LAVANDARIA SEMIÓTICA
Por João De Almeida Santos

“S/Título”. Jas. 03-2021.
COMEÇA A SER PREOCUPANTE esta higienização da língua, da arte e da história que grassa por aí. Agora é a Universidade de Manchester que, em nome de uma linguagem inclusiva e neutra, cria um guia de boas práticas linguísticas, um “guide outlines how to use inclusive language to avoid biases”, para seu uso e consumo. Uma autêntica revolução semiótica. Regras de bom comportamento linguístico. Nem mais nem menos. Até as palavras pai e mãe, irmão e irmã, homem e mulher e marido e mulher saem do culto glossário manchesteriano para serem substituídas preferencialmente (rather than, é a fórmula usada) por parent ou guardian, por sibling, por person ou por partner, respectivamente. Isto numa Universidade de um país que se preza de conservar e dignificar as suas tradições. Não numa creche. Eu, que tenho dois filhos, se algum deles me tratar por guardian digo-lhe que vá chamar guardian a outro. Sou pai e esta palavra traz consigo um imenso afecto que não pode ser reduzido à categoria de guardião ou de tutor ou do que lhe quiserem chamar.
Naturalmente, Portugal não quis ficar atrás de Manchester e o Conselho Económico e Social, dirigido pelo socialista Francisco Assis, que, creio, foi contra o acordo ortográfico, logo se apressou a (quase) aprovar também um manual de boas práticas linguísticas, não um manual de boas práticas de concertação entre parceiros do mundo económico e social. O CES, com Assis, a caminho de se concertar sobre um inédito acordo semiótico.
ARAUTOS DA NOVILÍNGUA
ESTA VISÃO CLÍNICA DA LINGUAGEM, esta limpeza linguística, esta lavandaria semiótica, ao serviço de uma visão do mundo politicamente correcta, devidamente esterilizada e pasteurizada, já está mais institucionalizada do que parece e acompanha, naturalmente, aquela outra desse revisionismo histórico que já está a chegar à literatura, passando pelos monumentos e pela pintura. O revisionismo em todo o seu esplendor – uma cruzada em pleno desenvolvimento pronta a bater-se pela novilíngua universal contra os infiéis, os apóstatas. Uma nova santa inquisição que espreita à esquina, com manuais de boa conduta à mão, e que promove blitzkriege contra os símbolos da opressão línguística, artística e histórica. Que o digam algumas obras de arte já castigadas pelos arautos da nova fé. Eles já andam pela gramática e pela semântica, pelos museus e pela arte pública a punir os desmandos do passado e os seus testemunhos. Ainda os hei-de ver a chicotearem estátuas no pelourinho (talvez electrónico), tal a fúria castigadora dos arautos da novilíngua.
É preciso começar por algum lado, acham eles. Pois então comece-se pela língua, pela arte e pela história. A língua espelha a história de um país e, se condenarmos o seu passado, como condenamos, pelas suas práticas incorrectas e imorais, ao longo de séculos ou mesmo de milénios, desde o tempo dos homens das cavernas, em nome dos valores que hoje consideramos absolutamente correctos, então há que efectuar uma limpeza, mas não só da língua e dos rastos que a iniquidade deixou nela, higienizando-a, esterilizando-a, purificando-a das impurezas e das bactérias que historicamente se foram sedimentando até nas suas próprias estruturas formais (exemplo, o domínio do género masculino da gramática e os sinais de diferença sexual ou no próprio direito, também com inadmissíveis marcas masculinas), mas também das obras de arte onde possam ser encontrados resquícios ou marcas de um passado construído com os valores que hoje execramos (na escultura, na literatura, na história). Marcas que nem para a sucata hão-de servir, não vão os sucateiros reciclar tão deletérios produtos.
HEGEMONIA
O QUE É CURIOSO é que isto está a acontecer nos países que mais progressos civilizacionais fizeram e que coexistem com imensos países onde o básico nem sequer está garantido à generalidade das populações. Um gigantesco salto em frente – esperando-se que não seja para o precipício -, em vez de uma viagem aos passados que coexistem connosco e que estão aqui ao nosso lado, bem à vista, merecendo uma preocupação absolutamente prioritária relativamente às marcas visíveis na gramática, na semântica ou na arte. Estes passados estão a chegar à EU pelo Mediterrâneo, querendo tornar-se presente. Sim, mas o passado ficou lá nas suas terras, nas suas casas. E é lá que reside o problema principal.
Mas é por aqui, pela limpeza semiótica, que esta luta civilizacional está a avançar com enormes vitórias nas próprias instituições internacionais, com sinais que são verdadeiramente preocupantes porque nos arriscamos a que esta se torne uma visão hegemónica e que acabe por assumir uma natureza inquisitorial, um policiamento das consciências, através da língua, da arte e da história e que nos amarre ao universo da narrativa e das palavras autorizadas. Uma matriz claramente antiliberal e uma palavra de ordem que é o oposto do que ficou consignado no documento que representa a matriz da nossa modernidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Art. 5: “Tout ce qui n’est pas défendu par la loi ne peut être empêché, et nul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne pas.”): é proibido tudo aquilo que não é permitido. Não só proíbem determinadas palavras, como também impõem o uso de outras, mesmo que elas toquem o mais profundo da natureza humana. Começa-se logo pelo dicionário, pelo uso de certas palavras, o que lembra os tempos da ditadura.. Por exemplo, não é permitido (ou, pelo menos, não é aconselhável) o uso das palavras mãe ou pai. O problema é que esta é a zona onde a liberdade habita, ficando o seu exercício seriamente diminuído, precisamente num tempo em que os mesmos gritam pela defesa da privacidade e pela liberdade individual. Se nem numa Universidade inglesa, onde a liberdade deve ser o primeiro princípio a estar garantido, já se podem usar as palavras homem-mulher, pai-mãe, marido-mulher, irmão-irmã que acontecerá noutras áreas de grande intensidade social?
A REVOLUÇÃO DO CHE GUEVARA JÁ É PASSADO
DO QUE SE TRATA verdadeiramente é de uma luta pela hegemonia, uma luta que não tem verdadeiramente o sabor de um confronto cultural, mas sim o de uma batalha administrativa pelo controlo formal da língua e da narrativa acerca da história ou da arte.
E de onde é que lhes vem tanta força, aos revisionistas da língua e da história? A força vem do facto de se considerarem os verdadeiros intérpretes das declarações universais de direitos. Numa lógica de kamikaze. É daqui que lhes vem a força e a legitimidade. Só que o que eles verdadeiramente fazem é uma luta pela imposição administrativa e directa destes direitos, princípios e valores, num discurso de pensamento único que absolutiza valores que são históricos, como os outros o foram. O que eles postulam verdadeiramente é o fim da história. Um momento omega que é a medida de todas as coisas. O Fukuyama deve estar a rir-se. Na verdade, o que praticam é um absolutismo axiológico que querem ver imposto administrativamente naquelas que são as sociedades mais avançadas do planeta, numa vertiginosa fuga para a frente relativamente a sociedades que ainda não viram satisfeitas sequer as condições básicas da existência. E, claro, esta fuga administrativa para a frente deixa-os insensíveis à necessidade da sua presença lá onde eles seriam mais precisos, ou seja, nas sociedades que precisam de conhecer um mínimo de desenvolvimento, de direitos e de bem-estar. Mas isso daria imenso trabalho, seria desconfortável e muito arriscado, preferindo, pois, fazer a sua luta nos lugares onde já há liberdade, segurança e bem-estar. O tempo dos revolucionários como Che Guevara já passou. A revolução faz-se em casa, eventualmente à frente de um computador e com ar condicionado.
É A CULTURA, ESTÚPIDO
MAS A QUESTÃO é que os progressos civilizacionais e culturais não se podem impor administrativamente. A sua conquista levou séculos, lutas, sacrifícios, morte. Não se obtiveram ao virar da esquina, com a redacção de um manual, pela simples razão de que a vida e a história não cabem em dois ou três breviários. Bem sei que eles têm pressa, muita pressa, eventualmente o tempo que a sua construção psicológica lhes impõe, porque têm noção de que o tempo de hoje é um tempo tão acelerado que já nem parece ser tempo histórico. Sim, isso mesmo: o problema parece ser o do reconhecimento da temporalidade histórica. Mas a verdade é que os progressos requerem investimento projectado num tempo com profundidade, trabalho complexo, longo e livre de formação, de educação de cultura, de ciência. Um processo que não pode começar pelo confinamento da língua, da história ou da arte, ou seja, pelo confinamento dos espaços onde a liberdade deve ditar lei, mas sim pelo investimento público na educação, na cultura, na arte e na dotação pública das respectivas infraestruturas como condição essencial do crescimento e da autonomia individual para um futuro exercício consciente e plenamente responsável da cidadania, sem necessidade de guiões morais que pré-determinem o comportamento. Tomo como referência as visões do alemão Friedrich Schiller, nas Cartas sobre a Educação Estética do Homem (de 1792), e do poeta americano Walt Whitman, em Democratic Vistas (de 1871), e as suas propostas sobre a arte como motor de uma sociabilidade humana harmoniosa e sensível. No caso do poeta de Leaves of Grass, o lugar destinado à essencialidade histórica da poesia. Uma arte que nunca poderá ser encapsulada em códigos ou manuais de bom comportamento linguístico. Ou seja, o desenvolvimento é algo bem diferente das cartilhas que nos querem impor como padrão que impede comportamentos moral e civilizacionalmente desviantes e até puníveis por lei ou por regulamentos administrativos. Um admirável mundo novo com sacerdotes que aspiram a guiar as nossas vidas.
FINALMENTE
COMO SE SABE, o acordo ortográfico (AO), a forma como se escreve as palavras, não conhecerá paz enquanto o poder político não fizer uma reflexão profunda sobre a língua portuguesa, maltratada por alguns académicos pouco sensíveis à delicadeza da cultura e da ciência, e enquanto várias gerações se mantiverem em vida. Trata-se simplesmente da forma de escrever algumas palavras. Imaginemos, então, acordos semióticos na língua portuguesa (AS) em chave inclusiva e neutra (um extraordinário incentivo ao culto da poesia, diga-se) e a dureza da batalha que os seus fautores terão de enfrentar antes mesmo que isso se converta numa ainda mais dura batalha política, quando os nacionalistas se aperceberem de que essa é a batalha das suas vidas, a batalha que mais lhes interessa porque é aí que melhor poderão afirmar as suas razões, contra os novíssimos “chiens de garde” do politicamente correcto.
A verdade é que esta higienização da língua, esta limpeza linguística e cultural imposta por via administrativa, mas que aspira a transformar-se em hegemonia ético-polítca e cultural nas sociedades mais avançadas, enquanto crescem e se impõem ditaduras, regimes de cariz populista e regimes de miséria um pouco por todo o lado, não deixa de ser preocupante até por abrir um vasto flanco à entrada em cena de todos aqueles que são pouco amigos da democracia, da igualdade e da liberdade. Parece-me até que os mais acérrimos defensores da limpeza semiótica, da arte e da história mascaram de progressismo a sua indigência cultural e científica ou mesmo a sua indisfarçável e prepotente ignorância. Afinal, empenham-se nestas batalhas porque não têm outras bem mais importantes e urgentes para propor.
NOTA
Não tarda, estarão a propor uma alteração do nome da Declaração de 1789 e do título do livro de Schiller.

“S/Título”. Detalhe.