Artigo

MORDAÇA

Por João de Almeida Santos

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“S/Título. Jas. 03-2021.

DIZEM POR AÍ que Portugal está amordaçado, que vivemos numa democracia amordaçada e imperfeita. Parece que sim, que alguém diz. Ah, digo eu, como a imperfeição das democracias pode gerar regimes de mordaça quando alguns acham que a devem melhorar, purificando-a e libertando-a da balbúrdia. No fim, é tudo uma questão de liberdade, valor supremo. Pois é.

“PORTUGAL AMORDAÇADO”

IMAGINO QUE O AUTOR deste sofrido lamento se sinta sufocado no seu retiro presidencial, mas não, como todos nós, por causa da vergonhosa COVID19. Sufocado, sim, mas por falta de liberdade, não por falta de ar. A COVID19 que se lixe, resolve-se com uma vacina nem que venha da China ou da Rússia, pois as vacinas não têm ideologia. Ele respira liberdade. E se lhe dizem que está a ser ameaçada decide de imediato ir para a rua, tomar ar e gritar, a plenos pulmões, ao lobo… como na famosa fábula de Esopo. Não por tédio, isso não, mas por falta de ar democrático. Por isso vai sem máscara. Para gritar mais alto. Ou, melhor, vai com a sua, a natural, a que protege do sufoco democrático. Mas compreende-se tanta angústia, tanto sufoco, tanto sofrimento. E também se compreende que a quietude e o silêncio em certos momentos de falta de ar não sejam bons para a saúde democrática. Sobretudo para ele, que conseguiu manter Portugal a respirar liberdade, livre da mordaça, durante os 20 anos em que esteve no poder, não lhe podendo ser atribuída responsabilidade por algo que possa ter corrido mal (e para isso está a escrever os livros de memórias onde faz a demonstração da brancura dos seus quatro mandatos). Sem mácula, mas combativo, de peito às balas, ele desenterra, hoje, com visível e preocupada angústia, a palavra usada por Mário Soares no livro sobre a ditadura do Estado Novo, “Portugal Amordaçado”, de 1972. E lança o grito de alarme.

MORDAÇA LIGHT

É certo que a palavra perdeu vigor com a democracia, regime que não tolera a mordaça, com ou sem ele no poder. Na verdade, relativizou-se, porque, afinal, há sempre um pouco de mordaça por aí, ainda que seja light ou privada. Nem que seja porque os jornais e as televisões só põem no espaço público os do costume, a debitar banalidades, nesse círculo fechado em que se comentam uns aos outros, sendo que uma boa parte parte deles o faz como his master’s voice. E nisso o nosso personagem até é doutor, ajudado que foi por um seu sagaz e saltitante assistente que hoje é um famoso áugure do oráculo televisivo. De tanto os controlar, em nome da liberdade, claro, acabou por se tornar um deles. Mas lembro-me muito bem das batalhas pela liberdade que ambos travaram quando estavam no poder. Os polícias que o digam.

Mas, sim, a mordaça veio para ficar. Regressa sempre. Um destino. Um fado. Já não tem a mesma força, convenhamos, porque não é tão sufocante como a da ditadura, aquela a que se refere o livro de Mário Soares. É mordaça light, mas é mordaça. Pelo menos parece. Pode vir de alguma corporação, sim, mas não é igual à autêntica. Acho eu. De uma coisa tenho, porém, a certeza: a mordaça perdeu força, desvitalizou-se durante os 20 anos em que o melancólico queixoso esteve no vértice dos poderes presidencial e governativo – de 1985 a 1995 e de 2006 a 2016. 20, em 45 anos.  Coisa não despicienda que os portugueses, sempre tão generosos, lhe facultaram. Em nome da sagrada liberdade. Dizia-se até, ao tempo, que o seu rosto se parecia com o rosto da liberdade. Mas o tempo no poder, sim, o tempo no poder, foi mais do que suficiente para escorraçar definitivamente do corpo e da alma de todos nós a mordaça política e consolidar a liberdade que tanto preza, que tanto prezamos. E bem tentou, pondo todas as suas forças, as que tinha e as que não tinha, ao serviço desse ideal. Que o digam os polícias,  secos ou molhados, não importa, ou os ex-ministros da Administração Interna Silveira Godinho e Dias Loureiro. Sim, que o digam eles. Mas, mesmo assim, depois de tanta abnegação, o que, afinal, se conclui é que de nada serviu esse gigantesco empenho – talvez o maior durante os seus longos tempos de poder, os mais longos em democracia  –  para  tornar irreversível o tempo da liberdade, impedindo o regresso da mordaça de má memória. Lembro-me bem da sua temerária denúncia pública, materializada num jornal de referência e de qualificado público, da tentativa de um outro primeiro-ministro socialista impor um regime de mordaça. Lembro-me, sim,  e muito bem, porque assisti, estupefacto, à movimentação dos carros armados em S. Bento, onde trabalhava, e da corajosa intervenção do nosso personagem, e de alguns temerários jornalistas, para impedir a mordaça já em movimento. Até porque parece que, logo a seguir à imprensa, ele seria o primeiro a ser amordaçado. Não se sabe em que grau, mas amordaçado. Sim, impediu, e por isso lhe estaremos eternamente gratos. E os madeirenses também.

Mas depois, pasme-se, veio outro socialista, António Costa, e com ele comunistas e bloquistas, para instalar finalmente a tão odiada mordaça: Portugal Reamordaçado. Os socialistas não pensam mesmo em mais nada senão em impor a mordaça, logo ali, ao virar de cada esquina. Uma autêntica obsessão. Ou, quem sabe, um defeito genético que nenhum líder consegue extirpar. Mal que vem da raiz, como demonstrarão futuras investigações académicas dos habituais cientistas políticos sobre a mordaça, imaginem, na obra política de Mário Soares, agora que a moda pegou com os estudos académicos sobre o racismo na obra de Eça de Queiroz. O nosso protagonista foi obrigado a dar-lhe posse, é verdade, e agora é o que se vê: mordaça por todo o lado. Até eu já me sinto amordaçado, duplamente, pela COVID19 e por António Costa. Acordo de manhã, levanto-me e logo sinto a mordaça que me oprime o peito e não me deixa respirar. E o pior é que nem posso ir para a rua gritar ao lobo, porque acabarei detido. Uma dor no corpo e na alma, sim. Mas… aleluia, felizmente chegou, qual Mário Soares revisitado (o da liberdade, entenda-se), de trotinete digital o homem do sul, ou do leme, já nem sei, a gritar a plenos pulmões, e com razão, contra o “Portugal Amordaçado”. Prepara, ao que consta, e para que conste, um novo livro: “Portugal Reamordaçado”. Pelos socialistas. Com um subtítulo muito elucidativo: “A atracção fatal do socialismo democrático”.

MORDACRACIA

Já antes houvera, como disse, uma tentativa de a impor, que ele corajosamente travou porque estava lá, no poder; mas, agora, que já não está, lá conseguiram eles impor (com a ajuda dos comunistas) o execrável regime da mordaça. Um novo tipo de regime que os cientistas políticos, esses que não saem do monitor televisivo, já estão a introduzir na novilíngua da ciência política: mordacracia. Nem ditadura nem democracia. Um hircocervus de rosto socialista.

Mas, seja como for, e ainda que me doa a alma, não posso deixar de interpolar algumas glosas nesta narrativa da mordaça: o personagem tem  algumas responsabilidades no estado de mordaça em que o país se encontra. Ah, tem mesmo. Oh, se tem. No melhor pano cai a nódoa. Não há regra sem excepção. Porque, das duas uma: ou a sua passagem pelo poder foi inócua (mas não foi, senão não teriam sido criados bancos livres de mordaça como, por exemplo, o BPN) ou então foi, também ele persistente e remoto obreiro no regime de mordaça em que nos encontramos. Porque vinte anos no poder em 45 de democracia (a Constituição é de 1976) correspondem quase a metade da nossa vida democrática. Tempo mais do que suficiente para que alguma responsabilidade lhe caia sobre os ombros… embora sem o derrubar.  Ou não? Que diabo, alguns erros, involuntários, claro, ele terá cometido, embora saibamos, por ele, que nunca erra e raramente se engana. Raramente. Oh, talvez esteja aqui a solução do enigma. Raramente. A não ser que algo muito parecido com os “corsi e ricorsi” do Giambattista Vico, ou seja, um longo tempo de intermitência, explique estes fortes altos e baixos, estas ondulações da história de Portugal:  mordaça/não mordaça. Tertium non datur.

O QUE DIZ A “FREEDOM HOUSE”?

Bom, mas parece que lá fora – excepto os do Economist, na sua dorida versão não acreditam que Portugal viva em regime de mordacracia. Espicaçado e preocupado pelos dolorosos gritos de dor do nosso personagem fui ver a mais recente classificação dos regimes políticos pela Freedom House (FH – ONG com sede em Washington, criada em 1941 e que teve como fundadora, entre outros, Eleanor Roosevelt). E comparei as tristes lamentações com o seu recentíssimo Relatório: Portugal surge quase no topo da tabela só atrás da Finlândia, da Noruega, da Suécia, todos com 100 pontos (fazendo o pleno), e da Irlanda, com 97 pontos. Portugal exibe, de facto, 96 pontos e está à frente de países como a Alemanha, com 94, o Reino Unido, com 93, a França e a Espanha, com 90, e os Estados Unidos, com 83 pontos. Podemos não ser lá grande coisa na economia, na cultura ou no combate à COVID19. Podemos, sim. Mas dizem eles que em matéria de liberdade, isto é, de não-mordaça, estamos entre os melhores do mundo. Ainda que isso custe aos do Economist, que tanto preocupam o nosso protagonista. Mas até creio que ele tem a maior consideração por esta ONG, por onde têm passado inúmeros personagens da sua família ideológica, ou seja, do partido republicano americano.

RESSENTIMENTO OU RANCOR?

Eu não sei que influência o socialista António Costa tem em Washington, na Freedom House, mas o que é certo é que esta classificação deveria levar o autor da denúncia a sentir-se um pouco mais aliviado, menos oprimido, libertando-se desse atroz ressentimento e do rancor que o oprimem pelo estado de mordaça que lhe impuseram, por fora, e que lhe está a fazer tantos estragos morais e psicológicos, por dentro. Não só, porque, maravilha das maravilhas, a classificação até acaba por absolvê-lo de uma responsabilidade partilhada pelo estado de mordaça a que isto chegou e por libertá-lo da maçada de ter de se tornar no venturo autor de um “Portugal Reamordaçado”. Na verdade, dadas as características da FH não vejo razão para que o intrépido militante da causa da livre democracia não confie na classificação que, ao mesmo tempo, o desmente, mas tranquiliza. Um oximoro, sim, mas verdade reconfortante. Para ele e para nós. Nem mordaça nem culpado dela. Que mais quer o nosso protagonista?

E é verdade que não perco tempo a ler as suas memórias, porque são como o OMO: lavam mais branco. O que, de resto, pude confirmar quando, por uma vez, li um dos seus livros que relatava um período em que estive em S. Bento, conhecendo muito bem o que por lá se passava. Mas penso que, com o passado que tem, deveria cultivar um certo pudor e manter-se serena e inteiramente entregue às suas memórias, mesmo que sejam para se glorificar e isentar de pecados, o que é humano, demasiado humano. Em vez disso, magoa-se, destilando intermitentemente veneno político, ressentimento, rancor e até mesmo velhacaria para fora e para dentro do seu próprio partido. Ao menos que, neste caso concreto, se informasse sobre a posição de Portugal nos observatórios internacionais, não só no Economist, em tempo de pandemia. Mas compreende-se. O seu registo histórico e filosófico é o da dialéctica da intermitência.

CONCLUSÃO

Eu vivo cá e confesso que, de facto, ainda não me senti mais amordaçado do que estava nos seus vinte anos de poder. Um tempo primaveril, com um único problema: o das alergias, muito parecidas com as que são provocadas pelo pólen, sem ofensa para as flores. E depois de ler o Relatório ainda fiquei mais convencido de que em Portugal, afinal, há liberdade para se dizer o que se pensa. Na imprensa e na rede. Até alarvidades que revêm a nossa  própria história ou proclamações de arautos da virtude moral que nos querem despertar do torpor em que nós, herdeiros do colonialismo, estamos, sonolentos e incultos, a viver. Ou outras, como a sua, que dão uma péssima e falsa imagem de nós para o estrangeiro, apesar dos relatórios dos observatórios internacionais. E ainda para relatar outros factos que o desmentem publicamente. Amen.

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