Poesia-Pintura

O TERRAÇO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Terraço”.
Original de minha autoria (2022, 
119x119, Mold/madeira/artglass, 
papel Hahnemuehle, 100% algodão).
Outubro de 2022.
O Terraço2022

“O Terraço”. JAS. 2022 (119×119, papel Hahnemuehle, 100% algodão).

POEMA – “O TERRAÇO”

É DAQUI,
Deste terraço,
Que eu te vejo
Com a forma
Intangível
Do desejo.

SILÊNCIO,
Essa tua melodia,
Nuvens,
Espelho 
Da tua alma,
Um lustre
Que ilumina,
Céu dourado,
Utopia,
Minha sina,
Meu pecado,
O que em ti
Eu sempre via.

MAS É DAQUI
Que te sonho,
Uma fresta
Para o céu,
Um olhar
Que não tem fim,
É daqui
Que eu te quero
Sem limites
No poema
E perfume
No jardim...

COM PALAVRAS
Te olho sempre
De frente
E tão altiva
Te vejo,
És arbusto
Que me sente
Pois em ti
Cai o desejo.

É DAQUI
Que eu não saio
Quando parto
Para longe,
É aqui
Que eu te tenho
Nas raízes
Do que sou,
É pois aqui
Que te quero
Esteja ou não
Onde estou.

VER-TE
Sem te tocar,
Beijar-te
Com os olhos
Numa noite
De luar,
Dormir contigo
Ao relento
Para melhor
Te sonhar...

VÊS
Como é simples
E não
Pecaminoso
Gostar
Assim tanto
De ti?
A mim basta,
Neste encanto,
Ficar-me,
Simplesmente...
..............
Simplesmente,
Por aqui...

O Terraço2022Rec

Artigo

“TRIAL&ERROR”

O MÉTODO DA POLÍTICA BRITÂNICA
DS10 _26

“S/Título”. JAS. 10-2022

AS ELEIÇÕES OCORRERAM no final de 2019, com um extraordinário resultado para os tories de Boris Johnson, mas, como se sabe, este, atropelado pelas inúmeras trapalhadas ocorridas durante a pandemia, foi forçado a deixar a liderança e, consequentemente o cargo de primeiro-ministro (é esta a norma no sistema britânico), tendo sido substituído por Liz Truss, após uma renhida disputa com Rishi Sunak. Agora, pouco tempo depois de assumir a liderança, também Liz Truss acabou por ter de sair e o Partido Conservador escolheu rapidamente, mais uma vez, um novo líder e um novo primeiro-ministro. Três líderes e três primeiros-ministros em três anos (e cinco em seis anos, desde 2016). Pior: três primeiros-ministros num só ano. Pior ainda: entre Julho e Outubro. É obra, temos de reconhecer. E as eleições só serão em Dezembro/2024 ou em Janeiro/2025. Haverá ainda tempo para um quarto líder e um quarto primeiro-ministro? Não se sabe, mas, à prova dos factos, já verificados, tudo pode acontecer. O método parece ser o conhecido “Trial&Error”. Os conservadores vão tentando, até reduzindo procedimentos, até acertar. É a política compatível com este método?

I.

O PARTIDO CONSERVADOR tem uma maioria muito confortável no parlamento (357 mandatos, contra 196 dos trabalhistas, sendo necessários para a maioria absoluta 326). O sistema institucional numa democracia parlamentar como a britânica confia a formação do governo ao partido que tiver maioria. Apesar do poder (basicamente cerimonial) de nomear e exonerar o primeiro-ministro e de dissolver o parlamento, a margem de escolha do Rei não existe, pois este, de acordo com a tradição, deve aceitar as escolhas políticas que o primeiro-ministro e o parlamento fizerem, não dispondo do poder de livremente decidir sobre a nomeação do primeiro-ministro ou sobre a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições. O rei reina, mas não governa e tem o estrito dever de manter neutralidade política.

“the Crown is an integral part 
of the institution 
of Parliament. The King plays 
a constitutional rol in opening 
and dissolving Parliament 
and approving Bills before 
they become law” (...) 
“Time has reduced the power 
of the monarchy, and
 today it is broadly cerimonial” 
(…). “The day after a 
general election the King 
invites the leader of the 
party that won the most seats 
in the House of Commons to 
become Prime Minister and to form
a government” (…) “The Crown 
also dissolves Parliament before 
a general election” 
(do Site do UK Parliament).

Numa palavra: os poderes do rei são de carácter meramente formal. A neutralidade real é garantida pela (obrigatória) assunção formal das decisões políticas tomadas pelo Parlamento e pelo PM. O partido maioritário detém, assim, todo o poder e, note-se, está também acima de qualquer liderança, relativizando de certo modo aquela que tem sido a crescente personalização da política (maior nos sistemas presidencialistas e nos sistemas eleitorais proporcionais). Mas também acontece que o poder do partido e o da liderança não anulam o poder de cada militante (decisivo para a eleição do líder) e, sobretudo, de cada deputado no seu interior, enquanto eleito em sistema maioritário uninominal e portador de legitimidade originária própria.  Note-se que, desta vez, por decisão do Comité 1922, Rishi Sunak foi eleito somente pelos deputados do partido, sem recurso ao voto dos militantes (o que não acontecera com Liz Truss). Neste sentido, o partido conserva uma forte dialéctica interna diferente daquela onde a liderança partidária domina absolutamente a vida interna dos partidos, sendo a militância sobretudo “braço armado” da liderança de turno, “massa de manobra” para o combate eleitoral, não tendo os deputados o mesmo poder. Isto sobretudo nos partidos mainstream, nos partidos que tradicionalmente disputam a alternância governativa e que, por isso, dispõem de um vasto poder de ocupação da administração do Estado. Neste caso, o sistema eleitoral que melhor se adapta é o sistema proporcional com listas fechadas, onde não só as lideranças podem impor os seus candidatos, mas onde também estes não têm de disputar directamente os círculos eleitorais onde se candidatam – na verdade, a disputa centra-se sobretudo no partido (na sigla) e numa liderança altamente personalizada. E por isso verifica-se uma diferença substancial entre estes dois sistemas: em ambos o partido é decisivo, mas no sistema maioritário uninominal não só os deputados têm uma maior autonomia política, correspondente à responsabilidade pessoal de ganhar o respectivo círculo eleitoral (constituency), como também o partido na sua proposta tem de reconhecer e respeitar as dinâmicas da sociedade civil, sendo obrigado a fazer criteriosas escolhas dos seus candidatos se quiser ter sucesso eleitoral. Nestes sistemas muitas vezes a maioria eleitoral no país nem sequer corresponde à maioria vencedora. Esta pode perder no país, mas ganhar em mandatos. Este sistema eleitoral (maioritário uninominal) tem naturalmente uma influência directa sobre o próprio partido. Não é a panaceia que tudo resolve, mas é melhor do que um sistema que acabe sempre por afunilar o processo político na liderança do momento. Tal como as primárias abertas não o são, embora também estas sejam melhores do que o sistema que não as adopta. A questão é mais funda, mas também aqui está muito em jogo o bom e o eficaz funcionamento de um partido político.

II.

O SISTEMA INGLÊS tem esta vantagem e não raramente se assiste a crises de líderes (e de primeiros-ministros) centradas nos respectivos grupos parlamentares. Foi o que aconteceu com Johnson e com Liz Truss. Parece ser negativo, mas, na realidade, é mais positivo do que negativo. O sistema ganha maior vitalidade e liberdade interna.

Mas, neste caso, depois da saída de Liz Truss, será compreensível que se assista a uma terceira tentativa sem que, razoavelmente, a palavra seja devolvida ao povo (mas nem sequer foi dada aos militantes), verificada que está a longa desorientação do próprio partido conservador? Provavelmente, se fosse uma república parlamentar, como a nossa, o Reino Unido estaria agora em eleições antecipadas. Em Portugal seria assim, com toda a certeza. Já aconteceu por menos (recentemente, mas também com a dissolução do Parlamento por Jorge Sampaio). Só que na monarquia constitucional britânica, com um Rei desprovido tradicionalmente de iniciativa política, não há mecanismo institucional que possa decidir eleições antecipadas, estando esse poder no Parlamento (existe, para a dissolução, um Fixed-term Parliaments Act 2011: “An Act to make provision about dissolution of Parliament and the determination of polling days for paliamentary general elections”) e no primeiro-ministro.

E, todavia, parece evidente, vistas as circunstâncias, que o Reino Unido ganharia em ir para novas eleições legislativas como vem pedindo o Labour de Keir Starmer, dado, pelas sondagens, como claríssimo vencedor se isso viesse a acontecer, o que indicia uma evidente perda de legitimidade dos conservadores. Mas os tories, estando no poder desde 2010 (desde o tempo de David Cameron, o verdadeiro responsável moral pelo BREXIT) e estando, numa sondagem de YouGov, 33 pontos abaixo dos trabalhistas (21% contra 54% do Labour) e 21 pontos noutra, da Survation, não parece estarem muito interessados em ir para eleições, esperando melhores condições em 2024/2025. O que não será coisa fácil. O novo líder foi, de facto, declarado na Segunda-Feira e nomeado pelo Rei ontem. E é Rishi Sunak. O sistema procede, pois, por um cada vez mais expedito método “trial and error” no interior do partido maioritário e, consequentemente, no próprio executivo britânico. Vamos ver se é de vez agora e iremos também ver se os cidadãos e o grupo parlamentar farão uma avaliação positiva da sua acção até às próximas eleições. Rishi Sunak tem, portanto, pouco mais de dois anos para mostrar o que vale. Como se dizia na segunda-feira, 24.10, no New York Times (Eshe Nelson), ele vai precisar de muita habilidade para navegar entre um partido “unruly and fractious” e o rigor nas finanças públicas exigido pelos mercados financeiros. Para já, reconduziu grande parte do governo anterior.

III.

NA VERDADE, esta situação não parece dignificar muito a própria política, ao reduzi-la simplesmente a uma questão de poder e, neste caso, ao único objectivo de manter o poder a todo o custo. As virtudes do sistema britânico têm, neste caso, consequências que são claramente negativas. Na verdade, não havendo eleições, como decidido pela ex-primeira-ministra e pelo Comité 1922, isso significará uma ulterior degradação da política ou mesmo uma autêntica autêntica palhaçada democrática, como afirmam os autores de uma petição em curso (promovida pela Avaaz.Org – The World in Action) para a realização imediata de eleições: “it makes a mockery of democracy”. Pelo menos, parece ser a redução da política a um mero exercício de poder, a um seu uso instrumental, a uma menorização do próprio princípio da legitimidade substancial e da legitimidade de exercício. E um uso excessivo (em política), e cada vez mais expedito, do método assente em “trial and error”, pouco adequado ao processo político democrático, mesmo tendo em consideração a natureza (livre) do mandato não imperativo. De resto, como vimos, as sondagens são claríssimas sobre o estado da opinião pública e a legitimidade do partido conservador para governar. Talvez Keir Starmer tenha mesmo razão: “the Tories have shown they no longer have a mandate to govern. (…) It’s time to a general election” (de um e-mail de Starmer). Parece-me mesmo que sim. Em nome da decência política. Mas isso não irá acontecer se Sunak conseguir estabilizar a liderança do partido conservador, a sua principal tarefa, já que a resolução da crise se mostrará muito mais difícil.

DS10 _26Rec

Poesia-Pintura

OLHAR

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Olhar”.
Original de minha autoria.
Outubro de 2022.
JAS_OLHAR2310_3

“Olhar”. JAS. 10-2022

POEMA – “OLHAR”

QUE ME DIZES,

Tão frontal,
Olhar inquieto,

D’espanto?
É chamamento,

Sinal,
É resposta

Ao meu canto?

A TUA VOZ

É murmúrio,

Melodia,
É música,
É sinfonia,
É orquestra
A tocar...

E são belos 

Os teus olhos,

Porque me sabem

A... mar,

São ondas

Na minha alma

Por onde
Vou navegar.

NÃO É AZUL

Sua cor,

Mas de sol

Que ilumina,

Olhas pra mim,

Meu amor,

Se te navego
À bolina?

CABELOS

Desalinhados,

Sopra o vento

Sobre ti
E em seu intenso
Soprar

Ficas tão longe
Daqui 

Como a montanha

Do mar.

QUE PROCURAM

Os teus olhos?

Tua boca balbucia

Palavras

Que ao silêncio

Se votam
Até que a alma
Sorria...

QUANDO NELAS

Leio a pergunta

Que nunca,

Ousando,
Faria,
Dizes, sim,
Que tu não sentes
O que eu
Nunca te diria?

DIZES QUE
 NO
Poema
Já saudade
Tu não és,
Algo que devo
Esquecer
...
.............
Se não vierem
Marés

Onde te sinta
Crescer?

TEUS OLHOS

Húmidos

Fascinam,

Uma boca que seduz,

Teus cabelos

Desalinham

E eu,
Poeta d’outono,

Na mais pura

Contraluz...

OLHAS-ME, POIS,

Inquieta,

Sem estar

À tua frente,

Uma dorida
Distância

Que no silêncio
Se sente,
Mas por isso

Eu te digo

Que o teu olhar

Não me mente.

QUE ME DIZEM

Os teus olhos
Hoje, assim,
Tão de repente?

JAS_OLHAR2310_1Rec

Ensaio

A LIÇÃO ITALIANA
Por João de Almeida Santos

IJAS_Italia2022

“S/Título”. JAS. 10-2022

TALVEZ O CASO ITALIANO mereça uma atenção especial. Não seria a primeira vez. E não só porque, na sua história, houve a originalidade da criação do fascismo. Ou porque foi também a única democracia europeia (não falo das autocracias que, entretanto, se mantinham) que permaneceu mais de quarenta anos bloqueada, sem alternância no poder, até à queda do Muro de Berlim. Houve sempre uma conventio ad excludendum relativa ao único partido de oposição (o PCI) com capacidade alternativa de governo que impedia a sua chegada ao poder. Isto, apesar de, em 1981, François Mitterrand ter engajado quatro ministros do PCF no poder (entre os quais Charles Fiterman), levando desse modo, e paradoxalmente (ou não), este partido ao desaparecimento da cena política francesa. Mas em Itália a situação manteve-se inalterada. Apesar do eurocomunismo e da liderança confiável de Enrico Berlinguer e de quem se lhe seguiu na liderança (Alessando Natta e Achille Occhetto). A Itália é uma grande democracia que viu o imenso património político e ideal acumulado do PCI desmoronar-se progressivamente a caminho da actual irrelevância do Partito Democratico. Trata-se de um país que é um poderio económico europeu e com um património histórico e cultural único. Um dos pilares da União Europeia. Um berço da Europa. Um país que conheço bem, onde vivi e trabalhei dez anos e sobre o qual escrevi centenas e centenas de páginas. Conheci muito de perto os meandros internos da política italiana pela proximidade que tive com vários dos seus mais altos representantes. Vivi por dentro a sua história política, mas também a sua história cultural. Mas hoje vejo-me confrontado com algo que julgava que nunca iria ver na minha vida: as mais altas posições do Estado estarem ocupadas pela direita radical, aquela cujo património nos leva directamente ao Movimento Sociale italiano (MSI), de Giorgio Almirante, e mesmo à Repubblica di Salò. Com efeito, o Senado é já hoje dirigido por Ignazio la Russa, um personagem que deu os seus primeiros passos políticos no MSI de Giorgio Almirante e que sempre me fez lembrar um episódio impressionante desse extraordinário filme de Bernardo Bertolucci, o “Novecento”. Por sua vez, Lorenzo Fontana, o novo Presidente da Câmara dos Deputados, da LEGA de Salvini, é um católico ultra, tradicionalista e alinhado, através do seu conselheiro espiritual Vilmar Pavesi, com as posições do famoso bispo Marcel Lefebvre (casou-se segundo o “rito tridentino”) e defensor acérrimo das idiossincrasias mais retrógradas; um homem que reza, diz-se, cinquenta avé-marias por dia e que enxameia as redes sociais com santos e santinhos. Nada de mal, mas algo que nos dá bem ideia do que será a gestão institucional de Itália. Amanhã, a defensora da “universalidade da cruz” e fundadora dos “Fratelli d’Italia”, Giorgia Meloni, será a Presidente do Conselho de Ministros.  Seguir-se-á a ocupação de todos os cargos de nomeação por parte dos conservadores radicais. Não estaremos a caminho de uma teocracia nem do fascismo. Não.  Mas lá que devemos estar atentos, lá isso devemos. Pelo caminho, até já tenho saudades dos tempos em que Itália era governada pela DC e pelo PCI (que nunca governou, mas que tinha, e exercia, muito peso político).

I.

MAS A VERDADE É QUE, no país, o bloco de direita é minoritário porque, à prova dos factos (eleitorais), teve menos um milhão e meio de votos do que o centro-esquerda. A sua vitória deveu-se sobretudo ao sistema maioritário uninominal, a uma só volta, aplicável a cerca de 37% do eleitorado, e à estupidez umbilical do centro-esquerda. Mas agora também acabamos de ver o partido de Berlusconi (excepto o próprio e a ex-Presidente do Senado Casellati) a não participar na votação de La Russa, que obteve, todavia, da oposição 17 votos. O que me dá algumas garantias. Se nem a oposição se preocupa, por que razão me hei-de preocupar eu? O governo está em formação e veremos se o programa de governo exprime aquele que foi o moderado programa eleitoral do bloco de direita ou se haverá alterações substanciais ao que foi apresentado aos eleitores. E, todavia, não creio mesmo que se possa dizer que o fascismo chegou a Itália, assim, com a reposição de algo que a democracia rejeitaria liminarmente, até porque ela ainda dispõe de mecanismos suficientemente robustos para isso. A chave de leitura do que virá aí, na minha perspectiva, não será essa.  A história tem, claro, “corsi e ricorsi”, como dizia o Giambattista Vico. Mas os “ricorsi” não suficientes para fazer regressar Mussolini. E, de qualquer modo, nesta teoria a história progride sempre para novas fases. E até creio que, apesar de soberanistas (a LEGA e Fratelli d’Italia), nem sequer será a questão europeia (não esqueçamos que Itália é o país que leva a maior dotação do PRR, mais de 200 mil milhões de euros) a marcar a diferença ou a da guerra na Ucrânia. Neste último aspecto, Giorgia Meloni sempre foi clara. A “pacchia” pode ter acabado, mas 200 mil milhões são sempre 200 mil milhões. E, tenho a certeza, a Itália não é a Hungria, que, apesar de tudo, se mantém na União. Farão bloco, sim, “ma non troppo”. Disso também tenho a certeza. Por uma simples razão: Itália não fez parte do bloco das repúblicas socialistas, do Comecon ou do Pacto de Varsóvia. E isso fará alguma diferença.

II.

AS QUESTÕES INCONTORNÁVEIS serão, no meu entendimento, as da imigração e dos direitos civis. Mas a mudança ocorrerá também no plano mais global da hegemonia ético-política e cultural. Foram muitos os anos em que a direita mais radical esteve também sujeita a uma conventio ad excludendum. E em que sofreu uma capitis diminutio ideológica e política, para pagar o preço do “ventennio”. E outros tantos anos em que a hegemonia foi claramente do partido comunista italiano, incluído o campo cultural. A este propósito, veja-se os meus ensaios “La Cosa” e “A Revolução no Sistema Político Italiano e a Esquerda” na Revista “Finisterra” (5/1990 e 15/1994, pp.95-109 e 51-69), onde mostro como.  Mas, depois, o que tivemos foram outros tantos anos em que a ideia de hegemonia, com a tecnicização progressiva da política e a financiarização global da economia, parece ter sido banida do vocabulário político, à esquerda e à direita. Só que, entretanto, ela parece estar a regressar em força, quer na óptica da direita mais radical quer na de uma esquerda fracturante que procura impor uma visão do mundo politicamente correcta. Uma matriz mais tradicionalista e outra mais construtivista. Duas visões antitéticas que nada devem à tradição iluminista e liberal. Ou seja, a hegemonia está a entrar pelos lados mais perigosos da história, pondo em causa a própria ideia de liberdade e a matriz da nossa própria civilização. O tradicionalismo e o construtivismo são, de facto, duas visões que tendem a anular uma parte substancial e progressiva da história que renasce com a Revolução Francesa. Esta dimensão da hegemonia, entretanto, tem vindo a ser ignorada pelo centro-esquerda que, em compensação, se está a deixar seduzir pelo militantismo do politicamente correcto, do construtivismo social e das políticas identitárias, acabando por não definir com exactidão aquela que deveria ser a sua própria colocação. Esta marcha tem ajudado à paralisia ideológica do centro-esquerda, que tem preferido, pelo contrário, embarcar acriticamente neste discurso, exibindo-o retoricamente como o discurso da nova esquerda, talvez porque, assim, não tem de propor um seu discurso próprio, progressista, sim, mas mais realista e respeitador da temporalidade histórica, ao mesmo tempo que também se  alimenta do anacrónico discurso do militantismo antifascista, como se a história não fosse dotada dessa astúcia (List) da razão que se impõe à dialéctica das contingências ou das meras oportunidades. Alguma transcendência será possível encontrar na história, sem que ela tenha de ser referida necessariamente a deuses ou ao destino. Sim, mas a verdade é que o centro-esquerda sente-se muito bem aconchegado e resguardado num “politiquês” asséptica e programaticamente correcto e num manto discursivo diáfano transversal capaz de encadernar muito bem as políticas ao sabor das contingências, dos oportunos cálculos eleitorais e do ditame da razão económica global. Do que não se apercebe é que há uma cidadania que tem vindo a crescer ao lado destes discursos e que já não os absorve acriticamente, votando hoje cada vez mais em discursos com substância e clareza (seja ela de esquerda, França, por exemplo, seja ela de direita, Itália, por exemplo) ou, então abstendo-se.

Pois bem, o bloco de direita italiano somar-se-á aos da Hungria e da Polónia e tentará desenvolver mecanismos políticos internos que transformem a sua hegemonia eleitoral numa mundividência hegemónica. Ou seja, a questão central disputar-se-á no terreno da sociedade civil e, por isso, o centro-esquerda deve construir a sua própria e autónoma identidade ético-política e cultural de modo a que se possa contrapor com eficácia à visão tradicionalista, nacionalista e soberanista do bloco de direita, e no qual, de resto, a visão neoliberal é claramente minoritária (enquanto representada por Forza Italia). Sinceramente, não sei se a direita radical italiana será movida por essa pulsão hegemónica (ajudada pela crescente tendência mais global), se terá essa ambição, sem se deixar afogar nas ingentes tarefas governativas e pela gestão dos próprios interesses de curto alcance. Alguns já falam de uma revolução ou agenda “antropológica positiva” alternativa.  Que ela tem condições para isso, é verdade, não só porque dispõe de doutrina, mas também porque é nela que tem vindo a sustentar o seu próprio crescimento político e eleitoral, designadamente no seu combate frontal à agenda dos apologistas do politicamente correcto e das políticas identitárias. No extremar de posições, designadamente no plano dos direitos civis, sente-se cada vez mais a falta de uma consistente e hegemónica visão progressista, moderada, respeitadora da temporalidade histórica e adversária quer do tradicionalismo ultra quer do construtivismo social e linguístico.

III.

E, TODAVIA, SE VIRMOS DE PERTO o panorama político do centro-esquerda italiano o horizonte é algo desolador. O PD é todo para reconstruir e redesenhar. É convicção generalizada que a mudança não pode esgotar-se numa simples mudança de dirigentes. Mas também é convicção generalizada que a operação não é simples. O Movimento5Stelle deverá, com Conte, consolidar uma sua identidade, que já não é a de um “partido digital”, a do defensor da democracia directa, a do neopopulismo que não é de esquerda nem de direita. Também este partido terá de se identificar melhor aos olhos dos italianos. Depois, vem o chamado terceiro polo de Calenda e Renzi. Mas aqui, com o imprevisível Renzi, é impossível prever o que possa vir a acontecer. Deste personagem pode-se esperar tudo e o contrário de tudo. A sua única estratégia é a da sobrevivência política, sem olhar a meios políticos ou morais. O seu modelo parece ser o do partido unipessoal. E por isso não é preciso ver mais para que a dúvida permanente se instale sob forma de certeza: não se pode confiar nele, porque se trata de um verdadeiro catavento.

IV.

O essencial discute-se aqui, talvez mesmo mais do que a perspectiva programática, uma dimensão para onde as forças de governo parece, cada vez mais, tendencialmente convergirem (todas elas), como se os governos fossem uma espécie de oráculo onde os vários sacerdotes se vão revezando nas liturgias, com os “deuses” a comandarem lá de longe, movendo os fios a seu bel-prazer, isto é, de acordo com os seus interesses e fins últimos. E sabemos bem que os partidos da alternância estão mesmo em crise, até nos casos em que ainda governam. De resto, os sistemas de partidos estão fragmentados por todo o lado e os seus discursos perderam poder mobilizador perante a cidadania. O asseptismo ideológico veio para ficar e só falta mesmo que os políticos passem a dizer, sistematicamente, sempre que haja uma decisão a tomar, que a entregarão aos técnicos da matéria em causa. Especialistas, técnicos, reguladores, tribunais constitucionais, grupos de missão, União Europeia – tudo serve para “descontaminar” a decisão da política.  E por isso acho que a descolagem já é com a própria política, mais do que com os programas, de resto, cada vez mais tendencialmente iguais. A tendência é, de facto, a de mascarar a decisão política com a roupagem tecnocrática ou até científica, ou seja, a de retirar dimensão política à decisão. De resto, o bem-estar dos cidadãos parece ter sido mesmo reduzido a uma questão de gestão. A uma questão empresarial. Uma questão de racionalidade técnica. A determinação de fins, o funcionamento global da sociedade, os valores, o intangível, a educação estética do cidadão, a profundidade temporal (em relação ao passado e em relação ao futuro), tudo isso é redutível e convertível numa visão simplesmente empresarial da sociedade, quando, afinal, o que da experiência sabemos é que é precisamente o contrário o que acontece: a importação para dentro do universo empresarial das próprias categorias da vida social. Isto nas visões empresariais mais avançadas. Exemplo clássico? O fordismo. Veja-se o que dele disse Gramsci nos “Quaderni del Carcere”.

V.

A POLÍTICA MUDOU MESMO. Por um lado, os partidos da alternância tendem cada vez mais a despolitizar a decisão política, deixando que ela se exprima somente durante os períodos de deliberação política, sobretudo eleitorais. Por outro, cresce na cidadania a vontade de uma política diferente que não lhe é oferecida, a não ser pelos extremos do espectro partidário. Mas é disso que os partidos mainstream não se querem convencer. E sinceramente não sei como é que o Partito Democratico se vai reconstruir: que discurso, que identidade, que estratégia. E não sei se se porá a questão da hegemonia, ou seja, a procura de uma identificação com o que de melhor a Itália tem para oferecer em todas as dimensões da sua riquíssima história. A experiência ganhadora do M5S acabou. Esse já não é o partido de Conte. Casaleggio morreu. E Beppe Grillo já só pensa em si e nos benefícios que ainda pode conseguir da sua posição de “Garante”. O Luigi di Maio nem sequer foi eleito pela sua minúscula e recente formação política. Desapareceu. Como desapareceram politicamente os herdeiros de Casaleggio, a começar pelo filho. E quanto ao chamado “terzo polo” não vejo mesmo como é que se poderá aguentar com um saltimbanco como esse tal Matteo Renzi. Falta gravitas à política actual. E a cidadania cada vez se reconhece menos nela. Senão vejamos. Como acreditar, quando um dos parceiros do bloco de direita que venceu as eleições, precisamente Silvio Berlusconi, diz da futura Presidente do Conselho de Ministros: “Giorgia non ha disponibilità ai cambiamenti, è una con cui non si può andare d’accordo”. Mas, mais: ela é “supponente, prepotente, arrogante e ofensiva” e até “ridicola”, se a palavra não tivesse sido riscada.  E Forza Italia é um partido necessário para garantir uma maioria de suporte do governo chefiado por Giorgia Meloni. Berlusconi sabe bem do que fala, pois ela foi sua ministra (da Juventude) num dos seus governos e não adianta que agora venha desmentir para levar a bom porto as suas operações ministeriais. E a LEGA? O famoso “Senatur” Bossi ainda mexe e muitos já falam do regresso da velha LEGA. E, para ser sincero, nem me parece que os 26% de Fratelli d’Italia estejam ancorados muito solidamente na sociedade italiana. Porque a falta de gravitas, na verdade, talvez seja mesmo transversal.

VI.

A CIDADANIA TAMBÉM MUDOU muito e hoje o cidadão pode saber tudo acerca de quem o representa e de quem o governa. Conhecer as vidas dos representantes e dos governantes. O sistema informativo, mesmo com essa enorme dimensão simulacral que o integra, cresceu brutalmente e isso veio alterar significativamente a percepção acerca da política. Já não é possível determinar instrumentalmente a estrutura da opinião pública como quando eram os grandes meios de comunicação, o outro lado do poder, a fazê-lo. Esta mudança implica uma mudança radical na forma como a cidadania olha para o poder. Mas é precisamente aqui que os partidos mainstream falham rotundamente ao não perceberem que a política deve ser abordada com outras categorias que não as que tem vindo a adoptar. Que deve restaurar a sua natureza originária, como governo de seres humanos e não de coisas. Olhar para o exemplo das religiões e do poder que elas exprimem. Olhar para o seu sucesso. Ou para os grandes desportos de massas. Numa palavra, olhar para a dimensão emocional da política, para aquilo que toca mais profundamente o ser humano, por um lado, humanizando-a e, por outro, tornando-a mais amiga da natureza. E não só para sobreviver fisicamente, mas também como reconhecimento de que o ser humano é também ele próprio natureza. As sociedades não são empresas porque nelas a presença do elemento emocional (e os sentimentos) é decisiva e deve ser considerada fundamental. O Max Weber falava criticamente de “gaiola de aço” para designar o sistema jurídico-racional que tendia a engavetar a realidade em fórmulas burocráticas e desumanas. Hoje temos “gaiolas electrónicas” e “gaiolas estatísticas” que engavetam a vida dos indivíduos. O Fernando Pessoa, no dizer de Richard Zenith, na sua monumental biografia do poeta, parece ter dito, em meados dos anos trinta, que Salazar era “demasiado técnico”, faltando-lhe “criatividade e calor humano”: “Para ele o país”, dizia o Pessoa, “não é a gente que nele vive, mas a estatística dessa gente”. E vivíamos num período conhecido como a época de ouro das ideologias. Imagine-se, pois, o que Pessoa não diria da política de hoje, com o eclipse das ideologias e o triunfo das visões tecnocráticas do mundo, da racionalidade global e da financiarização integral da economia. Mas é disto mesmo que se trata: a nova visão é a dos grandes números da macroeconomia, a única visão que os políticos do mainstream parece saberem proclamar. Não é assim tão difícil de perceber: esmague-se a cidadania com impostos e depois poderemos exibir resultados nas finanças públicas suficientes para todos abrirmos os olhos de espanto com tanta competência. Gasta-se demais? Tem de ser, porque são imperativos sistémicos. Esta parece ser a conversa principal dos partidos mainstream. Mas é por aqui que os extremos avançam ao proporem sociedades fundadas em valores, sejam eles os da “soi-disant” esquerda sejam eles os da mais tacanha tradição.

VII.

É CLARO QUE NÃO HÁ RECEITAS MÁGICAS. Mas também é claro que basta abrir os olhos para ver a crise da política e as tendências que começam a formar-se na sociedade civil e na opinião pública. O que aconteceu nos USA, com Trump, não parecia possível. O que está a acontecer no Brasil, com Bolsonaro, também não. O que aconteceu na Itália era realisticamente previsível, mas, ainda assim, não deixa de chocar e de impressionar. O que aconteceu na Suécia, também, com um partido radical como segundo partido, com cerca de 20%. O Alternative Fuer Deutschland sobe aos 13% e a CDU/CSU já se encontra a 10 pontos (com 30%) acima do SPD de Olaf Scholz (segundo uma recente sondagem da Allensbach para o Frankfurter Allgemeine) e com um consistente grupo parlamentar. O que está a acontecer na Hungria e na Polónia merece atenção redobrada. Isto para não falar de Espanha, onde o fenómeno VOX tem vindo a emergir com muita força, cifrando-se hoje o seu score eleitoral em cerca de 15% (na média de 10 sondagens entre 17/10 e 03/10; o que, somado com os 31, 58% do PP, permite atingir uma maioria absoluta à direita espanhola, mantendo-se o PSOE em cerca de 25%). Em França é o que se sabe, com a extrema-esquerda a ocupar o lugar do centro-esquerda e a extrema-direita sempre à espreita da Presidência da República e agora com um numeroso grupo parlamentar. Em Portugal algo se move neste sentido, ao mesmo tempo que o centro-esquerda adormece sobre uma concepção de política assente no movimento por inércia.

É também claro, como disse, que a direita italiana não tem uma posição muito estável, sobretudo se atendermos à posição de Forza Italia na eleição para o Presidente do Senado e ao juízo de Berlusconi sobre Giorgia Meloni. Ou também às movimentações internas na LEGA. Mas seguramente terá oportunidade para dar início a uma tentativa de hegemonização na sociedade italiana rompendo aquele que sempre foi tradicionalmente um espaço dominado pela esquerda, desde os tempos da esmagadora hegemonia do PCI. O suporte político já existe e certamente não perderá a oportunidade de se afirmar também nessa frente, logo a começar pela agenda “antropologicamente positiva”, sendo, todavia, certo que não há uma linearidade entre uma hegemonia político-eleitoral e uma hegemonia ético-política e cultural. Mas o que é certo é que a direita radical tem, neste domínio, um seu claro património consolidado, o que não acontece com o centro-esquerda, que terá de o reinventar, ao mesmo que tempo que terá também de se reinventar politicamente. A ver vamos.

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Poesia-Pintura

ENCONTROS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Onírica Nudez”
Original de minha autoria (sobre
foto, anónima, em contraluz, da 
minha colecção privada).
Outubro de 2022.

Corpo2022_10_16

“Onírica Nudez”. JAS. 10-2022

POEMA – “ENCONTROS”

TARDO A ENCONTRAR-TE
Porque já não sei
Como procurar-te
Levado
Por um poema...

NÃO É VONTADE
Decidida,
Mas destino que marca
Os passos que
Darei
Na estreita
Vereda da vida...
...............
Ou aqueles que
Eu nunca ousarei...

E TU SABES
Que não sei,
Mas sabes
Por onde andei
E por onde
Me perdi
À procura
Do que não
Queria ter
Para preservar
O que o tempo
(Ah, sempre o tempo)
Haveria de 
Esculpir
E em meus
Poemas
Guardar.

UM DIA
Encontrei-te
No fim de um caminho
Que já nem sei
Se trilhei
Antes de qualquer
Início
Ou se o abandonei
Como se fora
Vereda fatal
De um tentador
Precipício...

ÀS VEZES,
Reencontrava-te, sim.
Encontros fugazes,
Onde o teu brilho
Começava a cegar
Por fora,
Mas a iluminar
Por dentro...
..............
Para te poder
Cantar.

MAS JÁ NÃO SEI
Se te hei-de querer
Para nunca
Te ter,
Sentir saudades
Ao amanhecer
Do teu perfume
Na memória fresca
Dos afectos
Indefinidos,
Os mais perfeitos
E sentidos.

SIM, DEIXO-ME IR
Nas mãos lentas 
Do destino,
Mas há sempre
Um sobressalto
Quando o real
Nos atropela
Por dentro
E tudo se torna
Inóspito...
.........
Por fora.

SE NÃO ME DEIXO IR
Viajo para outros
Lugares,
Tenho sempre
De viajar
À procura de mim,
Dum espelho onde
Me veja por dentro
A olhar-te
Por fora,
À espera do próximo
Sobressalto...
.................
Que nunca demora.

AH, COMO ME FALTA
Esse véu
Que te dissimula
O rosto
Quando te quero
Pintar com palavras
E logo te vejo
Nua,
Com a alma
A tiritar...

MAS EU CONTINUO
A procurar-te
Com disfarçado
E tímido olhar
(Como quem
Não te quer),
Perscrutando-te,
Na memória,
A alma pura
Que se aninha
Em ti
Para te proteger
Do risco da beleza
Exposta
Como fractura,
Aquela que os poetas
Cantam
Quando sentem a
Liberdade
Por perto.

TALVEZ A NOITE
Te sirva de véu
E te cubra as cicatrizes
Da vida,
Luz coada
Pela penumbra
Que te amacie
A pele
Encrespada e
Te devolva como
Sonho
Acetinado
Onde te reinventarei
Como mulher
Desejada...
.................
Para além do bem
E do mal.

MAS EU NÃO SEI,
Tenho medo
Dos sobressaltos,
De ser atropelado
Na esquina de um
Inocente
Jogo sedutor
Que te cative a
Alma em fuga
Para o infinito
Que se cruza
Nos nossos olhares...
..............
Cada vez mais
Intermitentes.

E AGORA TARDO
Outra vez
A reencontrar-te
No bulício dos
Meus dias
Até que no amanhecer
De um poema
Perfumado
Te surpreenda
De novo
Simplesmente nua
E te diga,
Com olhar submisso:
"Esta visão matinal
É o sonho revelado
De um poeta-pintor
Que nunca ousou
Desenhar-te
Como prova
(Não provada)
De seu tão incerto
(E obstinado)
Amor..."

Corpo2022_10_16Rec

Ensaio

PESSOA REVISITED

(Nova Versão revista e aumentada)
A propósito de “Pessoa. Uma biografia”,
de Richard Zenith

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 10-2022

“PESSOA. UMA BIOGRAFIA”, de Richard Zenith, é uma obra monumental, com quase 1200 densas páginas (mais exactamente: 1184; Lisboa, Quetzal, 2022, com uma excelente tradução do original em inglês por Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes), que segue milimetricamente a vida e a obra de Fernando Pessoa, do nascimento à morte, como se o autor procurasse, pela via histórico-analítica, encontrar o verdadeiro Pessoa, o que se escondia sempre nos inúmeros heterónimos, do Alexander Search (“uma projecção do próprio Pessoa”, p. 266), dos primórdios, ao neopagão António Mora, ao Alberto Caeiro, ao Álvaro de Campos ou ao Ricardo Reis. Estes três últimos os principais. Encontrar o personagem que ia sendo moldado (embora o seu mestre Caeiro gostasse de dizer: “contenta-me ver com os olhos e não com as páginas lidas”) pelas inúmeras referências intelectuais que visitava regularmente, John Keats, Edgar Alain Poe, Milton, Walt Whitman, Oskar Wilde, Shakespeare, ou até ele-próprio na figura do seu assumido mestre Alberto Caeiro, o poeta puro, o guardador de rebanhos. Não tanto o Bernardo Soares, porque esse era somente um semi-heterónimo (p. 889) que, por vezes, se identificava totalmente com o Pessoa (p. 817), esse sujeito que chegou até nós envolto na neblina dos heterónimos e nalgum sebastianismo. Parece, de facto, ser verdade que, por vezes, “Pessoa e Soares coincidem na perfeição”, diz Zenith (p. 939). E digo também eu, que não sou especialista em Pessoa, mas um simples frequentador assíduo do Livro do Desassossego, essa admirável obra filosófica em fragmentos. Sendo ele próprio, ou quase, não podia ser seu mestre, como reconhecidamente acontecia com o Caeiro. Mas, quem sabe? Com o Pessoa tudo é possível.

I.

A coisa é tão espantosa que até o nome Fernando Pessoa parece ser também o heterónimo de um sujeito não inscrito no registo civil, como se a pessoa física estivesse integralmente subsumida no produtor de arte literária, não existisse enquanto tal. É por isso que algures, neste livro, se diz que Fernando Pessoa é aquilo que escreve. Nada mais. Como se o resto fosse simplesmente espectral. Se dúvidas houvesse, bastaria ler o que ele próprio escreveu em 24.08.1930: “Não sei quantas almas tenho / Cada momento mudei / Continuamente me estranho / Nunca me vi nem achei” (p. 850). É fingimento? A julgar pelo que foi realmente a sua vida e a acreditar no que nos conta Zenith, sim, é fingimento, mas para valer, como se fingir fosse viver ainda mais profundamente do que, pura e simplesmente, existir, se é que é possível existir sem fingir. Fingimento poético, entendamo-nos. Ou não fosse verdade o que dizia o bobo Bitolas a Aurora, em “Como Vos Aprouver”, de William Shakespeare: “a poesia mais verdadeira é a que mais finge” (p. 877). Ora toma! Logo haveria de ser Shakespeare o inspirador da sua “Autopsicografia”. O nosso autor bebeu bem em Shakespeare. Sem dúvida, como está clara e amplamente demonstrado nesta obra. Uma coisa é certa: a poesia não é descritiva, denotativa, como gostam de dizer os linguistas. E, se não é, o fingimento tem um valor diferente, na poesia.  Com ela, não se descreve, sente-se, mesmo que se finja. Mais: só é mesmo poesia se fingir. Se tiveres de confessar algo, dizia ele, então “confessa o que não sentes”, ou seja, finge (p. 998). Finge que é dor a dor que deveras sentes. Mas não é poesia se não se sentir. Assim é que é. O resto é virtuosismo linguístico, jogo artificial. Só quem sente pode poetar, mesmo que seja só pelo gosto de sentir, não o sentir propriamente dito, como me parece ser o caso. Só em parte, para o caso do Pessoa, diria a Ofélia, que experimentou o calor dos seus beijos, mas não os do Álvaro de Campos, para o qual, de resto, “Fernando Pessoa (…) não existe, propriamente falando” (p. 999). Mas se não existe como poderia sentir? Talvez seja vingança do Campos por Pessoa se ter apaixonado por Ofélia, algo que nunca devia ter acontecido. Querem melhor prova do que esta? Ou o que diz Zenith: “Os poemas e os textos em prosa eram ele, a própria pessoa dele, ou os fragmentos da pessoa, ou Pessoa, que não existia enquanto tal” (p. 1046). Será que o Campos achava que a relação com a Ofélia o tornava real, banalmente real, e, por isso, impróprio para a poesia ou para a literatura? O que parece é que o Pessoa estava sempre a colocar-se no tal intervalo (entre si e o real) de que falava o Bernardo Soares. A colocar-se num espaço intermédio que não era palco nem plateia.

II.

JÁ NÃO CHEGAVA O HETERÓNIMO dizer que ele não existia, agora vem o biógrafo confirmar a tese do Campos. E a Ofélia a sentir-se cada vez mais uma alucinada que viveu um sonho real. O biógrafo chegou, se não erro, pelo menos duas vezes, a interrogar-se directamente sobre quem era, afinal, este Pessoa (pp. 761 e 941). Uma das vezes, interpelando mesmo o ausente. Claro, não teve resposta, mas estou convencido de que, em qualquer caso, não teria mesmo resposta. E, de facto, a interpelação do biógrafo só foi parcialmente respondida na fase final da vida do personagem, porque houve uma espécie de reincarnação existencial do poeta, tendo-se ele aproximado mais da vida e desnudando-se um pouco no “Livro do Desassossego”. Se bem entendi, a última parte do livro do Zenith é isso mesmo que nos diz.  Mas, em boa verdade, e no fim de contas, o Pessoa era mesmo só aquilo que escrevia. No essencial era isso. O outro não interessa. Só isso, mas sem deixar de ser muito mais do que isso. O que, afinal, lhe sobrava como irrelevância, constante fracasso, quando tentava resolver coisas na reles e banal vida quotidiana. Coisas sempre mal resolvidas, a começar pelos empréstimos financeiros. De resto, o que ele deixou nada mais foi do que um baú cheio de preciosidades literárias que iriam fazer dele o maior escritor português do século XX (que me desculpem os outros e também o Saramago).  Até a relação com a Mãe não correu lá muito bem… Que fazer? Ele não se ajeitava mesmo com a vida concreta, quando passava à tentativa de concretização daquilo que idealizava. Planificar, sim, tudo o resto era uma maçada e ele nem sequer estava para se chatear muito com isso. De resto, mesmo que quisesse e tentasse realmente nunca iria conseguir. Porque o seu mundo era outro. E não era só em questões amorosas, como foi o caso que teve com a infeliz da Ofélia Queiroz ou mesmo com alguma inclinação homo-erótica que tivesse tido em relação a jovens ou até a grandes amigos poetas como o Mário de Sá-Carneiro. Com este talvez tenha experimentado o homo-erotismo intelectual, o relacionamento afectivo através da poesia. Tertium datur. Isso mesmo: amavam-se em palavras aparentemente ou fingidamente impessoais. O que garantia a Pessoa ficar longe dessa “obscenidade” que repudiou (p. 869).  Nunca saiu da sua toca poética (p. 663). Só o suficiente para sobreviver. Bom, saiu com a Ofélia Queiroz. Saiu mesmo, mas, no fim, a realidade literária impôs-se, e até porque a consumação sexual, para além dos beijos apaixonados, corresponderia a trair essa decisão que tomou em 1930: “banir da vida a obscenidade”.

III.

E NÃO ERA SÓ O HOMO-EROTISMO, que nunca experimentou (não há evidências suficientes para o afirmar), era também deixar-se capturar pelo corpo de uma mulher e ficar queimado por esse perigoso ácido sulfúrico. Ficar com a alma queimada e, por essa via, também com o espírito. Isto não é conversa, não, porque, realmente, ele sentiu – e disse-lho – Ofélia como ácido sulfúrico. “Tu és ácido sulfúrico”. Deve ter estado alguma vez bem perto de se queimar gravemente. Talvez quando a puxou para um vão de escada e a beijou desalmadamente. Não sei mesmo se haverá um caso tão radical de vida vivida exclusivamente de forma literária como o seu, o de Fernando Pessoa. Parece possível que, namorando (que ele me desculpe por usar esta palavra, cujo uso lhe proibiu) com a Ofélia, faltasse aos encontros porque mandava um dos seus heterónimos, o Álvaro de Campos, encontrar-se com ela? Ou pedir ao Ricardo Reis para lhe telefonar a dizer que o Pessoa não podia ir ter com ela? Parecer, parece, e é verdade. De resto, o Álvaro de Campos não gostava da Ofélia e tentou sempre estragar-lhes a relação. Por isso ela odiava-o e pedia ao Pessoa para nunca o deixar meter-se nas relações entre eles.

Com tudo isto, a pergunta parece ser legítima: afinal, quem é este Fernando Pessoa?

IV.

FICA-SE IMPRESSIONADO ao ver a dimensão da cultura de Pessoa. Como se tivesse nascido para isso. Homo Totus Poeticus. Há nomes que se acrescentam ao vasto leque de referências literárias: o Johann Winckelmann, fundador da história da arte; já não digo o  de Christian Rosenkreutz, vista a sua inclinação para a alquimia, o hermetismo e o ocultismo, mas o de Johann Valentin Andreae, o teólogo protestante e provável autor dos três Manifestos Rosacruzes; o de Antínoo, a ponto de escrever um importante texto sobre este amante do Imperador Adriano; Santo Agostinho e as Confissões; o Proudhon de O que é a propriedade?, Max Stirner, o que é objecto de longa atenção de Karl Marx e F. Engels, em A Ideologia Alemã, o filósofo evolucionista inglês Herbert Spencer, o pai da psicanálise Sigmund Freud, para além dos inúmeros grandes nomes da literatura mundial com os quais dialoga e que já referi acima. Mas poderia citar também políticos que mereceram uma sua atenção especial como o Presidente americano Woodrow Wilson ou o Primeiro-Ministro inglês Lloyd George, por exemplo. Todas estas são só algumas referências, a título de exemplo, procurando evidenciar a riqueza da formação intelectual de Fernando Pessoa e de que a obra de Zenith nos dá um quadro exaustivo. Um espanto, a vastidão das multifacetadas referências de Fernando Pessoa. Espanto meu, pelo menos. Mas não é isto que faz dele um caso sério da cultura mundial. O que faz dele um caso sério é o problema da sua identidade, sobretudo se tomarmos na devida consideração que ele, de facto, como bom poeta e fingidor levitou sobre a realidade ao mesmo tempo que ia escrevendo uma enorme obra. Nem poeta se considerava, ou melhor, não queria ser conhecido como tal, senão não tinha proibido a Ofélia de dizer que ele era poeta, mas que, no máximo, escrevia poesia. Talvez fosse porque, como dizia o Caeiro, ser poeta não era uma ambição sua, mas sim, “a minha maneira de estar sozinho”. “Estar sozinho” – não é, em Pessoa, coisa de pouca monta, vista a sua vastíssima produção poética. Pobre Ofélia, que não só não podia dizer que namorava com ele, apesar de namorar, mas que também não podia dizer que ele era poeta, apesar de o ser. Puro negativismo em molho de afecto sincero. Disso parece não haver dúvidas. Só que outros valores mais altos se levantaram.  Mas, sim, trata-se do tal intervalo de que ele fala no Livro do Desassossego ou aquela estratégia de “criar a desanalogia entre mim e o que me cerca – eis a primeira passada e a vigília que começa” (p. 871).  Só lhe faltou mesmo dizer que ele, o Fernando Pessoa, não existia. Mas ficou perto. Na verdade, “certos personagens ficcionais eram mais reais para ele do que pessoas vivas”, sustenta Zenith (p. 451), dando assim credibilidade à hipótese de tudo converter – por exemplo, o amor – em “tópicos literários”. Ele próprio era uma dramaturgia em pessoa, um palco onde se exibiam os mais variados personagens: “sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças”, dizia no Livro do Desassossego (p. 1024). E a poesia era o seu “confidente”, diz Zenith (p. 941). Mesmo assim, considerava-se um poeta impessoal, apesar de tantas coisas pessoais que lhe aconteciam. O que poeticamente concretizava era precisamente porque os poemas lhe aconteciam, como disse o sobrinho de Ofélia e amigo de Pessoa, Carlos Queiroz. Nele acontecia poesia. Sim, poeta impessoal. Que melhor condição do que esta para fazer poéticas confidências, fingindo? Aproveitava a boleia do acontecimento.  Na verdade, ele era mais um “viciado na vida sonhada” do que um viciado na vida vivida. O Calderón de la Barca não diria melhor.

V.

O GASPAR SIMÕES, o primeiro biógrafo do Pessoa, com quem se correspondeu, e que eu ainda conheci em Roma, tinha uma teoria sobre a razão profunda da obra de Pessoa: “a nostalgia da infância perdida” (pp. 898 e 1025). Não sei. O próprio Pessoa dizia que isso era ficção literária. Mas lá que havia ali qualquer coisa parecida com perda, com desajustamento em relação ao real, com vida a decorrer num intervalo entre si e o real, em pulsão onírica mais forte do que ele, lá isso havia. E que ele sublimava, para não se perder na banalidade do real, também parece ser verdade. Ele precisava que o real estivesse ausente para recriar, o recriar à sua medida. Precisava de distância. Até de um país: “minha pátria é a língua portuguesa”. A distância era a que a língua portuguesa lhe permitia. E o Quinto Império era aí, nesse território da língua, não no território físico, que devia ser construído. Por isso é que ele julgava que seria capaz de concretizar essa utopia. O sonhador em perda sonha ainda mais alto. E ele sonhou alto, muito alto.

VI.

Vou-me referindo, nesta viagem, ao Bernardo Soares, personagem por quem sinto uma especial atracção, mas também me refiro sistematicamente a Fernando Pessoa, sem preocupações filológicas de distinção entre o próprio e os heterónimos e seguindo o fio da meada do livro do Richard Zenith. Às vezes entrando em diálogo com eles, no presente, para avivar a reflexão. Reproponho também, alterado, um quadro alusivo ao poeta, o mesmo Pessoa que se escondeu nos inúmeros heterónimos que construiu como máscaras para dizer a verdade: “o homem é menos ele quando fala na sua própria pessoa. Se lhe dermos uma máscara dir-nos-á a verdade” (Zenith, 2022: 422). E eu dei-lha, aqui. Mas esta figura parece ser, pelo menos por fora, a do conhecido desassossegado. Ou, então, a do próprio Pessoa, já que a do Soares só correspondia a metade dele. Uma máscara que vale para todos os seus rostos porque deixa indefinido o rosto vivo do poeta, lui-mêmesich selbst, exibindo tão-só os adereços que ficaram famosos e o identificam como Fernando Pessoa. Ícones. Simples, mas tão significativos ícones. Estes óculos exprimem toda uma filosofia, toda uma visão do mundo. Óculos a mais para rosto a menos. Rosto poeticamente dissimulado, escondido, à superfície, atrás dos adereços e, mais em profundidade, nos heterónimos.

VII.

ELES, ESTES ÓCULOS, mas o quadro em geral também,  reflectem um certo verdor com que o mundo felizmente ainda se vai exprimindo, embora nele o verde não represente lá grande esperança. Não sendo um vencido da vida, lidava mal com ela e a esperança ressentia-se. E não eram tempos propícios, como se sabe. Mas é de arte que se trata. Pelo menos aqui, neste quadro, com esta identidade oculta sob os dois ícones.  De qualquer modo, é um verdor mais verde do que o verde do mundo: o verdor espiritual, o que é pintado com palavras ou que sai directamente da alma de um pintor. E este saiu. Bem poderia ser, pois, o indivíduo que leva sempre a renúncia a peito e que se identifica com um tal Bernardo Soares, um gajo da família de um tal Fernando Pessoa, esse personagem sempre envolvido por um certo e sebastiânico nevoeiro ou, mais poeticamente dizendo, por uma certa neblina existencial. Sim, esse, o do desassossego. Um tal que, antes, dava pelo nome de Vicente Guedes, “um empregado de escritório introvertido” (2022: 688). Um tipo muito cerebral. Talvez até demais. Personagem estranho e pouco dado às cedências da vida vivida, que não à vida pintada com palavras, seja de que forma ou de que cor for. O tal que, estranhamente, não se ajeita com a poesia e que, quando precisa dela, pede ajuda a outros, designadamente ao engenheiro Campos. O que é estranho, porque o desassossegado é filho de peixe e, por isso, deveria saber nadar. Mas não importa, porque tem sempre ali à mão de semear vários e bons poetas, o Caeiro, o Reis ou o Campos, para não falar dos que escrevem em inglês. Mas ele, sobretudo ele, nem sequer se ajeita com a vida, o que já é mais natural do que não se ajeitar com a poesia. Uma alma mais filosófica do que poética, este desassossegado Soares, embora ele, o Pessoa, ache que não. Mas talvez assim seja, embora o seu criador se achasse “um poeta animado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas” (2022: 273). Talvez fosse as duas coisas. Com efeito, há uma dimensão da filosofia que se funde inteiramente com a arte. Querem um exemplo? Nietzsche. Mas esse personagem que não se achava filósofo era o eterno encapuzado com os barretes heterónimos e, por isso, pouco digno de crédito. Não era o Caeiro que também dizia que a poesia era a sua maneira de estar sozinho? Uma coisa é certa:  o gajo não acertava uma em cada projecto que imaginava. Projecto que nunca (ou quase nunca) concretizava. Ele era bom, sim, era a estar sozinho. Perguntem ao Richard Zenith que sabe tudo sobre ele (sabe mesmo) e verão que é verdade. Mas, para seu consolo, sempre poderíamos dizer que há por aí tantos outros que não se ajeitam com a vida, mas não sabem. Eu acho ele que sabe, até porque o que é importante para si é construir ou reconstruir o mundo com palavras. Que será mais mundo do que o mundo propriamente dito. E, por isso, o importante é a arquitectura, não a construção.

VIII.

Pessoa, o arquitecto. Mais arquitecto do que engenheiro. Se não é, tem de ser, até porque ele tem o espírito e a alma franzidos pela aspereza e a contingência do existir, do real, do mundo, da vida. Dá-se mal com isso. Ele bem tenta adaptar-se às suas exigências, mas nunca consegue. Falha sempre nas tentativas de entrar no mundo pela porta. Só entra pela janela, à distância. O que o leva, sobretudo ao Soares, a reiterar teimosamente a sua militante dissidência e o seu ziguezaguear em relação à vida. A sua dissidência estética da vida. E erótica, também, pois, apesar de os espíritos do além lhe terem garantido sucesso, só foi capaz de dar uns beijos à Ofélia Queiroz, antes de se despedir dela numa carta um pouco fria e talvez mesmo despropositada (2022: 690-691). À sua maneira ele é um insurgente existencial que tem como única arma de combate a palavra. Move-se a partir da superfície plana da existência (é assim que a assume) para dentro. Parecendo falar para os outros, o que ele faz é falar de si para si, a propósito de tudo e de nada, inventando interlocutores à medida do momento e das circunstâncias. O seu olhar é como que devolvido pelos óculos, que se lhe colam ao rosto como sua pele. Como uma máscara. Ou melhor, como suporte de todas as máscaras. O seu não seria rosto sem o chapéu e estes óculos. Ficaria tudo a negro… ou a verde. Óculos como espelho da alma mais do que espelho do mundo e para o mundo, trabalhados a cinzel como se quer a um filósofo que goste de poesia, embora não se ajeite com ela. Quer ele queira ou não – e já disse que não – é filósofo. Oh, sim, também é, ou então não tinha encarnado no desassossegado Soares. Ficava-se pelos outros. E é por isso que me associo a Zenith e lhe pergunto descaradamente: “o verdadeiro Fernando Pessoa quer fazer o favor de se identificar?”. Ou o senhor é sempre outro, nunca você próprio (2022: 761)? Ah, os óculos! Às vezes até parece que ele não é mais do que uns óculos que só vêem para dentro, embora o seu mestre Caeiro tenha dito “Não vejo para dentro. Não acredito que eu exista por detrás de mim”. Mas o Caeiro era muito especial e cedo ficou pela caminho, a guardar os seus rebanhos. Creio que em 1915. A importância dos óculos: como se o meio fosse a mensagem – uma mensagem “ocular” com uma estranha cor que lhe devolve um real já pré-representado por si. Um verdor que é mais seu, mais íntimo, do que exterior, do que da natureza. Os óculos como terminal de um cérebro autocentrado. Tudo se passa aí, entre a alma (um pouco queimada, não sei se pelo “ácido sulfúrico”) e o espírito. Mas depois não me venha dizer que não vê para dentro. O Caeiro, sim, é ele que o diz, mas o Pessoa ou o Soares não. Estes também vêem para fora, embora pouco.

IX.

DIGAMOS A VERDADE: não há existência tão verde como o verde que se reflecte nos seus óculos, o da alma. E talvez nem sequer a sua alma reflicta tanto verdor. Eles, os óculos, em boa verdade, são mais um espelho do espírito do que da alma. Nem espelho do mundo nem da alma, mas do espírito. Voilà. É este, o espírito, que pinta o verdor com palavras. Afinal, alma e espírito nem são a mesma coisa, pois este é culto e aquela, a alma, pode não ser. Falo no plano transcendental, claro, embora um espírito inculto seja mais alma do que espírito. Digamos, uma alma um pouco espiritual. Mas a verdade é que a alma não tem de ser culta. A alma sente e o espírito pensa. Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz… e doloroso. O amor é mais da ordem da alma do que da do espírito. É por isso que se diz “dor de alma” e não “dor de espírito”. E, por isso, o espírito é perigoso para o amor. Quando ele chega, dita lei e o amor acaba. E ele, o Bernardo, vê sempre o amor com o filtro espiritual dos seus óculos. Foi o espírito dele, o do Bernardo-Pessoa, que derrotou a Ofélia Queiroz e não só o intriguista Álvaro de Campos. Aquele desenhava o amor com palavras, isto é, neutralizava-o ou, pelo menos, relativizava-o. E isto acontecia cada vez que ia passear com ela e levava com ele o Álvaro de Campos, que também  contribuiu para estragar a relação, embora, como é evidente, a questão fosse mais funda do que a mera influência do engenheiro naval. Ou seja, o Pessoa anulava o amor, porque ele tem de ser incondicionado, não pode ficar engavetado em palavras. Mas o Zenith também diz que o Campos sempre fez tudo para “frustrar o relacionamento deles” (2022: 675). Juntou-se a fome com a vontade de comer. O Fernando acabou, como sempre, por transformar o seu relacionamento afectivo num tópico literário (2022: 574). O que não se pode é atribuir todas as culpas ao Campos, quando, na verdade o problema residia a montante e era mais fundo. Mas foi assim que o Pessoa arrumou o assunto. Para sempre.

X.

Pois, com este verde, que o torna irreal, até mais do que já é, e, por isso, mais perdurável, é mesmo ele, o homem da renúncia, o que nunca se deixa ir para não se perder, ao sair de si, o que quer subsistir… à força de sentimentos desvitalizados e transfigurados. Ou não foi ele que disse que “agir é exilar-se” (2022: 802)? E, se tivesse de se “exilar”, então, o melhor era mandar o Campos encontrar-se com a Ofélia ou, pelo menos, irem os três passear. Assim, “exilava-se” menos. Estão a ver? O perverso era mesmo o Pessoa, que usava o Campos para conseguir o que não tinha coragem para fazer. A verdade é que ele olha para a vida – o olhar deveria ser tudo – como para uma galeria de arte, sobretudo uma galeria de arte literária, que as outras artes podem muito bem ser subsumidas na literatura, à excepção talvez da música (2002: 504). Ele olha para um rosto como para uma fotografia pendurada numa parede, animando-a com o que tem disponível na alma naquele momento. Mas no qual não toca sequer com a ponta dos dedos. Tudo parece ser, para ele, um pretexto para redesenhar o mundo no seu estirador mental. Redesenhar também Portugal e elevá-lo a V Império, pelas letras. Como fazem os melancólicos profundos quando se sentem impotentes para o mudar realmente, na prática. Desenham-no com os traços e as cores da utopia e acreditam que um dia ela acontecerá. Pelo menos no papel. Sim, sim, apesar de eu ter dúvidas de que o Soares ou o seu Artífice alguma vez tenham querido verdadeiramente mudá-lo na sua mundana escala. Tentativas não faltaram, como nos conta o Zenith, mas nunca passavam de projectos que essa figura algo espectral e movida pelo vento nunca (ou quase nunca) passava à prática. Sim, sim, o Pessoa é mais arquitecto do que engenheiro. Mas não creio que por ser incapaz ou por não ter jeito para isso, como o Soares dizia que acontecia com a poesia. O que, lá mais no fundo de si mesmo, ele não quer realmente é misturar-se com essa irrelevância da vida vivida. Porque ela é banal, andam por lá todos… Era o que mais faltava!

XI.

NA VERDADE, este homem tem o corpo confundido mais com o espírito do que com a alma. Só se lhe vê a parte de cima, o sítio onde está o espírito, de propósito, o que não aconteceria se tivesse jeito para a poesia e andasse por aí aos trambolhões, dorido de alma. Nesse caso, haveria de se lhe ver o peito. Mas não, porque também tem a alma confundida com o espírito, numa progressiva redução de planos, ou camadas. Ele, afinal, é um desdobramento do seu Artífice, esse espírito voraz, capaz de (in)digerir o mundo com palavras. Uma bela operação, diga-se. As palavras viram-se para dentro dele, dobradas sobre si, e o bigode (que está lá, mas não se vê) é a porta fechada da sua fala. Uma fala espiritual. Resistente e fechada, à força, não vá a tentação abri-la e deixar escapar um reles sentimento carnal ou uma comprometida e ridícula declaração de amor. Não, não vá ele queimar-se com esse “ácido sulfúrico” que são as mulheres. Sabia bem o que temia: o “ácido sulfúrico” que era a Ofélia (2022: 679). É preciso renunciar.  Ficar na “mansarda” mesmo não morando nela (2022: 803). Mas para renunciar é preciso força de vontade e alguma crispação. Lábios apertados até se anularem na superfície lisa do rosto. A boca, tal como os olhos com os óculos, está protegida pelo bigode e pelos lábios apertados. “Vulgares bocas de mulheres beijas / E eu só o sonho vão da tua boca”, dizia num poema homo-erótico, que terminava dizendo que a sua maior tortura seria a de, aceite pelo amado, se sentir “incapaz do último acto”. Incapaz, ele, que tem “tanta gente” em si, de sair da “toca poética”, como refere Zenith (2022: 663).  Andam por aqui memórias de Antinous – A Poem, esse poema sobre a paixão de Adriano pelo jovem grego Antínoo, que viria a ser tão bem retratada por Marguerite Yourcenar, nas Memórias de Adriano. Sim, mas a boca, essa, beijou, e com loucura, diria, mais tarde, quem lha sentiu: Ofélia Queiroz. Mas foi sol de pouca dura, certamente porque o poeta não quis correr o risco de ficar “exilado” para toda a vida. E para isso criou um muro protector, o bigode, esse arame farpado que lhe protegia a alma. Tal como os óculos eram o muro que lhe protegia o espírito das vulgares insídias do real, do canto das “sulfúricas” sereias luminosas e tentadoras. Que mais se pode imaginar se não isto, quando olhamos para os seus óculos e para esse chapéu amarelo torrado ou laranja, de tanto sol apanhar? A verdade é que o espírito, mais do que a alma, precisa de sol, mas que não seja em demasia, para não o encandear ou mesmo incendiar. Precisa de sol indirecto e o chapéu absorve a energia solar e alimenta-lhe o espírito. Chapéu e óculos, as armas do guerreiro que quer ganhar o mundo à custa de palavras, em português ou em inglês, essa ondulação em que foi navegando durante toda a sua vida.

XII.

 “INDIFERENÇA SENTIMENTAL” – dizes tu, ó desassossegado! Essa até pode ser reconvertida em palavras ao rubro com a alma aos pulos, livremente, à vontade e até contra si próprio e tudo o que for planeado para ser eventualmente feliz. Ah, como é bela a indiferença se for minha e a puder converter em autêntica diferença. Ser indiferente de forma original é cultivar a diferença e afirmá-la perante iguais. Ser indiferente é indiciar (perante outros) que eu existo sob forma irredutível, que sou outros, muitos outros, para além deles, a ponto de nem me aperceber que esses outros eles existem. E eles sentirem isso na pele. Até a gravata, ou o laço, me torna mais encrespado com o exterior de mim. Agarra-me pelo colarinho e não me deixa ir. Sou livre à força… quase à forca. Morrendo para fora à medida que vivo para dentro… de mim. Sim, porque a minha “alma se identifica com aquilo que menos vê” (2022: 546). Para fora, claro. Não para dentro, que é onde eu vivo ou mesmo me conservo: “sou um fragmento de mim conservado num museu abandonado” (2022: 506). É que, depois destes óculos me terem protegido quando “uma rajada baça de sol turvo (quase) queimou nos meus olhos a sensação física de olhar” (Bernardo Soares), passei a olhar quase só para dentro, olhando de través para fora, sem tirar os óculos… Hum, só o suficiente. Minimalismo visual, diria. Mas não comprometido. Cedendo apenas um pouco à exigência desse objecto que tenho no meu rosto e a que chamam “óculos”. Nome tão estranho como o de “olho”… nome com esse som seco e quase oco que exibe como triste sonoridade. Óculos – prótese quase supérflua porque não me serve para ver o essencial, aquilo com que a alma mais se identifica. Serve para me resguardar, mas não para ver o essencial. Que está dentro de mim. Tudo o resto é puro acidente, coisa supérflua, e, portanto, só serve para ser visto de través.  O que até é demasiado. Os meus óculos são mais um muro do que uma prótese para ver o mundo. Quando falo para o mundo as palavras fazem sempre eco no muro e saem fazendo ricochete nele. Chegam lá de mansinho com a energia quebrada pela rigidez deste muro ocular. Demasiado de mansinho, a ponto de só timidamente me ir literariamente afirmando. O que requer um sentido prático da vida que eu não tenho e que, para falar a verdade, não quero ter porque não pretendo exilar-me de mim próprio. Ou lá o que isso seja.

XIII.

 “QUE OS TEUS ACTOS sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação” – é isso que sentes, ó desassossegado da vida, quando falas dela? É isso, renúncia, indiferença e negação? Tudo pela negativa? A vida é só metamorfose espiritual? É metempsicose? Com a fixidez desse teu olhar escondido atrás dos óculos metabolizas e suspendes a vida, para a viveres interiormente de forma mais intensa? Decidiste eliminá-la “pelo processo simples de” a “exprimir intensamente”, fazendo com ela o mesmo que fazes quando o obsceno te captura e te obriga a escrever, como fizeste, tu, Pessoa, em Epithalamium e em Antinous (Carta a Gaspar Simões – 2022: 416-417)? Está atento, que a vida ainda pode atropelar-te. E atropelou. Pouco, mas atropelou, levando-o a atirar-se para um vão de escada com uma Ofélia que beijava perdidamente. Sol de pouca dura ou, o que é mais provável, experiência obrigatória para quem estava a ser constantemente interpelado pelo além para experimentar o amor de uma mulher. Um amor que se revelaria desajeitado, talvez porque o que ele melhor sabia fazer era “uma arte de masturbação” (literária) (2022: 397-398), fosse qual fosse o excitante, homem ou mulher.

XIV.

 “UM AMARELO DE CALOR estagnou no verde preto das árvores”, dizes tu, com esse ar sisudo, de caso, Bernardo. Mas foi por baixo que estagnou… sim, no teu rosto, quase te queimando para a vida. Estagnou em ti porque estavas sob esta copa pouco frondosa, mas suficiente, que é esse teu chapéu amarelo torrado ou laranja. Mas, mesmo assim, o teu rosto pintou-se de verde, marca da passagem do sol por ele. O sol faz renascer o verde. Sem sol não há verde. Mesmo na poesia para haver verde é preciso que um sol interior te ilumine. Sim, sim, este verde está em ti porque não é humanamente real e faz de ti um ser livre e solar. Filho do sol. Em palavras. Mas foi o sol em excesso que te queimou a alma. Questão de luz, meu caro. Sobrou-te o espírito, eu sei, e só com ele te debruças sobre o mundo. Esse resiste e sobrevive. Mesmo sem alma ou com ela queimada, de tanto sol cair sobre ti. Queima-se a alma, liberta-se o espírito. Parece-te sensato? Não, não parece, mas não posso esquecer que tu és um insurgente existencial.

XV.

ACHO, POIS, que uma parte importante de ti, Fernando, se chama mesmo Bernardo e que essa parte gostaria muito de ter jeito para a poesia. Não tem, mas é como se tivesse. Por detrás deste verde escondem-se muitos outros rostos que adoram escrever poesia. Foi por isso que lhe arranjaste, ao Bernardo, tantos irmãos poetas, sabendo muito bem que a poesia não é para todos. Sobretudo para os que fecham as portas ao real e ao embate da paixão. Às fraquezas da alma. Claro, a poesia está perto demais do sentimento, da emoção, da vida e o Bernardo (e tu próprio) correria o risco de se deixar ir na onda da sua perigosa e lamentável fugacidade. Ser como os outros na sua triste corporeidade sujeita à prisão do banal e corruptível sentimento. Andar por aí aos caídos. Oh, isso é que não, mesmo que a poesia seja o lugar onde o sentimento acontece em palavras e onde se finge o que deveras se sente. Finge, sim, e sente, também. Mas o fingimento poético é a porta de salvação relativamente à queda amorosa da alma ou à “maladie de l’âme”, como diria o Stendhal. Mesmo assim, a poesia é perigosa, reconheço. O Campos era poeta, conhecia bem as insídias do sentimento e, talvez por isso, não gostasse da tua relação afectuosa com a Ofélia. E, cúmplice, ajudou ao desfecho.

Por isso, é melhor, no essencial, que o Bernardo (e talvez tu também) se conserve assim e não saia de si a não ser o estritamente necessário, só para espreitar, de esguelha, a realidade. Que se mantenha no intervalo, afaste um pouco a cortina e espreite o público a remexer-se nas cadeiras antes de o espectáculo da vida começar. De qualquer modo, esse pouco de vida de que ele precisa estará sempre lá, não desaparece. E assim ainda será maior (por dentro) do que o tamanho do que vê (por fora), se é que, com esses óculos, vê mesmo. Se vê é com os sentidos interiores, apesar do sinal enganador desses teus óculos de aparente observação externa e tão comprometedores.

XVI.

MAS, OLHA, e se te deixasses ir um pouco mais além, até à vida, achas que te tornarias banal? A tua relação, ou mesmo ralação, com a Ofélia banalizou-te? Ao menos toca o real com a ponta dos dedos e, se for caso disso, depois desinfecta-a com palavras um pouco mais fortes ou até mesmo mais ácidas. Ou tens medo do “ácido sulfúrico” da vida e do sexo?  Ah, bem sei! Uma parte de ti não tem jeito para a poesia e tu achas que só ela é que te poderia salvar em caso de perigo, em caso de contágio. Sim, o perigo é o sentimento, não a poesia. Bem pelo contrário, esta resolve, sem perigo, os perigos do sentimento. Mas tenta, meu caro, tenta, não sabes quanta metafísica pode haver na ponta dos dedos quando eles folheiam o real, sobretudo num poema, e o poder que têm de te resgatar dos fracassos da vida. Tens tanta poesia lá em casa! E da boa. Bom, mas não te quero convencer porque, como dizia o outro, o acto de convencer alguém é pura violência, é tentativa ilegítima de lhe colonizar a alma, de impor superioridade espiritual. E eu, que sou poeta, prezo muito a liberdade, a minha e a dos outros. E, portanto, também a tua. A de seres o que quiseres e ser sempre outro que não tu mesmo. O que quer dizer que também podes, ao mesmo tempo, ser poeta, ser Reis, Caeiro ou Campos ou mesmo essa parte de ti que é o Bernardo Soares e, portanto, resolver esse teu problema existencial. É como voltar a ser criança, como tanto desejaste quando já só te sentias um adulto com excesso de lucidez, a ponto de te começares a informar com o teu amigo sobre como seria a vida no manicómio onde o tiveram enclausurado por algum tempo. Mas não, tens muito mundo sobre o qual levitar com todos esses teus alter egos. Afinal, mesmo quando eras Bernardo Soares sempre gostaste de poesia, não é?

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Poesia-Pintura

FUI CONTIGO PRA PASÁRGADA

Poema de João de Almeida Santos. Recriação do diálogo com o poeta brasileiro e nordestino Manuel Bandeira (Poemas: “Vou-me embora pra Pasárgada” e “Brisa”), quatro anos depois da primeira publicação, em Novembro de 2018. Ilustração: “Pasárgada II”. Original de minha autoria (119×119, c/mold., 2022). Outubro de 2022.

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“Pasárgada II”. JAS, 2022 (119×119).

POEMA – “FUI CONTIGO PRA PASÁRGADA”

FUI CONTIGO
Pra Pasárgada,
Para o teu mundo,
Irmão,
Eu não me sentia
Livre,
Faltava
Inspiração
Porque a brisa
Do nordeste
Ficou lá
No Maranhão.

NÃO TENHAS,
Manel,
Saudades,
Nostalgia do futuro,
Temos passado
Que baste
E foi, sim,
Foi muito duro.

FUI CONTIGO
Pra Pasárgada,
Não quis
Ficar por aqui
Porque a brisa
Do nordeste
Não passou
Do Piauí.

PRA PASÁRGADA
Eu quis ir,
Prà terra da
Liberdade,
Por aqui
Já me faltavam
As cores vivas
Da verdade.

EU GOSTO DE TI,
Ó poeta
Do reino
Da utopia,
O teu tempo
É o futuro e
Lá se faz
Poesia,
Se pinta,
Se canta
E se dança
Porque o ar
É do mais puro
E cheira
A maresia.

NÃO GOSTAVA
D’estar aqui,
O ruído
Era demais,
Esta terra
Já não servia
E lá partimos
Do cais...

FUI CONTIGO
No teu barco,
À procura
De mar calmo,
Céu sereno
E tudo o mais,
Navegando
No azul,
Peixes voando
No mar,
No horizonte
Uma ilha,
Mulheres lindas
A acenar...

EM PASÁRGADA
Fui feliz
Cantei e
Dancei
Até alta
Madrugada,
O corpo
Deixava-se ir
Com alma
Apaixonada
Em regaço
De mulher
E ao ritmo
De balada.

POR AQUI
Era grande
O ruído,
Com armas
A crepitar,
Matavam poemas
Com gritos,
Já não se podia
Cantar...

FUI CONTIGO
Pra Pasárgada,
Meu mestre
De poesia,
Lá cantei
Os teus poemas
Fosse noite
Ou fosse dia...

AGORA QUERO 
Ficar,
A esperança regressou,
Quero contigo
Cantar
O que o vento
Me levou.

MAS NÃO SEI
Se o vento traz
Céu sereno
Às canções,
Por isso contigo
Rezo
Minhas pobres 
Orações
Pra que a brisa
Chegue aqui
E não fique
Lá retida
Nas terras do
Piauí.

Pasarg2Rec

Artigo

AI, BRASIL

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS, 10-2022

ENCERRADA A PRIMEIRA VOLTA das eleições presidenciais no Brasil (a segunda será no dia 30.10), ficamos a saber que as sondagens falharam no cálculo da distância prevista entre a vitória de Lula da Silva e a derrota de Jair Messias Bolsonaro. A distância entre os dois foi muito menor do que as sondagens previam e Bolsonaro contrariou o anunciado desastre eleitoral. Uma primeira conclusão há que tirar daqui: Bolsonaro representa um vasto bloco de poder radicado na sociedade, que é muito maior do que a sua figura política e presidencial. Bloco que começa logo na organização política da sua própria família, ou seja, na distribuição de funções pelos seus três filhos: no Senado (política), nas relações internacionais (diplomacia) e na comunicação digital (propaganda). Um bloco que, depois, nesta primeira volta, já exibe melhores resultados do que a esquerda nas eleições para a Câmara dos Deputados, para o Senado e para os Governadores dos estados federados (que são 27, tendo já sido eleitos 15). E um sistema onde até essa figura desqualificada de Sérgio Moro, depois de várias peripécias pouco edificantes, consegue ser eleito, no Paraná, para o Senado. Ou mesmo um tal Deltan Dallagnol, também implicado nas trapaças do processo Lava Jato, já eleito para a Câmara dos Deputados, também no Paraná.  Portanto, um sistema institucional que está a absorver personagens duvidosos no seu interior, contribuindo, assim, para piorar o próprio sistema institucional, que, afinal, se tem revelado pouco credível. Exemplos? É ver como se processou o impeachment de Dilma Rousseff e todas as histórias que envolveram o ex-Presidente Michel Temer e o ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, já para não falar do processo que levou à prisão de Lula da Silva e que o próprio sistema judicial acabou por anular (mas veja os meus Artigos sobre o assunto: “Quanto conta o voto popular?” (aqui transcrito e também em link) – https://www.jornaltornado.pt/quanto-conta-voto-popular/; e “Lawfare” – https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/24/artigo-23/).

I.

O BLOCO DE PODER DA DIREITA, na sua maioria, inscreve-se na nova direita nacional-populista, que tem em Trump a referência idolatrada de Jair Bolsonaro, mas que também avança fortemente na Itália de Giorgia Meloni (veja o meu Artigo sobre o assunto, aqui: https://joaodealmeidasantos.com/2022/09/27/artigo-82/), na França de Marine Le Pen, na Espanha de Santiago Abascal, na Hungria de Viktor Orbán ou na Polónia do Senhor Kaczynski, entre outros, incluído o português CHEGA. Em três destes países governa.  Uma realidade que é necessário ter na devida consideração porque ela já representa um poder político nacional e internacional considerável. E um forte poder na União Europeia, se tomarmos em consideração as regras de funcionamento do sistema decisional da União.  E não fossem os erros clamorosos de Trump, designadamente o louco ataque ao Capitólio ou a apropriação indevida de documentos do Estado, e a força deste bloco ainda seria maior, visto o papel de referência que os USA desempenham na cena internacional. Os sucessivos episódios de Trump vieram descredibilizar esta direita americana, que perdeu alguma capacidade propulsiva na cena internacional.

II.

MAS A VERDADE é que, no Brasil, Lula da Silva conseguiu um resultado que ficou a menos de dois pontos da maioria absoluta que o consagraria de imediato como Presidente. A expectativa era grande, o resultado é muito significativo, mas foi diminuído pela resiliência de Bolsonaro e do bloco de poder que ele representa. Pouco significativos foram, entretanto, os resultados de Simone Tibet, com cerca de 4%, e de Ciro Gomes, com uns miseráveis 3% (relativamente ao que noutras eleições tivera, uma média de quase 12% nas outras três tentativas). Nestas eleições a polarização foi, de facto, muito intensa, numas eleições onde votou 79% dos 156 milhões de eleitores.

III.

O QUADRO POLÍTICO saído destas eleições não é muito animador para a esquerda, embora a vitória presidencial esteja ao alcance de Lula da Silva. Pelo contrário, a direita surge com mais força do que aquela que se registava nas sondagens e na própria opinião pública. A nível presidencial, mas sobretudo a nível do Congresso e do governo dos estados federados. A onda de esquerda que se tem vindo a verificar na América Latina (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Honduras, México, Panamá, Peru) conhecer sérias dificuldades naquele que é o seu maior país e a sua maior democracia.

Uma das fraquezas da candidatura de Lula da Silva, mas que também pode ser considerada como um ponto forte, é ela, por um lado, ser vista como um regresso ao passado, um dejá-vu mais centrado no passado do que no futuro, mas, por outro, ser vista também como um resgate da injustiça clamorosa que foi cometida quer contra o PT quer contra Lula da Silva e Dilma Rousseff; esta candidatura ser, pois, vista como um ajuste de contas com um bloco de forças que usou todos os meios não só para tirar do poder o Partido dos Trabalhadores, mas também para pôr no poder um seu agente pouco qualificado, um seu fiel serventuário, ideologicamente marcado como de extrema-direita ou nacional-populista, intérprete das novas tendências da direita que têm vindo a afirmar-se um pouco por todo o lado. Uma escolha, pois, supostamente alinhada com os ventos da (sua) história.  Os resultados deste primeiro turno são para eles animadores. A dimensão da votação, mais de 51 milhões de votos, é para levar a sério.

IV.

NA VERDADE, ESTES RESULTADOS são preocupantes. E não só em matéria de política nacional. Eles são um ulterior e preocupante sinal do avanço político da extrema-direita um pouco por todo o lado, um péssimo sinal para o conflito que o ocidente trava com a Rússia de Putin e um sinal preocupante para o combate à ameaça ambiental, em particular para a salvaguarda do pulmão do Mundo, a Amazónia. Mas um sinal preocupante também para a democracia e para todos os que confiam numa intervenção eficaz do Estado quando se verifiquem sérios riscos e ameaças à colectividade. O que aconteceu durante a pandemia deveria pôr em alerta todos os que hoje são chamados a escolher o Presidente. Mas, pelos vistos, a evidência não foi assim tão evidente. O Brasil está, de facto, fortemente dividido e bipolarizado.

V.

MAIS DE SEIS MILHÕES DE VOTOS separam os dois candidatos que disputarão o segundo turno. Uma situação que favorece, à partida, Lula da Silva. Seis milhões de votos não é pouco. Mas é preciso não esquecer que por detrás de Bolsonaro há todo um bloco de poder fortemente enraizado na sociedade civil brasileira e com uma fortíssima presença nas instituições do Estado, a começar no próprio Congresso e no governo dos estados federados e a terminar nas Forças Armadas. Este bloco de poder mobilizará todas as suas forças para influenciar o eleitorado, animado pelos resultados desta primeira volta e convencido de que ainda poderá dar a volta ao resultado. Interessante será também a posição de Simone Tebet e de Ciro Gomes na sua indicação de voto… ou no seu silêncio, que seria sempre interpretado como de tácita tolerância para com Bolsonaro e o bloco de poder que ele representa (mas Ciro Gomes já disse que acompanha a decisão do seu partido, PDT, no apoio a Lula da Silva, embora sem mencionar Lula no vídeo em que anuncia a sua posição, e Simone Tebet também já terá decidido o apoio a Lula da Silva). Somados, representam mais de sete por cento do eleitorado e cerca de 8,5 milhões de votos. A sua mobilização poderá, pois, ser determinante para o desfecho destas eleições.

VI.

DE QUALQUER MODO, para além das considerações de ordem mais política e programática, o que aqui está também em causa é a relação entre a política e a ética, uma moralidade de senso comum que é transversal a qualquer actividade humana e uma correspondente concepção de democracia que respeite os seus valores fundamentais e onde os adversários não sejam considerados pura e simplesmente como inimigos. O resultado do dia 30 de Outubro dir-nos-á muito não só sobre o estado da política no Brasil, mas também sobre a evolução da política no plano mundial. Uma evolução que, de resto, não está a conhecer bons dias.

VII. Reprodução de Artigo (suplementar) 
sobre o “Impeachment” de Dilma Rousseff.
Quanto conta o voto popular?”
Por João de Almeida Santos
(Art. publicado em 01.09.2016)

“TRÊS JURISTAS, Miguel Real Jr., Janaina Paschoal e Hélio Bicudo, solicitaram o Impeachment, em 2015. A pedido de quem? Não se sabe, mas…

1. EDUARDO CUNHA, Presidente da Câmara dos Deputados, que arriscava um processo na Câmara, acusado de ter 5 milhões de dólares na Suíça por subornos (Petrobras/Lava-Jato), pede a Dilma e ao PT que impeça, com o voto, a investigação. Dilma e o PT recusam. Cunha admite o pedido de “impeachment” e despacha-o em grande velocidade. Final: Dilma perde o mandato presidencial. Michel Temer, o seu vice e ex-aliado, também ele suspeito de corrupção, torna-se Presidente efectivo até às eleições de 2018.

2. A ACUSAÇÃO (por “crime de responsabilidade”) baseia-se em três decretos presidenciais que envolveram cerca de 717 milhões de dólares em créditos de bancos públicos para financiar as áreas da educação, do trabalho, da cultura e da justiça. Segundo os acusadores foram feridos o n.º 2 do Art. 11 e o n.º 4 do Art. 10 da “Lei do Impeachment”, que implicam “crime de responsabilidade” (Cap. VI – crimes contra a “Lei Orçamentária”). A defesa (e Dilma) argumentou que eram despesas já autorizadas pelo Senado, tendo-se verificado somente alternativas à alocação de recursos, não afectando a meta fiscal. Mas Dilma também foi acusada de ter atrasado o reembolso, ao Banco do Brasil, de cerca de mil milhões de dólares (relativos ao Plano SAFRA), considerando que este atraso era de facto uma operação de crédito (!), proibido por lei, incorrendo, por isso, noutro “crime de responsabilidade” (art.s 10 e 11). Na verdade, nem o próprio Ministério Público Federal o considerou crédito. Pedaladas fiscais! Mas, neste caso, a Presidente nem sequer praticou qualquer acto (a responsabilidade é do Ministério da Fazenda). Maquilhagem de contas, disseram os acusadores.

3. FUI LER A LEI. No caso do Presidente, para oito “crimes de responsabilidade” estão previstos 65 casos em que estes podem ocorrer. Cabe lá tudo. Até um que diz “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo”! Ou, então, “infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais” ou, ainda, “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. Este último também foi invocado na acusação. E outros que são claramente instrumentalizáveis para efeitos de destituição arbitrária do Presidente. Basta interesse, um pouco de imaginação e bonecos de serviço.

4. TRATA-SE DE JUSTIÇA POLÍTICA e não já propriamente de responsabilidade penal. Muito bem. Mas com esta lei qualquer Presidente – e o regime brasileiro é presidencialista – está altamente fragilizado porque permanentemente sujeito a fáceis “conjuras” jurídico-políticas, como esta. E muito em particular pelos poderes fortes que circulam nos corredores do poder brasileiro… e fora dele. Por exemplo, pelos famigerados mercados (que até estimularam o processo)!

5. O “IMPEACHMENT” é um instrumento antigo. Vem de Inglaterra, do século XIV. Era um modo de submeter os Ministros (nomeados livremente pelo rei) ao crivo do Parlamento em caso de crimes graves (responsabilidade penal). A Constituição dos USA (1787) prevê-o explicitamente (art. 1, secção 3; art. II, secção 4). Mais tarde ganharia, de facto, uma dimensão também ético-política (veja-se o caso Clinton).

6. ESTE INSTRUMENTO tem-se revelado bastante problemático e irregular. O Presidente é eleito por sufrágio universal directo (neste caso, foi por cerca de 54,5 milhões de eleitores, em 110 milhões). Também o seu é um mandato não imperativo e, portanto, só em caso de grave responsabilidade penal, e em extrema “ratio”, deveria ser aplicado (Constituição USA, 1787, art. II, secção 4: “traição, corrupção/extorsão ou outros crimes graves”). Mas, no caso brasileiro, com o que a lei prevê, há para todos os gostos. No fim de contas, do que se trata é de um instrumento para revogar mandatos presidenciais e confiscar a soberania popular (sobretudo num regime deste tipo).

7. DISSE O EX-MINISTRO DA ECONOMIA, Nelson Barboza: “vocês decidiram que há um crime e, portanto, procuraram o delito”. Nem mais. O cardápio é extenso e para todos os gostos. Até para a nossa Paula Bobone, como vimos!

8.OS VOLUNTÁRIOS FORAM TRÊS mais um: os juristas e Eduardo Cunha que, afastado da Presidência da Câmara, ainda continua deputado (à espera do processo). A condenada, que nem sequer era suspeita, já perdeu o mandato presidencial. Bonita “justiça política”, esta!

A SITUAÇÃO ECONÓMICA ajudou à festa, com o PIB a cair e o desemprego e a inflação a subirem. Mas, por isso mesmo, a democracia brasileira não precisava disto. Na verdade, as conjuras quase já não precisam de armas. Nem sequer das armas brancas do tempo de Maquiavel. Basta esgrimir, de forma conjugada e com alguma maestria, o direito e os media. Intelectuais orgânicos da conjura é o que não falta. E por isso não entendo esses democratas dos quatro costados que viram no afastamento de Dilma uma fulgurante vitória da sua formidável razão política.“Beati loro!”, costumam dizer os italianos.”

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