O INFAUSTO DESTINO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. Jas. 03-2021.
MUITAS FORMAÇÕES POLÍTICAS com um historial já longo e muitos políticos experimentados ainda não se deram conta das profundas transformações que alteraram as condições de exercício da política, preferindo continuar a agir no interior de um paradigma que já está ultrapassado pela realidade. Um exemplo, para começar. O caso do Brasil e uma técnica inovadora de golpe de Estado – Lawfare. Usando o caso da Lava Jato, a incriminação de Lula, o impeachment de Dilma Rousseff, a condenação e a prisão de Lula chegou-se à eleição de Jair Bolsonaro, um ex-capitão do exército e deputado federal, protagonista político pouco qualificado, como Presidente da República. A isto chama-se Lawfare (sobre este tema ver artigo de 24.11.2020 – https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/24/artigo-23/?fbclid=IwAR24ZzCltCC0Qba-QPBJO9kvhVGz_kzyLjFU4EkzZZRhjeekhUwqCexg38s). Objectivo: remover o PT do Palácio do Planalto, instalar lá um ex-militar e uma multidão de militares (são milhares no poder político e na Administração) e promover os interesses dos que o lá colocaram (incluídas as Igrejas evangélicas).
Um desenho claríssimo com todos os ingredientes de um golpe longamente preparado e executado. Maquiavel e Curzio Malaparte não poderiam imaginar esta sofisticada técnica de conquista e conservação do poder. O novo golpe de Estado baseia-se no uso instrumental do direito para fins políticos no interior de um Estado de direito e de uma democracia representativa pluralista. As botas cardadas (ou a arma branca de que falava Maquiavel) são passado e já não são precisas a não ser em situações absolutamente extremas de mudança radical de regime. O caso brasileiro é bem ilustrativo da nova técnica, agora que são públicas as manobras de bastidor do poder judicial, com Sérgio Moro à cabeça, reveladas pelo Intercept Brasil e conhecido como Vaza Jato. Mas ficou ainda mais evidente depois de o processo de Lula da Silva ter sido anulado e Sérgio Moro acusado de parcialidade. Tudo clarinho: Lawfare. Tangentopoli foi o modelo, de resto, reivindicado por Moro. Baltazar Garzón também tentou, mas foi afastado. E muitas outras operações desta natureza andam por aí, ao serviço da política, numa aliança fatal entre o poder judicial e os media. Nesta técnica os tribunais limitam-se a ratificar os julgamentos “populares” promovidos por esta santa aliança, para usar a expressão usada por Alain Minc, no seu excelente L’ivresse Democratique (Paris, Gallimard, 1985) e em Au Nom de la Loi (Paris, Gallimard, 1998). Mas não esqueço que os militares ainda estão politicamente no activo em certos países, como, por exemplo, em Myanmar.
FICÇÃO DEMOCRÁTICA
ISTO SERIA SUFICENTE para exigir das forças políticas responsáveis uma fortíssima atenção e medidas muito rigorosas porque vem alterar radicalmente a saudável competição política e o tranquilo exercício do poder, desde o momento em que a criminalização da política passou a espreitar a cada esquina: impedir candidaturas, derrubar governos e presidentes. Se, depois, juntarmos a isto a capacidade espantosa de as grandes plataformas digitais desenvolverem modelos preditivos, conhecendo e desenhando minuciosamente os perfis individuais dos cidadãos/eleitores e antecipando comportamentos políticos futuros, então a componente electiva dos sistemas políticos pode tornar-se pura ficção, inútil e enganadora. Regressaremos, assim, a uma época de absoluta instrumentalização da política e à sua redução a simples exercício do poder. A política identificar-se-á simplesmente com poder, puro e duro. Os efeitos sobre a política democrática serão devastadores e entraremos em grave regressão política, com um novo tipo de soft power a tudo gerir baseado numa legitimidade puramente artificial e em mandatos totalmente fungíveis em função dos interesses fortes, ocultos e poderosos. É este o problema central e o risco que as democracias representativas correm, sobretudo quando são governadas por aprendizes de feiticeiro cuja única ambição é o conforto financeiro e um fugaz tempo de fama e glória que a história seguramente não registará.
MUDANÇAS PROFUNDAS
Mas a mudança é ainda mais profunda e traduz-se, por exemplo, no novo tipo de cidadania que está a emergir: a cidadania das plataformas móveis, que está em crescimento acelerado, sobrepondo-se à crise das ideologias clássicas, das grandes narrativas, e dando lugar a um cidadão de múltiplas pertenças orgânicas, civilizacionais ou culturais que, na área política, já não decide exclusivamente com base no velho “sentimento de pertença” a um partido e a uma ideologia. Acresce que este cidadão tem acesso directo, não mediado, ao espaço público. Ou seja, a organicidade política perdeu muita da sua importância para a decisão e para a mobilização política. O inorgânico está a tomar conta da dialéctica política. Na verdade, está-se a verificar uma progressiva divergência entre a cidadania e o establishment político, em grande parte devido ao desencontro ente o modelo de gestão política e a identidade da nova cidadania.
Depois, a personalização da política, em termos de autoria da proposta política como forma de ultrapassar a fraqueza da componente orgânica, está a aprofundar-se relativamente ao período da chamada “democracia do público”, precisamente pela centralidade que as novas vias da comunicação digital conquistaram também no processo político. Alguns falam de hiperpersonalização e ela corresponde ao esgotamento da mediação orgânica da política.
Mas também há que evidenciar a fortíssima irrupção política directa dos poderes corporativos no espaço público deliberativo, transpondo para a comunicação pública o seu poder efectivo nos centros nevrálgicos do sistema social (pense-se, por exemplo, nos oligopólios das redes de comunicação e das redes de distribuição). Estes poderes corporativos são decisivos porque as sociedades já funcionam em rede enquanto sistemas sociais, detendo eles o controlo dos seus centros vitais. Eles podem paralisar o sistema com uma simples decisão corporativa.
Depois, há ainda o poder financeiro internacional que já está instalado nos centros nevrálgicos dos países e cujo poder ultrapassa o poder político nacional (veja-se o caso de Portugal). A que acresce o poder das agências de notação com a sua capacidade de influenciar os juros da dívida pública (e o valor das empresas) no mercado de capitais.
Estes e outros factores só por si já exigiriam um repensamento do modelo de acção e de organização das formações políticas democráticas se estas quisessem efectivamente representar a cidadania e as sociedades em que se movem. Não o fazendo deixam que o sistema se degrade e se torne cada vez mais difícil actuar eficazmente sobre ele com a independência que exige a representação da vontade geral e do interesse geral. As políticas identitárias, depois, vêm ajudar à festa, juntando-se às corporações para fragmentar ainda mais e enfraquecer a gestão unitária das sociedades. Alguns falam de tribalização da sociedade, mas eu prefiro continuar a chamar-lhe corporativização da política pelos grupos de interesse.
CONCLUSÃO
PODERIA CONTINUAR para demonstrar uma coisa muito simples: nos moldes pragmáticos e realistas em que tem vindo a funcionar o establishment político verificam-se hoje fortíssimos condicionamentos que lhe exigem, por um lado, flexibilidade na acção e, por outro, capacidade de risco na decisão, de acordo com um quadro de valores firmes a defender e a praticar. Por isso, a política de simples gestão do status, de redistribuição em função de uma lógica de pura sobrevivência política e de reprodução no poder tem os dias contados e não augura, desde já, nada de bom. De forma mais clara ainda: gastar o tempo do exercício do poder simplesmente para o conservar equivale a puro desperdício. Hoje já nem as forças conservadoras mais clarividentes funcionam assim, apesar de representarem mais directamente os interesses instalados. Porque se funcionarem assim ficarão totalmente reféns dos poderes fortes, sendo certo que a maior parte destes poderes se alimenta dos recursos do Estado e, consequentemente, dos impostos da cidadania, o que se repercutirá sempre na captação do consenso necessário para governar. Sempre houve, mesmo na política conservadora, uma diferença funcional entre poder económico e poder político. Não será, pois, compreensível que uma política de centro-esquerda aceite suportar, ficando refém, sem visível distanciação ou mesmo directo confronto, o protagonismo político directo das corporações ou das tendências identitárias. E muito menos quando estas têm o poder de alterar a natureza da própria competição electiva, confiscando esse direito à cidadania.
A questão deve, pois, pôr-se sobretudo ao centro-esquerda, exigindo-lhe que proceda à redefinição da sua cartografia cognitiva, um quadro de valores estruturais e estruturantes e um centro de poder eficaz e capaz de dar combate nas frentes em que for necessário, ao mesmo tempo que assume a ambição de se tornar hegemónico na sociedade e não só na política. Mas o que é verdade é que o centro-esquerda arrisca-se a deixar de saber verdadeiramente que a sua própria justificação está na sociedade civil e não no Estado. É aí que se conquista a hegemonia e, portanto, o poder democrático. Há muito que digo que por haver excesso de Estado no centro-esquerda ele tem tendido cada vez mais a esquecer a centralidade da sociedade civil, razão primeira e última da existência do Estado. O que não significa que a visão correcta seja a do Estado mínimo ou supletivo. Não, como a actual crise sanitária e económica tem mostrado e como têm mostrado as sucessivas crises das instituições financeiras e dos sectores nevrálgicos da sociedade. O que não pode acontecer é essa rampa deslizante que tende a tornar o Estado o alfa e o omega das sociedades e da mundividência da esquerda reformista ao mesmo tempo que cede cada vez mais o lugar da política pura e dura aos interesses corporativos e às idiossincrasias identitárias, num processo de efectiva captura do interesse geral, de desvitalização da política e de transformação do exercício governativo em mera governança ou gestão burocrática do poder, sem ambição estratégica e vocação hegemónica. Apetece-me terminar repetindo o que acima disse: o tempo do poder não deve ser desperdiçado com a única preocupação de o conservar. Não o digo eu, disse-o o antigo governador do BCE e actual Primeiro-Ministro de Itália, Mario Draghi, no seu discurso inaugural perante o Senado. Jas@03-2021.

“S/Título”. Detalhe.