. Não só, porque, maravilha das maravilhas, a classificação até acaba por absolvê-lo de uma responsabilidade partilhada pelo estado de mordaça a que isto chegou e por libertá-lo da maçada de ter de se tornar no venturo autor de um “Portugal Reamordaçado”. Na verdade, dadas as características da FH não vejo razão para que o intrépido militante da causa da livre democracia não confie na classificação que, ao mesmo tempo, o desmente, mas tranquiliza. Um oximoro, sim, mas verdade reconfortante. Para ele e para nós. Nem mordaça nem culpado dela. Que mais quer o nosso protagonista?

E é verdade que não perco tempo a ler as suas memórias, porque são como o OMO: lavam mais branco. O que, de resto, pude confirmar quando, por uma vez, li um dos seus livros que relatava um período em que estive em S. Bento, conhecendo muito bem o que por lá se passava. Mas penso que, com o passado que tem, deveria cultivar um certo pudor e manter-se serena e inteiramente entregue às suas memórias, mesmo que sejam para se glorificar e isentar de pecados, o que é humano, demasiado humano. Em vez disso, magoa-se, destilando intermitentemente veneno político, ressentimento, rancor e até mesmo velhacaria para fora e para dentro do seu próprio partido. Ao menos que, neste caso concreto, se informasse sobre a posição de Portugal nos observatórios internacionais, não só no Economist, em tempo de pandemia. Mas compreende-se. O seu registo histórico e filosófico é o da dialéctica da intermitência.

CONCLUSÃO

Eu vivo cá e confesso que, de facto, ainda não me senti mais amordaçado do que estava nos seus vinte anos de poder. Um tempo primaveril, com um único problema: o das alergias, muito parecidas com as que são provocadas pelo pólen, sem ofensa para as flores. E depois de ler o Relatório ainda fiquei mais convencido de que em Portugal, afinal, há liberdade para se dizer o que se pensa. Na imprensa e na rede. Até alarvidades que revêm a nossa  própria história ou proclamações de arautos da virtude moral que nos querem despertar do torpor em que nós, herdeiros do colonialismo, estamos, sonolentos e incultos, a viver. Ou outras, como a sua, que dão uma péssima e falsa imagem de nós para o estrangeiro, apesar dos relatórios dos observatórios internacionais. E ainda para relatar outros factos que o desmentem publicamente. Amen.

MordaçaPin1_1003R1

“S/Título”. Detalhe.

Poesia-Pintura

VIAGEM

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Espanto”.
Original de minha autoria
para este poema.
Março de 2021.

Jas_Camelia4 cópia

“Espanto”. Jas. 03-2021.

POEMA – “VIAGEM”

ERA UMA VEZ
Uma camélia que,
Num sonho,
Me encantava,
Uma fada
Em busca
Do que eu perdera
No jardim
Onde morava.

FLOR DE ALVURA
Deslumbrante
Iluminou-me
A vida,
Nesse instante,
Na procura das raízes
Que sobraram
De uma estranha
Despedida
De dias que não
Voltaram.

MOSTRAVA
Um inocente
Espanto
De me ver
Assim, sozinho,
De repente
E por encanto,
Perdido
Do meu caminho.

E PARTIU.
Levou
A luz
Que o seu corpo
Acendia
Nesse estreito
Sendeiro
Onde a solidão
Não cabia.

DEIXOU O JARDIM,
Vida adentro
Por caminho
Original,
Era um feixe
De luz
À procura
Do que ficara
Perdido
Lá no fundo,
Num recife
De coral.

MAS ENCONTROU-TE
À tona,
Vagueando
No mar plano
Da vida
Sem saber
Onde ficara
A tua praia
Perdida.

E REGRESSOU
Ao jardim,
Triste
De não te poder
Resgatar
Dessa vida,
À deriva
Em ondas
De alto mar.

FOI À PROCURA
De cores,
Queria muitas
E vibrantes,
E encontrou
No jardim
Umas luzinhas
Brilhantes,
Dessa luz
Que não tem fim
Como a que
Guia os amantes.

E LÁ FOI
E anda ela,
Umas vezes
É pura luz
E outras
É aguarela,
Sempre
À procura de ti,
Levada
Pela corrente,
Com timidez
E espanto,
Por aí,
Até que um dia
Te encontre,
Talvez triste
E conformada,
Aninhada
Num recanto
De vida
Desperdiçada.

DAR-TE-Á
As suas cores,
Regressando
Ao jardim
Pra de novo
Iluminar
A minha melancolia
E ser regada
Por mim
Nas tardes
De cada dia.

CAMÉLIA
Encantada
No poema
E na pintura...
.............
Assim te vou
Recriando como
Fada
Que me cura!

Jas_Camelia4 cópiaR

“Espanto”. Detalhe.

Artigo

O REGRESSO DE GIUSEPPE CONTE

Por João de Almeida Santos

M5S

“O Contrato Digital”. Jas. 03-2021.

Se vuoi andare veloce, vai da solo. 
Se vuoi andare lontano, vai insieme”

(Ditado africano, posto por Beppe 
Grillo como leitmotiv de um seu 
recente artigo)

JULGO SER DE GRANDE INTERESSE, não só político, mas também teórico, seguir em detalhe o caso do italiano Movimento5Stelle (M5S), partido digital, ainda a maior força política presente no Parlamento saído das eleições de Março de 2018, com 32,7% dos votos e com os dois maiores grupos parlamentares, no Senado e na Câmara dos Deputados, 76 em 315 (ou 321, com os 6 Senadores “a vita”, entre os quais, actualmente: Claudio Abbado, Maestro, Renzo Piano, Arquitecto, e Carlo Rubbia, Nobel da Física) e 168 em 630, respectivamente. Uma força que está no governo desde 2018, mas que tem vindo a perder consensos, ao ponto de as últimas sondagens (8, em Janeiro e Fevereiro) lhe darem em média 14,7% como score eleitoral. Mas é um partido que diz que não é, que se reconhece como movimento ou, melhor ainda, como “livre associação de cidadãos”, como se lê logo na abertura do site do M5S. Tive ocasião de reflectir longamente sobre este Movimento num ensaio (Mudança de Paradigma: a emergência da rede na política. Os casos italiano e chinês) publicado pela Revista ResPublica (17/2017, pp. 51-78: http://cipes.ulusofona.pt/wp-content/uploads/sites/137/2018/07/RES-17v11.pdf), procurando evidenciar as características de um movimento político de novo tipo, ancorado, por um lado, num ambiente digital que funciona como o seu território, a sua cidade, e, por outro, na ideia de cidadania digital e de democracia directa digital, uma democracia pós-representativa, ancorada num cidadão user ou, melhor, prosumer, produtor e consumidor de política e comunicação. Um novo tipo de cidadão, portanto. Mas um movimento que, além disso, assumia uma liderança unipessoal, a de Beppe Grillo, como “garante” da sua própria coesão e, por isso mesmo, designado como “Il Garante”. É um movimento que tem, neste momento, 187.219 inscritos certificados, tendo direito de voto 118.918 inscritos. Além de “Il Garante”, tem um “Capo Politico” executivo, actualmente Vito Crimi,  tendo, entretanto, sido aprovada na Plataforma Rousseau, também designada por Eco-sistema Rousseau, uma alteração estatutária que atribui a direcção executiva do M5S a um Comité Directivo composto por cinco pessoas, a escolher em eleições que decorrerão na Plataforma. As deliberações do M5S são tomadas por votação dos inscritos nesta plataforma e vinculam os grupos parlamentares e os inscritos. Não é, de resto, por acaso que a plataforma se chama Rousseau, pois este filósofo contratualista, no “Contrato Social (1762),  recusa precisamente a representação política, substituindo-a pela ideia de comissariado: “La souveraineté ne peut être représentée, par la même raison quʼelle ne peut être aliénée; elle consiste essentiellement dans la volonté générale, & la volonté ne se représente point: elle est la même, ou elle est autre; il nʼy a point de milieu. Les députés du peuple ne sont donc ni ne peuvent être ses représentants, ils ne sont que ses commissaires; ils ne peuvent rien conclure définitivement” (Du Contrat Social: Liv. III, Cap. XV; itálico meu).

Digamos que a instituição representativa surge aqui como continuação da democracia directa exercida pelos inscritos (os “cidadãos activos”, de kantiana memória) no Eco-sistema Rousseau, instância política a que ficam subordinados os (seus) representantes-comissários no Parlamento. Ou seja, não existe neste Movimento a distinção entre génese (poder de propositura das candidaturas) e validade (titularidade do poder soberano), ficando os representantes dependentes da vontade de um poder privado, neste caso o M5S, o que contraria a própria constituição italiana, ao determinar que os representantes não têm vínculo de mandato, reproduzindo, de resto, os termos constantes do famoso art. 7., Secção III, Cap. I, Título III, da Constituição francesa de 1791: “Les représentants nommés dans les départements, ne seront pas représentants d’un département particulier, mais de la Nation entière, et il ne pourra leur être donné aucun mandat” (itálico meu). Claro como a água: serão representantes de toda a Nação e “não lhes poderá ser dado vínculo de mandato”.

Por outro lado, a visão programática estratégica do M5S, além das profundas mudanças no plano estritamente político e do combate contra o clássico establishment político e mediático (até à sua substituição por um seu governo, como aconteceu em 2018), centra-se no pilar fundamental da ecologia (ambiente, água, energia), que pode ser traduzido por transição ecológica e digital e que já se encontra materializada em dois ministérios do governo Draghi, precisamente o da Transição Ecológica, proposto e negociado por Grillo, e o da Inovação Tecnológica e Transição Digital.

Estas as características essenciais de um Movimento que ainda é a maior formação política italiana e que integra o actual governo de Mario Draghi, com quatro dos 23 ministros que compõem o executivo.

O M5S EM MOVIMENTO

O que, entretanto, está a acontecer, agudizado pela votação da moção de confiança ao governo Draghi e que viria a dar origem a uma grave divisão no seio do Movimento,  já com 36 ou 39 expulsões de deputados e senadores, levou Beppe Grillo e a cúpula dirigente do M5S a dar início a um processo de refundação do Movimento, estando já concordado que Giuseppe Conte, o ex-Presidente do Conselho de Ministros desde 2018, assumirá a  sua liderança, mantendo-se, naturalmente,  Beppe Grillo como “Il Garante”, o patrono. Decisão que não será alheia aos resultados de sondagens que dariam o M5S a subir significativamente com Conte na liderança. Com efeito, ontem foi divulgada uma sondagem da Swg para “La 7”, onde, se fosse liderado por Giuseppe Conte, o M5S subiria mais de 6 pontos alcançando a Lega (22% contra 22,3%) e penalizando sobretudo o Partido Democrático, que se ficaria pelos 14,2%, abaixo, em cerca de dois pontos, de Fratelli d’Italia. Um significativo resultado do índice de agrado que Conte conserva na opinião pública. Uma catástrofe para o Partido Democrático. E o sinal de que Itália está a conhecer profundas mudanças no panorama político.

Mas qual é a nova filosofia para o renascimento de um movimento que está reduzido eleitoralmente a menos de metade, que não vê a sua representação política traduzir-se em lugares no governo, que está à beira de se partir (quase) ao meio e que foi incapaz de, mesmo estando no governo, operacionalizar no terreno uma das suas bandeiras mais significativas, a cidadania digital? A aposta é clara se tomarmos na devida consideração o artigo de Domingo, 28.02, de Beppe Grillo, “Andiamo Lontano”: o renascimento do movimento, em proposta confiada a Giuseppe Conte, e o desafio da transição ecológica e digital. Sendo certo que a questão do ambiente sempre foi um dos temas programáticos originários e fundamentais do M5S, neste momento esta parece ser a área decisiva a partir da qual o M5S se virá a repropor aos eleitores italianos. Esta é uma aposta que Grillo vê como maior do que a própria aposta na economia e na política, visto que se trata de um desafio civilizacional, social, cultural e moral que, mais do que uma concretização programática, implica uma mudança global na forma como todos, e cada um, deverão encarar a vida, na mentalidade, nos hábitos, nos costumes e nos objectivos. Uma revolução difícil, portanto, porquanto atinge o comportamento quotidiano da cidadania, uma revolução nos seus hábitos.  Diria que, vista a importância que o M5S atribui à transição digital, a um avanço na sociedade digital e em rede deverá corresponder um regresso a uma Lebenswelt mais próxima da natureza, mais respeitadora das suas leis, mais contida e sábia na exploração dos recursos naturais. Não se tratará, claro, de um back to the basics, um regresso à vida campestre, mas corresponderá a uma forte inversão no percurso devastador da economia capitalista e no “excessivo desenvolvimento económico potencialmente destruidor do ponto de vista ambiental”, como diz Grillo. Uma revolução que terá, portanto, um enorme impacto sobre a economia, sobre a redução das desigualdades e, naturalmente, sobre a sustentabilidade do próprio planeta.

É claro que tudo isto terá de ser submetido a voto na Plataforma Rousseau, havendo já quem critique o afunilamento decisional que se está a verificar por parte da elite dirigente, num movimento que, afinal, reivindica para si a necessidade de devolver “à totalidade dos cidadãos o papel de governo e de orientação normalmente atribuídos a poucos”. E a questão começa logo no papel do Comité Directivo que foi recentemente aprovado e que agora deve ser adaptado a uma nova liderança interpretada por Giuseppe Conte.

O M5S E A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

Há na filosofia do M5S um problema de fundo que não bate certo com a natureza da democracia representativa e com a dimensão universal das suas instituições políticas. Ou seja, segundo os estatutos, o mandato dos representantes eleitos nas listas do M5S é um mandato imperativo, vinculado às decisões do povo digital do M5S que se exprime concretamente na Plataforma Rousseau, o que contraria a própria constituição italiana: “Ogni membro del Parlamento rappresenta la Nazione ed esercita le sue funzioni senza vincolo di mandato”, art. 67. Ou seja, nenhuma plataforma, partido ou poder pode condicionar a vontade de um membro do parlamento, pois o que ele, eleito, representa é a Nação, estando, pois, acima de qualquer interesse particular, individual, territorial ou sectorial. Mas não é assim, como se comprova pela imediata expulsão de deputados e senadores que, no Parlamento, votaram contra a moção de confiança ao governo de Draghi.

Depois, vem o problema da cidadania digital, entendida de forma substantiva. Que significa esta cidadania? Que a cada cidadão é concedida a possibilidade material de se exprimir e de agir de no eco-sistema digital sem condicionamentos? Tem acesso livre e (pelo menos tendencialmente) gratuito não só aos meios adequados para exercer a cidadania digital, mas também às infraestruturas onde ocorre este exercício? Como intervém o Estado na materialização destas condições? Claro que a questão é muito vasta e vai desde a atribuição de uma identidade digital desde o nascimento e, depois, a partir da maioridade até ao desenvolvimento de um e-government com a integral disponibilidade digital da Administração Pública perante a cidadania. Sim, mas a questão do acesso é decisiva, indo desde a infraestruturação digital de todo o país em banda larga até à disponibilização dos instrumentos para o acesso digital, seja de plataformas seja de rede. Esta matéria tornou-se mais visível, um pouco por todo o lado, durante a pandemia em relação ao e-learning, uma vez que todas as famílias deveriam dispor de computadores e de rede para aceder ao e-learning, sob pena de se verificar um atropelo ao direito ao acesso gratuito à educação, provocando novas desigualdades.  Desigualdades digitais materiais, para não falar da própria iliteracia digital. É certo que, no início, aquando da sua entrada no governo, o M5S parece ter tentado resolver este problema concedendo tempo diário limitado de acesso gratuito à rede, o que não parece ser uma brilhante solução nem uma formulação correcta da questão da cidadania digital, neste aspecto. É que, nesta perspectiva, e tratando-se de um bem público, a sua resolução não poderia deixar de tomar em consideração o acesso público gratuito e permanente a todas as condições necessárias para um exercício pleno da cidadania digital, e não um exercício intermitente da cidadania. Digamos, rede em canal aberto permanente e meios de acesso. Seria isto possível ou o problema ficaria limitado à disponibilização de cobertura universal em banda larga, ficando a operacionalização individual totalmente cargo do cidadão digital? Como se sabe, esta é uma questão que, precisamente a propósito do e-learning motivado pela COVID19, tem vindo a merecer a atenção da agenda pública. Uma questão, pois, de grande melindre, mas muito actual e premente, que deve merecer a devida atenção política, lá como cá.

CONCLUSÃO

Estas são questões de fundo com as quais o M5S tem se confrontar porque algumas delas entram em contradição directa com a natureza do regime de democracia representativa, até porque a pertença a instituições como o Parlamento as torna mais intensas, pondo mesmo directamente em causa as determinações estatutárias. Viu-se, como disse, na votação da moção de confiança ao governo Draghi e na desastrosa consequência estatutária da expulsão do Movimento de um número significativo de deputados e senadores que, por estatuto da República, não estão nem devem estar sujeitos a qualquer vínculo de mandato, enquanto forem intérpretes de uma democracia representativa. Mas, fosse qual fosse a crise já latente no M5S, com esta nova situação ela aprofundou-se e acabou por dar origem a uma espécie de refundação do Movimento, libertando-o das suas características mais radicais. Foi por isso que Di Maio, a propósito do governo Draghi, afirrmou:

«Questo governo rappresenta il punto di arrivo di un’evoluzione in cui i Cinque Stelle mantengono i propri valori, ma scelgono di essere finalmente e completamente una forza moderata, liberale, attenta alle imprese, ai diritti, e che incentra la sua missione sull’ecologia. Tutta la trattativa con il premier Draghi è stata fatta sul ministero per la Transizione. Questo per noi è un nuovo inizio».

Não são de somenos estas palavras usadas pelo antigo “Capo Politico”: força moderada e liberal. Se a posição de Di Maio vingar, a palavra liberal terá um peso político em toda a mecânica do Movimento, a começar pela relativização das funções de deliberação, decisão e legitimação do Eco-sistema Rousseau e, naturalmente, da reinvindicada democracia directa digital, pondo também o acento, no que concerne à cidadania digital, mais no e-government e no acesso à administração pública do que nos direitos digitais de cidadania activa do cidadão, ou seja, no assistencialismo digital.  Aguardemos, pois, o documento de Giuseppe Conte para podermos compreender em que direcção o M5S se vai realmente mover.

M5SRec

“O Contrato Digital”. Detalhe.