THE SHOW MUST GO ON
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 05-2023
NUNCA CONSIDEREI que as chamadas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) dessem um contributo positivo para o bom funcionamento da democracia representativa, hoje a conhecer grandes dificuldades no seu correcto funcionamento, até pela profunda mudança que se tem vindo a verificar nos sistemas sociais. Não é por acaso que há muito se fala de crise de representação, de democracia pós-representativa ou de democracia deliberativa. As CPI têm degradado a imagem do Parlamento e reforçado a crise de representação. É o que se está passar também com esta. Ainda insatisfeitos com o espectáculo a que temos vindo a assistir, já querem fazer outra, desta vez sobre os serviços de informações.
1.
Por um lado, elas tendem sempre a funcionar na fronteira da separação de poderes, entrando prepotentemente na esfera reservada dos dois outros poderes: o poder executivo e o poder judicial; por outro lado, tendem a deslizar frequentemente para um público “lavar de roupa suja”, dando abundante alimento ao tabloidismo informativo e contribuindo, deste modo, para que a política se transforme, ela própria, em política tablóide. As CPI são um excelente ambiente de culto destas tendências, até porque permitem à oposição não só submeter o executivo a julgamentos de praça pública, fundados na mesma lógica tablóide dos pelourinhos electrónicos que abundam por aí, mas também a ocupar ela própria o topo da agenda mediática e da agenda pública, dada a grande exposição a que normalmente são sujeitas. Daí a sua atractividade. Poder-se-ia até dizer que o excesso de CPI, mas também os seus excessos, muitas vezes fundados na própria impreparação dos deputados e na ânsia de protagonismo público, para não dizer numa inconfessada vocação inquisitorial, colaboram intensamente para mudar a própria natureza do regime, ao invadirem grosseiramente o campo dos outros poderes, contribuindo, deste modo, para uma parlamentarização excessiva do regime, alimentada pela informação tablóide e por uma política tablóide em crescimento acelerado. Perante o novo e imenso espaço público, permanentemente on line, onde pontificam media e redes sociais, o clássico mecanismo de legitimação dos mandatos, o voto, está a ceder perante um novo tipo de legitimidade, a legitimidade flutuante, que é de outra natureza, tem fundamento e temporalidade próprios e corresponde às flutuações da opinião pública, onde, afinal, os media e as redes sociais são determinantes. Conhecendo-se a orientação que os media estão a seguir e a tendência dominante das redes sociais é fácil reconhecer que estamos perante um destino pouco democrático da própria democracia.
2.
É a isto que estamos a assistir nesta CPI sobre a TAP, que, como era expectável, já está a extravasar o próprio objecto para que, inapropriadamente, foi criada: investigar a atribuição de uma indemnização de 500.000 euros a uma gestora da companhia aérea nacional. Quanto a mim, e revertida a indemnização atribuída com as consequências que, depois, se verificaram ao nível da administração da empresa, essa matéria perdeu, de vez, a pouca densidade que já possuía para justificar uma CPI. Por isso, nunca entendi a razão de o PS ter aceitado a sua constituição. E ainda entenderei menos a constituição de uma nova CPI sobre os serviços secretos a propósito de um assunto cujo conteúdo é absolutamente irrelevante, apenas servindo para, mais uma vez, desqualificar os próprios serviços de informações. É o triunfo dos “aprendizes de feiticeiro”!
3.
E, todavia, inesperadamente, esta CPI ganhou uma outra dimensão, essa sim, politicamente mais relevante. Ou seja, transformou-se no lugar de combate entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, por interposta pessoa: a do Ministro que esteve na origem do dissídio entre ambos, motivado, como se sabe, por uma questão de reserva de competências. O motivo? Uma confusão interna entre um Adjunto e outros membros do Gabinete que acabaria por gerar uma tal tempestade política que vários partidos até já estão a exigir, depois da presença do Ministro das Infraestruturas, da Chefe de Gabinete e do Adjunto, a presença do Primeiro-Ministro, dando, assim, sequência política à pública exigência do PR de demissão do referido Ministro. O PR deu o mote, os “aprendizes de feiticeiro” agitam fortemente o caldeirão até que a magia se cumpra.
4.
Quem assistiu às inquirições que já ocorreram, o que constatou foi a devassa total, ao minuto e ao pormenor mais insignificante, do executivo, através do gabinete ministerial onde se verificou o incidente. O incidente – um desentendimento gerido sem ponta de bom senso quer pelo Ministro quer pelos membros do Gabinete – não tem dimensão de assunto de Estado, ainda que tenha sido insistentemente chamada a debate a intervenção dos serviços secretos no processo, matéria agora reforçada pela eventualidade de uma nova CPI, para lhe conferir a necessária gravidade institucional e, deste modo, justificar a intervenção do Presidente e do Parlamento. Na verdade, o assunto não passa de matéria sem qualquer relevo ou significado, não se apercebendo os senhores deputados de que toda esta dramaturgia em crescendo acabará por produzir um efeito devastador sobre a imagem da política e das instituições, do governo e do próprio Parlamento. A gestão da TAP, a sua privatização, os recursos nela investidos pelo accionista Estado, a questão do aeroporto, nada disto parece ter relevância ao lado do mísero, ridículo e rocambolesco incidente. Poder-se-ia mesmo dizer, acerca do que está a acontecer, que a emenda está a ser pior, muito pior, do que o soneto. Mas a verdade é que nada mais interessa à CPI e ao establishment mediático do que o espectáculo e a dramatização da situação até ao seu limite extremo. The show must go on, numa convergência total que parece ter como único fim, para além da política espectáculo, um valor em si, a criação de um ambiente que leve, mais cedo ou mais tarde, à dissolução do Parlamento e à convocação de eleições antecipadas. É esta a suposta gota de água que fez transbordar o copo, a um ano e dois meses da tomada de posse deste governo e a um ano e quatro meses da conquista da maioria absoluta pelo PS. Sim, mas o tabloidismo mediático é disto que gosta e é disto que vive, porque é isto que lhe dá audiências e poder. Na verdade, se a legitimidade flutuante é a que mais se adequa funcionalmente ao poder dos media, ela também interessa conjunturalmente aos que anseiam chegar rapidamente ao poder. Verdadeiramente é disto que se trata. Nada mais, por mais expressivos e compungentes que se mostrem, em prime time e fora dele, os seráficos rostos dos habituais performers televisivos, a começar pelos próprios pivots, a quem se exigiria um pouco mais de contenção e de respeito pela vontade política dos eleitores. Uma democracia cada vez mais tablóide – na informação e na política – é o que infelizmente se está a impor, sem que haja o mínimo sobressalto de quem teria o dever de a impedir.
5.
Esta CPI está pois, por um lado, a interpretar, em directo, um papel que o establishment mediático depois converte em coerente e apimentada dramaturgia para consumo do público e, por outro lado, a desenvolver, pelos seus próprios meios, o discurso do Presidente acerca da substituição de um Ministro e da reposição da “dignidade das instituições”, mediante eleições antecipadas. Nunca o livrinho do Guy Debord esteve tão actual como agora: “Dans le monde réellement renversé, le vrai est un moment du faux” (La Société du Spectacle, Paris, Gallimard, 1992, pág. 19). O que sobra, realmente? Um gigantesco aviltamento da política, das instituições e da própria democracia, transformada em “Democracia Tablóide”, onde pontifica a categoria do negativo e onde a política se reduz cada vez mais a espectáculo. A sensação que fica é que nas inquirições os deputados já nem sabem bem a razão por que estão ali a fazer perguntas. Ou talvez saibam: o espectáculo vale por si.
6.
É claro que, a montante, há uma causa à qual pode ser imputada uma parte do que está a acontecer. E essa causa reside na perda de gravitas dos partidos políticos, de todos eles, na insuficiência do processo de selecção do seu pessoal político e, em geral, naquilo em que eles próprios se tornaram. Sim, os partidos políticos estão transformados em meras máquinas de conquista e apropriação do aparelho de Estado e em espaços de convergência de múltiplos interesses puramente pessoais e alheios ao interesse público, tendo perdido a característica de organizações que tinham como finalidade a promoção da política como esfera de culto activo da ética pública e do interesse geral, de uma visão estruturada sobre a sociedade e sobre as funções e a natureza do Estado, de uma ideia de progresso social e de futuro e, finalmente, da vontade de tornar hegemónicas cultural e politicamente as suas ideias acerca do bem comum. Ou seja, desapareceu a ideia de partido como escola de formação política e doutrinária para passar a ser uma agência de empregos, um mero instrumento de promoção pessoal sobretudo daqueles que nunca conheceram grande autonomia e sucesso na sua vida profissional privada. Muitos dos agentes políticos que hoje pululam nos partidos, sobretudo nos partidos da alternância, nunca exerceram uma profissão na sociedade civil, saltando directamente das juventudes partidárias ou da máquina partidária para as instâncias do poder, seja ele o poder autárquico, a administração pública ou o próprio Parlamento.
7.
A isto acresce, como já referi, a evolução do establishment mediático no sentido do tabloidismo mais radical e a enorme contaminação que existe entre ele e a política. Duas faces de uma mesma moeda a contribuírem, elas sim, para a degradação da democracia representativa e para o crescimento das formações políticas que não gostam mesmo dela. Pois com esta CPI Portugal está a dar mais um passo em frente na tabloidização integral da política e da democracia, transformando-as em apetitoso pasto para as forças mais radicais, sobretudo a extrema-direita. Faz, pois, falta uma séria reflexão sobre a política e a democracia pelas forças políticas mais responsáveis se quiserem evitar o pior e a sua própria sobrevivência política enquanto forças que pretendam continuar a assumir o governo deste país. Em vez disso, infelizmente, o que se vê é um deslize permanente na rampa inclinada da política tablóide e da degradação institucional. E, permita-se-me a ousadia, não me parece que o PR esteja fora desta rampa. Bem pelo contrário, o que nem é de estranhar visto o percurso de vida da personagem e a sua notória dependência das câmaras de televisão. Acresce ainda a recente e inopinada injunção de um antigo PR e PM no processo com uma linguagem absolutamente desbragada, ofensiva, inapropriada e inaceitável para quem desempenhou durante vinte anos tão altas funções. O que parece, de facto, é que já nada limita o clima de guerra aberta que se instalou na democracia portuguesa, a ponto de já nem ser sequer o partido que sustenta o governo a estar em causa, mas sim a decência política, o ódio e a insensibilidade relativamente à preservação do próprio regime político em que vivemos. Parece valer tudo e até mesmo “tirar olhos”. Isto diz muito da nossa classe política e de todo o establishment mediático. JAS@05-2023