Artigo

POR QUE RAZÃO ANDRÉ VENTURA É TÃO DISRUPTIVO?

Por João de Almeida Santos

ALinhadoHorizonte05_2023

“S/Título”. JAS. 05-2023

QUANDO OUÇO André Ventura dizer aquelas coisas tão fora da caixa, tão politicamente incorrectas ou até mesmo tão pouco aceitáveis numa lógica de simples sensatez, interrogo-me sempre, para além das óbvias razões ideológicas de fundo, sobre o sentido oculto ou a estratégia oculta que existe no seu discurso. Ou seja, não tomo em consideração directamente o valor semântico do seu discurso, o seu conteúdo ideológico, mas sim os seus efeitos sobre a mecânica da opinião pública. Melhor ainda: não me preocupo em avaliar política, moral ou cognitivamente o seu discurso, por ser demasiado óbvia a sua matriz e a sua semântica, mas sim os seus efeitos sobre a dialéctica da atenção social e, em primeiro lugar, a que é polarizada pelo establishment mediático. É assim que me vêm sempre à mente quer a teoria do “agenda-setting” (McCombs e Shaw) quer a teoria do “agendamento” (Niklas Luhmann).

1.

O que dizem, no essencial, estas teorias? Dizem, acerca dos efeitos cognitivos e sociais dos mass media (que reportam o que o sujeito do discurso diz), que o essencial é a polarização da atenção social sobre o discurso e o agente do discurso. A entrada em agenda dos temas e dos agentes do discurso e o grau e a intensidade com que entram. Não é, pois, tanto o valor semântico do que é dito, mas o seu poder de se impor no processo de agendamento mediático, político e público (por esta ordem) e, consequentemente, na dinâmica da atenção social. É uma prática usada há muito. Berlusconi usou-a abundantemente, quando conquistou (em 1994) e exerceu o poder como primeiro-ministro. Donald Trump também. Comunicar coisas disruptivas, insensatas, brutais, insólitas, negativas, corresponde àquela que hoje é a prática dominante dos media na comunicação pública, ou seja, corresponde ao domínio da categoria do negativo, transversalmente, em todos os géneros discursivos (política, desporto, sociedade, etc., etc.), no discurso público. Alguém dizia que notícia, notícia, não é o cão morder o homem, mas o homem morder o cão. Ou, então: “good news, no news”. É algo muito experimentado na comunicação pública, ao lado das famosas campanhas negras. Esta técnica, que não é nova, tem dado bons resultados: o importante é que falem de ti, não importa se bem ou mal. A semântica terá sempre, nesta lógica, uma importância secundária. O importante é entrar na agenda pública, se possível chegar mesmo ao topo.

2.

Mesmo que, do ponto de vista ideológico, haja diferenças muito grandes e que cada partido ou movimento as afirme de forma mais ou menos intensa, como é natural, o essencial não está, todavia, na posição ideológica do discurso, mas sim na capacidade que ele tiver de atrair e polarizar a atenção social, independentemente do valor semântico da mensagem, dos seus conteúdos políticos, programáticos e ideológicos, que sempre implicam um nível mais exigente de descodificação. Só assim se compreende a razão de certos discursos ou de certas atitudes aparentemente sem sentido. Por exemplo, eu enquadro, entre tantas outras suas posições discursivas e disruptivas, as manifestações do CHEGA durante a visita oficial do Presidente da República Federativa do Brasil, Lula da Silva, a Portugal, nesta estratégia. É evidente que este partido passou das marcas minimamente aceitáveis (pelo menos, as da educação), mas a verdade é que o que subjaz a estas acções discursivas é o desejo absoluto, a qualquer custo, de polarizar a atenção social, ocupando as agendas mediática, política e pública e aumentando, deste modo, a notoriedade e, consequentemente, o impacto eleitoral. O disruptivo e o negativo como categorias comunicacionais supremas. Ou o triunfo esmagador do tabloidismo comunicacional e político, que se alimenta destas categorias. Quem vir os telejornais das oito, de todos os canais, facilmente compreenderá o que estou a dizer. M. McCombs e D. Shaw diziam, em 1972, em “A função de agenda-setting dos mass media”, acerca da agenda-setting, citando Bernard Cohen: “a imprensa ‘pode, na maior parte dos casos, não ser capaz de sugerir às pessoas o que pensar, mas ela tem um poder surpreendente de sugeriraos leitores sobre o que pensar’ ” (itálico meu). Conquistar a agenda mediática e a agenda pública significa ganhar notoriedade política. O importante não é, pois, o conteúdo específico da comunicação (a sua descodificação exige, como disse, sempre um esforço suplementar), mas sim o lugar que a acção discursiva virá a ocupar na hierarquia das notícias e do debate público. A posição que se alcançar neste plano condicionará o impacto político, o reconhecimento implícito do poder de agenda da força política promotora e, naturalmente, a sua posição na relação de forças política. Esta influência implicará seguramente significativos dividendos eleitorais.

3.

É esta a principal razão dos discursos políticos altamente disruptivos e fortemente negativos.  Trata-se de uma opção consciente. E de qualquer modo as forças radicais ou populistas encaixam-se melhor do que as outras forças políticas naquela que é a estratégia discursiva dominante dos mass media, onde o tabloidismo já ocupou o centro da estratégia de conquista das audiências. Berlusconi conseguiu, na pré-campanha e na campanha de 1994, fazer de si próprio o centro de todo o debate nacional no processo que conduziu às eleições que ocorreram em Março: em nove meses criou um partido de raiz e venceu as eleições. Matteo Salvini, a partir do Ministério do Interior, pôs no centro do discurso a questão da imigração e os seus perigos para a sociedade italiana, dominando totalmente a agenda mediática, política e pública, com os efeitos que se conhece nas eleições europeias de 2019 (cerca de 34%). O discurso de Trump era, todo ele, permanentemente disruptivo, negativo e “unusual”. O mesmo vale para o BREXIT em relação à imigração.

4.

Estas forças, porque são radicais, populistas, anti-sistema e promotoras de um discurso negativo e de rejeição, adoptam este tipo de elocução com maior naturalidade, conseguindo, deste modo, aproveitar melhor a dinâmica do discurso mediático e, deste modo, polarizar a atenção social, aumentando a notoriedade, com significativos ganhos eleitorais. Sobretudo num momento em que as forças da alternância e do establishment estão em fase de progressivo desgaste, motivando distância e até irritação por parte dos cidadãos. Papel não despiciendo neste desgaste tem sido desempenhado, não só pela atmosfera de crise que se tem vivido, mas também pela onda de politicamente correcto que se tem abatido sobre o centro-direita e o centro-esquerda e que tem sido habilmente aproveitada pelo populismo de direita, atribuindo-a, em geral, e já com alguma razão, ao establishment. O que se tem vindo a traduzir na fragmentação dos sistemas de partidos e no fim do clássico bipolarismo partidário que se fora afirmando progressivamente desde o fim da segunda guerra mundial até aos anos noventa.

5.

Mas isto não parece estar a ser compreendido pelas forças políticas moderadas e mais identificadas com a matriz do sistema político e institucional, acabando por acarinhar a sua estratégia ao transformarem estes radicais em objecto central do seu discurso, contribuindo, deste modo, para os colocar permanentemente no centro da agenda pública. Que os media lhes dêem protagonismo, isso parece resultar naturalmente da sua própria estratégia discursiva tablóide, mas que os partidos da alternância e os da própria extrema-esquerda caiam com tanta facilidade na teia discursiva destas forças é que não se compreende lá muito bem. Os resultados estão à vista. JAS@05-2023

NOTA

JÁ TINHA ESCRITO O ARTIGO quando se deu, ontem (02.05.2023), aquele extraordinário episódio que vai ficar nos anais da política em Portugal. Quando se assistia a uma intensa e total convergência de todo o establishment mediático e da própria Presidência da República que parecia conduzir inevitavelmente à demissão do Ministro das Infraestruturas, tendo tido, inclusivamente, como resultado uma carta de demissão do próprio, pudemos assistir, durante cerca de meia hora, em directo, a uma comunicação ao país do Primeiro-Ministro em que recusava liminarmente a demissão do Ministro, explicando minuciosamente a razão da sua decisão e atribuindo-a a um imperativo de consciência. Ainda estava o PM em directo e já a Presidência emitia uma comunicação em que dava conta da discordância do Presidente em relação à decisão do PM. Esta nota foi como que o selo institucional da Presidência aposto sobre a narrativa mediática que antecedera a corajosa decisão do PM. Também aqui já não interessam as razões concretas, mas sim o facto de o PM ter decidido rapidamente e em contraciclo, não só em relação ao establishment mediático, mas também àquele que cada vez mais parece ser o seu mais alto representante, o próprio Presidente. Uma dramaturgia onde o PM fez, inesperadamente, e de forma brilhante, um pirandelliano  jogo das partes, elevando-se na cena como actor principal e ditando inesperadamente o próprio desfecho deste acto da complexa e delicada dramaturgia em curso. The show must go on…

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