Artigo

O PRESIDENTE E A FUNÇÃO PRESIDENCIAL

Um Erro de Paralaxe?

Por João de Almeida Santos

Presidenciais2021

“S/Título”. JAS. 05-2023

ORA AQUI ESTÁ. Talvez se trate mesmo de um erro de paralaxe. O Presidente-Comentador, que tudo comenta, chama, de forma nem tanto subtil, publicamente irresponsável ao Primeiro-Ministro e dá ele próprio, sem se dar conta, exemplo do que é ser pública e politicamente irresponsável. Não se trata de um juízo moral, entenda-se, mas de um juízo relativo ao comportamento político e institucional. De tanto falar, o Presidente parece atropelar-se com as suas próprias palavras. Poder-nos-íamos perguntar pela razão que o levou a fazer esta declaração quando já tinha tornado pública, num curioso e intempestivo comunicado oficial, a sua discordância da decisão do Primeiro-Ministro. A primeira razão que me vem à mente é esta: não consegue ficar em silêncio em nenhuma circunstância, tendo de se manter permanentemente ligado à máquina mediática; a segunda razão foi a de mostrar que não “enfiou a viola no saco”, depois de o PM não ter correspondido à sua, já publicamente anunciada e enunciada, vontade; em terceiro lugar, foi a de dar seguimento institucional à vontade expressa pelo establishment mediático de querer exonerar o Ministro João Galamba, confirmando, assim, a sua remota e carinhosa filiação neste universo. Nada mais vejo que possa justificar este atropelo grosseiro à própria constituição, às relações institucionais entre poderes soberanos e à própria lógica da separação de poderes, para não dizer à ética institucional ou constitucional. Afinal, trata-se de um poder moderador, não de uma instância avaliadora da acção política governativa. A avaliação compete, isso sim, ao Parlamento, à oposição, aos partidos políticos e à cidadania. Pelo contrário, uma instância moderadora ( “último fusível de segurança”, como disse o próprio PR) não pode tornar-se parte porque, desse modo, perde a capacidade de moderar. Não por acaso, em relação à acção política da Presidência, se tem usado regularmente, e bem, a expressão “magistratura de influência”, baseada na “auctoritas”, na “virtus”, não na coacção simbólica, na reprimenda pública e na ameaça. De resto, a intervenção política do Presidente está bem expressa na Constituição: dissolução do Parlamento, promulgação dos diplomas legais, mensagens ao Parlamento, pronúncia sobre emergências graves  (além dos actos formais de nomeação, demissão e exoneração do PM e dos membros do governo, estes sob proposta do PM).

1.

O direito de propor a exoneração de um membro do governo não pertence constitucionalmente ao PR e, assim sendo, este deveria, mesmo discordando, ter respeitado a decisão de quem tem esse poder, o PM, abstendo-se de a qualificar publicamente e deixando a tarefa crítica para quem tem essa competência política: a oposição partidária e parlamentar e a própria cidadania.

As palavras publicamente usadas para comentar a decisão são absolutamente inaceitáveis. E, pior, ao condenar publicamente, por duas vezes e solenemente, a decisão do PM, o Presidente está a substituir-se ao Parlamento e à oposição política, entrando até, e mais uma vez, no campo das ameaças, agora mais claramente expressas. O Presidente tornou-se, assim, o líder da oposição e a projecção institucional do establishment mediático. Assim sendo, não resta à maioria e ao PS outro caminho que não seja o de responder politicamente a esta novíssima figura institucional do Presidente. Pelo contrário, o PM e o governo devem, ao contrário do Presidente, manter a compostura institucional e o respeito pela função presidencial, ao mesmo tempo que devem redobrar esforços para governar o melhor possível. O problema, dirão alguns, é que, vendo realisticamente as coisas, Marcelo Rebelo de Sousa tem todo o establishment mediático e (quase) toda a oposição com ele e, por isso, tornou-se um problema muito sério para o governo e para a maioria que o sustenta. Sem dúvida. Mas a verdade é que, com esta intervenção, o PR demonstrou ter uma visão enviesada da função presidencial e da separação dos poderes, pelo que, no mínimo, o PS deverá lutar pela reposição da função presidencial no devido lugar para que não acabe por acontecer uma autêntica subordinação do poder executivo à vontade e ao arbítrio do Presidente, subalternizando o poder executivo e subvertendo a própria constituição da República. De ministro em ministro, as remodelações governamentais passariam a ficar nas mãos do Presidente e, já agora, do establishment mediático. A correcção deste enviesamento constitucional da função deveria, por isso, constituir o primeiro passo para a necessária correcção de trajecto.

2.

Em boa verdade, este já é o segundo nível em que Marcelo Rebelo de Sousa contribui para a degradação da função presidencial. O primeiro consistiu na confusão da função presidencial com a de comentador permanente de tudo o que acontece no país (incluída a acção governativa), do mais irrelevante ao mais relevante, num activismo opinativo verdadeiramente alucinante; o segundo consistiu em transformar a função presidencial em oposição política declarada ao governo e à maioria parlamentar. O que, na realidade, parece é que o Presidente tem vindo a transpor para a função presidencial as suas idiossincrasias e até os seus humores pessoais, não se atendo às funções que a Constituição da República lhe confere.

3.

E qual é, então, a resposta política perante este aviltamento da função presidencial? Simples: combate político, pois do que se trata é de um adversário político confesso. Uma luta dura, mas que tem de ser travada, para que o gesto de António Costa tenha consequências políticas substantivas e a honorabilidade política do PS seja preservada.  Se não for travada, o PS pagará caro, caríssimo, o preço deste embate. A democracia é amiga das diferenças políticas, do debate argumentativo e, naturalmente, do combate político, desde que tudo ocorra no respeito pelas regras, o que, notoriamente, neste caso, não aconteceu. Assim sendo, e porque o PR se colocou voluntária e publicamente nessa posição, o PS deve retirar daí as consequências e lutar politicamente para que se remeta rapidamente à sua condição, à sua função constitucional e política, deixando que o Parlamento, a oposição política partidária e a cidadania controlem, critiquem ou até apoiem, se for caso disso, a acção do governo. Se não for travado este combate será a democracia representativa a sair fragilizada de todo este processo. A verdade é que o governo e o parlamento não podem estar permanentemente reféns da vontade do Presidente sob o cutelo ameaçador da dissolução da AR.

4.

Sendo um acto eminentemente político e devendo assim ser considerado, mesmo assim, na Constituição só dois artigos poderiam conferir razoabilidade a esta intervenção política do PR . O primeiro é o art. 133, alínea d): “dirigir mensagens à Assembleia da República”; o outro é o art. 134, alínea e): “pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República”.

O primeiro não foi accionado e talvez fosse o único aceitável como modo de devolver à AR a função de controlo e de crítica dos actos do governo, protagonizando a iniciativa de uma pronúncia em sede parlamentar sobre o facto. O segundo não parece, de facto, configurar-se como “emergência grave para a vida da República”.

O que acabo de dizer torna ainda mais delicada a intervenção directa do PR junto dos portugueses (através das televisões), subalternizando o papel da Assembleia da República e da própria oposição. O que mais parece é que o PR quis cavalgar a onda mediática em curso, reforçando deste modo um consenso de tipo tablóide em torno da sua pessoa e dos seus actos, algo disruptivos. Ou seja, com esta intervenção o PR contribuiu ele próprio para descredibilizar as instituições (presidencial e governativa), cometendo ele próprio o pecado de que acusa outros, na verdade pecado bem pior do que o da situação rocambolesca da demissão de um simples adjunto de gabinete ministerial. E bem pior porque não só afecta gravemente as relações entre a Presidência e o governo, alterando o próprio modelo constitucional, mas também porque se configura como um grave atentado à imagem do PM e do governo praticado pelo mais alto magistrado da Nação. A hipocrisia política tem sido um dos factores que tem contribuído para a crise de representação que persiste e se avoluma, mas tanta e inorportuna exposição institucional do PR (e, por essa via, do governo) também pode produzir o mesmo resultado. Pois bem, aqui está o momento para dizer e fazer o que a política exige: clareza política nas regras e nas posições, frontalidade e determinação. Foi disto que gostei na decisão e na posição de António Costa: mostrar ao Presidente que as funções e competências de cada um devem ser respeitadas.

5.

O mal está feito e como o próprio Presidente disse, não se apagará “dizendo que já passou. Não passou. Nunca passa”. Reaparecerá “todos os dias, todos os meses, todos os anos. Porque tem de existir para que os Portugueses se não convençam de que ninguém responde por nada, nem manda em nada”. Trata-se, sim, de uma atitude que não tem retorno e o PS deve tirar daí todas as consequências políticas, não concentrando as atenções sobre o Ministro Galamba, como alguns ilustres socialistas já estão lamentavelmente a fazer, mas manifestando sem tibiezas o seu entendimento sobre as regras e sobre a atitude do presidente, demarcando-se desta interpretação absolutamente enviesada do que são os poderes presidenciais, ao mesmo tempo que deve declarar que não permitirá que sejam os media a governar o país, mas sim os que, mediante eleições livres, representam a cidadania. Na verdade, mais do que a questão do Ministro, o que verdadeiramente esteve em causa foi a usurpação de funções e competências. E, por isso, é a própria democracia representativa – regime onde as regras ocupam o centro do sistema –  que exige clareza, mas também o necessário afastamento de qualquer tendência que promova o tabloidismo político, filho directo e dilecto do tabloidismo mediático, há muito em curso no nosso panorama editorial e cujo representante máximo parece ser cada vez mais o Presidente da República. Só assim o PS reconquistará a gravitas que tem vindo paulatinamente a perder e promoverá a sua posição virtuosa de força política ao mesmo tempo moderada, respeitadora das regras da democracia e progressista nos seus ideais. Neste caso, muito em particular, como em tantos outros, o PS não se deve remeter à condição de mero ventríloquo sem alma do governo ou de cúmplice do enviesamento da função presidencial. Bem pelo contrário, deve ter voz própria e lutar activamente pelo respeito das regras da democracia e pela dignidade da política.

Presidenciais2021Rec

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