O TUTOR DA REPÚBLICA
E OS SEUS AMIGOS
Por João de Almeida Santos
NÃO ME RESTAM DÚVIDAS de que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), se tornou líder da oposição política e da oposição mediática. Pelo que diz e pelo que não diz. Sim, duas oposições para um mesmo fim: a queda do governo do PS. Uma reviravolta completa. Uma convergência total da oposição política com o sistema mediático, construída, neste caso, em torno de nada, de episódios sem densidade política. Poderia ser uma convergência substantiva sobre grandes questões com impacto na vida do País, mas não.
1.
A oposição mediática e a oposição política estão agora concentradas num folhetim com cenas muito picantes em torno do portátil de um Adjunto do Gabinete de um Ministro. Algo cujo conteúdo se desconhece e que, mantendo-se a ignorância sobre ele, em nada afectaria a nossa vida colectiva. O que lá possa estar é menos relevante do que o que dele se possa dizer: o que interessa verdadeiramente são as eventuais incoerências, silêncios ou contradições de altos responsáveis sobre tão mísero assunto. No Parlamento ou fora dele. Discurso sobre o discurso. Mentiu? Contradisse-se? Omitiu? É problema de verdade ou de mentira. Problema ético e político, num país tão puritano como Portugal! Isso, sim, é o que interessa.
2.
O Parlamento subiu ao palco e os media adoraram porque o palco é o seu húmus, o seu “locus classicus”, a sua vocação. Vaudeville à portuguesa. Ou, então, a política e a informação como dramaturgias ao estilo pirandelliano: personagens à procura de autor. Sim, embora o segundo acto da peça tenha sido escrito e encenado por autor bem conhecido, pondo os personagens no palco, um pouco desorientados, e ficando a observar da plateia o desenrolar da interpretação. Um Pirandello à portuguesa.
3.
Mas se se compreende que os media relatem o que se está a passar no palco parlamentar, já não se compreende o espectáculo permanente trazido para o palco electrónico e os excessos acerca de uma peça teatral de pouco valor dramatúrgico, mas de muito valor “comercial”. A exploração delirante e aumentada da desorientação das personagens. A não ser que também eles, os media, sintonizem com o dramaturgo e com as personagens “in cerca d’autore” para que aconteça um “gran finale”, com intervenção de um “deus ex-machina”, o povo, a pôr ordem no caos.
4.
Muito bem, mas não deixa de ser um desvio na sua função de informar: um desvio de agenda e também em relação ao próprio código ético. Na agenda, por explorarem até à náusea episódios menores (e foi menor, quase ridícula, a ideia de fazer esta CPI) que nada de substantivo representam para a vida do país. Querem um claro exemplo de exagero mediático, fora do universo da política? No sábado, a SIC e a TVI dedicaram, cada uma, duas horas do telejornal, em prime time (19:57/21:57 e 19:50/21:51, respectivamente, incluída a publicidade de 13 minutos, na SIC, e de 15 minutos, na TV) à vitória do Benfica, como se o mundo se resumisse, nesse dia, a isso (e declaro que sou e sempre fui simpatizante do Benfica). Algo absolutamente chocante e incompreensível num país civilizado. Mas também desvio relativamente ao código ético porque, ao contrário do que muitos pensam e praticam, os media não são contrapoder e têm o dever cultivar a imparcialidade, a objectividade e a relevância, princípios maiores dos códigos éticos a que os jornalistas estão obrigados, mesmo quando, mantendo-se na condição de jornalistas, emitem opinião nos seus meios de comunicação. Por uma simples razão: estão obrigados a fornecer informação e análise objectiva (não idiossincrasias pessoais) para que, depois, seja o cidadão a decidir, a avaliar. Não é aceitável fornecer decisões já pré-confeccionadas à cidadania. Isso é um exercício inaceitável de poder e um abuso de função. Cito a resolução 1003 do Conselho da Europa, “Ethics of Journalism”, de 1993:
“19. It would be wrong to infer from the importance of this role that the media actually represent public opinion”; e “20. This would amount to transforming the media and journalism into authorities or counter-authorities (“mediocracy”), even though they would not be representative of the citizens or subject to the same democratic controls as the public authorities”.
Os media não representam a opinião pública nem são poderes ou contra-poderes porque não estão sujeitos ao mesmo controlo democrático que os poderes públicos. E regem-se por princípios que eles próprios subscreveram nos inúmeros códigos éticos disponíveis, ao longo de séculos (veja-se sobre este assunto, o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 22-29). Creio que isto deveria ser claro. Nem de outro modo os media poderiam corresponder aos referidos princípios da Ética do Jornalismo, enquanto mediadores, não enquanto parte. E, todavia, não é isso que está a acontecer. Os media aspiram a ter um poder que exorbita das suas funções e põe em causa, não só o próprio princípio electivo em que se funda a democracia representativa, mas também os próprios princípios que subscreveram, desde finais do século XVII (desde o Código Harris).
5.
Depois, o seguidismo cúmplice em relação à agenda do PR, mas também o desvirtuamento total da função deste, transformado em tutor vigilante, constante e omnipresente, da acção do governo, confundindo papéis, a ponto de usurpar permanentemente funções de outros órgãos de soberania. Mas, na realidade, o que acontece é que este mesmo poder mediático, por interposto e informal seu agente orgânico, nascido, criado e sempre alimentado por si (desde os tempos do jornal “Expresso”), chegou ao poder, ao mais alto cargo político do país. Sim, foi através de eleições, mas ganhas por omissão do PS e sobretudo por obra e graça da sua presença permanente (uma autêntica “permanent campaigning”) nos media. O que explica, em grande parte, esta simbiose integral e (quase) orgânica entre MRS e o establishment mediático. Esta convergência poderá, pois, dever-se, por um lado, a uma espécie de solidariedade corporativa (o PR é um dos “nossos”) e, por outro, àquela que eles julgam ser a sua função, a de contrapoder, ao mesmo tempo que abraçam definitivamente a orientação tablóide, a informação-espectáculo e a política-espectáculo. Mas, como diz Guy Debord, em “La Société du Spectacle”, ”Le spectacle ne veut en venir à rien d’autre qu’à lui-même” (Paris, Gallimard, 1992, n. 14, pág. 21). O espectáculo como fim de si próprio e valor supremo – o que atrai público, dinheiro e poder.
6.
O que é o tabloidismo? É a elevação da categoria do negativo a princípio constituinte da informação, em todos os seus géneros, incluído o político. Orientação que garante uma forte atractividade, decisiva não só para captação de recursos financeiros através da publicidade, mas também para a obtenção de poder sobre agentes políticos que precisam, eles próprios, de atrair consenso para a conquista do poder. O tabloidismo como filosofia de poder. Por isso, a oposição política segue-lhe caninamente os passos sem se aperceber de que também ela está a converter a política em política tablóide, em despudorada exploração do negativo para a conquista do poder, e de que no futuro também ela passará a estar à mercê do mesmo mecanismo triturador.
7.
Não é nova esta orientação. Quem conhecer a história das campanhas eleitorais nos Estados Unidos poderá encontrar em todas elas as chamadas campanhas negativas. Vejamos alguns casos. Em 1980, Jimmy Carter, no interior do mesmo partido, contra Edward Kennedy: no «caucus» do Iowa e nas primárias de New Hampshire, sobre o incidente onde morreu a acompanhante de E. Kennedy; em 1988, George Bush (Pai) contra Michael Dukakis, candidato e governador de Massachusets: facilitismo com prisioneiros (a propósito do caso Horton e do homicídio por este praticado durante uma saída temporária da prisão) e desleixo com o ambiente – foram usadas imagens que nem sequer eram de Massachusets; em 1992, de novo, o mesmo G. Bush, mas agora sem sucesso, contra Bill Clinton, acusado de desleadade nacional por não ter feito o serviço militar, de deslealdade com a mulher e de ter consumido droga em juventude; em 2004, Bush, filho, seguiu as pegados do Pai, atacando John Kerry, através dos seus «grupos 527» de apoio, com mentiras sobre as suas prestações no Vietnam (ele que, graças à influência do Pai, se pusera a reparo da guerra e fora dispensado muitos meses antes de terminar o serviço militar), sobre a mulher ou até sobre a sua roupa interior; em 2000, Bush introduzira o negativo por via de imagens subliminares, inserindo num spot onde eram usadas as palavras «democrats»/«burocrats» a palavra isolada «rats» durante 1/24 de segundo; em 2008, nas primárias e na campanha eleitoral de 2008, voltou o estilo negativo de campanha, desta vez na figura de Obama. Como se sabe, o mais perigoso dos ataques, além do que, insistentemente, o identificava como muçulmano, foi desferido a propósito da sua relação com o pastor Jeremiah A. Wright, seu inspirador espiritual, por este assumir posições inaceitáveis aos olhos dos americanos. Uma amostra muito interessante destes ataques está relatada no livro de Castells Comunicación y Poder (Madrid, Alianza Editorial, 201, pp. 601-606). Das campanhas de Donald Trump nem é preciso falar.
Campanhas negativas, em estilo tablóide, visando desqualificar o adversário e pondo o negativo como categoria central do discurso, vêm ao de cima sempre que se disputam campanhas presidenciais nos USA, chegando ao pormenor de até se usar a roupa interior como argumento.
8.
Não é, pois, coisa só nossa, mas lembro a campanha orquestrada por Santana Lopes, em 2005, sobre uma putativa homossexualidade do adversário, na competição eleitoral que o opunha a José Sócrates. E, todavia, o que hoje temos entre nós tem características muito próprias. Diria que, tendo características diferentes, mas sendo também centrada no negativo, a orientação portuguesa assumiu já uma natureza sistémica, fundindo-se com a prática dominante da informação e funcionando como “permanent campaigning”. E, mais, encontrou uma liderança política saída das suas próprias fileiras. Não é um caso como o de Berlusconi, como o de Ross Perot ou como o de Stanislav Tyminski. É mais parecido com os casos de Schwarzenegger, de Ronald Reagan ou de Donald Trump, pois todos eles ganharam notoriedade como protagonistas no cinema ou nos media. Donald Trump teve sucesso e ganhou notoriedade no programa televisivo “The Apprentice” (da NBC). Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi um orgânico dos media nas três plataformas (jornais, rádio e televisão) e nem a função presidencial o desviou dessa sua matriz. Não sai dela um momento que seja. Refiro, a título de exemplo muito significativo, somente o episódio de 2004 em que MRS se demitiu de comentador da TVI, por suposta interferência do governo nos critérios editoriais deste canal, e o gigantesco e absurdo impacto que isso teve no establishment mediático: “em quatro dias, 7 jornais dedicaram ao assunto 347 artigos, 101 páginas, 22 editoriais e 17 manchetes” (Santos, J. A., 2012, Media e Poder, Lisboa, Vega, 128; mas veja pp. 127-132). O governo e a maioria absoluta de direita existente na AR resistiram pouco tempo até à dissolução do Parlamento por Jorge Sampaio. Isto diz tudo sobre a relação de MRS com o establishment mediático, já há cerca de 20 anos. Não é, pois, assim tão estranha esta convergência entre os media e alguém que já não é comentador (ou talvez seja ainda mais), mas Presidente da República, quando volta a apontar o dedo ao poder executivo, agora a partir da sua própria função presidencial. Acresce que ele sempre foi um activista político e que esse activismo o exerceu, sobretudo, a partir do sistema mediático, onde sempre ocupou posições de grande relevo. E a verdade é que nas duas campanhas presidenciais o PS não apresentou qualquer alternativa, na esperança de, apesar de pertencer a uma família política adversária, vir a ter nele um aliado, valorizando claramente as funções executiva e legislativa e desvalorizando a função presidencial. Acontece que esta última só é menor se o ocupante não a usar como arma de arremesso contra o executivo, que é o que agora está a acontecer.
9.
Mas se esta estratégia funcionou durante alguns anos, neste momento está a transformar-se num sério problema para o governo e a maioria que o apoia. O PS deveria, pois, abrir uma frente de leal combate político na qual fosse também enquadrado o PR, não através da sua desqualificação ou de falta de respeito institucional, mas sim através da exigência de reposição do correcto funcionamento do sistema político, de acordo com o texto constitucional. Porque, na verdade, o PR tem vindo exorbitar das suas funções constitucional e até a alterar a própria natureza da função presidencial, ao imiscuir-se constantemente em assuntos onde ele deveria manter uma espécie de pudor institucional, tão necessário a um bom exercício da função.
10.
O combate político não parece ser uma vocação própria do cargo de Presidente da República, no modelo português, enquanto poder moderador, e o governo não responde politicamente perante ele. Mas a verdade é que a sua está a revelar-se claramente como uma orientação de inspiração populista: uma vocação de carismática interpretação do “Volkgeist” e sua permanente ritualização, numa identificação, quase que por osmose física, com as massas, nesse deambular interlocutório obsessivo e físico pelos quatro cantos do país e da cidade e a que, diariamente, a cidadania pode assistir, através do palco electrónico. Quase uma diluição da sua corporeidade na do povo, ritualizada e consignada em selfies, e convertida, depois, em verbo, em discurso em seu nome, numa clara transfiguração da função presidencial. Do que se trata, realmente, é da emergência de uma dimensão carismática do sistema. Uma perigosa rampa se a personagem fosse outra e com tiques ditatoriais (o que, felizmente, não parece ser o caso).
11.
Lembro-me que alguém a seu tempo apelidou um PM de “picareta falante”. Pois bem, hoje temos uma picareta falante hiperactiva, de muito maior dimensão, de presença quotidiana e muito nociva para o exercício governativo, uma vez que mina constantemente a sua própria autoridade. Não tendo responsabilidades executivas, dispondo de um microfone e de uma câmara a cada passo que dá, pode tornar a imagem do executivo numa espécie de creche tutelada por um todo-poderoso tutor, capaz de a qualquer momento a fechar, mandando todos para casa. O anúncio prematuro de um Conselho de Estado para finais de Julho, e a esta distância, pode ser interpretado como mais uma variável disruptiva para o sistema, ao deixar, virtualmente, todas as possibilidades em aberto e deixando no ar, uma vez mais, fumos de velada ameaça, como tem vindo a fazer ao longo dos últimos tempos… Um insidioso calendário porque, dadas as circunstâncias, deveria ser anunciado em tempo mais próximo da reunião. Sinais de fumo, é o que mais parece. Em síntese, agiganta-se uma onda destrutiva que, em vez de ser insuflada pelo Presidente, devia por ele, enquanto poder moderador, ser travada, poupando o país à degradação progressiva da imagem do governo e seguramente a novas eleições antecipadas.