Poesia-Pintura

MARÇO
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “S/Título".
Original de minha autoria
para este poema.
Último dia de 
Fevereiro de 2021.
Magnol280221Publcdo

“S/Título”. Jas. 02-2021.

POEMA  – “MARÇO”

GOSTO DE MARÇO,
Entre a neve
E a primavera,
O branco e
E as flores,
Na fronteira
Uma quimera.

GOSTO DO BOTTICELLI,
Dos rostos
E dos corpos
Feminis,
Volúpia de
Transparências
Sensuais,
Primaveris.

GOSTO
Da pele macia,
De seda e
Suave cor,
Gosto
Dos traços
Que desenham
Alvura nas
"Três Graças"...
.............
E no Amor.

GOSTO DO BRANCO
Da magnólia
E do branco
Da Montanha,
Gosto
Dessa cor que
Que brilha
Nos meus olhos
E me acompanha.

GOSTO DE MARÇO.
Entrei nele
Contigo,
No signo do
Desencontro
Que se repete
Num longo
Silêncio fatal,
Marcado
Contraponto
Desse tempo
Imprevisto
De um “triste
Destino”...
........... 
Quase irreal.

PARA TI COLHIA
Flores luminosas
E a inspiração
Crescia
Em estrofes
Desenhadas
Com magia,
 Fingindo
Sentir
O que dizer
Não podia,
Fosse só 
Em duas horas
Ou fosse
Por todo um dia.

NO SIGNO
Do desencontro
Marcado como selo
Lá vou eu
Por aí,
Nem sei porquê
(Ou por falta de ti),
De braço dado
Com Botticelli,
Lá em cima,
na Galleria,
Oráculo
De arte
E fantasia.

SINTO-TE PERTO,
Ah, sinto!
Depuro
A tua imagem
Em bissetriz
De mil rostos
Até se tornar
Ideia
De corpo ausente:
Dialéctica
Animada
De opostos.

DEPOIS REINVENTO-A
A cada instante,
Abraço-a
Com alma
De amante,
Pinto com
Palavras
O seu perfil
Ideal
E fixo-a 
De novo
Neste meu mundo
Mental.

AO ACORDAR,
No amanhecer
De cada poema,
Verei que continuas
Em mim,
De olhos fechados,
Como se fosses
Sonho do que
Nunca aconteceu
Naqueles dias
Passados.

ANDAREI
Por aí
(Os astros o dirão),
Vagando
E pousando 
O olhar
No pólen
Da beleza 
Sensível
À procura
De seiva fresca
Para desenhar
Poemas
E dar vida 
Ao impossível.

LÁ NO ALTO
Te encontrarei,
Imitação
Dos dias
Da criação,
A construir infinito,
Onde, num adeus
Sem fronteiras
Nem cais de partida,
Hás-de desenhar
Com a alma
As mil silhuetas
Ainda inacabadas...
...............
Ou talvez não!

MEU DEUS,
Como gosto de ti,
Em Março,
O mês da floração
Quando a magia
Renasce
Para renovar
A vida
Com a força da 
Paixão.
Magnol280221PublcdoRec

“S/Título”. Detalhe.

Artigo

OS REVISIONISTAS E OS SEUS INIMIGOS

João de Almeida Santos

PadrãoDosDescobr

“Corte Epistemológico Pós-Colonial”. Jas. 02.2021.

ANDAM ESTRANHAS as agendas pública e política. Em tempo de pandemia, e apesar das enchentes diárias de notícias alarmistas e de desperdício informativo nos telejornais, no prime time, que não há algeroz que as escoe definitivamente, o que se vê, além disso, são temas sem interesse público digno de registo e folclore ideológico a ocuparem o topo da agenda. O imenso lamaçal do revisionismo histórico, levado às costas sobretudo pelos talibãs do politicamente correcto e pelos profissionais de causas fracturantes, num tempo em que a gravidade do presente dificulta o olhar sobre o futuro, mas no qual a política e a ideologia tablóide dão o melhor de si, propondo uma limpeza ético-política da nossa história que nem em D. Afonso Henriques acabará, não dará bons resultados se não fizermos, nós, a cidadania, uma inversão de marcha.

O QUE SE VÊ

VÊ-SE O DEBATE INFLAMADO sobre heróis da guerra colonial, falando de uns (fracturantes) e esquecendo outros (não fracturantes), trazendo ao topo da agenda o tema do ódio racial – mate-se o homem branco colonialista, assassino e racista que existe em cada um de nós, desde tempos imemoriais -, num país que convivia tranquilo com o bom e o mau da sua história passada e que já estava a confiar os juízos sobre o passado aos historiadores, em espelho mais ou menos fiel e desapaixonado, onde cada um de nós serenamente poderá sempre rever o nosso passado colectivo. Vê-se pretensos académicos a catarem academicamente o racismo nas obras-primas da literatura portuguesa de há dois séculos (onde se vislumbra “uma descomunal admiração pela brancura” ou crises “de melancolia negra”) e outros que, inadvertidamente (por enquanto), mas por imperativo de coerência lógica, acabarão mandar derrubar esse pecaminoso (mas não por causa do Canto IX) cântico aos descobrimentos que tem por nome “Os Lusíadas”, esses colonialistas. Vê-se gente a considerar o colonialismo mais mortífero do que o antissemitismo germânico, numa lúgubre contagem de milhões de mortos com a lente da doutrina pós-colonial, quando a querer fazer contagens bem podia mais facilmente somar as vítimas das duas grandes guerras e constatar que só aí houve (na Europa, do Atlântico aos Urais) mais de 60 milhões de mortos, pondo, assim, o holocausto no devido lugar, em vez de desta forma o branquear, ainda por cima invocando vizinhança académica com a Vice-Presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Vê-se gente que quanto mais fala de colonialismo menos informação nos dá sobre a actual cartografia política descolonizada de África ou da América Latina de hoje. Vê-se gente a questionar se os portugueses foram vítimas ou cúmplices da polícia política do regime do Estado Novo, sem cuidar de não generalizar, logo no título, que indicia uma imensa ignorância e simplismo -, desrespeitando os tantos que activamente ou em silêncio sofrido execraram este regime e, em geral, a generalidade dos portugueses. Vê-se gente – que ainda por cima representa a Nação – a clamar por um corte epistemológico que não teria acontecido, com sangue e mortos, mas que, na verdade, aconteceu, e da melhor maneira possível, ao passarmos de uma ditadura para um regime livre e democrático e para o fim da guerra colonial. Vê-se gente a clamar pela destruição de monumentos históricos em nome da sua visão clínica da história e da sua epistemologia caseira, até que numa progressão lógica acabe por abjurar “Os Lusiadas”, qual cântico ao pecado original que estaria na origem do colonialismo. Vê-se gente a usar o ofício de jornalista para promover e publicar aterradoras agendas doutrinárias inquisitoriais mais próprias de um procurador-geral ao estilo de Vichinsky e de uma visão policial da linguagem publicamente expressa do que de um jornalismo são, imparcial, objectivo e neutral, que deixa que seja o cidadão a avaliar a informação e não a encharcá-lo com idiossincrasias e agendas militantes pouco jornalísticas, fazendo da profissão um autêntico púlpito militante de causas idiossincráticas.

POLÍTICA

MAS VÊ-SE MAIS. Vê-se a repetição da saga das freguesias com teimosos protagonistas a quererem repor o que, com enorme esforço e respeitando as regras da democracia, foi alterado há anos, esquecendo que o verdadeiro problema são os concelhos a mais (há-os com menos de 3 mil eleitores), as competências das freguesias a menos e, sobretudo, a desorganização político-administrativa do país com distritos que na prática já não existem (sobrepostos ainda às CIMs) ou com CCDRs a substituírem as regiões com legitimidade mitigada por um esquisito processo eleitoral ou, ainda, com um ordenamento jurídico do sistema de governo local hoje totalmente inadequado e até nocivo. Vê-se a tentativa, um pouco às escondidas, de liquidar por via legislativa os movimentos autárquicos não partidários depois da sua forte afirmação política nas últimas eleições. Vê-se isto e também se vê telejornais e jornais a promoveram agendamentos absurdos ao mesmo tempo que gritam impropérios contra as redes sociais, acusando-as de fazerem o mesmo que eles há muito andam a fazer… e agora cada vez mais. Vê-se um ministro a fazer de Thomas Morus da Locomoção, desenhando futuros mais do fruto da sua imaginação do que da realidade em vez de anunciar medidas para resolver os problemas ambientais do momento.

Vê-se tudo isto e apetece dar combate, não perdendo tempo a refutar a estupidez e a alarvidade intelectual, mas sim, a fazer propostas que sirvam ao País. O que pode, à escala individual, ser feito de muitas maneiras, mas não para impor temas e soluções que realmente só servem para pôr na agenda pública os seus autores – servindo meros interesses pessoais -, ainda que pelas piores razões.

QUE FAZER?

ESTA SITUAÇÃO É PREOCUPANTE pelas reacções que suscita no plano político, porque traz para a boca de cena temas onde a extrema-direita se sente mais à vontade para se afirmar politicamente, para expor e defender a sua narrativa, explorando o sentimento de cansaço e de irritação das pessoas perante tanta falta de bom senso ou até de perigosa deriva pelo domínio público e até já institucional das agendas fracturantes e do radicalismo ideológico e linguístico sobre a sociedade. Como se sabe, os extremos atraem-se e a lógica de confronto destes extremos é a lógica amigo-inimigo, a lógica da guerra e da aniquilação do adversário, seja física ou seja mental ou psicológica. Poder-se-ia dizer que o melhor é deixá-los a falar sozinhos, porque assim não se corre o risco de amplificar as suas lamentáveis vozes. Infelizmente não é assim. E não é assim, porque os meios de comunicação, na sua ânsia de alargar as audiências, albergam tudo o que possa ser, de um modo ou do outro, fracturante e negativo. Não é, pois, possível, não ir à luta para impedir que o radicalismo alastre e se torne mesmo perigoso, acabando por animar soluções que não são amigas da democracia. E um dos modos de agir consiste em interpelar, por exemplo, através das redes sociais, os media, convidando-os a que desempenhem a sua função com dignidade, respeitando os códigos éticos que eles próprios adoptaram ou os que foram adoptados por instituições supranacionais, como por exemplo o Conselho da Europa, na sua resolução 1003, de 1993, sobre a Ética do Jornalismo. Os media ainda continuam a ter, de facto, capacidade de influenciar, directa ou indirectamente, quer a agenda pública quer a agenda política. Pois bem, que informem e publiquem no quadro de pelo menos três dos princípios fundamentais dos principais códigos éticos, existentes desde o fim do século XVII: a imparcialidade, a objectividade e a relevância. Combinados, estes três princípios promovem uma boa informação, uma boa agenda pública e uma boa agenda política.  É por isso que, queiram ou não queiram os autores do artigo de autodefesa “Em defesa da democracia”, subscrevo e me associo aos promotores da “Carta aberta às televisões generalistas nacionais” que foi publicada pelo jornal “Público” na passada terça-feira, solicitando precisamente respeito pelos princípios éticos, de resto, constantes da quase totalidade dos inúmeros códigos éticos adoptados pelos media ou pelas instituições e organismos internacionais. Ao ler aquele artigo fiquei com a sensação de que nenhum dos seus subscritores, dirigentes da RTP, deve ter visto um telejornal do princípio até ao fim ou, se viu, fica claro, ao não reconhecer a evidência, que é inadequado para a função e para a missão de serviço público que lhe está confiada.

Mas eu, subscrevendo na íntegra o documento, iria mais longe criticamente: o tabloidismo galopante dos media – em particular o das televisões generalistas – é gravemente nocivo para a cidadania, não só porque não dá relevo ao que é verdadeiramente relevante, porque promove sobretudo o negativo e o disruptivo, ou seja, tudo aquilo que tem mais força de atracção do público. É por isso que, regularmente, leva ao topo da agenda temas que não respondem ao interesse dos cidadãos nem, em geral, ao do próprio país, provocando graves distorções na polarização da atenção social e inquinando a opinião pública. O que se vê com frequência é que os mesmos que atacam as redes sociais por albergarem desinformação e fake news promovem, eles próprios, agendas inaceitáveis que vão do catastrofismo, do alarmismo social e do culto do negativo até protagonistas e temáticas que na verdade não só não colam com a realidade como produzem efeitos de polarização da atenção social desviantes e prejudiciais para o que realmente interessa à cidadania. Os telejornais de prime time de todas (incluindo a pública) televisões generalistas têm feito mais pela promoção de depressão nacional do que pela boa informação e pela boa deliberação pública. E, não, essa história de que “good news, no news” não me convence, até porque não há razão plausível para que a informação só seja boa se for negativa. Por mais que isso custe aos “defensores da democracia” do confortável ambiente da RTP, televisão pública.

CONCLUSÃO

Não nos bastava a COVID19 e a tremenda crise económica que lhe está e estará associada. Não nos bastam os desafios que temos pela frente para responder com eficácia e inteligência a esta mudança epocal que está a acontecer nas nossas vidas e que toca todas as dimensões da existência individual e societária. Não nos bastava ter que responder aos desafios que vêem o establishment político entrar em grave crise perante o avanço de soluções, clássicas e novas, não democráticas um pouco por todo o mundo. Não, não nos bastava tudo isto. Isto, que requer muitos, intensos e inovadores recursos para responder aos desafios do presente e para construir o futuro à medida das nossas necessidades e das nossas ambições. Não, não bastava e, por isso, temos de dar palco às mais abstrusas intervenções de personagens de opereta que querem os seus cinco minutos de fama, exibindo-se vaidosamente no espaço público como se estivessem a prestar um enorme serviço às melhores causas da Humanidade. Até apetece dizer, como diz a voz popular: “Valha-me Deus!”. O que temo é que a invocação seja em vão. # Jas@2_2021

Poesia-Pintura

COR, DÁ-ME COR

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Policromia”.
Original de minha autoria
para este poema.
Fevereiro de 2021.
Campainhas02_2021

“Policromia”. Jas. 02-2021.

POEMA – “COR, DÁ-ME COR”

COR, DÁ-ME COR,
Fico mais perto
De ti
Se vieres
Com o vento.
Cor, dá-me cor,
Que as palavras
Coloridas
Já me sabem
A cinzento.

PALAVRAS
Nunca me faltam,
Nem vivo
Na escuridão,
Ainda consigo
Cantar-te,
Com palavras
Dar-te a mão.

TENHO-AS
Que me cheguem
Para gritar
Em vermelho
O concreto
Do teu nome,
Ver-te, assim,
Tão colorida
No vidro do meu
Espelho
Sem que a tristeza
Assome.

AH, MAS A COR
Se for intensa
E crescer
Em explosão,
Se tiver
Um contraponto
Em palavras
De paixão
Que dão ritmo
Ao azul
Dos teus sonhos
De papel...
............
É tudo
O que eu preciso
Pra t’esculpir
A cinzel.

DÁ-ME COR
Que eu sou
Sensível
Ao brilho
Do teu olhar,
Sinto-o nas
Flores que
Pinto
Quando vestes
O vermelho
Com azul
Como espelho
Ou te cobres
Com as cores
Do arco-íris
Que és.

TU ÉS COR,
Gota d’água
Suspensa
No fio
Do horizonte
Beijada por
Raios de sol
Que despontam
Lá em cima
No meu Monte.

DANÇAS COM ELA,
A cor,
E com ela
Adormeces,
Por amor.
É sopro
De liberdade
Quando a vida
É um sonho
E o poema
A verdade.

 EU GOSTO DE
Te pintar
Com palavras,
Onde o azul é
Mais íntimo
E o verde
Te cobre
Como manto
De primavera,
Onde o vermelho
É pranto
Sem lágrimas
De enxugar
Nem sequer
Em amarelo
Porque me tolda
O olhar.

NA COR DAS MINHAS
Palavras
Te vejo e
Te revejo
As vezes
Que eu quiser
Pois és mais
Do que um desejo
Nos poemas
Que componho
Sobre um rosto
De mulher.

EU GOSTO
Da tua cor,
De me confundir
Com ela,
Dançá-la
Como vida
Em explosão,
Fogo de artifício
Que embriaga
Os sentidos
Como se fosse
Vulcão...

EVOCO
O poeta
Que pedia
“Mais luz!”
Já em seu leito
Fatal...
Tinha luz
Dentro de si,
Mas a cor
Já não entrava
No portal.

ERA CINZENTA
A cor
Que lhe restava
Até ao escurecer
Quando a janela
Se fechava
Ao seu desejo
De ver.

LUZ É COR,
Desperta da
Letargia,
Ressuscita
Do torpor,
É cântico,
É utopia,
Chilreio de
Passarinho
Que anuncia
Os meus voos
Aos azuis
Com que te
Pinto
E afago
Com carinho.

MAS A PALAVRA
Fascina,
É com ela
Que te canto
E leio
Na tua alma.
Na cor, tua
Roupagem,
Danço, sim,
E voo
Em liberdade,
 Mas na palavra
Suspendo
O frémito
Dos meus sentidos
Para melhor
Te sonhar
Por todos os dias
Perdidos...
..............
À deriva
No teu mar.
Flowers210221R

“Policromia”. Detalhe.

Artigo

 L’AMMUCCHIATA*

PARA ONDE VAI A POLÍTICA ITALIANA?

Por João de Almeida Santos

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“Itália”, apud Bernini. Jas. 02-2021.

QUANDO VI A COMPOSIÇÃO POLÍTICA do novo governo italiano, chefiado por Mario Draghi, que tomou posse no passado Sábado, veio-me uma palavra italiana à mente: “Ammucchiata”. Ou seja, “caldeirão”, um imenso caldeirão onde cabe tudo… e fé em Deus. “Ciao”, centro-esquerda. “Arrivederci”. Agora, todos dentro e todos fora. Excepto Fratelli d’Italia (FdI), da senhora Giorgia Meloni (e alguns senadores e deputados das forças políticas que apoiam o governo Draghi). Que capitalizará, seguramente, consensos, a partir da oposição. Draghi está em alta na opinião pública italiana. E não é caso para menos, visto o seu desempenho no BCE. Por isso, conseguiu um suporte político muito amplo. E a Lega, de Salvini, e o Forza Italia, de Berlusconi, até conseguiram três Ministros cada, menos um que o Movimento5Stelle (M5S) que nas eleições legislativas de 2018 teve quase o dobro da Lega (32,7% contra 17,4”) e mais do dobro de Forza Italia (FI, 14%). Isto diz tudo. Qual Manual Cencelli,qual quê? O velho manual, que de acordo com as percentagens eleitorais atribuía cargos, calculados ao milímetro, não foi aplicado nem aos resultados eleitorais de 2018 nem à média das actuais sondagens, que invertem por completo a situação. Bem sei que é um governo que nasceu, por indicação do Presidente, fora das tradicionais fórmulas políticas (ou para usar a expressão de Draghi no seu Discurso ao Senado: um “apoio que não resulta de alquimias políticas”) , mas a verdade é que sistema de partidos saiu menorizado deste processo, na medida em que a legitimidade eleitoral não foi tomada na devida conta. A política entrou, sim, mas ficou em segunda fila. E, além disso, com a legitimidade eleitoral de certo modo suspensa. A figura cintilante de Draghi funcionou como um repentino clarão que encandeou, levando-os aparentemente fora de pista. Mas já começam a recuperar… E a criação (ontem) do “Intergruppo” M5S/PD/LeU, com o alto patrocínio de Giuseppe Conte, no Senado é já sinal claro disso, um reagrupamento político e programático do centro esquerda, para não falar de Salvini que já veio dizer que o euro não é irreversível, o que viria a merecer uma clara posição de Draghi no discurso ao Senado: “Sostenere questo governo significa condividere l’irreversibilità della scelta dell’euro”. 

A COMPOSIÇÃO POLÍTICA DO GOVERNO

O QUE SE VIU foi, todavia, uma distribuição de “poltrone” por partidos  (15, as que sobraram das 23, sendo oito, as mais importantes, ocupadas por técnicos, escolhidos por Draghi sem qualquer preocupação de representação política), mas que não respeitou minimamente a expressão eleitoral. Mesmo tratando-se de uma segunda fila. Apesar disso, todos (menos um, FdI) os partidos aceitaram aprovar a equipa ministerial em sede parlamentar. Uns, com receio de ir a votos; outros, com a lógica do entrismo: colocar-se em pole position para a próxima corrida eleitoral. Todos dentro, todos fora, sim. A política italiana no seu melhor. Uma verdadeira união nacional chefiada por um não político, um banqueiro de dimensão europeia. Uma velha tradição que começou com Carlo Azeglio Ciampi, em 1993, ainda Berlusconi estava a preparar a entrada em cena de Forza Italia. Mas como alguém dizia: agora não é para promover austeridade, mas sim para distribuir um valor financeiro (cerca de 209 mil milhões de euros:  82 mil milhões em subsídios e 127 mil milhões em empréstimos) muito superior ao que Alcide de Gasperi teve por ocasião do Plano Marshall, no imediato pós-guerra. Só para ficarmos com uma ideia mais clara: nesta operação, Itália encaixa um valor superior (aos preços de hoje) ao valor global do Plano Marshall para toda a Europa, que na altura foi de cerca de 13/14 mil milhões de dólares. Receberá 28% do total do Recovery Fund (RF), a maior soma atribuída a um país da União. Mas nem mesmo isto pacificou o M5S. E as consequências foram imediatas: a votação na Plataforma Rousseau foi de cerca de 60% a favor e de cerca de 40% contra; e, depois da formação do governo, uma fronda de militantes, deputados e senadores que não aceitaram a menorização da força que ainda é maioritária no Parlamento, o perfil do Ministério da transição ecológica, a entrada da Liga no governo e a presença de ministros berlusconianos politicamente comprometidos. E, por isso, reivindicaram, sem sucesso, uma nova votação na Plataforma Rousseau (a plataforma digital onde os militantes do M5S deliberam) sobre a confiança ao governo. A fronda envolveu uma parte consistente do M5S e pode indiciar uma eventual ruptura no Movimento, onde Beppe Grillo já deixou de ter o poder que antes tinha. De resto, nas últimas sondagens, o M5S já viu descer o seu score eleitoral para cerca de 14.8% ( a média é de oito sondagens realizadas em Janeiro e Fevereiro). Uma queda brutal desde as eleições legislativas de 4 de março de 2018.

RENZI, "IL ROTTAMATORE"

Belo, muito belo o trabalho de Matteo Renzi, o ex-líder do Partido Democrático e ex-Primeiro-Ministro. A este jovem irrequieto, conhecido como o “Il Rottamatore”, que fez cair Conte, se deve o fim do governo de centro-esquerda. Bravíssimo a dar tiros nos pés da esquerda: primeiro, com a política da “rottamazione” da velha classe dirigente do PD proveniente do PCI e da DC (mandá-la para a sucata); depois, com a fracassada tentativa de rever a constituição, que lhe custou a liderança do governo; outra vez, com a saída do PD; e, finalmente, com a formação de um pequeno partido pessoal, Italia Viva, que vale hoje cerca de três por cento.  Agora, com a queda do governo Conte II, de centro-esquerda.

Estamos, pois, perante um governo de transição que poderá ser breve. As eleições serão em 2023 (são de 5 em cinco anos), mas o novo cenário poderá vir a ser a eleição de Mario Draghi como Presidente da República logo no início de 2022, quando termina o mandato de Sergio Mattarella. Teríamos, depois, eleições e talvez um governo de extrema-direita, que neste momento (segundo as sondagens) já tem os números suficientes para isso (Lega+FdI+FI = 47%) e a legitimidade reforçada pela entrada no governo Draghi (de unidade nacional). A eventual perda de votos dos descontentes poderia ser compensada por uma subida de Fratelli d’Italia, único partido na oposição e com as mãos livres. Um partido que, em pouco tempo, passou do seu habitual score eleitoral de 4/5% (4,3%, nas legislativas de 2018)  para 16,27% nas últimas sondagens (média de 8 sondagens realizadas entre Janeiro e Fevereiro).

Ao ver o que se está a passar, e não obstante a crise sanitária, a crise económica e a chegada do Recovery Fund (RF), factores a ter realmente em conta, fica-se com a sensação de que o sistema de partidos está em grave perda. Draghi fica à prova num desafio difícil, sobretudo na frente sanitária e na frente económica e do emprego . E se, no arco de um ano, se impuser, com a sua equipa especial de oito ministros, aos partidos políticos está criado o ambiente para uma fase de ulterior irrelevância da política tradicional e sobretudo do sistema de partidos. Estamos, pois, perante um momento politicamente muito delicado, mas de onde emergem algumas certezas.

UM SEMICESARISMO DEMOCRÁTICO

Assim, também em Itália se completa uma crise que indicia a clara degenerescência dos sistemas de partidos e de uma certa forma de fazer política. A extrema fragmentação do sistema de partidos, sua consequência, ainda piora as coisas. Mas esta fragmentação é o que tem vindo a acontecer por essa Europa fora, em razão da crise da representação e da crescente divergência entre a eficácia e a legitimidade da governação e a natureza da nova cidadania. Uma divergência que tem vindo a acentuar-se devido, por um lado, à endogamia partidária e, por outro, a uma mudança profunda na identidade da cidadania, hoje com instrumentos de informação e de auto-organização muito poderosos e eficazes. E a solução encontrada em Itália parece confirmar a incapacidade de os partidos políticos assumirem as responsabilidades precisamente num momento de crise tão grave como este. Bom, mas sabemos que é precisamente nestes momentos de crise que tradicionalmente surgem as soluções cesarísticas, tal como foi  também em período de crise ou de anomia que os romanos inventaram a ditadura boa, um período curto e de poderes excepcionais a um ditador para resolução da anomia, sem alteração da ordem constitucional.  “Il dittatore benevolo” de que, glosando o título do livro de Jean-Paul Fitoussi, de 2003, falava Gad Lerner no artigo do passado Domingo em “Il Fatto Quotidiano”? É precisamente nisso que penso quando vejo tanta unanimidade em torno do Super Mario, a quem foi confiada a autonomia para nomear livremente (isto é, sem preocupações de pertença política) oito dos vinte e três ministros. Mas não, não creio que a verdadeira novidade a ser evidenciada seja Draghi e as suas qualidades (que as tem). A novidade está neste semicesarismo “benevolo” que parece ter sido adoptado, uma hiperpersonalização do sistema político: de um lado, um Hiperpresidente (do Conselho), do outro lado, um hiperconsenso. E, no centro, duas gravíssimas crises, sanitária e económico-finaceira, que serão combatidas pelo Hiperpresidente e seus comissários com a potentíssima arma do Recovery Fund. Entre o Hiperpresidente e o hiperconsenso fica, pois, um imenso terreno de culto onde irromperá, por um lado, uma aguerrida corrida aos fundos e, por ouro lado, a perfídia palaciana e a propaganda pública com vista às próximas eleições legislativas, onde, de resto, uma das variáveis poderá ser precisamente a da chegada de Draghi, em 2022, ao Quirinal.

CONCLUSÃO

Em boa verdade, este governo, apesar das pastas da transição ecológica (a que, por exigência da UE, serão destinados pelo menos 37% do RF)  e da inovação tecnológica e transição digital (que terá, pelo menos, 20% do RF), tem três missões fundamentais: a de resolver a crise sanitária e a crise económico-financeira e a de aplicar os fundos do Recovery Fund. Um governo, pois, de missão difícil e delicada, mas limitada, pese embora a declaração de Draghi sobre as três reformas prioritárias, declaradas no seu discurso: administração pública, justiça e política fiscal. De resto, os anos decisivos serão precisamente os de 2021 e 2022, a que deverá corresponder, creio, a aplicação de cerca de 70% dos fundos. E por isso o que neste momento se passa em Itália deverá ser visto com olhar posto em 2022 e em futuras eleições legislativas. Ninguém (excepto Giorgia Meloni) quis ficar de fora num período que vai ter um financiamento muito superior ao que foi o Plano Marshall para Itália e até superior ao que foi destinado a toda a Europa. É muito dinheiro em jogo. E estar no governo significa participar nas decisões e ter acesso directo a quem vai gerir mais directamente todo este dinheiro. Mas ao mesmo tempo significa estar fora para afirmar publicamente a sua própria visão política. Ética da responsabilidade no governo, ética da convicção cá fora. Todos dentro para gerir o Recovery Fund; todos fora para preparar a próxima competição eleitoral. De resto, se Draghi se comportar bem até já existe uma compensação, a Presidência da República, em eleição por colégio eleitoral, composto maioritariamente pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. E se as tendências eleitorais se mantiverem será Presidente num mandato governativo de extrema-direita. A súbita conversão europeia, embora já com o ziguezague do euro (prontamente recusado por Draghi), de Salvini é isso mesmo que já indicia. Dove vai, Italia mia?

* 19.02.2021 - NOTA DE ACTUALIZAÇÃO DEPOIS DO VOTO NO 
SENADO E NA CÂMARA DOS DEPUTADOS

“L’AMMUCCHIATA” 

COMO SE PREVIA, o governo Draghi passou no Senado. Aqui, e como previsto, “Fratelli d’Italia” votou contra em bloco e houve 15 Senadores do “Movimento5Stelle” (M5S) que votaram contra e mais alguns (8) que não responderam à chamada, tendo sido contabilizados como ausentes. Draghi não conseguiu assim atingir a votação de Monti em 2011, porque se ficou pelos 262 Senadores, tendo registado 40 votos contra e 2 abstenções. Monti tivera 281 (o CdS diz 285) votos (e só 25 votos contra). O total dos Senadores é 315, tendo votado 304. Começa, assim, a esboroar-se a unanimidade inicial. Note-se que, ao princípio, estava previsto que Fratelli d’Italia se iria abster. 

Na votação da Câmara dos Deputados o Governo passou com 535 votos (em 630), 56 contra e 5 abstenções, tendo também aqui ficado aquém do resultado obtido por Monti (556 votos). Em relação ao M5S: 16 votos contra, 4 abstenções e 12 ausências – num total de 32 deputados que não deram o seu apoio ao governo. Repete-se o cenário do Senado. Entretanto, foram já expulsos do Movimento os 15 Senadores do M5S que votaram contra; e expulsos do Grupo parlamentar na Câmara dos Deputados 21 Deputados. O assunto deveras ser apreciado pelo órgão próprio para tal: “Collegio dei Probiviri”.

Ou seja, haverá dois grupos parlamentares (na Câmara dos Deputados e no Senado) na oposição: os dois grupos saídos do M5S e os dois grupos do Fratelli d’Italia. De algum modo, é possível dizer que a quase unanimidade inicial, quando o nome de Mario Draghi foi anunciado, se tem vindo progressivamente a esboroar. O que virá, pois, a seguir? O próprio “Intergruppo”, constituído há três dias, já está a ser posto em causa. Três deputados da Lega passaram-se para FdI.

Mesmo assim, a situação de emergência que Itália vive garante a Mario Draghi cerca de 90% de apoio parlamentar (ambas as Câmaras).

Eu creio que Draghi fará uma gestão prudente da sua governação até à eleição do Presidente da República no início de 2022 de modo a manter compacta a unidade das forças que apoiam o seu governo. Não parece ser muito difícil imaginar que uma sua candidatura poderá vir a conseguir concretizar os mesmos apoios de que ontem passou a dispor. À direita, convirá a sua candidatura, na esperança de ter eleições a curto prazo. O centro-esquerda dificilmente poderá negar-lhe o apoio.

O que será conveniente é que a sua gestão não seja tão prudente que acabe por fazer o que ele próprio condenou no seu Discurso ao Senado: “Il tempo del potere può essere sprecato anche nella sola preoccupazione di conservarlo”. 

O certo é que o seu programa é mais do que um programa para a legislatura. Os desafios enunciados são muitos – e no centro dos desafios estratégicos está a questão do clima -, para além do delicado problema da pandemia e dos efeitos que teve e está a ter sobre a economia, sobre o emprego (os despedimentos estão por enquanto bloqueados) e sobre todos os processos que estavam em velocidade de cruzeiro antes da pandemia, que estão a sofrer atrasos consideráveis e para os quais é preciso proceder a um urgente “smaltimento dell’arretrato accumulato”, como disse. Quanto ao Recovery Fund, o PNRR, manterá o desenho estratégico formulado pelo governo Conte: 

“l’innovazione, la digitalizzazione, la competitività e la cultura; la transizione ecologica; le infrastrutture per la mobilità sostenibile; la formazione e la ricerca; l’equità sociale, di genere, generazionale e territoriale; la salute e la relativa filiera produtiva”.

A dimensão estratégica do programa será, entretanto, reforçada,

“in particolare con riguardo agli obiettivi riguardanti la produzione di energia da fonti rinnovabili, l’inquinamento dell’aria e delle acque, la rete ferroviaria veloce, le reti di distribuzione dell’energia per i veicoli a propulsione elettrica, la produzione e distribuzione di idrogeno, la digitalizzazione, la banda larga e le reti di comunicazione 5G”.

No essencial, a questão do ambiente. Aspecto também importante do programa será o impulso a dar à promoção do emprego, além da reforma fiscal, da justiça e da administração pública. Fundamentais, como já disse, é a transição ecológica, com o olhar posto em 2050 e na meta da União de chegar à emissão zero de CO2 e de gases que alteram o clima, a inovação tecnológica e a transição digital. Como ele próprio disse: “Vogliamo lasciare un buon pianeta, non solo una buona moneta”.

Testo in italiano

L’AMMUCCHIATA

Dove va la politica italiana?

Di João de Almeida Santos

QUANDO HO VISTO LA COMPOSIZIONE POLITICA del nuovo governo italiano, guidato da Mario Draghi, insediato sabato scorso, mi è venuta in mente una parola italiana: “Ammucchiata”. In altre parole: “calderone”, un enorme calderone dove c’è di tutto … e fede in Dio. “Ciao”, centro-sinistra. “Arrivederci”. Ora, tutti dentro e tutti fuori. Tranne Fratelli d’Italia (FdI), della signora Giorgia Meloni (e di alcuni senatori e deputati delle forze politiche che sostengono il governo Draghi). Che, all’opposizione, potrà capitalizzare sicuramente i consensi. Draghi è in ascesa nell’opinione pubblica italiana. E non è cosa da poco, vista la sua performance alla BCE. Quindi ha ottenuto un ampio sostegno politico. E la Lega, di Salvini, e Forza Italia, di Berlusconi, hanno ottenuto addirittura tre Ministri ciascuna, meno uno del Movimento5Stelle (M5S), che alle elezioni politiche del 2018 aveva quasi il doppio della Lega (32,7% contro 17,4%) e più del doppio di Forza Italia (FI, 14%). Tutto qui. Buttato via il Manuale Cencelli. Il vecchio manuale, che secondo le percentuali elettorali venivano assegnate le poltrone, calcolate al millimetro, non è stato applicato né ai risultati elettorali del 2018 né alla media dei sondaggi attuali, che ribaltano completamente la situazione. So bene che si tratta di un governo che non nasce, su indicazione del Presidente, da formule politiche tradizionali (o, per usare l’espressione di Draghi nel Discorso al Senato: “un sostegno che non poggia su alchimie politiche”), ma è pur vero che il sistema dei partiti ne è uscito indebolito, perché non è stata rispettata la legittimità elettorale nelle dovute proporzioni. La politica è comparsa, ma in seconda fila. E, inoltre, con la legittimità elettorale in qualche modo sospesa. La figura scintillante di Draghi agì come un lampo improvviso che abbagliò tutti, portandoli apparentemente fuori strada. Ma stanno già cominciando a riprendersi.  La creazione (ieri) dell ‘“Intergruppo” M5S / PD / LeU, con l’alto patrocinio di Giuseppe Conte, in Senato ne è già un segno evidente, un raggruppamento politico e programmatico del centro-sinistra. Per non riferire le parole di Salvini dicendo che l’euro non è irreversibile, ciò che ha meritato una posizione di netto rifiuto da Draghi nel suo discorso di oggi al Senato: “Sostenere questo Governo significa condividere l’irreversibilità della scelta dell’euro “.

LA COMPOSIZIONE POLITICA DEL GOVERNO

QUELLO CHE ABBIAMO VISTO, invece, è stata una distribuzione di poltrone ai partiti (15, quelle rimaste su 23, otto delle quali, le più importanti, occupate da tecnici, scelti da Draghi senza alcuna preoccupazione di rappresentanza politica), ma che non ha preso in considerazione l’espressione elettorale, “l’alchimia politica”, si direbbe. Anche se riguarda una seconda fila. Nonostante ciò, tutti i partiti (tranne uno, FdI) hanno deciso di approvare la squadra ministeriale in sede parlamentare. Alcuni perché hanno avuto paura di andare a elezioni; altri, con la logica dell’entrismo: mettersi in pole position per la prossima competizione elettorale. Tutto dentro, tutto fuori, sì. La politica italiana al suo meglio. Una vera unione nazionale guidata da un non-politico, un banchiere di dimensione europea. Una vecchia tradizione iniziata con Carlo Azeglio Ciampi, nel 1993, ancora Berlusconi preparava la scesa in campo di Forza Italia. Ma come qualcuno ha detto: ora non si tratta di promuovere l’austerità, ma di distribuire un valore finanziario (circa 209 miliardi di euro: 82 miliardi di sussidi e 127 miliardi di prestiti) molto superiore a quello che Alcide de Gasperi aveva in occasione del Piano Marshall, nell’immediato dopoguerra. Tanto per avere un’idea più chiara: in questa operazione l’Italia riceve un valore superiore (ai prezzi odierni) al valore globale del Piano Marshall per l’intera Europa, che all’epoca era di circa 13/14 miliardi di dollari. Riceverà il 28% del totale del Recovery Fund (RF), la somma più alta attribuita ad un paese dell’Unione. Ma neanche questo ha pacificato il M5S. E le conseguenze sono state immediate: il voto sulla piattaforma Rousseau è stato di circa il 60% per il sostegno al governo e circa il 40% contro; e, dopo la formazione del governo, una fronda di militanti, deputati e senatori che non hanno accettato la subalternità di uma forza che è ancora maggioritaria in Parlamento, il profilo del ministero della transizione ecologica, l’ingresso della Lega nel governo e la presenza di ministri berlusconiani politicamente impegnati. E così hanno chiesto, senza successo, un nuovo voto sulla piattaforma Rousseau (la piattaforma digitale su cui deliberano gli attivisti del M5S) sulla fiducia al governo. La fronda ha coinvolto una parte consistente del M5S e potrebbe indicare una possibile rottura del Movimento, dove Beppe Grillo non ha più il potere che aveva una volta. Inoltre, negli ultimi sondaggi, il M5S ha visto il suo score elettorale scendere al 14,8% (la media di otto sondaggi condotti a gennaio e febbraio). Un calo brutale dalle elezioni legislative del 4 marzo 2018.

RENZI, "IL ROTTAMATORE"

Bella, bellissima l’opera di Matteo Renzi, l’ex leader del Pd e ex-Presidente del Consiglio. A questo quarantenne (ne ha 46), detto “Il Rottamatore”, si deve la fine del governo di centro-sinistra. Bravissimo a dare la zappa sui piedi della sinistra: primo, con la politica di “rottamazione” della vecchia classe dirigente del PD originaria dal PCI e dalla DC; poi, con il fallito tentativo di revisione della costituzione, che gli è costato la leadership del governo; ancora, con l’uscita dal PD; e, infine, con la formazione di un piccolo partito personale, Italia Viva, che oggi vale circa il tre per cento. E, adesso, come detto, con la caduta del governo Conte II, di centro-sinistra. Siamo quindi di fronte ad un governo di transizione che potrebbe essere breve. Le elezioni si terranno nel 2023 (sono ogni cinque anni), ma il nuovo scenario potrebbe essere l’elezione di Mario Draghi a Presidente della Repubblica all’inizio del 2022, quando scadrà il mandato di Sergio Mattarella. Avremmo, in questo caso, quindi le elezioni e forse un governo di estrema-destra, che al momento (secondo i sondaggi) ha già numeri sufficienti (Lega + FdI + FI = 47%) e la legittimità rinforzata dall’ingresso nel governo Draghi (di unità nazionale). L’eventuale perdita di voti degli scontenti potrebbe essere compensata da una crescita di Fratelli d’Italia, unico partito all’opposizione e libero da vincoli. Un partito che è passato dal consueto score elettorale del 4/5% (4,3%, nelle legislature del 2018) al 16,27% negli ultimi sondaggi  (media di 8 sondaggi svoltosi tra gennaio e febbraio).

Guardando cosa sta succedendo, e nonostante la crisi sanitaria, la crisi economica e l’arrivo del Recovery Fund (RF), fattori da tenere davvero in considerazione, si ha la sensazione che il sistema partitico sia in grave perdita. Draghi è messo alla prova in una sfida difficile, soprattutto sul fronte sanitario e sul fronte economico e occupazionale. E se, entro un anno, si impone, con la sua squadra speciale di otto ministri, ai partiti, si crea l’ambiente per una fase di ulteriore irrilevanza della politica tradizionale e soprattutto del sistema partitico. Siamo, dunque, di fronte a un momento politicamente molto delicato, ma dal quale emergono certe certezze.

UN SEMICESARISMO DEMOCRATICO

Così, anche in Italia avviene una crisi dei sistemi partitici e rispettiva prassi politica. L’estrema frammentazione del sistema partitico, conseguenza di suddetta crisi, peggiora le cose. Ma questa frammentazione sta accadendo in tutta Europa, a causa della crisi della rappresentanza e della crescente divergenza tra l’efficacia e la legittimità della governance e la natura della nuova cittadinanza. Una divergenza che si è accentuata a causa, da un lato, dell’endogamia partitica e, dall’altro, di una profonda mutazione dell’identità della cittadinanza, oggi con strumenti di informazione e auto-organizzazione molto potenti ed efficaci. E la soluzione trovata in Italia sembra confermare l’incapacità dei partiti politici di assumersi le proprie responsabilità proprio in un momento di crisi così grave. Ebbene, ma sappiamo che è proprio in questi momenti di crisi che tradizionalmente emergono soluzioni cesaristiche, così come fu anche in un periodo di crisi o anomia che i romani inventarono la dittatura buona, un periodo breve e un dittatore con poteri eccezionali per risolvere l’anomia, senza modificare l’ordine costituzionale. “Il dittatore benevolo” di cui, glossando il titolo del libro di Jean-Paul Fitoussi, del 2003, Gad Lerner ha parlato nell’articolo di domenica scorsa su “Il Fatto Quotidiano”? Proprio a questo penso quando vedo tanta unanimità attorno a Super Mario, a cui è stato affidato il compito di nominare liberamente (cioè senza preoccupazioni di appartenenza politica) otto dei ventitré ministri. E invece no, non credo che la vera novità da sottolineare sia Draghi e le sue qualità (che ne possiede). La novità risiede in questo semicesarismo “benevolo” che sembra essere stato adottato, un’iperpersonalizzazione del sistema politico: da un lato, un Iperpresidente (del Consiglio), dall’altro, un iperconsenso. E, al centro, due crisi gravissime, sanitaria ed economico-finanziaria, che saranno combattute dall’Iperpresidente e dai suoi commissari con la potentissima arma del Recovery Fund. Tra l’Iperpresidente e l’iperconsenso c’è dunque un immenso territorio dove, da un lato, partirà una dura corsa ai fondi e, dall’altro, la perfidia del palazzo e la propaganda pubblica in vista delle prossime elezioni politiche, dove, peraltro, una delle variabili potrebbe essere proprio l’arrivo di Draghi, nel 2022, al Quirinale.

CONCLUSIONE

Infatti, questo governo, nonostante i portafogli della transizione ecologica (a cui, su richiesta dell’UE, verrà assegnato almeno il 37% del RF) e dell’innovazione tecnologica e della transizione digitale (che avrà almeno il 20% del RF) , ha tre missioni fondamentali: quella di risolvere la crisi sanitaria e la crisi economico-finanziaria e quella di applicare i fondi del Recovery Fund. Un governo, quindi, con una missione difficile e delicata, ma limitata, nonostante la dichiarazione di Draghi sulle tre riforme prioritarie, dichiarate nel suo intervento: pubblica amministrazione, giustizia e politica fiscale. Inoltre, gli anni decisivi saranno proprio quelli del 2021 e del 2022, nei quali dovrebbe, credo, occorrere l’applicazione di circa il 70% dei fondi. Ecco perché quello che sta accadendo in Italia in questo momento dovrebbe essere visto guardando al 2022 e alle future elezioni politiche. Nessuno (tranne Giorgia Meloni) ha voluto essere escluso in un periodo che avrà un finanziamento molto più alto di quello del Piano Marshall per l’Italia e addirittura superiore a quanto fu globalmente destinato a tutta l’Europa. Sono in gioco molti soldi. Ed essere al governo significa partecipare alle decisioni e avere accesso diretto a coloro che gestiranno direttamente tutti questi soldi. Ma allo stesso tempo significa voler affermare pubblicamente la propria visione politica. Etica della responsabilità nel governo, etica della convinzione davanti agli elettori. Tutti all’interno per gestire il Recovery Fund; tutti fuori per prepararsi per la prossima gara elettorale. Inoltre, se Draghi si comporterà bene, c’è già un premio: la Presidenza della Repubblica (eletta da un collegio elettorale, composto soprattutto dal Senato e dalla Camera dei Deputati). E, se le tendenze elettorali si manterranno, sarà Presidente in un mandato governativo di estrema-destra. L’improvvisa conversione europea di Salvini, seppur con lo zig zag dell’euro (prontamente rifiutato da Draghi), indica proprio che è a questo che già sta pensando, a breve termine. Dove vai, Italia mia?

ObeliscoREC

“Itália”. Detalhe.

Poesia-Pintura

CHÃO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Luz na Montanha”.
Original de minha autoria
para este poema.
Fevereiro de 2021.

JAS_A MontanhaFinal0902

“Luz na Montanha”. Jas. 02-2021.

POEMA  – “CHÃO”

DESCESTE,
Não sei bem
De onde.
Cravaste raízes
Profundas
Neste meu
Sagrado chão.

AO LONGE,
Lá na montanha,
Surge, do nada,
Incandescente,
Um clarão.
São os meus olhos
Que te iluminam...
..............
Ou talvez não.

NUNCA VI
Chover do céu
Tanta luz...
.............
E no chão
Que sempre piso
Tão delicada raiz
Que cresce
Dentro de mim
E, suave,
Me conduz
Como quando
Me sorris.

ESTA LUZ
Que lá do alto
Ilumina
É magia,
É milagre,
É fogo
Que me fascina
Neste meu
Entardecer...
.............
Faz-me voar
Para ti
Apenas para
Te ver.

MAS NAS RAÍZES
Que crescem
Por dentro
E por fora
Como rendilhado
Neste meu chão
Seminal
Fica presa
A minha alma
Como se fosse
Prisão...
....................
Por pecado capital.

ELEVA-SE NELAS
A geometria 
Perfeita de um
Monólito
Sideral
Para te invocar
Em ritual
De montanha
Onde possas
Renascer
Como a divindade
Da chama.

A MAGIA
Deste chão,
Despertada pela luz
Que vem lá
De cima,
Do alto,
Devolve-me
A liberdade,
Acende-me a fantasia,
Põe-me a alma
Em sobressalto
E o corpo
Em euforia...

ENTÃO, CANTO
Então, danço
Neste chão
Que é só meu,
Dou asas
À fantasia
E a fronteira é o céu.

JAS_A MontanhaFinal0902Rec

“Luz na Montanha”. Detalhe.

Artigo-Ensaio

A POLÍTICA TABLÓIDE

Por João de Almeida Santos

Tabloid cópia

“S/Título”. Jas. 2021.

NORMALMENTE, A CATEGORIA “TABLÓIDE” aplica-se ao universo da comunicação mediática. O nome tem a ver com o formato dos jornais e com o tipo de imprensa que antes se designava por imprensa amarela, já nos finais do século XIX, nos Estados Unidos. Imprensa popular. Uma imprensa que sempre explorou o básico da natureza humana. Eu defino-a através de uma simples palavra: o negativo (embora nesta categoria caibam outras características, o dramático, o emocional, o íntimo, o sexo). A exploração do negativo em todas as suas variantes, em todos os seus géneros. O objectivo é claro: atrair a atenção, aumentar a audiência e, naturalmente, vender publicidade para reforçar a autonomia financeira e ganhar poder junto dos consumidores. Comércio puro, lá onde um importante bem público desce à categoria de mera mercadoria. E, naturalmente, deste modo, ganhar influência junto do poder político, de forma cada vez mais intensa, numa espiral mercantil que se afasta cada vez mais dos códigos éticos de boa e antiga memória. À imprensa tablóide nada interessam os chamados códigos éticos ou a função social dos media. Nada interessam normas que já vêm do século XVII, desde o chamado Código Harris, de 1690, passando, depois, pelo da famosa Enciclopédia de Diderot e D’Alembert  (1751-1772), e que haveriam de se consolidar naquele que é considerado o primeiro código, em 1910, o chamado Código de Kansas, expandindo-se, depois, numa multiplicidade de códigos, de que destaco, pela sua importância, a resolução 1003, de 1993, sobre a “Ética do jornalismo”, do Conselho da Europa.  O que, no final do processo, interessa a esta imprensa é a dimensão da audiência nem que para isso faça do mexerico a única razão da sua existência e da sua actividade. Ainda por cima, a coberto da chamada liberdade de imprensa, da sagrada liberdade de imprensa, consignada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e na I Emenda da Constituição dos Estados Unidos, de 1791.

A Ideologia e o Culto do Negativo

 EM BOA VERDADE, os géneros do tablóide são muitos. Tantos como os géneros informativos. E os mediaque os praticam podem ser divididos em dois tipos: os que são abertamente tablóides e o assumem e os que, praticando um tabloidismo mais sofisticado, o disfarçam, exibindo uma folha de serviços prestados à cidadania, normalmente denunciando os abusos de poder (e bem) e reivindicando até o poder de oposição ao poder democrático instalado e legitimidade para isso (e mal). Mas o verdadeiro problema começa quando a missão estratégica dos media se converte exclusivamente em informação sobre o negativo (desastres, corrupção, escândalos, etc.). Quando a ideologia do negativo se torna sistémica. Isto, num poder que já nos anos 30 do século XIX , em “Da Democracia na América”, Alexis de Tocqueville o considerava, além do poder soberano do povo, o primeiro poder. Um poder que, na sua matriz, acolheu espontaneamente a ideia liberal de liberdade: a liberdade negativa. O que nos inícios fazia sentido, perante o absolutismo e regimes censitários, com a liberdade cerceada pelo poder invasivo do Estado, mas que, hoje, já não se adequa às sociedades plenamente democráticas. Na história da imprensa esta concepção pode ser considerada dominante e, ainda mais, hoje, que alia a esta concepção da liberdade negativa o culto da categoria do negativo como princípio informativo dominante, ainda que seja por razões de audiência, de publicidade e de autofinanciamento, numa época em que o Estado se retirou da área da informação (e bem), enquanto proprietário. Ou seja, dois em um. O que torna os media, em particular a televisão, “príncipe dos media”, na expressão de Denis McQuail, uma espécie de justiceiros electrónicos ou digitais (em todos os géneros informativos) com a respectiva componente pública: o pelourinho electrónico. Ou seja, os media que, substituindo-se ao povo soberano, se assumem como o seu autêntico intérprete ou oráculo (“os espectadores gostariam de saber…”, dizem entrevistadores sem mandato) em aberto e permanente antagonismo ao poder político ao ponto de, paradoxalmente, se tornarem a outra face da moeda do poder. Até que, por fim, cheguem – já chegaram, mais uma vez – os apóstolos militantes da política tablóide que, esses sim, reivindicam mesmo o poder para o devolverem simbolicamente ao povo através da mediação do oráculo que, dirão, ouve directamente a sua voz. Bem sei, porque a frequento, que há boa imprensa (sobretudo imprensa escrita), mas a tendência mais frequente, transformando-se em tendência sistémica, é esta. O ambiente mediático português é um exemplo muito ilustrativo, em particular os telejornais em canal aberto.

Política Tablóide

ORA EU CREIO que, seja ou não o poder mediático a outra face da moeda do poder, irmão gémeo do poder político, também a política, talvez por clonagem, se tem vindo a tornar sobretudo política tablóide, como se vê pelo fenómeno populista em crescimento na Europa e por esse mundo fora. Também esta política se alimenta sobretudo (ou exclusivamente) do negativo, neste caso denunciando as elites dirigentes, os intermediários institucionais, seja na política seja na comunicação, e reivindicando o direito de devolver o poder e o saber confiscados ao povo soberano, nem que seja através de tweets. Mas não é só aqui que este género políticoacontece. Ele acontece quando os protagonistas pretendem afirmar-se politicamente usando exclusivamente a arma do negativo, da denúncia, do dedo apontado, confiantes que essa arma lhes dará notoriedade, capacidade de polarização da atenção social sobre eles e que, consequentemente, a notoriedade lhes dará força social, eleitoral e política. Esta técnica tem vindo crescentemente a ser usada em todos os géneros incluindo até nos personagens que, por uma razão ou por outra, ocupam os interfaces da comunicação, usando-os com esta categoria para reforçarem a sua presença no espaço público e o seu próprio poder. Muitos deles aplicando o negativo às suas próprias famílias políticas, na convicção de que, assim, o “produto” se revelará mais apetecível e até mais credível. Exemplos em Portugal não faltam. Em todas as tendências políticas.

Na verdade, desde que a televisão ocupou, a partir dos anos cinquenta, sobretudo nos Estados Unidos, o centro da comunicação social que este processo de tabloidização da política tem vindo a crescer, na própria medida do crescimento dos media. É um fenómeno bem conhecido de todos os que estudam as relações entre a comunicação, os media e a política. Mas talvez nunca como hoje se tenha verificado um uso tão despudorado desta categoria na comunicação e na política.

Populismo e Tabloidismo

 NA VERDADE, estamos já perante uma poderosa ideologia que, aliada à ideia de liberdade negativa, à ideia de que os media são contrapoder e à protecção constitucional e legal de que dispõem, tem uma eficácia e um impacto difíceis de combater. Porque, munida destas características, apela aos instintos mais básicos da natureza humana para polarizar a atenção social. Os populismos também são filhos directos desta ideologia, tal como todos aqueles que, vivendo em democracia, reduzem a sua vida e a razão da sua existência à procura do negativo, sob as mais variadas formas, para logo o exibirem publicamente sem se preocuparem (ou, pelo contrário, alimentando-se deles) com os efeitos que essa exibição sistemática pode ter quer sobre a sociedade em geral quer sobre os indivíduos singulares objecto de atenção. Castigadores justiceiros com a missão de resgatar o povo oprimido. O justicialismo político entra directamente nesta categoria, sendo certo que ele possui as mesmas características do tabloidismo mediático.

Esta degenerescência é o que vamos tendo cada vez mais, num abraço infeliz da política com este tipo de comunicação, em nome do povo e das audiências. Se, depois, a isso se juntar essa aliança espúria da comunicação e da política com o poder judicial teremos a receita perfeita para uma ruptura democrática. O caso brasileiro e o percurso do juiz Sérgio Moro podem servir de exemplo. E o que acaba por sobrar em tabloidismo vai faltar em ideias para a governação e para a construção do futuro, para a mobilização política e comunicacional da cidadania, para o seu crescimento civilizacional e cultural, para a promoção da cidadania activa. Numa palavra, faltará uma concepção de política em linha com o que de melhor a democracia tem para nos dar.

Conclusão 

ESTE TIPO DE COMUNICAÇÃO E DE POLÍTICA representa uma visão essencialmente instrumental de ambas: mero meio para aumentar as audiências e os eleitores e, em nome deles, intervir na sociedade. A política e a comunicação como instrumentos para alcançar um poder que, no fundo, acabará por tender a conceber-se como impolítico. Isto representa o triunfo do pior maquiavelismo, a negação da ética pública, mesmo quando se fala dela à exaustão e dela se serve para alcançar o poder, a política reduzida a pura retórica ao serviço da fria conquista do poder e não como autogoverno da cidadania e instrumento para a transformação da sociedade. Esta política corresponde, pois, à fusão integral da comunicação e da política naquilo que ambas têm de pior, completando a fase em que a política adoptou as categorias, os tempos e a organização da comunicação mediática para atingir e conservar o poder. Há um exemplo muito elucidativo desta fusão e da forma mais avançada de política tablóide: Berlusconi, em 1993-1994. Ou seja, a captura integral da política pelo poder mediático, não só no plano da factualidade, mas também no plano da sua subordinação integral ao poder comunicacional, à sua organização, à sua lógica e à sua relação com a cidadania. Em palavras simples: Berlusconi geriu a política com as mesmas categorias com que geriu o seu império mediático, transferindo armas e bagagens da holding televisiva para o aparelho do partido (incluídos os especialistas em sondagens sobre as audiências, por exemplo, o sondagista Gianni Pilo). Afinal, as audiências (espectadores e eleitores), neste sentido, correspondem-se quase integralmente, podendo-se sobrepor, até mesmo nos targets com que se trabalha (jovens – Italia Uno; reformados e domésticas – Retequattro; classe média – Canale 5). Houve até quem definisse o acesso de Berlusconi ao poder como um “golpe de Estado mediático” (Paul Virilio). Ou a política como continuação do poder mediático por outros meios.

Em síntese, é possível afirmar que a evolução das relações entre política e comunicação levou, numa primeira fase, a uma progressiva adequação da política às categorias das comunicação, em particular, às da comunicação televisiva, e, numa segunda fase, à própria metabolização política das categorias da comunicação ao ponto de o género tablóide passar a ser transversal a ambas as esferas, lá onde se reduz a política a mera técnica retórica de captação de audiências para o espectáculo da política, em dois géneros que acabam por se confundir, convertendo a cidadania em mera audiência e a política em “Jogo das Partes”, para glosar o título de uma peça de Luigi Pirandello. A política não passa, neste caso, de mero marketing político, que agora, com a rede, ainda ganha mais substância participativa, sobretudo no chamado Marketing 4.0, de Philip Kotler.

Hoje, todavia, as coisas, com as redes sociais, estão mesmo a mudar, para o bem e para o mal, mas este é um outro e mais complexo discurso.

Tabloid cópia

“S/Título”. Detalhe.

Poesia-Pintura

 “UM SONHO NA MINHA ALDEIA”

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Rua do meu Jardim”.
Original de minha autoria.
Fevereiro de 2021.
RuaDaAldeia2021Pub

“A Rua do meu Jardim”. Jas. 02-2021.

POEMA – “UM SONHO NA MINHA ALDEIA”

SONHEI-TE ESTA NOITE
Numa rua
Da minha aldeia.
Não sei porquê
(Os sonhos são
Sempre assim),
Caminhámos
Lado a lado
Sem dizer
Uma palavra,
Sem um olhar
De través,
Apenas
Pressentimento,
Cá bem no fundo
De mim,
Sentindo-te
No que tu és.

DUAS VEZES
Lá estive
A sentir-te
Nesse tempo
Diferido
Dos encontros
Intangíveis
Que se desfazem
Nas nuvens
Quando o céu
É proibido
E os afectos 
Impossíveis.

MAS VI-TE
Com nitidez
(Um pouco baça,
É certo)
No silêncio do meu
Sonho,
Em encantada
Alvura
A recordar
Tempo antigo
Quando a neve
Regressava,
Branca e leve
Fria e pura.

FOI NA RUA DO JARDIM
(É assim que eu 
A chamo)
Em frente
Da minha casa,
Onde me via
Passar,
Sendeiro da minha
Vida,
A caminho do futuro
Sem medo
Da despedida.

CRUZÁMO-NOS
Por pouco tempo,
Como na vida real,
Nem um olhar
Nos trocámos,
Tão fugaz foi
Este sonho,
Mas intenso
E vital.

E SE A VIDA
É sonho
Também os sonhos
São vida,
Pois senti que,
Na verdade,
Sonâmbula
Me encontraste
Na rua
De uma aldeia
Nunca antes
Percorrida.

E AQUI ESTOU
A sonhar-te
Outra vez
Nos versos
Com que te chamo,
Recordando que
Te vi
Neste lugar
Que eu amo.

É SEMPRE ASSIM,
Meu amor,
Quanto mais tu
Te esfumas
Mais me cresce
Esta dor...

É POR ISSO
Que te sonho,
Pra desenhar
O teu rosto
Com palavras
De poeta
Que afunda
No desgosto.

MAS DE TANTO TE DIZER
Acabei por
Te encontrar
Na terra
Onde nasci,
Onde a neve
Derretia
Quando o sol
Já despontava
E o manto
Da saudade
Logo de dor
Me cobria.

AGORA A NEVE
És tu,
Fugaz que foi
A passagem
No chão incerto
Da vida,
Como a brancura
De outrora
De saudades
Me doía
Em cada fatal
Despedida.

E SE EU TE
Encontrar
Talvez de novo
Te sinta
Qual cintilante
Magia...
..............
Terei então
A certeza,
Branca e leve 
Pura e fria,
Que recriei
Essa ausência
Para nunca
Te perder,
Como a neve
Da minha rua
Que não há sol
Que a derreta
Na penumbra
Da memória...
.................
Que, no sonho,
É como a tua.
RuaDaAldeia2021FinalRec

“A Rua do meu Jardim”. Detalhe.

Artigo

FALEMOS DE POLÍTICA

A propósito de um Artigo de Pedro Nuno Santos

Por João de Almeida Santos

PS_Artigo2021Final

“S/Título”. Jas. 02-2021.

LI COM ATENÇÃO O ARTIGO DE PEDRO NUNO SANTOS (PNS) sobre o PS e as presidenciais. E apreciei a frontalidade e o desprendimento com que, Ministro deste Governo do PS, foi directamente ao assunto: o PS errou ao não apresentar ou apoiar claramente um candidato da sua área política, demitindo-se destas eleições. E, sejamos claros, não foi, por isso, uma vitória do PS, como foi sugerido por Carlos César. Ao demitir-se, o PS permitiu que a extrema-direita engordasse eleitoralmente, mobilizando uma direita que se sentiu livre de votar de acordo com as suas idiossincrasias, sabendo que Marcelo Rebelo de Sousa não precisaria do seu voto para ser eleito. Pelo contrário, se as presidenciais tivessem decorrido em ambiente de polarização esquerda-direita esta direita sentir-se-ia obrigada a votar no seu candidato para derrotar o candidato da esquerda. E nisto PNS tem plena razão. Não teria, pois, a extrema-direita o score eleitoral que conseguiu e ter-se-ia evitado uma perigosa dinâmica política induzida pelos resultados eleitorais. Creio que a substância do artigo de PNS está centrada neste raciocínio.

PS – Esquerda ou Centro?

NÃO CREIO, todavia, que ressuscitar algo que teve uma enorme repercussão aquando da competição Guterres-Sampaio pela liderança do PS tenha algum sentido, ou seja, saber se o PS se deve dirigir à esquerda ou ao centro. Por uma simples razão: o PS é um partido de centro-esquerda. Ponto. Lembro-me bem daquela disputa, de resto, vencida por António Guterres, com Sampaio a propor uma identidade reforçada de esquerda que falasse ao centro, sim, mas com esse rosto de esquerda bem vincado. Como se a esquerda democrática tivesse um problema de identidade e de reconhecimento. Ainda por cima, hoje, com a inauguração, por António Costa, da famosa “geringonça”, que lhe permitiu, sendo minoritário, estar no governo quatro anos, rompendo uma espécie de “conventio ad excludendum” que excluía a esquerda mais radical de soluções de governo. Ou seja, um partido que, sem deixar de falar ao centro, conseguiu atrair a esquerda radical para uma solução socialista de governo, ou seja, para uma solução precisamente de centro-esquerda.  Não creio, pois, que a questão seja esta, já que foi superada pelo pragmatismo corajoso (ou de pura sobrevivência) de António Costa.

A questão é mais funda do que o geometrismo político, embora a distinção esquerda-direita continue a ser politicamente pregnante, ainda que estejamos hoje perante um cidadão de múltiplas e diferenciadas pertenças, não tão enfeudado ao clássico e partidário “sentimento de pertença” e mais aberto à dinâmica da informação. A identidade do cidadão sendo hoje mais complexa, flexível e móvel do que era torna menos pregnante esta distinção. Na verdade, há quem politicamente seja de direita e civilizacionalmente de esquerda, sendo certo que o contrário também se verifica.

A questão, antes de mais, tem a ver com a própria ideia de política: assumi-la em todas as suas verdadeiras dimensões ou procurar expulsá-la o mais possível do discurso e da acção, em nome do pragmatismo, do valor impolítico da independência, da gestão tecnocrática ou científica do poder ou mesmo do valor poder, como imperativo absoluto e exclusivo. Ou seja, a verdadeira questão é mesmo a que reside na concepção de política: devolver a política à cidadania, devolver a voz ao povo em vez de a subtrair à esfera da deliberação e de a concentrar na esfera da decisão própria dos titulares do poder formal, seja ele qual for. Eu creio que a posição de PNS no fundo reside nisto mesmo – ir a jogo, devolvendo a política à cidadania e à deliberação, mesmo que seja para perder, porque o jogo é a alma da democracia. Não ir a jogo por questões de oportunidade, seja por razões de (boa) vizinhança futura seja por se prever uma eventual derrota significa expulsar a política do interior do partido, significa não dar vazão (política) aos que se reconhecem nos valores do socialismo democrático, significa promover a apatia política e, sobretudo, significa deixar a política a outros que não aos que se reconhecem na esfera político-ideal em que se move o PS. E foi isto mesmo que aconteceu: o que estava em jogo já não era a presidência, mas o valor eleitoral e de agenda de outras propostas que não as do PS. O centro do debate e o topo da agenda foi o de saber quem ocuparia o segundo lugar: se uma militante do PS não apoiada pelo próprio Partido se um líder de extrema-direita com o objectivo de crescer partidariamente. Em boa verdade, o valor destas eleições foi desvirtuado por razões meramente instrumentais. E a política regressou, mas para um espaço onde o PS não estava. Os votos úteis concentraram-se nestes dois candidatos em função do verdadeiro objectivo a atingir: o segundo lugar nas eleições presidenciais.

Por isso, o que eu valorizo no artigo de PNS é precisamente o ter chamado a atenção para esta falta de comparência do PS por razões de oportunidade, que, afinal, acabariam por libertar a direita mais radical para um voto fundado exclusivamente na ética da convicção, sabendo que o seu candidato presidencial não necessitaria do seu voto.

A Esquerda e a Política

A ESQUERDA sempre se caracterizou por valorizar a política mais do que a direita. Por subtrair a exclusividade da política às elites liberais, promovendo o acesso a quem sempre tinha estado fora da dialéctica política. E, nesse sentido, por ver a política como algo mais do que um meio para o exercício do poder puro e duro. Ou a política como um valor em si. Tal como a democracia. E sempre que a desvalorizou – o que tem acontecido muito nestes últimos tempos – pagou um preço muito caro, tornando-se ou igual à direita ou vendo desertar o seu eleitorado para outras zonas de influência política. Desvalorizá-la, de resto, significa afastar-se do seu referente social, perder identidade, não identificar uma função estrutural que justifique a sua própria existência e, pior do que tudo isto, significa deixar o campo a outros, se é verdade que a política tem horror ao vazio, como se diz na gíria. E foi o que nestas eleições aconteceu. O PS deixou que a agenda política fosse ocupada por outras forças políticas, designadamente à extrema-direita.

O que se está a passar por essa Europa fora em matéria de socialismo democrático ou de social-democracia deveria pôr de alerta os responsáveis do PS. Sobretudo porque é na desmobilização dos seus militantes, simpatizantes e eleitores que se cava o fosso que leva à crise de representação. Neste caso, à crise do seu campo de representação. É por isso que eu valorizo a posição de PNS – porque ela evidencia a necessidade de ir a combate sempre que estão em causa assuntos importantes da nossa vida colectiva. Não só pelos assuntos, que são importantes, mas também porque é na mobilização da cidadania que se cria oportunidades de progresso e de avanço político e civilizacional.

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“S/Título”. Detalhe.