Pintura

“LUZ NA MONTANHA”

Exposição individual de
JOÃO DE ALMEIDA SANTOS
FUNDAÇÃO D. LUÍS
CENTRO CULTURAL DE CASCAIS
Aven. Rei Humberto II de Itália 2550-642 Cascais

Inauguração a 23 de Julho, às 18:30.
A Exposição estará aberta ao público
até ao dia 25 de Setembro de 2022 e
mostra 37 obras do Autor.
EvocaçãodeumaMagnólia

JAS, “Evocação de uma Magnólia”, 2021. Imagem da capa do Catálogo, disponível em breve.

“LUZ NA MONTANHA” é o título de uma minha Exposição individual que a Fundação D. Luís/Centro Cultural de Cascais acolhe e promove entre 23 de Julho e 25 de Setembro de 2022. O título é o de um quadro que integra a Exposição, mas é também uma alusão ao ambiente natural que me inspira na pintura e na poesia.

Em exposição estarão 37 obras de média dimensão que foram criadas em diálogo permanente com a poesia. Elas são, pois, parte do processo sinestésico que adoptei na experiência estética. Com riscos e cores, procuro dar forma plástica ao discurso poético e à matéria de que se alimenta: esse fluxo torrencial de pulsões existenciais que interpelam, estimulam e desafiam o poeta. Como se a pintura continuasse o discurso poético por outros meios, que, depois, seguem a sua própria gramática. Trata-se de paisagens interiores, pintadas, num primeiro andamento, com palavras em registo melódico, mas, depois, recriadas e figuradas fisicamente em vibração cromática quente e intensa. Uma dialéctica que torna a experiência estética mais rica e complexa, mas ao mesmo tempo mais leve e sedutora. Fragmentos cromáticos de um originário discurso poético, poder-se-ia dizer, mas que não ficam confinados no seu interior porque o projectam para fora de si e o oferecem fisicamente ao olhar no interior de uma nova gramática. Como um magnetismo que atrai a palavra e a converte alegremente em cor e em riscos, oferecendo-a, já transfigurada, ao olhar de quem frui. O processo sinestésico permite, depois, um novo regresso ao poema, já com a alma cheia de cor, banhando e iluminando os versos e as estrofes com o brilho cromático das pinturas. E assim se sobe a um novo patamar a partir do qual também se inunda de sentido a pintura. Na verdade, nem a pintura ilustra o poema nem o poema descreve a pintura, mas ambos dão origem a um diálogo virtuoso que se eleva dialecticamente, através da sinestesia, em planos mais complexos e exigentes. A densidade do poema é convertida em leveza na pintura e a leveza da pintura é densificada pela semântica poética. É isto que eu pretendo, independentemente da interpelação e do chamamento a que ambas as artes estão necessariamente votadas. Se ambas respondem, na sua génese, a um originário impulso dionisíaco, para o dizer com Nietzsche, elas também têm como vocação a interpelação, procurando seduzir e chamar à experiência estética os que se cruzam com elas. No essencial, é isto que me move nas minhas propostas.

João de Almeida Santos

EvocaçãodeumaMagnóliaRec

“Evocação de uma Magnólia”. Detalhe

Poesia-Pintura

 

NA BRUMA DA MEMÓRIA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Magia”
Original de minha autoria
Junho de 2021
MagiaPublicado1706_2022

“Magia”. Jas. 06-2022

POEMA – “NA BRUMA DA MEMÓRIA”

QUERIA LEVAR-TE
Uma rosa
Branca
Aos sete céus
Do meu afecto,
Desci fundo
Na memória
Onde ainda te
Guardava
Como se fosse
Teu tecto.

PROCUREI-TE
Na bruma
Espessa
Que caía
Sobre mim
E quase não te
Encontrei,
O tempo gastara
O passado,
Ficou uma saudade
Sem fim.

PERDERA-TE
O rasto
E o perfil,
Até teu nome
Perdeu cor,
Teu olhar
Só luzia
Intermitente
Numa neblina
De dor.

NO MEIO DA NEBLINA
Esfumava-se
O teu rosto
De tanto eu
Te perder,
Era incerto
O cintilar
De teus olhos
Na vontade
De te ver.

ERAS BRUMA
Indefinida
Nos sete céus
Onde te quis
Encontrar,
Mas sobraste
Como imagem...
..............
A que eu soube
Desenhar.

PERDI-TE A VOZ
E a tua
Melodia,
Quase tudo,
Meu amor...
...............
Ah, mas, no fim,
Não te perdia...
Ficou-me de ti
O sabor.

PORQUE JÁ ERAS
Imagem
Que me sobrou
Desse afecto
Que por ti
Sempre senti,
Construção
De arquitecto
Para nunca
Te perder
Desde o dia
Em que te vi.

E VOLTEI
(Eu volto sempre),
É desejo
De te ver,
Dar-te corpo
Nas palavras
Com que te quero
Dizer
Ainda que
Do poema
E dos céus
Do meu afecto
Acabe por
Te perder.

AGORA, DESENHO-TE
Com palavras e
Com cores,
Com paisagens
Que tenho dentro
De mim,
Com rostos,
Com aromas
E flores
Deste bendito
Jardim,
Um passeio
Com pavões,
Uma delicada
Utopia,
Gritos de alma,
Emoções..
...............
Pra te recriar
Com magia
E contigo
Caminhar
No alto
Da fantasia
Onde vive
Essa imagem
Que desejo
Encontrar.

VOO, POIS,
Com uma rosa,
Vestido como
Arcanjo,
Pra te ver
Ali ao perto,
Olhos negros,
Cintilantes,
Mas um pouco fugidios
Ao jogo da sedução
Numa noite
De luar...
............
Ou talvez
De perdição.

É UMA ROSA
De brancura
Transparente
Pra que sintas
Lá bem alto
O aroma
Desta minha fantasia.
Talvez assim
Te encontre
Envolta na neblina
Que nunca
Se dissipou
(Mas agora
Cristalina)
Desde aquele
Incerto dia
Em que o nosso
Olhar se cruzou.
MagiaPublicado1706_2022Rec

“Magia”. Detalhe

Artigo

O REGRESSO DA POLÍTICA

E não pelas melhores razões

João de Almeida Santos

Noite0905

“S/Título”. JAS. 06-2022

AS RECENTES ELEIÇÕES FRANCESAS dão que pensar. Os extremos ganharam uma força que é necessário tomar em consideração. Ficaram, juntos, a 15 mandatos (231) de distância do Ensemble presidencial (246). Serão os Republicanos a fazer a diferença, enquanto força política charneira (64), em condições de garantirem a maioria absoluta de, pelo menos, 289 mandatos.  Os clássicos partidos da alternância perderam a centralidade e o PSF diluiu-se na liderança de Jean-Luc Mélenchon, para não desaparecer, depois do desastre da Anne Hidalgo. Temos, portanto, duas novidades preocupantes, que se seguem à novidade Macron, de 2017 e, agora, redimensionada, de 2022: abstenção a 53,77% e posições radicais de dimensão quase igual à do vencedor.  Em Espanha, a disputa trava-se entre o PSOE e o PP, estando (na média das sondagens de 2021-2022 e até 30.05), separados por 1,2%  (25,2% contra 24%), tendo, entretanto, o PP ganho as eleições da Andaluzia por maioria absoluta, já com a liderança de Alberto Núñez Feijóo. Mas há que sublinhar que a extrema-direita de Santiago Abascal já exibe, na média das mesmas sondagens, uma intenção de voto de 21,6%. Uma dimensão quase igual à dos dois partidos da tradicional alternância, obtida em pouquíssimo tempo, enquanto o Unidas Podemos caía nas sondagens para 11,6%. Em Itália, os legítimos herdeiros do fascismo, Fratelli d’Italia (FdI), dirigidos por Giorgia Meloni, já são o primeiro partido italiano, na mais recente sondagem (SWG/La7, de 20.06 – 23,1%), sendo certo que há muito vem mantendo uma consistência eleitoral equivalente, tendo em pouco tempo superado a Lega, de Salvini (agora com 15,1%). Este último partido garante agora o terceiro lugar, muito à frente do M5S (com 12,5%), um Partido/Movimento em grave conflito interno, que pode levar a uma real fractura, e que tem perdido consensos muito significativos, ao ponto de ter já passado dos 32,6% para (nas sondagens) valores reduzidos a quase um terço do obtido nas eleições de 2018*.

Um panorama, portanto, perturbador para quem defende e valoriza a democracia representativa, o Estado Social e a liberdade. Sem dúvida, uma profunda mudança na geometria política destes três países. Estas mudanças não são conjunturais. Elas indiciam uma tendência que merece reflexão.

I.

NESTE PANORAMA, revela-se preocupante a dimensão que tem atingido a extrema-direita, em particular num período de enormes dificuldades, motivadas, primeiro, pela pandemia e, depois, pela invasão russa da Ucrânia, com as graves consequências económicas a que deram lugar e cuja dimensão e alcance ainda estão em curso. Mas a causa é mais profunda e vem de trás. Tem a ver com o esgotamento do establishment político (é significativa a taxa de abstenção nas legislativas de França) e tem vindo a provocar uma fragmentação generalizada dos sistemas de partidos, rompendo de vez com a lógica da alternância e com o bipolarismo partidário que se fora formando a partir do pós-guerra. Mas o regresso da política parece estar a ser protagonizado pela extrema-direita, contrapondo o discurso dos (seus) valores, não só à formas mais radicais de construtivismo social e ideológico, mas também à assepsia ideológica e axiológica que o establishment tem vindo a promover, expulsando a política dos processos de decisão em nome de uma visão tecnicista e puramente administrativa (para não dizer burocrática) dos processos sociais (por exemplo, a substituição do conceito de governo pelo de conceito de governança) e promovendo a generalização de entidades ditas independentes como garantia de eficiência, imparcialidade e competência nos processos decisionais, a que acresce, ainda, uma progressiva judicialização da política, como se a justiça pudesse absorver em si a dimensão conflitual que está naturalmente presente na dialéctica política. Este último aspecto muitas vezes assume mesmo a forma de Lawfare. (https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/24/artigo-23/).

II.

A EXTREMA-DIREITA tem dois inimigos claramente identificados: o liberalismo e os identitários “politicamente correctos”. Sobre o primeiro já aqui escrevi, ao centrar-me no ideólogo de Putin e no seu mestre Alain de Benoist, na sua crítica radical ao liberalismo, no artigo “RasPutin” (veja-se  https://joaodealmeidasantos.com/2022/05/17/artigo-69/);  sobre os segundos, bastaria referir o discurso tremendista, na forma e no conteúdo, de Giorgia Meloni, líder dos Fratelli d’Italia, em Marbella, recentemente, na campanha eleitoral da Andaluzia, num comício do VOX e da sua candidata a Presidente Macarena Olona. Vejamos o que, em tom  vigoroso, ela disse: sim, à família natural, à identidade sexual, a fronteiras seguras, à pátria, à soberania dos povos, à universalidade da cruz, ao trabalho para os nossos cidadãos, à cultura da vida… e não à imigração massiva, à cultura da morte, aos burocratas de Bruxelas, aos lobbies LGTB, à ideologia de género e à grande finança internacional. Tudo temas que, bem explicados e desenvolvidos, identificam muito bem a ideologia da força política que lidera e explicam a razão do sucesso eleitoral destes partidos. São temas delicados e de fundo, mas sobre os quais defendem posições muito claras. Mas, no essencial, é de sublinhar, por um lado, o seu combate vigoroso contra os intérpretes cansados e já pouco inspirados da matriz liberal da nossa civilização (um combate, de resto, antigo, mas agora travado com redobrada energia, depois do esgotamento do establishment que o tem vindo a interpretar) e, por outro, o combate ao “politicamente correcto” e às doutrinas identitárias, embora também elas sejam inimigas do universalismo liberal. É claro que há os temas do soberanismo, da imigração e dos valores tradicionais da tradição católica mais ortodoxa, mas no centro do combate actual são aqueles os dois filões críticos que estão na ordem do dia: o esgotamento do sistema e o construtivismo social. Algo que deve preocupar todos os que se revêm na matriz liberal da nossa civilização e estão distantes das soluções promovidas pelos defensores das visões organicistas da política, sejam eles de esquerda ou de direita.

III.

AS PRÓXIMAS ELEIÇÕES em Itália e em Espanha serão em 2023. E se olharmos para as sondagens é muito provável que a extrema-direita de Giorgia Meloni e de Matteo Salvini sejam os grandes vencedores, sendo certo que o M5S está em processo de desagregação e que Forza Italia é o aliado natural das duas forças de extrema-direita, a Lega e FdI. Em Espanha, a tendência do PP de Feijóo é de subida, se tomarmos em consideração a histórica vitória por maioria absoluta do PP na Andaluzia, já sob a sua liderança, embora também um pouco à custa da dinâmica crescente do VOX de Abascal, que, apesar de tudo, conseguiu 14 mandatos em 109, mais dois do que conseguira em 2018. Mas a verdade é que a média das sondagens recentemente realizadas lhe atribui uma força eleitoral de quase 22%, a cerca de dois pontos do PP. O que parece estar a desenhar-se é, pois, o regresso da direita ao poder. Em França, é o que se sabe, com o Rassemblement National a subir de 8 deputados para 89, passando a beneficiar de uma presença política, territorial e pública que nunca tinha conseguido. E, conhecendo-se as relações que a extrema-direita mantém com Putin (sobretudo Marine Le Pen e Matteo Salvini, para não falar de Viktor Orbán), este reforço político não augura nada de bom. De resto, toda a extrema-direita é soberanista, pouco amiga da União Europeia e das suas políticas e da democracia liberal. A guerra na Ucrânia torna esta tendência ainda mais sensível e perigosa.

IV.

O QUE ESTÁ A ACONTECER é uma aceleração da dinâmica política, provocada, por um lado, pela pandemia, ao exigir dos Estados e da União uma intervenção em força junto das sociedades europeias, reforçando a importância estratégica do chamado modelo social europeu para dar resposta a fenómenos desta dimensão; por outro, pela activação da lógica da guerra convencional e de uma certa ideia de política que parecia estar adormecida na prática e na linguagem dos países mais desenvolvidos. O regresso da política parece estar associado à restauração da dialéctica amigo-inimigo, de schmittiana memória, onde o poder de declarar guerra e de aniquilar o inimigo é a mais alta marca distintiva da política. É nesta visão que se filia o senhor Putin, sobrepondo-a às conquistas civilizacionais e aos mais elementares direitos humanos, plasmados nas cartas de direitos internacionais e acolhidos pela ONU. Ao mesmo tempo, os sistemas políticos clássicos têm estado a sofrer fortes ajustamentos internos que, todavia, ainda não conheceram respostas adequadas aos verdadeiros desafios que a mudança está a colocar nem recuperaram a nobreza ideal da política que o tempo e o frio pragmatismo dos negócios foram progressivamente esbatendo. Mas é a extrema-direita que está a pôr na agenda e no discurso político os clássicos valores que, de um modo ou de outro, se inscrevem na tradição e apontam às grandes clivagens da existência humana, exibindo um potencial de mobilização que, não o recusando, está muito para além do mero pragmatismo programático. Valores que se intensificam sobretudo nos períodos de crise.

V.

COMO ONTEM UM MEU AMIGO ME DIZIA, o mundo está muito pouco recomendável e pouco convidativo para viajar com a fantasia social em busca de uma vida melhor, mais parecendo que o desejo se limite a parar na fronteira do abismo – que se adentra cada vez mais no território das nossas vidas – com o único objectivo de o evitar.

  • A cisão já aconteceu, na passada Terça-Feira, com Di Maio, um dos seus fundadores e ex-líder, a abandonar o M5S, levando consigo um número consistente de deputados e senadores. O que parece estar a delinear-se é uma coligação centrista que aglomere pequenas formações (com Matteo Renzi, Carlo Calenda, Luigi di Maio, Mara Carfagna, Giovanni Toti e Luigi Brugnaro) para as próximas eleições de 2023. A Itália no seu melhor. Entretanto, o Garante do M5S, Beppe Grillo, mantém-se afastado desta gravíssima ruptura, deixando a Giuseppe Conte a missão de impedir o desaparecimento do Movimento. Uma coisa é certa: esta experiência inovadora de um partido digital acabou. #Jas@06-2022

Noite0905Rec

Poesia-Pintura

MEMÓRIA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração - "Magia"
Original de minha autoria
Junho de 2022

MagiaPublicado1706_2022

“Magia”. Jas. 06-2022

POEMA  – “MEMÓRIA”

FUI AO BAÚ
Das memórias
De mais intenso
Afecto,
Voando em
Fantasia,
Pra te escrever
Um poema
Com arte
De vate inspirado
Por poética
Magia.

ENCONTREI
Teu rosto
Triste
(Mas cativante)
E quis enganar
A saudade
Num jogo
De sedução
Como se fosses
A deusa
Das cidades
Que invento
Em cada minha
Canção.

NESSE DIA
Em que te vi
Na fita
Da minha memória
Quis trazer-te
Ao luminoso
Mundo da arte,
Caminho
De liberdade,
Utopia de quem
Parte
Em busca
Do tempo perdido.

ERA TRISTE,
Mas era belo
Esse teu rosto.
Desenhei-o
Em tensão,
Cravei palavras
E cores
No meu peito,
Lentamente,
Com a mão,
Centrei-as
No lado esquerdo,
Onde bate
A emoção,
Mas quando
Me olhei
Ao espelho...
............
O que vi foi
Solidão.

PEDI AJUDA
Ao vento
Que levasse
O meu poema
Até à tua janela
Pra te lembrar
O que sinto...
................
Que ele pousasse
Nela
Como se fosse
O destino
A bater
À tua porta...

E OUVISTE
A melodia
Que soava
Para ti
Pois logo vieste
À janela
A recolher
As palavras
Que o vento
Te levou
E eu senti
Que renascia
Na fita
Da tua memória...
..............
Quando o vento
Regressou.

MagiaPublicado1706_2022Rec

“Magia”. Detalhe

Ensaio

AS INDÚSTRIAS CULTURAIS E O BORDADO DA MINHA AVÓ

João de Almeida Santos

AMontanhaEncantada2Final092020

“A Montanha Encantada”. Pintura Digital. JAS. 06.-2022

NESTE ENSAIO procuro fazer uma reflexão sobre a mudança de paradigma da cultura de massas no contexto da rede e da passagem a um modelo relacional que gera novas formas de acesso, de produção e de difusão da cultura. A mudança na natureza do espaço público e o poder das novas tecnologias (TICs) são dois elementos essenciais das mudanças em curso.

A AURA

FIXEMO-NOS numa formulação de Theodor Adorno e Max Horkheimer na «Dialéctica do Iluminismo», de 1944:

«os produtos da indústria cultural estão preparados para serem consumidos rapidamente mesmo num estado de distracção» (1997: 134; itálico meu).

Definição concisa e clara, esta, onde os produtos culturais equivalem a produtos perecíveis e de consumo rápido. Ou seja, construídos segundo a lógica e a temporalidade dos meios (electrónicos) a que são desde a origem destinados. Produtos de tipo “prêt-à-porter”, concebidos à medida do consumidor.

Indústria cultural equivale a cultura de massas. Trata-se de produtos de larga difusão. Mas não é a possibilidade tecnológica da sua difusão em larga escala que faz deles produtos da indústria cultural ou produtos próprios da cultura de massas. Não é a sua reprodutibilidade técnica que determina a sua natureza. Até porque, como diz Walter Benjamin, «em linha de princípio, a obra de arte sempre foi reprodutível» (1966: 20). A reprodutibilidade técnica vale, hoje, quer para a «cultura de massas» quer para a «cultura de elite». E, todavia, a reprodução industrial da obra de arte, por um lado, retira-lhe a «aura», a unicidade, a dimensão de culto: «o hic et nunc do original constitui o conceito da sua autenticidade», diz Benjamin (1966: 22). Por outro lado, ela promove uma sensibilidade igualitária na fruição. Acaba uma relação intensiva e começa uma relação extensiva. De uma relação única passa-se a uma relação «genérica» com a obra de arte. Como dizem Adorno e Horkheimer: «a indústria cultural realizou, com perfídia, o homem como ser genérico», como exemplar fungível da espécie, que pode ser substituído por qualquer outro (1997: 156). Isto é, muda profundamente a sociologia, o modo de fruição e a própria função da arte. A função de culto da obra de arte única desaparece. E, consequentemente, neste processo, muda a sua própria natureza. Como se emergisse uma segunda natureza da arte ou da cultura: ela passa a identificar-se não só com o seu valor específico de uso, mas também, e sobretudo, com o seu valor de troca. Tudo numa dimensão individual. A reprodução industrial das obras de arte – do cinema à pintura, à música – gerou um novo tipo de relação com a arte: de uma relação de natureza comunitária passou-se a uma relação de natureza individual. A «separação» orgânica, que estruturava a relação do público com a obra de arte (público/palco, público/museu, público/biblioteca), deixou de funcionar como função constituinte da própria relação estética, uma vez que a arte passou a estar directamente disponível sob forma instrumental, podendo ser fruída intimamente, fora dos espaço sociais. E, todavia, possuindo as mesmas características de reprodutibilidade, nem todos os produtos da indústria cultural podem ser designados como produtos de cultura de massas: canções de Madonna ou de Sting não são comparáveis às obras de Igor Stravinsky ou de John Cage. Uma qualquer telenovela não pode ser comparada a «Blow-Up», de Antonioni. Isto é, sendo todas elas tecnicamente reprodutíveis em CDs ou em DVDs, não são igualmente acessíveis ou descodificáveis do ponto de vista estético. Se regressasse, então, à fórmula de Adorno e a aplicasse a estes casos, diria que enquanto os primeiros podem ser consumidos em “estado de distracção”, os segundos não podem. Mais do que a questão da «aura», que hoje pode ser re-editada sob forma de rituais idolátricos de consumo de massas, e em registo comunitário, é a questão da capacidade de acesso às formas culturais ou artísticas que constitui a discriminante fundamental, para além, claro, da própria concepção em função do consumidor. Mas, sendo assim, a questão não se põe só do lado da oferta, do tipo dos produtos culturais exibidos – mais complexos ou mais simples -, mas põe-se também do lado da procura, isto é, do lado das capacidades cognitivas do consumidor de produtos culturais. No plano da oferta, não se poderá criticar radicalmente os grandes meios de comunicação de massas por não se disporem a oferecer produtos de alguma complexidade conceptual ou estética, já que, não encontrando resposta do lado do consumidor, acabarão por ser punidos economicamente pelo mercado, pondo em causa a sua própria sobrevivência. No plano da procura, a crítica terá de ser implacável com quem, tendo responsabilidades públicas, não promove a educação estética e cultural do cidadão, não o preparando para esta nova fase da democratização generalizada dos produtos culturais (de elite e de massas), Investindo numa espécie de literacia estética ou cultural. Isto é, o problema que se identifica como «círculo vicioso» na relação entre oferta e procura nos meios de comunicação de massas – dar ao público aquilo que o público quer – tem certamente algumas raízes no desempenho excessivamente mercantil e de curto prazo dos grandes meios de comunicação de massas, mas tem sobretudo raízes profundas na ausência de educação estética generalizada nas sociedades modernas, em contradição com a abundância e a disponibilidade generalizada de produtos da indústria cultural. Ou seja, é escassa uma cultura política que leve a sério a exigência de educação estética do cidadão, nos exactos termos em que a formulou o Schiller dessas geniais «Cartas sobre a educação estética do homem», ao ponto de ter proposto essa estranha figura do Estado Estético como a sua própria utopia democrática (Santos, 1999: 52-51). Mas uma política de futuro não deveria promover e generalizar – hoje, na época da reprodutibilidade técnica de todas as formas culturais – a educação estética dos cidadãos para que pudesse induzir um verdadeiro «círculo virtuoso» entre o que o público quer e o muito que se lhe pode dar?

O FIM DA FRONTEIRA ENTRE
AUTOR, ACTOR E ESPECTADOR

Num interessante artigo em torno de um livro de Andrew Keen sobre a Rede («Está a Internet a matar a nossa cultura?», «Público», 08.09.07), há uns bons anos, José Pacheco Pereira fez uma exaustiva descrição do «caos» da rede, reconhecendo que a «horda» dos internautas está, de facto, a ameaçar a cultura (a alta cultura), mas acabou por reconhecer que se trata, apesar de tudo, de uma tecnologia que produziu milagres para quem, antes, se via impedido de qualquer aproximação imediata às áreas de consumo cultural que a rede hoje faculta. Falou mesmo da revolução social que deu origem à chamada civilização de massas. E concluiu dizendo que, mesmo que a rede assuste as elites culturais, mesmo assim, há que valorizar esta imensa abertura ao universo espiritual onde habita a cultura.
Ora aqui está. A questão agora já não se põe só ao nível dos meios de comunicação de massas convencionais, que inundam cada vez mais o espaço público com produtos das indústrias culturais, que já representam uma fatia consistente dos PIBs nacionais. Põe-se também, e de forma mais radical, ou não, ao nível da Rede, onde os filtros – de qualidade, mas sobretudo de acesso quer na óptica do consumo quer na óptica da produção – desapareceram completamente. É por isso que, de algum modo, se pode falar de «caos» da rede. Ou melhor, de emergência do indivíduo, como receptor e como produtor, num espaço público que deixou de ser ordenado e controlado pelos tradicionais «gatekeepers», esses guardiões do templo público, senhores da palavra e do silêncio, apóstolos das indústrias culturais. Eu diria mesmo que a rede quebrou esse feitiço da comunicação de massas onde cada um equivalia a todos e onde cada indivíduo mais não era que um ente genérico, um simples exemplo do género. Radicalizando: a rede tornou compatível a afirmação individual com a cultura de massas. O Castells, de resto, traduziu muito bem esta combinação num conceito: «mass self-communication».
Mas eu diria mais: isto não se verifica só no domínio da cultura. Verifica-se também na política ou na economia. Quando se fala de civilização pós-industrial, de civilização pós-moderna ou de democracia pós-representativa está-se a falar de uma ruptura de paradigma. Trata-se de uma mudança epocal. A rede veio instalar definitivamente a ruptura nos campos já extremados da democracia representativa, da comunicação, da cultura. Adorno e Horkheimer, de facto, já nos anos ‘40 criticavam as «indústrias culturais» precisamente em nome da autêntica cultura, não alienada, numa visão crítica do modo de produção simbólico capitalista e dos seus produtos culturais de plástico. Como se se tratasse de autênticos arremedos culturais. Hoje, essa confecção capitalista e instrumental de produtos culturais de plástico, bem diferentes dos produtos culturais com «aura», passou a estar sujeita ao escrutínio da rede. Na rede, de acesso universal – à informação e à difusão de informação -, misturam-se permanentemente produtos de «indústria cultural» com produtos com «aura», num universo algo caótico, num intercâmbio «simbiótico» sem fronteiras nem referências. Se as «indústrias culturais» eram difundidas com ordem, referências e fronteiras, com a lógica do «broadcasting», a partir de centros de produção com dimensão empresarial ou mesmo institucional, agora, com a rede, vive-se no reino do aleatório, do casual, onde cada um é um e não exemplo do “género”. Manuel Castells propôs, como disse, um interessante conceito que procura traduzir funcionalmente a nova realidade: «mass self-communication», comunicação individual de massas (Castells, 2007). Ou o reposicionamento do indivíduo na sociedade de massas que rompe com a unidireccionalidade hierarquicamente organizada da comunicação.
Do que se trata é do revolucionamento do sistema social em todas as frentes. E, por isso, também na frente cultural e científica. É que as novas tecnologias são, cada vez mais, importantes próteses cognitivas e instrumentais do homem. E quando ultrapassam o plano individual ou de elite, massificando-se, elas acabam por induzir efeitos sociais em grande escala e de grande alcance histórico. Aconteceu com a imprensa, com a robótica industrial, com os computadores, com a telefonia móvel, com a rede. Quem é que não compreendeu já a força do telemóvel na reconfiguração das relações sociais e humanas? O telemóvel tornou-se um bem essencial primário de que ninguém hoje pode prescindir. A rede alastra a um ritmo impressionante. As redes sociais já assustam os poderes tradicionais pelo seu potencial libertador, apesar do perigo de evolução para uma automatizada “sociedade algorítmica” centrada na inteligência artificial.
Se o que está a mudar, em todas as frentes, é toda a sociedade, o grande problema é que ainda não há respostas sobre como reconfigurar a nova sociedade emergente em função das enormes mutações sociais que o uso massificado das tecnologias está a provocar, sobre como reorientar os mecanismos sociais de que dispomos para canalizar o imenso magma social que se está a mover a uma velocidade antes inimaginável. E se isto é necessário na cultura, não o é menos na política ou na economia. É ver os debates que estão a ocorrer um pouco por todo o lado sobre a democracia pós-representativa. Com efeito, a resposta ainda só reside na ideia de «pós-qualquer coisa».
Na verdade, a rede não está a matar a nossa cultura. Está a democratizá-la, com todas as consequências de nivelamento social que isso tem sobre as práticas culturais difusas, mas também com o aprofundamento multidireccional da participação, da recepção à emissão: no acesso, na produção e na difusão cultural. E esta democratização é, de facto, de nível superior à da chamada comunicação de massas, por mais que barafustem os apóstolos do “gatekeeping”. Uma mudança na própria ideia de cultura. Walter Benjamin, em finais dos anos ’30, já antevira esta revolução cultural em «Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica»: o fim da «aura», a emergência do anónimo no espaço cultural e a ruptura da fronteira entre autor, actor e espectador. Uma produtiva confusão de géneros que conviria assumir, desenvolver e programar.
É verdade. Hoje todos têm acesso, sem sair de casa, a uma biblioteca ou a uma mediateca de dimensão mundial. Todos estamos, de um modo ou de outro, na rede, como receptores, mas também como emissores, autores e actores. Mas, claro, é sempre preciso saber ler, ver, ouvir… e fazer.

«CAHIER DE DOLÉANCES»

A verdade é que, hoje, este tema requer muita reflexão. E, todavia, ele já foi objecto de grandes debates. Existe mesmo uma literatura muito marcada sobre ele. Lembram-se do velho livro de Umberto Eco, «Apocalípticos e Integrados», de 1964, sobre comunicação e cultura de massas? Ele balizou o debate futuro. Um livro de Rodríguez Ferrándiz, de 2001, até tem o curioso título de «Apocalypse Show» e procura delimitar os apocalípticos dos integrados, os críticos e os apologistas da cultura de massas. Mas a discussão já vem de muito mais longe. De 1944, desse tempo em que Adorno e Horkheimer, na «Dialéctica do Iluminismo», verberavam as «indústrias culturais», criticavam a chamada cultura de massas, as indústrias do «amusement». Umberto Eco estabeleceria, mais tarde, nos anos sessenta, um longo «cahier de doléances» sobre essa cultura e seus «mass media»:

  1. promovem «medianias de gosto»;
  2. promovem culturas de tipo homogéneo;
  3. dirigem-se a um público que sofre a cultura de massas (sem se dar conta do seu próprio papel passivo);
  4. seguem o gosto dominante (sem o renovar);
  5. provocam a emoção em vez de a representar;
  6. submetem-se à lei da oferta e da procura;
  7. dão ao público o que ele quer ou, pior, sugerem ao público o que ele deve desejar;
  8. funcionam com fórmulas simplificadas ou com «condensados culturais»;
  9. nivelam tudo (até os produtos culturais superiores);
  10. promovem uma visão passiva e acrítica do mundo;
  11. preocupam-se só com o presente e entorpecem a consciência histórica;
  12. são funcionais ao «amusement» e, por isso, solicitam mais uma fruição epidérmica do que um autêntico envolvimento estético;
  13. tendem a impor símbolos e mitos falsamente universais;
  14. trabalham sobre as opiniões comuns e, por isso, exercem uma acção socialmente conservadora;
  15. promovem tendencialmente modelos oficiais;
  16. e, finalmente, desempenham a função de reprodutores simbólicos do sistema.

Adorno e Horkheimer, como vimos, sintetizam bem tudo isto: «os produtos da indústria cultural estão preparados para serem consumidos rapidamente mesmo num estado de distracção». Não é, pois, difícil estar de acordo com esta fenomenologia crítica dos «mass media» e da cultura de massas. Se olharmos para a televisão e para os tablóides com algum sentido crítico neles reconheceremos a maior parte das características enunciadas por Eco, Adorno e Horkheimer. E a verdade é que a esquerda cultural sempre tendeu a colocar-se deste lado crítico. Numa óptica «apocalíptica», ou melhor, compreensivelmente não integrada. Ou, como alguns querem, numa óptica inconfessadamente aristocrática. Pelo contrário, os integrados ou os apologistas da cultura de massas não vêem mal no que os apocalíticos criticam: o povo sempre amou o «panem et circenses»; a massificação veio atrair aos bens culturais quem nunca teve acesso a eles; a homogeneização do gosto significa unificação de sensibilidades nacionais e eliminação de diferenças de casta; os «mass media» não são conservadores porque introduziram novas linguagens e novos estilos, etc., etc. (veja-se Abruzzese/Miconi: 1999). Numa palavra, conservadores são os que não entendem que a cultura atingiu uma poderosa dimensão industrial e que, por isso, tendo, dela, os defeitos, também tem as suas virtudes. O que se pode e deve fazer é uma crítica que distinga o que neles se revela como imperativo histórico e o que neles se revela como simplesmente instrumental e manipulável.
Um politólogo italiano de renome, Giovanni Sartori, escreveu um livro fortemente crítico da televisão: «Homo videns» (Sartori, 2000). Muitas das características do «Cahier de Doléances» de Eco estão lá. Mas está lá, sobretudo, uma ideia central: a televisão é emocionalmente forte e cognitivamente fraca. A assunção realística desta ideia poderá ajudar-nos a colocar devidamente o problema da natureza e da função da televisão e da própria cultura de massas. A delimitar as suas debilidades (cognitivas) e a sua força (emocional). E, assim, a assumirmos uma posição realística sobre o assunto. É claro que não é fácil deixar de reconhecer a justeza da fenomenologia crítica de tipo apocalíptico, sobretudo depois da leitura de obras demolidoras sobre a televisão, como, por exemplo, a de Neil Postman, «Amusing ourselves to death» (1985) ou a de Jerry Mander, «Four arguments for the elimination of television» (1977). São argumentações fortes. Eu próprio publiquei, em 2000, um ensaio filosófico e crítico sobre a televisão, que aprofundava a leitura de Sartori e que foi reeditado, com uma nova introdução, recentemente: Homo Zappiens (Lisboa, Parsifal, 2019).
E, todavia, enquanto os «mass media» se constituem hoje como um dos mais importantes subsistemas das sociedades modernas, a cultura de massas dá novos passos para produzir um ulterior nivelamento, constituindo-se como poderosa força material capaz de mover o mundo. Mas, se é assim, o que devemos fazer é tentar compreender a razão de tanto poder, sem cairmos, todavia, na velha tentação de tudo resumir a «circo», que, juntamente com o «pão», continue a ser o verdadeiro alimento do povo: «panem et circenses». A rede tem, neste processo, um importante papel como potente democratizadora da cultura (individualizada) de massas. Sim, mas poderá também introduzir novas variáveis que rompam com o velho paradigma, quer no plano do acesso e da difusão, mas também (ou sobretudo) no plano da produção e da autoria.

O BORDADO DA MINHA AVÓ

Estamos, de facto, a assistir ao triunfo incontestável de indústrias culturais cada vez mais fortemente induzidas pela revolução tecnológica. E, como diziam Adorno e Horkheimer, em 1944, desta irrupção não resultou o caos, mas sim uma verdadeira ordem «cultural», uma autêntica homogeneização das formas culturais:

«a tese sociológica de que a perda de suporte representada pela religião objectiva, a dissolução dos últimos resíduos da sociedade pré-capitalista, a crescente diferenciação técnica e social e a tendência para a especialização tenham dado lugar a um caos cultural é desmentida todos os dias pelos factos. A civilização actual confere a todos os seus produtos um aspecto de semelhança. (…) A unidade visível e manifesta entre macrocosmos e microcosmos ilustra do modo mais eficaz, aos olhos dos homens, o esquema da sua cultura, que é a falsa identidade entre universal e particular» (Horkheimer/Adorno, 1997: 126-127; itálico meu).

Palavras escritas nos anos quarenta. Benjamin, alguns anos antes, em finais dos anos trinta, falava, como vimos, do fim da aura da obra de arte, com a emergência da possibilidade da sua reprodutibilidade técnica e consequente massificação, com perda de singularidade. A outra face desta revolução reside na emergência da centralidade de um público massificado que rompeu com o espaço restrito das salas de espectáculos, superando fronteiras, diluindo a fruição e levando-a até ao mais íntimo dos espaços privados. Ou seja, a cultura já não pode ser concebida, por um lado, como puro processo subjectivo de produção estética, onde a componente instrumental é, de algum modo, externa à concepção estética, já que a tecnologia passou a integrar o próprio processo criativo de forma muitas vezes dominante e avassaladora, e, por outro lado, como espaço público de fruição comunitária, já que a cultura está hoje quase integralmente disponível para pura e simples fruição íntima, em espaço integralmente privado. Diria mesmo individualizado, com a emergência das TICs e da Rede. Por outro lado, a própria noção de cultura dilatou-se, como nos está a sugerir a própria expressão «indústria cultural», envolvendo múltiplas formas de produção simbólica que até há bem pouco tempo eram consideradas como mero entretenimento. O debate sobre as formas de produção televisiva, a defesa da televisão como forma de cultura popular contra um suposto criticismo de esquerda que abominaria o próprio sistema de produção televisivo, enquanto forma inferior de produção simbólica, é bem elucidativo do estado da arte. Nem sequer é necessário lembrar a vastíssima reflexão de Gramsci – mas sob um registo contrário, realista e anti-formalista, às formas então dominantes – sobre as formas de cultura popular e a sua extrema valorização da dimensão dionisíaca da vida na tradição teatral siciliana – veja-se a importância atribuída a Liolà, de Pirandello – para enfatizar a componente popular das formas de produção cultural, sim, mas contra o convencionalismo abstracto e decadente das formas culturais dominantes. Desde sempre a dimensão popular da cultura foi fortemente valorizada, especialmente pela esquerda cultural. Mas a verdade é que, hoje, esta componente tem vindo a assumir outras dimensões que não as tradicionais. E isso tem a ver com a ruptura do paradigma cultural tradicional, fruto da revolução simbólica. Que dizer da Pop Music? E da Pop Art? Das caixas de tomate de Andy Wharol? E da publicidade da Benetton, ao tempo da responsabilidade do grande fotógrafo Oliviero Toscani? E do desviacionismo? A verdade é que a dicotomia cultura popular/cultura erudita começa a fazer cada vez menos sentido, já que o suporte em que é possível fruir uma ou outra pode ser o mesmo. É, de facto, a explosão e a disseminação das várias formas simbólicas que gera uma espécie de pós-moderna confusão de géneros e que anula a velha dicotomia. Mas, afinal, quanto de música popular  já encontramos nas mais variadas composições do genial Mozart? E quanto de ruídos da vida quotidiana integram importantes peças da música contemporânea? A velha dicotomia soa-me a desfasamento temporal e, sobretudo, a enclausuramento especialístico nas paredes invisíveis do snobismo intelectual. Que efeitos estéticos podem resultar, por exemplo, da captação de imagens da transumância nas serranias? Ou melhor: onde reside a elaboração estética da transumância? Não será na captação, por uma câmara, dessas imagens perdidas no rolar cíclico da vida em meio rural?
O velho Gramsci gostava, de facto, daquele Liolà pirandelliano e siciliano que cantava a simplicidade da vida, afundando a palavra e o ritmo na força dos sentidos e na exuberância da natureza e valorizando as coisas simples e básicas da vida porque era nelas que ele via as sementes do futuro que haveriam de romper com o formalismo arcaico burguês e o ritualismo paralisante das tradições retrógradas.
Afinal, não passaram assim tantos anos desde o momento em que eu próprio emoldurei um lindíssimo bordado que a minha avó Josefina, mulher simples da aldeia, fez em homenagem ao amor da sua vida, o meu avô Joaquim Pinto. Está lá exposto na minha galeria pessoal, a parede da minha casa, em Famalicão da Serra. E já não é um simples fragmento de memória afectiva… É uma obra de arte. Um objecto cultural. Com aura. Um regresso ao passado sob a forma de exaltação estética, que, sim, pode, agora, ser disponibilizado nas redes sociais, tendo como autora Josefina Valério, a minha querida Avó (que perdi em 1957).

FINALMENTE

Mas, para terminar, devo sublinhar o outro aspecto que emergiu com o aparecimento e o aprofundamento da nossa relação com a rede. E esse aspecto tem a ver com essa dimensão a que se referiam Adorno e Horkheimer, mas também Umberto Eco, ou seja, com a necessidade de ruptura com a comunicação de massas, uniformizadora e “genérica”, pela introdução de uma dimensão individual activa no processo que, pelo menos, perturbe essa homogeneização universal das consciências e da recepção cognitiva e sensorial dos produtos culturais, na medida em que hoje já é possível ao indivíduo intervir sobre o espaço público, como “mass self-communication”, até como produtor, além de agir como receptor activo e dotado de um ilimitado poder de selecção dos conteúdos. Bem sei que será exagerado falar de regresso da “aura”, agora através da singularidade que nos é devolvida pela rede, mas sempre se poderá falar de ruptura dessa fúria homogeneizadora dos mass media, de redução do fruidor cultural a ente genérico e de imposição arbitrária do valor de troca como constitunte decisivo do produto cultural. Bem sei que já estamos perante uma forte interferência dos processos algorítmicos, um gigantesco e automatizado poder de classificação e arrumação em tipologias cada vez mais individualizadas, mas nem por isso a nova situação deixa de ser profundamente diferente da que há não muito tempo tínhamos perante nós: broadcasting, relação unidireccional, vertical e hierarquizada no processo comunicativo. A rede, por mais que se diga, veio dar à singularidade um protagonismo que lhe estava vedado no anterior modo de produção comunicacional. E isto tem enormes repercussões no universo dos produtos culturais.

REFERÊNCIAS

ABRUZZESE, Alberto e MICONI, Andrea (1999). Zapping. Napoli: Liguori.         BENJAMIN, Walter [1937] (1966). L’opera d’arte nell’epoca della sua reproducibilità técnica. Torino: Einaudi.
CASTELLS, Manuel (2007). «Communication, Power and Counter-power in the Network Society», in «International Journal of Communication, Vol. 1.
ECO, Umberto (1999). Apocalittici e Integrati. Milano: Bompiani.
FERRÁNDIZ, R. R. (2001). Apocalypse Show. Intelectuales, televisión y fín de milenio. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva.
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor [1944] 1997. Dialettica dell’Illuminismo. Torino: Einaudi.
MANDER, Jerry [1977] 1999. Quatro argumentos para acabar com a televisão. Lisboa: Antígona.
POSTMAN, Neil [1985] 2002. Divertirse da morire. Il discorso pubblico nell’era dello spettacolo. Venezia: Marsilio.
SANTOS, João de Almeida (1999) Os Intelectuais e o Poder. Lisboa: Fenda.           SANTOS, João de Almeida (2019). Homo Zappiens. Lisboa: Parsifal.
SARTORI, Giovanni [1997] 2000. Homo Videns. Televisione e Post-Pensiero. Roma-Bari: Laterza.

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“A Montanha Encantada”. Detalhe.

Poesia-Pintura

O BENFEITOR
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Um Homem das Arábias”.
Original de minha autoria 
para este poema. Junho de 2022.

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“Um Homem das Arábias”. JAS. 06-2022

POEMA – “O BENFEITOR”

COMO TE VEJO,
Ó benfeitor,
Filho dilecto
 Da tua Ilha,
Nosso Jardim.
Há mil quadros,
Rara beleza,
Espelho do teu
Amor,
Todos pra mim,
Aqui tão perto,
À minha beira.
Sinto-me rico
De tanta cor
No ouro luzente 
Das molduras  
De Madeira.

COMO TE SINTO,
Meu benfeitor,
Sempre de negro,
Artista grande
Que nem Dali,
Noites d’Inverno
Onde o preto
É a beleza
E o dinheiro
(Que foi pra ti)
O meu Inferno.

VERMELHO E NEGRO,
Como Stendhal
Ou Julião
(Tens o Sarmento...)
A palpitar
Do coração
(Sem um lamento).

A TUA VIDA
É um Natal,
Com tantas prendas
Dos teus banqueiros,
Mas a minha
É tempestade
Com aguaceiros,
Sempre a pagar...
..........
É natural.

DA ARTE TU ÉS
O Mago,
A colecção 
Vai aumentar,
Banqueiro dá,
Finge 
Qu'empresta,
É aos milhões,
Mas logo chega 
O meu castigo...
..............
É sempre assim,
Sempre a cobrar
(Põe-me mendigo)
O que pra ti
São só tostões.

EU GOSTO D’ARTE
Da que eu faço,
Sem a vender
Nem a comprar,
Mas vou ao banco
(Vou muitas vezes),
Acerto o passo,
Eu tenho contas
Para pagar.

O MEU PAÍS
É muito culto,
Jeff Koons
Lucio Fontana,
Henri Michaux,
Mas no balcão
(Não sei porquê)
O meu banqueiro
É um sacana...
.................
Foi sempre assim,
Vem do avô.

ANSELM KIEFER,
Gerhard Richter,
Frank Stella...
É muito bom!
Pois tem de ser.
Se o banqueiro
Olha pra ela
(Prà colecção),
Fica pasmado
Com tanta arte
E dá-te tudo
Por gratidão.

E DUBUFFET,
Não gostas dele,
Ó fruidor?
Piero Manzoni,
George Segal,
Chamberlain,
Morris Louis...
É a beleza
Da colecção
Feita pra ti.
Não percebeste?
Chegas e vês
Gostas e pagas,
És devedor.
Não rogues, pois,
Crente da arte,
As tuas pragas
Ao benfeitor.

GOSTO DE TI,
Da tua arte,
Ficou humana
A nossa banca...
Mas sem milhões.
Que nos importa?
Temos beleza,
Temos amor,
Temos as contas
Aos trambolhões,
Temos-te a ti,
Tão generoso...
.................
São os banqueiros
Os aldabrões.

MAS QUE M’IMPORTA,
Ó benfeitor,
Fizeste bem,
Mais uma vez,
Pois ajudaste
Os teus banqueiros...
..............
Tinham excesso
De liquidez.

GERALD LAING,
Alain Jacquet
Pauline Boty...
...............
Bem acertaste,
Ó benfeitor,
A liquidez
Ficou pra ti.

JAS_HomemdasArabias_062022Rec

Artigo

O POETA DEU-NOS MÚSICA

Ainda a propósito do Nobel atribuído a Bob Dylan

João de Almeida Santos

Azálea2022

“S/Título”. Jas. 06-2022

ONTEM, ENQUANTO PINTAVA, pus-me a ouvir “Mister Tambourine Man” e “Blowin’ In the Wind”, do Bob Dylan. Gosto de ouvir música enquanto pinto, não enquanto escrevo poesia. A escrita poética é mais sofrida do que a pintura, impondo um silêncio que esta não exige. A música deve brotar do poema, desprender-se suavemente da rítmica silenciosa das palavras escritas. Como se fosse uma pauta lida e trauteada em surdina. Mas essa vontade de ouvir Dylan levou-me a rever e a reescrever um texto que publiquei em Outubro de 2016 por ocasião do anúncio da atribuição do Nobel da Literatura ao poeta-músico e que aqui reproponho desenvolvido e com alterações substantivas.

HEY, MISTER TAMBOURINE MAN

O BOB DYLAN poeta-músico passa da surdina poética ao som explícito, instrumental e vocal. E é por isso que as pessoas o vêem assim, como músico. Ou melhor, o ouvem. A música de um poema que não está em primeiro plano. Por exemplo, a fruição dos que não sabem inglês e só percebem o que quer dizer “Hey, Mister Tambourine Man”, o título dessa belíssima canção que nos ficou no ouvido. Sim, poderíamos afirmar que se trata de “poesia para o ouvido”, como alguém disse. Dylan, um autor e diseur com especial sentido e poder musical.

Eu, quando jovem, até já sabia alguma coisa de inglês (aprendera no Liceu), mas, para mim, naquele tempo, o Dylan era só sons, música. Da melhor, mas só música. Revolucionária, mas só música. Do tempo desses extraordinários cantautores que agitavam as massas, sobretudo estudantis. Com música. Todos à esquerda. Revolucionários. Com música. É verdade que, nesse tempo, as letras contavam muito e eram “da pesada”, muito politizadas, de intervenção ou com uma intensa expressividade existencial. O pico desse tempo foi 1968. O lugar deputado: Paris. O mês: Maio.

Mas não era preciso conhecer a letra. A música bastava-se, além do contexto ambiental que funcionava como cenografia ou pano de fundo e também como difusa semântica.  Nem havia Internet com as traduções. Bastava o título e o cantautor. Ouvi muito Dylan, gostava, mas nunca li nem fui induzido a descodificar a letra das suas canções. Só mais tarde é que, movido pelo debate, as fui ler. Graças ao Nobel. Muito belas, confesso. Em particular, as de “Mister Tambourine Man”, “Blowin’ In the Wind” ou “Like a Rolling Stone”. Quem nunca se sentiu perdido nas mil veredas da existência e precisou de uma canção para sonhar, de um “Tambourine Man”? Quem não se sente, tantas vezes, a caminhar sem rumo por uma “velha rua deserta demasiado morta para sonhar” e a precisar de ouvir um Bob Dylan? Sim, o Dylan ajudava e ajuda – “Hey, Mr Tambourine Man, play a song for me” (…), “take me on a trip upon your magic swirling ship”.  São palavras que falam do sentido profundo da existência e dos sonhos que a alimentam e a redimem: “Let me forget about today until tomorrow”.

O DISEUR É UM MÚSICO

A VERDADE é que, em 2016, Bob Dylan recebeu o Nobel da literatura porque soube fundir poesia e música de forma poderosa, como autor e como cantor, como poeta e como músico, dando forma expressiva e intensa à sua inspiração, materializando-a e conseguindo atravessar o tempo e as suas vastas fronteiras, inspirando multidões um pouco por todo o mundo. Mas também é verdade que se o género é claro e linear na sua expressividade, já o prémio pode parecer um pouco oblíquo – meio-música/meio-poesia, mas invertendo a dominante da equação. Ou seja, trata-se de uma forma expressiva onde a música é dominante, sobredeterminando de forma decisiva o significante poético. A intensidade sensitiva a sobrepor-se à semântica. Parece-me. Embora, é minha convicção profunda, a poesia seja a fala da música, a primeira fala, aspirando também ela sempre a ser convertida em música, ou melhor, a ser dita também musicalmente. A sair do seu estado de surdina e a ficar em primeiro plano. Mas a poesia surge, aqui, como suporte auxiliar da música, cooperando sobretudo com a sonoridade, a rima, a rítmica. Não tanto com a sua componente semântica, que em Dylan também é intensa. Mesmo na sinestesia há sempre uma arte que sobe ao primeiro plano com a sua linguagem, dependendo, claro, do tipo de experiência estética do fruidor. Às vezes, há mesmo dificuldade em conciliar a intensidade rítmica com a suavidade e a delicadeza poética de certas letras. Seguindo esta linha selectiva, amanhã o Nobel da Literatura também poderá ir parar a um pintor, a um bailarino, a um coreógrafo, a um realizador? Como o foi a um músico, embora cantautor/diseur e poeta. Porque não? Um quadro não é tantas vezes uma poderosa narrativa contada em riscos e cores? Mas talvez não. A música e a poesia falam a uma só voz e podem até diluir-se reciprocamente, uma na outra. O diseur, na realidade, é um músico. E o cantautor é uma espécie de upgrade intensivo do diseur, que também seja poeta. Sim, música e poesia podem, sem risco de errar, identificar-se.  De poeta a diseur, de diseur a músico. Cada momento integrando o anterior.

DE DYLAN A DARIO FO

BOB DYLAN sempre se colocou à esquerda e tem projecção mundial. Há muito. Mas as escolhas à esquerda não são de hoje, arriscando-se a Academia a que o Nobel um dia venha a ser publicamente recusado, como aconteceu, em 1964, com Jean-Paul Sartre, que não queria ser “institucionalizado” (a Oeste como a Leste), mantendo-se livre, embora com simpatias pelo socialismo e pelos sistemas políticos de Leste. Mas isso não viria a acontecer quando a Academia teve a ideia de o atribuir, em 1997, a Dario Fo – um giullare (jogral) de esquerda ou mesmo da esquerda radical – “porque, seguindo a tradição dos jograis medievais, faz troça do poder, restituindo a dignidade aos oprimidos”. Palavras que ecoaram forte na Academia Sueca, aquando da atribuição do prémio a este extraordinário Mimo: o grande Dario Fo, sempre acompanhado pela sua companheira Franca Rame. Um dramaturgo em acto, em movimento, dando vida às palavras com um poder mímico extraordinário. Veja-se “Mistero Buffo” (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9EdIFECzTVE), onde encontramos a sua genialidade nas partes em que recita uma espécie de narrativa meta-semântica, à semelhança da poesia que tem o mesmo nome. As palavras do torrencial discurso são sonoridade alusiva a uma narrativa previamente identificada, sons sem significado próprio, mas que imitam a sonoridade de palavras, acompanhando-as de mímica. Discurso meta-semântico, sem dúvida, tal como quando se fala da poesia meta-semântica de Fosco Maraini, por exemplo, em Il Lonfo. Sons que se assemelham a palavras, mas que não são mesmo palavras. Dramaturgia accionada tecnicamente pela capacidade mímica do grande giullare, por exemplo, quando conta/imita a história antiga precisamente de um giullare. Também aqui a lógica da atribuição do Nobel funcionou como em Bob Dylan. Ou o caso de José Saramago, bem conhecido também pelo seu posicionamento à esquerda. O caso de Dario Fo não foi menos “escandaloso” do que este, o de Dylan. Foi ele próprio que o disse no seu discurso de investidura: “Mas, sim, o Vosso” – dar o prémio a um jogral – “foi deveras um acto de coragem que soa a provocação”. E evocou Ruzante Beolco e os seus cânticos ao quotidiano e às pessoas comuns, as gargalhadas sobre um poder que não tolera o riso. Sim, seria necessário mais gargalhadas corrosivas sobre os poderes sem alma que nos governam a coberto de ideologias solidárias mal ancoradas na ideia de justiça, seja ela distributiva ou comutativa. O Nobel de Fo provocou, como ele diz, uma “balbúrdia” entre os eleitos do Parnaso e da literatura convencional que se viram preteridos e trocados por um jogral que usa  “palavras para mastigar, com sons esquisitos, rítmicas e modulações diferentes, até às loucas tagarelas sem sentido do ‘grammelot’ (sequência arbitrária de sons)”. Por outro lado, como nome mundial, projectado precisamente pelas suas canções, Bob Dylan, ao contrário de muitos e relevantes poetas ou romancistas, mas pouco conhecidos, não precisaria de ser “reconhecido”, não dependendo dos oito milhões de coroas suecas para sobreviver como artista nem do Nobel para ver divulgada a sua obra. Já tinha que chegasse, até demais.

Pode até parecer que, às vezes, a Academia faz escolhas fracturantes ou disruptivas para subir ao topo da agenda pública, ao gerar polémicas planetárias. E não têm sido poucas. Não creio que seja porque os tempos estejam a mudar, como disse a Secretária da Academia, uma vez que faz isto há muito e, por isso, não creio que, como alguém disse, de passo em passo a Academia acabe por terminar na irrelevância. A arte precisa de reconhecimento com dimensão. De dinheiro também, mas sobretudo de reconhecimento digno de registo. A Academia tem essa importante função.

O TESTAMENTO DE ALFRED NOBEL
E A POLÉMICA

O NOBEL, por vontade testamentária de Alfred, é concedido no âmbito de cinco áreas: a Física, a Química, a Medicina/Fisiologia, a Literatura, a Paz. É o que lá está, embora também se atribua o Nobel da Economia (não previsto no Testamento). Compreende-se, pois, que a atribuição deste prémio esteja limitada a estas esferas e que a Bob Dylan não pudesse ser atribuído o prémio para a música. Simplesmente porque não está previsto. Por isso, houve, em 2016, polémica. E da grossa. Até o Nobel da Literatura Wole Soyinka disse que, assim, no ano seguinte, deveriam atribuir dois Nobel da Literatura. Outros disseram que a música não precisa deste tipo de megafone, porque já tem em si uma enorme força reprodutora e de expansão. Ou que este prémio equivaleu a dar um Grammy Award a um qualquer escritor pela musicalidade da sua narrativa ou, o que seria mais natural, a um poeta, que tem a música inscrita nos  poemas, não precisando, pois, de recorrer a outsourcing.

Até o Nobel a Dario Fo foi considerado, por muitos, deslocado por não haver um Nobel para o Teatro (tão-só para a dramaturgia, enquanto género literário). E ele era sobretudo um “giullare”, não um importante dramaturgo. E o Sartre recusou, como disse, porque não aceitava ser institucionalizado. Mesmo os Nobel da Literatura a Henri Bergson (1927) ou a Churchill (1953) foram também algo surpreendentes, pelo desvio da norma. E o mais curioso é que este Nobel tenha sido atribuído a Bob Dylan no mesmo dia em que morreu o grande Dario Fo, encenador, actor, dramaturgo, esse grande italiano que se seguiu, em matéria de teatro e de Nobel, a Luigi Pirandello (Nobel em 1934), o fantástico dramaturgo/filósofo cuja genialidade foi descoberta e reflectida em inúmeros textos pelo jovem António Gramsci, outro italiano que teria merecido o Nobel (entre os vinte italianos que já o receberam).

Disse a Secretária da Academia que Bob Dylan “criou uma nova expressão poética no âmbito da tradição da grande canção americana”. Poderia ter dito, como alguém disse: criou “poesia para o ouvido”, que é mais do que dizer que criou “novas expressões poéticas”. Ainda que o registo estético deste órgão, o ouvido, seja, no caso da música, mais o da sonoridade, da fonética ou da rítmica do que o da semântica, sendo certo que a poesia tem ela própria uma musicalidade interior que até pode prescindir da sonoridade expressa. Ma, sim, há música que tem a alma abrigada na poesia que a inspira. O Leonard Cohen também navega por estas águas. Por isso gosto tanto de o ouvir, sobretudo quando pinto. O que é muito frequente.

FINALMENTE

EM SUMA, a Academia sueca voltou, há seis anos, a pôr a música e a poesia na agenda, pondo meio mundo a discutir o valor e o estatuto literário das letras das canções, valorizando a música de intervenção e o papel dos cantautores e repropondo o riquíssimo ambiente libertário e de protesto dos anos e da geração de sessenta. E a valorização deste tipo de música é, de facto, muito importante porque traz à boca de cena o empenho político e social com dimensão de massas, sem dúvida, mas também a sofisticação estética. Ou seja, traz de facto uma revalorização da cidadania no plano estético. Hans-Georg Gadamer, inspirando-se nas “Cartas sobre a Educação Estética do Homem” (1795) de Friedrich Schiller, propôs, em “Verdade e Método” (1960), uma espécie de imperativo categórico estético para a cidadania: “Comporta-te esteticamente”. Ou seja: Age como se a máxima da tua sensibilidade pudesse valer ao mesmo tempo, e sempre, como princípio de uma estética universal.

No momento em que escrevia a primeira versão deste texto, precisamente em Outubro de 2016, a Academia ainda não tinha conseguido contactar Bob Dylan e até houve quem admitisse que poderíamos assistir a um novo caso como o de Sartre, com Dylan a recusar o Nobel para não ser integrado ou institucionalizado. Ou a nem sequer agradecer. Teríamos novo debate à escala planetária. Mas não aconteceu, porque o poeta-músico o aceitou e recebeu, em abril do ano seguinte. E também é verdade que este prémio, por exclusão, acabou por deixar na sombra aqueles que só dispunham da escrita para firmarem publicamente a sua obra. E por isso tinha razão Rainer Maria Rilke naquele Soneto de “Die Sonette an Orpheus” onde diz: “cantar é existir” (“Gesang ist Dasein”). O poeta-cantor Bob Dylan teve o Nobel porque cantou a sua poesia, fez da sua vida um canto permanente. Mas, na realidade, também a escrita pode funcionar neste registo, ou seja, como solução da própria vida, embora sem o mesmo poder expressivo e capacidade de expansão universal. Mas quando estas duas dimensões se conjugam, então, a existência intensifica-se, aprofunda-se e expande-se, podendo acabar… num Nobel. Foi o que aconteceu a Dylan. Que não o recusou. Mas não deixaria de ser talvez ainda mais significativo se houvesse um acto de recusa, pois, como diz o poeta, é na renúncia que melhor se vislumbram os sinais de grandeza. #JAS@06-2022

Azálea2022Rec

Poesia-Pintura

ENLACE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Pasárgada”
Original de minha autoria
Junho de 2022
PasárgadaFinal040421

“Pasárgada”. Jas. 06-2022

POEMA – “ENLACE”

ERA UMA VEZ
Uma videira
De seu nome Cardinal
Que vivia na latada
Que me cobre
O Jardim
E me protege do sol
Nas quentes tardes
De Verão.

SEM APARENTE
Razão,
Enrolou-se
Nos seus ramos,
Numa certa
Madrugada,
E trepou
Loureiro acima
Como amante
Apaixonada.

QUANDO CHEGUEI
E a vi tão lá
No alto,
Na ramagem
Enrolada,
Subindo
Por ele acima,
Trepando
Pela pernada,
À procura
De carinho
Ou até mesmo
De nada...
...............
Foi tão grande
O meu espanto
Que parti
Para o poema
Pra cantar
Essa videira
Que ficou
Apaixonada.

LOUREIRO COM UVAS...
Aconteceu
No Jardim,
Neste lugar delicado
Repleto de carmim,
De poeta,
O recanto,
Lugar d'inspiração
Com aroma
De jasmim,
De surpresa
E d'espanto.

ERAM UVAS
Ou palavras?
Arbusto
Ou poesia?
Eu fiquei
Muito confuso
Da estranha
Alquimia
Nessa tarde
Inesperada
E perguntei
Ao loureiro:
Aqui anda
Mão de fada?

OH, LOUREIRO
Com tantas uvas...
Tinha de ser
Mesmo assim
No recanto e
Nesse dia?
Uma videira-em-verso
Num só passe
De magia?

MAS ERAM UVAS
E palavras,
Era arbusto
E poesia
E poeta me
Tornei
Pra dar asas
Ao encanto
Pois nascera
Um novo dia,
Aquele que
Um dia
Sonhei.
PasárgadaFinal040421Rec

“Pasárgada”. Detalhe