Artigo

O ESTADO-CARITAS

Por João de Almeida Santos

MaçaSelada2

“SELO”. JAS. 03-2023

ESTÁ A TORNAR-SE DIFÍCIL manter serenidade reflexiva neste país, com tantas e tantas estranhezas que nos assaltam cada dia que passa. E não é só a política informativa desses guerrilheiros desbragados do tablóide electrónico à conquista do pior que os espectadores possam desejar, à conquista das pulsões negativas, em todos os coloridos géneros televisivos, que os colem ao monitor, se for preciso, durante um “breve intervalo” de 16 minutos e de exposição a 53 anúncios publicitários, para, depois, ouvirem, durante 28 minutos, umas piadas num exaltante monólogo humorístico. A oferta do negativo domina esmagadoramente, ainda que isso possa contribuir para aumentar a não já pequena depressão colectiva alimentada pela crise e pela especulação. Todos os dias, entre as 20:00 e as 22:00, nos canais generalistas, com aquelas caras estafadas dos “pivots” a ritualizarem, por entre carradas de publicidade, as imagens polimórficas da desgraça. Leia jornais (bons), não veja os telejornais, é o que apetece dizer.

I.

MAS TAMBÉM A POLÍTICA não pára de surpreender. Mesmos os que se ocupam dela há muito. De repente, damo-nos conta de que já não temos em Portugal um Estado Social, mas sim um Estado-Caritas, um Estado que distribui constantemente esmolas aos pobrezinhos, alimentado financeiramente, como se sabe, por pouco mais de metade dos agregados (cujo total é de cerca de 5.4 milhões), a que paga impostos. Por exemplo, cerca de 45% destes agregados não pagaram impostos, em 2020. O triunfo da compaixão e do esbulho fiscal ao serviço de um arremedo de política pública. Com os mesmos sempre a pagar. O verso e o reverso: o Estado fiscal a financiar o Estado-Caritas, que se substituiu definitivamente à responsabilidade individual pelas opções que cada um deve tomar na sua vida. Uma espiral de virtude colectiva. Um excelente exemplo para os jovens: “não se preocupem, está cá um Estado-Papá rico para, com o dinheiro dos vizinhos e pobres contribuintes, esse maná inesgotável, vos ajudar sempre que precisem”. Podem continuar a ir aos concertos, todo o ano e em todo o lado, que não há problema. Haverá sempre um excedente orçamental para vos aquecer a alma e o corpo ao ritmo excitante dos impostos directos e indirectos.

II.

DEPOIS O ESTADO-REMAX, uma versão especializada do Estado-Caritas, para resolver o problema da habitação, tomando conta da propriedade privada, não a dos meios de produção, mas, mais prosaicamente, a das habitações, ainda que o n.º 2 do art. 62 da Constituição da República Portuguesa (CRP) seja muito claro ao referir-se exclusivamente a expropriação e a requisição, casos excepcionais que nunca poderiam alimentar uma regular política pública. Mas não importa, dá-se um jeito, em nome da pública compaixão e dos ideais de Abril. Mesmo que o outro artigo da CRP, o 65, só defina as linhas gerais de promoção da oferta de habitação, ou seja, diga que o direito à habitação equivale ao direito de aceder a um mercado habitacional que o Estado tem obrigação de promover com políticas públicas, competindo, depois, ao cidadão aceder ao que este mercado lhe oferece (propriedade ou arrendamento), com os seus próprios recursos. Mas não importa, abalança-te a comprar e a endividar-te para toda a vida que se, depois, não tiveres dinheiro para pagar a conta cá estaremos nós para te ajudar de forma consistente (e por cinco anos, se for preciso), em nome da pública compaixão. Compres ou arrendes, cá estaremos para te proteger. Não tens culpa de não haver mercado de arrendamento em Portugal e, por isso, ser preferível comprar do que arrendar a preços exorbitantes. Ao menos assim a casa fica tua, que é um modo de dizer. Por isso não te preocupes, o Estado é eterno e está sempre em dívida para contigo. Orgulhámo-nos-nos de sermos um país campeão da solidariedade. Só que há uma bela diferença entre meios de produção e propriedade individual para directo usufruto (e não como meio de produção), dirão os descrentes, os desapiedados. Há, sim, mas para o caso não interessa nada. Temos o dever da solidariedade e é isso que importa.  É uma história com barbas? Pois é, e bem sabemos que ela já vem do Jean-Jacques Rousseau, do Discours sur l’origine les fondements de l’inegalité parmi les hommes, que passou por Proudhon (“la proprieté c’est le vol”) e vai direitinha a acabar na Constituição Soviética de 1936, com a apropriação pública dos meios de produção. E, ao que parece, ainda está bem viva por aí, e também por aqui. Há uns bons anos, o senhor Daniel Bensaid, filósofo e dirigente da LCR, não esteve com meias medidas e declarou para quem o quisesse ouvir: “La propriété c’est un vol très concret et quotidien”. (Libération, Maio de 1999). Proudhon revisitado. Não é, pois, coisa assim tão nova como parece. Os culpados dessa anormalidade do direito à propriedade privada, tão combatido logo no início da modernidade, foram os liberais, os burgueses, que tiveram o arrojo de pôr na carta fundacional da nossa modernidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC), de 1789, o direito à propriedade privada como direito natural e imprescritível. Querem ver? “Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté, et la résistance à l’oppression”. Direitos naturais e imprescritíveis do ser humano, anteriores ao Estado, reparem bem, tendo este, aliás, como fim a sua conservação, não a sua anulação. Não são uns exagerados estes liberais? Ainda por cima, não está lá o direito à habitação. Mas devia estar, para pôr na ordem o n.º 2 do artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 1948, perdão, Direitos Humanos: “Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”. Bem sabemos que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) diz, no n.º 1 do art. 17, que “todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil”.  Sim, bem sabemos, mas também sabemos que, no fim, o artigo diz que “a utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral”. Aqui está a base europeia para obrigarmos por lei, através dos nossos autarcas, os privados a arrendarem as casas devolutas. Só é preciso regulamentar este comando, o que faremos sem hesitação em nome da pública compaixão. Mesmo que haja dúvidas sobre se não se trata, nesta frase, também da figura da expropriação e da respectiva regulamentação sobre o uso do objecto expropriado. Mas isso interessa pouco ou nada ao lado da solidariedade e da compaixão. Da pública compaixão.

III.

LIBERAIS, DIZEMOS NÓS! Pois que fiquem a saber esses liberais empedernidos e pouco solidários que o direito à habitação vale tanto como o direito à propriedade privada. Isto disse, e bem, a futura líder do Bloco de Esquerda e, depois, a frase foi acarinhada pelo Senhor Primeiro-Ministro. Disse ela: “O direito à propriedade não pode ser um direito que se coloca acima de outro, que é o direito à habitação. Obviamente que as pessoas têm a sua propriedade, mas têm o dever de colocar o imóvel no mercado“ (CNN, 01.02.2023). Pelo menos, salva-se o direito à propriedade privada, o que já não é de todo despiciendo. Sim, senhor, embora o direito à habitação não esteja formulado em nenhuma das três Cartas de Direitos Fundamentais (DDHC, DUDH e CDFUE), nem a Constituição o constitua como um direito linear, mas sim somente através de uma instrução constitucional ao poder político para criar condições de acessibilidade à habitação. O que é coisa bem diferente de um direito linear como o direito à propriedade privada. Aquele direito até coincide com este se for exercido através precisamente do exercício do direito à propriedade privada e nas mesmas condições – por aquisição com recursos próprios. Não por doação do Estado ou com choruda bonificação. E, dizem eles, os impiedosos, se na CDFUE é feita referência a uma “ajuda à habitação”, isso acontece somente por motivos de exclusão social e de pobreza (n.º 3 do art. 34). Sim, mas nós vamos fazer isso e não só para os pobrezinhos, porque todos merecem e, graças aos impostos em que nunca tocaremos, até temos folga para mais, até para superavit. Isto, sim, é justiça social. E só não é justiça total porque infelizmente o Estado ainda não conseguiu oferecer uma casa a todos, a propriedade de uma casa. Mas lá há-de chegar, se a justiça social não for palavra vã e se o direito à habitação não for letra morta constitucional. Rendimento de cidadania, casa, saúde, educação e férias. Este, sim, é um Estado Social em todas as variantes justas e desejáveis. E estamos a falar do Estado-Infraestrutura, porque ainda temos o Estado-Superestrutura que, cada vez mais, impõe normativamente padrões linguísticos e comportamentais detalhados para que a justiça social, a justiça histórica, a igualdade e a compaixão estejam também aí garantidas. É uma onda em crescendo, ou seja, uma progressiva normativização da sociedade que, embora interfira gravemente com o princípio da liberdade, fazendo mesmo lembrar as sociedades que cultivavam obstinadamente as públicas virtudes juntamente com os vícios privados, se revela necessária para que tudo seja justo, equitativo, não discriminatório e solidário. Entre o Estado de Direito e o Estado Social na sua forma inovadora de Estado-Caritas nós optamos por este.

IV.

POIS É, DIGO EU, já um pouco perplexo. Mas, mesmo assim, do que estamos a precisar é de quem escreva, como a seu tempo fez o Wilhelm von Humboldt, um livro sobre os limites da acção do Estado. Bem sei que esse era um empedernido liberal, talvez mesmo o mais empedernido dos liberais, a crer no que dele disse o Hayek. Mas que só durou até chegar o Bismarck, com o Estado Social, que depois continuou com a República de Weimar, com o Relatório de Beveridge e com o modelo social europeu e nunca mais parou, sobretudo aqui em Portugal, com a aceleração que o governo de António Costa lhe está a imprimir. Dizem para aí que aquilo que aconteceu em 2015 afinal era mais profundo do que parecia. O PS iniciou a metabolização profunda das pulsões da extrema-esquerda e foi por aí em diante numa cavalgada impressionante. Será mesmo verdade?  O horror ao liberalismo nunca foi extirpado das fileiras do PS, mesmo depois de Bad Godesberg (1959) e da Terceira Via, isso é verdade, mas agora a marcha acelerou brutalmente, sobretudo depois da experiência da COVID 19.

V.

PARECE-ME, todavia, que o PS está mesmo a precisar de clarificar as ideias acerca dos limites da acção do Estado, para não dizer da própria natureza e funções do Estado, antes que comece por aí a pôr selos de “preço justo” em todos os produtos que circulem no mercado, a começar nas cebolas, nas batatas, nas maçãs e a acabar sabe-se lá onde. O anúncio já teve altas honras institucionais por parte da mesma personalidade que anunciou a grande oportunidade económica que iria resultar do surto de Covid 19 na China. Talvez também selos nos fatos, nos carros, nas casas. Selar tudo. Em nome da justiça mercantil. Criando um Ministério do Selo que garanta “preços justos” em tudo o que comercialmente mexa. Já não se falará de economia de mercado nem de economia social de mercado, mas de justiça social de preço e de mercado. Ao Estado já não interessa somente saber se o que acontece na sociedade está em conformidade com as leis, se é ou não legal. O Estado agora substitui as leis do mercado pela moral, inspirando-se certamente na teoria smithiana dos sentimentos morais, um regresso ao Smith filósofo contra o Smith economista, o da “Riqueza das Nações”. Também aqui estamos a precisar de facto de um novo Adam Smith e de um novo John Maynard Keynes que ponham os pontos nos is. Que expliquem a nova política do selo e da habitação. Entretanto, sem que a justiça social de mercado se aperceba, vão-se consolidando os oligopólios na energia, nas telecomunicações, na banca, na distribuição. Parece que as grandes superfícies até já estão a criar lojas de bairro de modo a que o mercado da distribuição fique todo nas suas mãos. Com selo ou sem selo, numa generosa atitude de proximidade ao cliente. Assim, a produção, a montante, escusa de se preocupar em calcular preços – serão os três ou quatro oligopólios a indicar os preços na produção. Eles só terão de se preocupar com a produção, não com os preços. Isto, sim, é verdadeira democracia económica. O que interessa é o consumidor final, nada do que está a montante… Que o digam as empresas fornecedoras das grandes superfícies.

VI.

MAS ISSO NÃO INTERESSA NADA se esta oligocracia económica vier beneficiar o cliente, apesar, de tanto a montante como a jusante, os preços serem determinados pelos oligocratas, na cara das leis do mercado, do próprio Estado, que os deixou adquirir essas posições de domínio absoluto, e até do próprio consumidor final. Mas, avante. O que interessa, isso sim, é a metafísica da indemnização à senhora Alexandra Reis. Esse folhetim, esse “culebrón” que nunca mais termina. Esse, sim, é assunto de Estado que vale a astronómica soma de 500 mil euros e uma CPI para animar o pagode. O resto, ou seja, o destino da TAP e dos 3,5 mil milhões investidos nela, a localização do Aeroporto de Lisboa, a ligação a Madrid e à Europa por TGV pouco importam. Importa, sim, é o foguetório do escândalo moral.

VII.

A MORAL parece que tomou conta das nossas vidas – no Estado, onde o Estado Ético já substituiu o Estado Democrático de Direito; na moral, que se sobrepôs à lei; na economia, onde a lei moral se sobrepõe à lei da oferta e da procura em regime de concorrência; nos preços e na língua, no preço justo e na palavra justa. Sim, na palavra justa e politicamente correcta. O comentário dita lei em Portugal e até já temos um comentador-mor institucional que tudo comenta e tudo classifica, o relevante e o irrelevante, o central e o periférico. Tudo. Até as iniciativas legislativas do governo: a da habitação é uma “Lei-Cartaz”, não é para aplicar, mas somente para mostrar; ou o próprio governo: “requentado”, diz ele.   Só que já ninguém liga ao que diz, de tanto dizer, e, por isso, a inflação parece já ter chegado de forma galopante ao preço da (sua) palavra. Dizem que já ultrapassou os 100 por cento. Podem subir as taxas de juro que esta inflação não parará. Por isso, também a sua palavra, mais dia, menos dia, carecerá de um selo de “valor justo”, dada a espiral inflacionista que a tem vindo a atingir e a desvalorizar. “Valor justo”, de montante a jusante. De Belém a Vilar de Perdizes. Que se espera? No mundo onde a moral é o valor social supremo também a palavra, et pour cause, o é, mesmo que tenha de correr o risco de sofrer, como já acontece, o grave efeito de uma inflação galopante que nos põe a todos numa autêntica crise de nervos e de discurso. Basta abrir um canal televisivo para constatar isso mesmo: uma floresta de papagaios a debitar palavras de nenhum valor, sequer facial. Uma espiral inflacionista que já também atingiu a palavra. Também aqui, no “valor-palavra”, seria necessário um selo de “palavra justa”. Mas não importa. Com selo ou sem selo, somos magnânimos, fervorosos adeptos da compaixão e cultores de TIRs de lixo publicitário em nome de duas ou três gargalhadas. Amen. JAS@03-2023

MaçaSelada2Rec

Poesia-Pintura

“MARÇO”

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Neve e a Primavera”
(Pintura em papel de algodão e
 verniz Hahnemuehle, 68x93, 2022).
Original de minha autoria.
Março de 2023.
ANeveeaPrimavera2023

“A Neve e a Primavera”. JAS2022. 03-2023

POEMA – “MARÇO”

GOSTO DE MARÇO,
Entre a neve
E a primavera,
Entre o branco
E as flores,
A chegada
De Perséfone,
O mistério
Que me atrai
Nessa fronteira
Do tempo
Que ainda não 
Passou.

GOSTO DO BOTTICELLI,
Dos rostos
E dos corpos
Das três
Graças,
Feminis,
Volúpia de
Transparências,
Sensuais,
Primaveris.

GOSTO DO BRANCO
Da magnólia,
Dos seus farrapos,
E do branco frio
Da montanha,
Gosto
Dessa cor que
Que brilha
Nos meus olhos
E que sempre
Me acompanha.

GOSTO DE MARÇO
(Porque gosto),
Entrei nele
Contigo,
No signo do
Desencontro
Que se repete
Neste silêncio 
Fatal,
Marcado
Contraponto
Desse tempo
Do meu canto,
Um “triste
Destino” 
Que quase
Parece irreal.

PARA TI COLHIA,
Em Março,
Flores luminosas
E a inspiração
Crescia
Em estrofes
Desenhadas
Com  a força
Da magia,
Fingindo sentir
O que dizer
Não podia,
Fosse só
Por duas horas
Ou fosse
Por todo um dia.

NO SIGNO
Do desencontro
Marcado como selo
Lá vou eu
Mais uma vez
Por aí,
Nem sei porquê,
Ou por falta de ti,
De braço dado
Com Botticelli,
Lá em cima,
Na Galleria,
Oráculo de arte
E templo
Da fantasia.

SINTO-TE PERTO,
Ah, eu sinto,
Depuro
A tua imagem
Em bissetriz
De mil rostos
Até se tornar 
Ideia
De corpo ausente,
Dialéctica
Animada
De opostos.

DEPOIS REINVENTO-A
A cada instante,
Abraço-a
Com alma
De amante,
Pinto com
Palavras
O seu perfil
Ideal
E fixo-a
De novo
Neste meu
Jardim
De jogral.

AO ACORDAR,
No amanhecer
De cada poema
Verei que continuas
Em mim,
De olhos fechados
(Lembras-te?),
Como se fosses
Sonho do que
Nunca aconteceu
Naqueles dias
Passados.

ANDAREI
Por aí
(Os astros o dirão),
Vagando
E pousando
O olhar
No pólen
Da beleza
Sensível
À procura
De seiva fresca
Para desenhar
Poemas
E dar vida
Ao impossível.

LÁ NO ALTO
Te encontrarei,
Imitação
Dos dias
Da criação,
A construir infinito,
Onde, num adeus
Já sem fronteiras
Nem cais de partida,
Hás-de desenhar
Com a alma
As mil silhuetas
Ainda inacabadas...
...............
Ou talvez não!

MEU DEUS,
Como gosto de ti,
Em Março,
O mês da floração,
Quando a magia
Renasce
Para renovar
A vida,
Com a força da
Paixão.

ANeveeaPrimavera2023Rec

Ensaio

O BELO COMO PROMESSA DE FELICIDADE

 Baudelaire e a Poesia

Por João de Almeida Santos

VoarFinal

“S/Título”. JAS. 03-2023

FALAR DE EDGAR ALLAN POE e de Thomas S. Eliot sem falar de Charles Baudelaire (1821-1867) seria certamente uma grave falha, dada a sua ligação a Poe, o reconhecimento de Eliot, a importância do poeta e a influência que ele exerceu sobre a melhor poesia francesa e europeia, sobretudo através dessa magnífica obra “Les Fleurs du Mal”. Por isso lhe dedico hoje este pequeno ensaio.

1.

EM “L’ART ROMANTIQUE” (Baudelaire, 1925) Baudelaire cita a frase de Stendhal que serve de título a este artigo: “Le Beau n’est que la promesse du bonheur” (1925: 53). Ideia que ele concretiza mais à frente, à sua maneira, do seguinte modo:

“Assim, o princípio da poesia é, estrita e simplesmente, a aspiração humana a uma Beleza superior, e a manifestação deste princípio reside num entusiasmo, num rapto (enlèvement) da alma” (1925: 162; itálico meu).

O belo como felicidade: elevação, levitação da alma nas regiões sobrenaturais da poesia. Sim, de novo a poesia como acolhimento e redenção. Rapto da alma para o mundo inspirado da criação.

Ou, melhor, ainda:

“É um dos privilégios prodigiosos da arte que o horrível, esteticamente expresso, se torne beleza, que a dor ritmada e cadenciada encha o espírito de uma alegria calma” (1925: 172).

Dor ritmada e cadenciada pela poesia: alegria calma, diz Baudelaire, quando a arte, accionando e dando forma à “sensibilidade da imaginação”, subtrai o ser humano ao horrível e à dor. Uma espécie de poder terapêutico da poesia, de poder salvífico, redentor. Não propriamente de salvação, por fuga do real, tão criticada por Cioran: “O erro de todas as doutrinas da salvação é suprimir a poesia, atmosfera do inacabado. O poeta trair-se-ia se aspirasse a salvar-se: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito” (2022: 40).  Não, do que se trata, na verdade, é de uma metabolização poética dos sentimentos que o ser humano experimenta, da Erlebnis. Transfiguração poética da Erlebnis. O poeta não foge do real, incorpora-o, transfigurando-o e metabolizando-o. Só assim pode “neutralizar” a dor, transformá-la em “alegria clama”. Voilà.

É este um dos princípios e também uma das consequências da arte, daquela que, não tendo um fim exterior a si (“la poésie… n’a pas d’autre but qu’elle même”; ou “tout art doit se suffire a lui-même”, 1925: 157 e 129), se propõe como a mais alta e sublime aspiração humana – a contemplação do belo como “promessa de felicidade”, como elevação, levitação. Uma felicidade tranquila, calma. Leveza anímica, prazer espiritual. Sim, essa mesma que incorpora e transfigura pulsões e sentimentos numa metabolização espiritual profunda com alto poder performativo e com poder redentor.  O contrário do que resulta do “humor demonstrativo”, da ciência, por exemplo, que procura a verdade, mas que afasta “os diamantes e as flores da Musa” (1925: 158) e que, por isso, é absolutamente o contrário do humor poético. A própria indústria e o progresso que lhe está associado também se revelam ser “inimigos despóticos de toda a poesia”. Ou seja, quando o conforto físico e a instalação material tendem a enfraquecer os sentidos e a desvalorizar a procura do conforto interior, através da contemplação. A trepidação ruidosa das massas urbanas (a Paris de Baudelaire) que engole o silêncio e a contemplação. O progresso industrial acelera o tempo e a velocidade e tende a “cegar” os sentidos. E, por isso, a quem diz que “nada do que é humano me é estranho” Baudelaire responde que “je me suis imposé de hauts devoirs, que quidquid humani a me alienum puto. Ma fonction est extra-humaine!”; ou, então, “é, pois, para evitar o espectáculo desolador da vossa demência e da vossa crueldade que o meu olhar permanece obstinadamente virado para a Musa imaculada” (1925: 179-180). A procura interior que eu persigo, diz, sintoniza com os “puros Desejos”, as “graciosas Melancolias” e os “nobres Desesperos” que habitam “as regiões sobrenaturais da Poesia” (1925: 160). Desejo, melancolia, desespero – os sentimentos que, ritmados e cadenciados, habitam o universo purificado da poesia baudelairiana.

2.

MAS VEJAMOS a afirmação de que o princípio da poesia reside no entusiasmo, num rapto da alma. Podendo parecer banal, a ideia de entusiasmo tem raízes profundas na história da poesia. Até pela sua etimologia: enthousiasmós, palavra grega que deriva de enthousiázdô, que significa estar inspirado e cuja raiz está na palavra grega éntheos,  que alude a inspiração divina (theos), a estro. O filósofo italiano Benedetto Croce, em Storia dell’estetica per saggi, no capítulo sobre Racine, refere os quatro elementos que o poeta francês encontra na composição poética: a versificação, a imitação, a ficção/fingimento e o entusiasmo. Sendo certo que, além da versificação e da ficção/fingimento, a ideia de imitação já vem da antiguidade como ideia central, ou seja, a poesia imita em palavras e sonoridade, numa autêntica “sorcellerie évocatoire”, os sentimentos humanos, o entusiasmo, que também afunda as suas raízes na história da poesia, é, todavia, dos quatro, aquele que Racine mais valoriza (Croce, 1967: 92-93). Vejamos o que o próprio diz sobre o entusiasmo:

“le caractère qui n’est propre que a elle et qui la distingue essentiellement de la prose”; (…) “aussi les vers qui sont le fruit de cet enthousiasme ont une beauté don’t celle de la prose n’approche jamais”; (…) “voilà ce que Platon et Ciceron ont appelé fureur e inspiration divine, et que nous appelons enthousiasme e verve” (Racine, 1808: 177-78; itálicos meus).

Estamos, pois, a falar, também em Baudelaire, de uma dimensão essencial da poesia, a do entusiasmo, que mobiliza a “sensibilidade da imaginação” e que permite distinguir o que é do foro poético e o que não lhe pertence. “Há na palavra, no verbo”, diz Baudelaire, referindo-se naturalmente à poesia, “algo de sagrado que nos proíbe de fazer um jogo de azar. Manejar habilmente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória” (1925: 165; itálico meu). Feitiçaria evocatória, a única que pode aceder ao mistério da vida. Sobretudo a da poesia. É do foro poético o que diz respeito ao “mistério da vida”. É o que ele reconhece na poesia de Victor Hugo: Baudelaire diz que ele vê o mistério em todo o lado e que daí deriva o sentimento de “effroi”, de medo, de pavor. Esse mistério que Baudelaire também reconhece na pintura do grande Delacroix, sobre o qual escreve textos admiráveis: “c’est l’invisible, c’est l’impalpable, c’est le rêve, c’est les nerfs, c’est l’âme” (1925: 5). Numa palavra, o mundo do sonho e da fantasia. O mundo da levitação pela arte. Dimensões fundamentais inscritas na ideia de belo, que, para Baudelaire, contém, sim, um elemento eterno, mas também um elemento relativo, que não se deve suprimir para não cair na beleza abstracta e indefinível. Numa palavra, uma composição equivalente à própria dualidade do ser humano (1925: 52-53; 66-67), corpo e alma. O próprio Paul Valéry, no célebre texto Situation de Baudelaire, reconhece que, nos melhores versos de Baudelaire, há “une combinaison de chaire et d’esprit, un mélange de solennité, de chaleur e d’amertume, d’éternité e d’intimité, une aliance rarissime de la volonté avec l’harmonie” (1924: 26). Sim, uma combinação feliz de elementos pulsionais e sentimentais com elementos espirituais, essa dualidade: carne e espírito; solenidade, calor e amargura; eternidade e intimidade; vontade e harmonia. É na composição destas características contingentes e universais que se revela a poesia, dando vida, segundo Valéry, a um ser mais puro, mais poderoso, mais profundo, mais intenso, mais elegante e mais feliz do que qualquer ser humano concreto. Tudo numa linha melódica admiravelmente pura e uma sonoridade sustentada que distinguem a voz poética de todas as vozes prosaicas (1924: 28).

3.

VALÉRY RECONHECE o que todos reconhecem como factores determinantes na poesia de Baudelaire: 1) a influência decisiva de Edgar Allan Poe, através da assunção consciente e interior daquele que é conhecido como o princípio poético de Poe, a sua teoria da composição, a fusão entre mística e exactidão matemática, que conduziu a uma poesia no seu estado puro. A obra Les Fleurs du Mal, para Paul Valéry,  terá sido construída em conformidade plena com os “ préceptes de Poe” – “tout y est charme, musique, sensualité puissante et abstraite” (1924: 24); Por exemplo, no poema “Le Balcon” (transcrevo somente os primeiros dez versos):

“Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses,
Ô toi, tous mes plaisirs ! ô toi, tous mes devoirs !
Tu te rappelleras la beauté des caresses,
La douceur du foyer et le charme des soirs,                                                                    Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses !”

Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon,
Et les soirs au balcon, voilés de vapeurs roses.
Que ton sein m’était doux ! que ton cœur m’était bon !                                                 Nous avons dit souvent d’impérissables choses
Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon”

(Baudelaire, 2003: XXXVI; pág. 57).

Poe foi reconhecidamente a maior influência que Baudelaire conheceu enquanto poeta e este retribuiu-lhe propondo o seu pensamento ao futuro (1924: 20); 2) a diferenciação estética relativamente aos poetas seus contemporâneos e já consagrados, Lamartine, Hugo, Musset, Vigny, a todos aqueles que partilharam entre si “les provinces les plus fleuries du domaine poétique” – “je ferai donc AUTRE CHOSE”, afirmou Baudelaire. “Sa raison d’état”, diria Valéry (1924: 9). Estavam, assim, lançadas as bases para uma nova poética que haveria de dar importantes frutos, enquanto tal, mas também no plano dos seus efeitos no mundo dos grandes artífices de poesia: Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé, Arthur Rimbaud, Gabriele d’Annunzio.

4.

É ESTE O TERRENO DA POESIA, não o da submissão ao conforto físico ou aos sentimentos demolidores da alma, os que a impedem de se manifestar como levitação espiritual, dominando-a e impedindo-se de se exprimir no território do sublime. Por exemplo, a violência da paixão, essa “bebedeira do coração”. Isso não, pois se é verdade que é no coração que reside a paixão, “só a imaginação contém a poesia” (1925: 160-161). É na imaginação que ela reside. Existe no belo uma parte relativa, contingente, certamente, tal como na própria estrutura do ser humano. Sim, existe, mas Baudelaire reconhece que a sensibilidade que resulta da turbulência do coração “não é absolutamente favorável ao trabalho poético, podendo mesmo prejudicá-lo”. Pelo contrário, “a sensibilidade da imaginação sabe escolher, julgar, comparar, fruir isto, procurar aquilo, rapidamente, espontaneamente. É desta sensibilidade, a que se chama geralmente Gosto, que nós retiramos o poder de evitar o mal e procurar o bem em matéria poética” (1925: 162-63).

Há aqui uma importante distinção que se torna necessário esclarecer, pois pode parecer que a poesia é estranha aos sentimentos. Estes cegá-la-iam, impedindo-a de se exprimir superiormente. Certamente, quando acontece uma turbulência passional ela pode inibir aquela distância, aquele intervalo a partir do qual a alma se eleva, levita nesse território “sobrenatural” onde vive a poesia. É como se se tratasse do domínio avassalador de uma pulsão que cega e esmaga a própria sensibilidade, tornando impossível a sua conversão em linguagem poética, que requer distância, não um turbilhão de ondas emocionais que tudo leva à frente e esmaga. A poesia alimenta-se, não desta turbulência incontrolável, mas do sentimento de perda, de ausência, de relação interrompida com o real, de fracasso, de impossibilidade ou, para o dizer com Baudelaire, de desejo, de melancolia, de desespero. Ou, ainda, de nostalgia. Como diz Eliot, referindo-se precisamente a Baudelaire, ele explorava a sua própria fraqueza com fins especulativos, coincidindo nisto com Nietzsche: os poetas são impudentes em relação às suas próprias experiências: eles exploram-nas. A um “éclair” segue-se “la nuit” e a essa o belo poema “A une passante”. O clarão que o ilumina, o estremece e o cativa transforma-se, passado o “choc” e a escuridão da perda, em canto sublime (como veremos mais à frente). Verifica-se, pois, primeiro, o estremecimento provocado pelo clarão, e, depois, a noite, a ausência, a melancolia, uma distância sofrida, sim, entre o poeta e a realidade com que se confronta (já) remotamente, possibilitando essa colocação em intervalo que lhe permite observar-se na sua relação vivida com o mundo, a Erlebnis, e, depois, o canto redentor. Regresso sempre a essa fórmula fantástica do Calvino: privação sofrida, levitação desejada. Certeira, também em Baudelaire. Portanto, é necessário que seja possível levitar e não ficar esmagado pelo peso insustentável de uma pulsão destruidora e inibidora de distância. Já aqui falei, a propósito de Pessoa e de Hermann Hesse da recusa. Recusa consciente como condição da levitação por desejo. Levitação para essas “régions surnaturelles de la poésie” (1925: 160), onde acontecem os puros Desejos, as graciosas Melancolias e os nobres Desesperos. É para aí que Baudelaire voa, com a imaginação poética.

5.

FALANDO DE VICTOR HUGO, Baudelaire, que o admirava, afirma que “a contemplação sugestiva do céu ocupa um lugar imenso e dominante nas últimas obras do poeta”. Contemplação do céu nessa caminhada sugestiva da poesia.

“La contemplation suggestive du ciel occupe une place immense et dominante dans les derniers ouvrages du poëte. Quel que soit le sujet traité, le ciel le domine et le sur- plombe comme une coupole immuable d’où plane le mystère avec la lumière, où le mystère scintille, où le mystère invite la rêverie curieuse, d’où le mystère repousse la pensée découragée” (1925: 3123).

Uma imensidão misteriosa e sedutora esse céu que Baudelaire refere, falando de Victor Hugo: o céu como cúpula imutável que domina e pende sobre o discurso poético e da qual emerge o mistério com luz, onde o mistério brilha, convida ao sonho e recusa o pensamento do desalento. E por isso é legítimo que o poeta “se abandone a todos os sonhos sugeridos pelo espectáculo infinito da vida sobre a terra e nos céus. Assim, ele traduz numa linguagem magnífica as conjecturas eternas da curiosidade humana” (1925: 314). É este o universo da poesia que ele, inspirado pelo poeta Victor Hugo, também assume, embora numa poética que, como reconhece Valéry (“Baudelaire a recherché ce que Hugo n’avait pas fait”, 1924: 12), se diferencia da poesia daquele e da dos seus outros contemporâneos. Valéry chega, timidamente, a sugerir a ideia de complemento, referindo-se à poesia de Baudelaire relativamente à de Victor Hugo. O universo do mistério, da luz e do sonho, ancorados na abóbada celeste da catedral poética, é, de qualquer modo, uma fascinante formulação que cabe bem em qualquer poética. E, naturalmente, na sua.

6.

MAS NEM SÓ de céu ou de puros desejos vive a poesia de Baudelaire (nem a sua complicada vida pessoal e familiar tornaria isso possível). Ele dialoga com Paris e alimenta a sua poesia também da grande cidade e da multidão ruidosa que a povoa. Vejamos, pois, o que, a este propósito, diz Walter Benjamin no seus escritos sobre Baudelaire:

“O engenho de Baudelaire, alimentado de melancolia, é um engenho alegórico. Pela primeira vez, em Baudelaire, Paris torna-se objecto de poesia lírica. Esta poesia não é arte local ou de género; o olhar do alegórico, que atinge a cidade, é o olhar de um estranho. É o olhar do flâneur, cujo modo de viver envolve ainda de uma aura conciliadora aquele futuro desconsolado do habitante da grande cidade. O flâneur está ainda nos limiares, seja da grande cidade seja da burguesia. Uma e a outra ainda não o esmagaram. Ele não se sente à vontade em nenhuma das duas; e procura um refúgio na multidão. (…) A multidão é o véu através do qual a cidade bem conhecida aparece ao flâneur como fantasmagoria” (Benjamin, 1962: 155).

Aqui, Baudelaire recolhe a influência de Edgar Allan Poe, do qual traduzira um conto intitulado O Homem da Multidão. Benjamin não concorda com o paralelismo que possa existir entre este homem londrino e o flâneur parisiense, bem diferentes, de tão diferentes serem as duas cidades, mas não deixa de demonstrar a centralidade invisível da multidão num famoso soneto de Les Fleurs du Mal, “A Une Passante” (1962: 103), e a influência que ela tem na sua poesia:

La rue assourdissante autour de moi hurlait.                                                             Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,                                                     Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair… puis la nuit ! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?

Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard ! jamais peut-être !                                                         Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !

(Baudelaire, 2003: XCIII, pág. 131)

A multidão ensurdecedora da cidade que logo parece engolir inapelavelmente tudo aquilo que emerge fugazmente da sua vasta e confusa superfície ondulante é a fantasmagoria que o alimenta e o leva ao estado melancólico, depois do desespero pelo desejo puro incumprido, o dessa mulher que só encontrará na eternidade, a do canto sublime, aqui, neste poema.

Num texto que há algum tempo aqui publiquei falava do “estremecimento” como energia-choque propulsora do voo poético. Aqui, Walter Benjamin fala de “choc” neste encontro do olhar envolvente, e até comprometido, do sujeito poético com a figura de uma mulher que passa na multidão ruidosa e subitamente desaparece, frustando um eventual amor (“Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais”). A multidão engolira essa mulher “agile et noble”, essa “fugitive beauté” que o fizera renascer talvez mesmo para o amor. O “choc”: “un éclair… puis la nuit”. “Um amor não tanto ao primeiro, quanto ao último olhar”, como diz certeiramente Benjamin. Último porque foi esse que ficou e deu lugar ao lamento poético. Uma “catástrofe”. Uma perda. Ausência inexplicável perante tal estremecimento. Um estremecimento convulsivo do seu corpo e da sua alma perante um “clarão” que quase o encandeia e, de repente, a “noite”, o fim, a ausência que viria dar lugar ao poema do desejo, da melancolia ou até mesmo do desespero. Quem nunca experimentou o fulgor cativante de um olhar tão fugaz e tão intenso como este? Sim, mas, porque o clarão aqui dará lugar ao canto, torna-se  libertador, redentor este voo para as “regiões sobrenaturais da poesia”, onde habitam esses sentimentos já depurados do duro embate com a rugosidade e a aspereza implacável do real. Talvez se trate mesmo de um processo de metabolização poética do fracassado encontro e, por isso, de uma superior forma de resolução dessa “experiência vivida” a partir de um intenso e comprometido olhar.

A força da poesia de Baudelaire vê-se bem na difusão que ela teve e nos ilustres discípulos que interiorizaram a sua poética, mas vê-se também na leveza e na musicalidade com que assume essas linhas essenciais de fractura que separam a grande poesia de toda a outra. Apetece-me terminar com uma inocente provocação, usando o que ele próprio disse, em “L’Art Romantique”: “Ceux qui ne sont pas poètes ne comprennent pas ces choses” (1925:304). Será mesmo assim?

REFERÊNCIAS

BAUDELAIRE, Ch. (1925). L’Art Romantique. Paris: Louis Conard, Libraire-Editeur.

BAUDELAIRE, CH. (2003). Les Fleurs du Mal. In   http://elg0001.free.fr/pub/pdf/baudelaire_les_fleurs_du_mal.pdf                          

BENJAMIN, W. (1962). Angelus Novus. Torino: Einaudi

CIORAN, E. (2022). Breviário de Decomposição. Lisboa: Edições 70

CROCE, B. (1967). Storia dell’estetica per saggi. Bari: Laterza.

ELIOT, T. S. (2019). Ensaios Escolhidos. Lisboa: Relógio d’Água.

RACINE, L. (1808). Oeuvres. Paris: Lenormant.

VALÉRY, P. (1924). Situation de Baudelaire. Monaco: Imprimerie de Monaco.

JAS@03-2023

VoarFinalRec

Poesia-Pintura

 MARMELADA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “ A Dança da Combustão”.
Original de minha autoria.
Março de 2023.
Combustão2023_0802

“A Dança da Combustão”. JAS. 03-2023

POEMA – “MARMELADA”

COMO GOSTO
Da tua marmelada,
Doce e acre
Como tu,
Sintonia
No sabor
Que me embriaga
Os sentidos
Como seiva
Do teu corpo.

GOSTO DA METAFÍSICA
De confeitaria
Porque me adoça
A alma,
Excelsos 
Sabores 
Produzidos
Com magia
Nas tuas tardes
De calma...

SOU GULOSO,
Como sabes,
E como é doce
E macia
Esta tua
Marmelada,
Sinto-a
Como alquimia,
Como pura arte
De fada.

COMO, COMO,
Sem parar,
Sabe-me sempre
Ao brilho 
Desses teus olhos,
À espuma branca 
Do mar,
Ao perfume
Do teu corpo,
Onde hei-de
Naufragar.

NESTA TUA
Marmelada,
Eu vejo-te
Artesanal,
Com os marmelos
Nas mãos,
Sabores
Em harmonia,
Receita conventual,
Polpa moldada
Por ti
Com segura
Maestria
Na dança
Da combustão,
Cor intensa,
Iguaria
De frutos
Abençoados
Em doce
Composição.

TALVEZ A TENHAS
Criado
Em tempo
De quietude
Ou mesmo de
Solidão
(Que às vezes 
É virtude),
Quando esvaece
Esse lado
Mais agreste
E mais crispado
Que te oculta
A beleza
Dos momentos
De paixão.

AH, ESSA TUA
Marmelada
É leve,
É pura,
Há pássaros
Que te voam
Na alma,
Que dançam no
Calor da
Combustão,
Um bailado
Divinal
Com frutos
De perdição.

VAI FICAR-ME
Sempre vivo
O sabor
Por ti criado,
Carícia
Da fantasia,
Dádiva,
Prazer,
Harmonia,
Quase pecado,
  A vida
Como reino
Da magia
Por deuses
Iluminado.

Combustão2023_0802Rec

Artigo

ELOGIO DA RENÚNCIA

Hermann Hesse e a Poesia

Por João de Almeida Santos

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“Timidez”. JAS. 2021

VISITO regularmente um pequeno e encantador livrinho de Hermann Hesse, na sua edição bilingue, alemão-italiano, “Poesie del Pellegrinaggio” (Milano, TEA, 1995), uma selecção feita a partir da edição alemã da sua obra poética: Gesammelte Dichtungen  (Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, 1952).

1.

A RAZÃO desta regular revisitação é sempre a mesma: também Hermann Hesse joga toda a sua arte entre a incerteza do mundo e a solidez subjectiva do humano. Na relação assimétrica entre o mundo objectivo e o mundo interior. Diz Hesse no poema “Buecher” (aqui não incluído):

“Ali está tudo aquilo
de que necessitas,/
Sol, estrelas e lua,
Pois a luz que tu desejas
Habita em ti próprio”

(Dort ist alles, 
was du brauchst,/ 
Sonne Stern und Mond, 
Denn das Licht, 
wonach du frugst,/ 
In dir selber wohnt).

Aquilo por que perguntas, aquilo que desejas, reside em ti – sol, estrelas, lua, os elementos luminosos da sensibilidade e da fantasia. Ousaria dizer, usando linguagem filosófica, que a sua poesia se move no interior da assimetria que encontramos na relação entre a dimensão ôntica da vida e a sua dimensão ontológica, a que nos é confiada pela arte. Mas uma dimensão, esta, onde há uma certeza: a de que só caminhando incessantemente estaremos na via justa.

2.

Andou pelo oriente, Hesse, mas não identificou a espiritualidade oriental com os lugares físicos do oriente. A paisagem pode ser habitada pelo sublime, mas não é ela própria o sublime, porque ele está do lado do olhar. De resto, Hesse nunca valorizou a rigidez espacial perante essa inevitabilidade da viagem e da transitoriedade: “só quem está pronto para a viagem e para a partida pode subtrair-se à paralisia do hábito” (Stufen – Hesse, 1995: 92). Nomadismo existencial, portanto. Quem não viaja não vive, vegeta. Fica colocado numa impossibilidade. Mas a viagem no espaço é tão-só o prelúdio de uma viagem mais profunda, a da alma. Viajar é essencialmente isso. Viajar no espaço para melhor viajar no tempo com a alma, através da fantasia. Como se lê num verso que ficou famoso, do poema “Gegenueber von Afrika”, porque diz tudo em poucas palavras: “eu posso sempre ser somente forasteiro (Gast) e nunca cidadão (Buerger)” (1995: 42). Vejamos os quatro últimos versos do poema onde este está integrado:

“Para mim é melhor procurar 
e nunca encontrar /
Em vez de estabelecer 
vizinhanças quentes e íntimas,/
Pois na terra e também na 
felicidade eu posso /
Ser somente um 
forasteiro e nunca um cidadão.”

(“Mir ist besser, 
zu suchen und nie zu finden,/
Statt mich eng und warm 
an das Nahe zu binden,/
Den nach im Gluecke 
kann ich auf erden /
Doch nur ein Gast 
und niemals ein Buerger werden.”)

 A tarefa deve ser a da busca constante sem ter a ambição de possuir o que se procura. Porque, como diria Pessoa,”possuir é perder” (2014: 238). É melhor não encontrar o que se procura, pois, assim, a busca é o processo, a vida é movimento constante. Forasteiro e nunca cidadão – é isso mesmo. Nunca dar por adquirido o que quer que seja para que nos possamos manter em movimento. Transeunte, passageiro existencial. Nunca adquirir autorização de residência na vida vivida, ficar instalado no mundo, com regras bem definidas e até com carta de condução para vaguear com segurança nas ruas estreitas e bem sinalizadas da vida. Não! Instalar-se equivale à paralisia própria do hábito.

3.

MAS HESSE é ainda mais claro no poema “Media in vita”:

“ (...) ueberall bist du nur Gast,/ 
Gast bei der Lust, beim Leid, 
Gast auch im Grab” (1995: 78).

Em todo o lado és somente forasteiro, / Forasteiro no prazer, na dor, forasteiro também no túmulo“. Um estranho transeunte que nunca se fixa num prazer, numa dor. Forasteiro até na morada final. Trata-se, como é evidente de uma posição que reconhece grande fungibilidade à vida vivida. Um universo de contingência que só pode ser revisitado a partir de algo que é mais estável e denso: a vida interior, o eu interior. O ponto onde se apoia a alavanca de Arquimedes. A vida interior como a única certeza a partir da qual eu poderei revisitar o mundo. No poema “Lamento” (“Klage”) Hesse volta a reafirmar que “sempre somos forasteiros” (1995: 90), mas acrescenta algo que também encontramos no famoso verso de Antonio Machado: “Stets sind wir unterwegs”, estamos sempre a caminhar. Recordo o que disse Machado: “Caminante no hay camino, se hace camino al andar”. Não é estranha esta coincidência – eram contemporâneos e ambos grandes escritores. Ambos evidenciam o processo, a necessidade de se construir e consolidar em movimento. O movimento é tudo e a rigidez existencial mata e anula. Paralisa-te, como o hábito, sim. No caso de Hesse, ele dava um especial valor ao viajar, uma espécie de metafísica do existir, de revolução da percepção que temos da vida. Um movimento que, afinal, também é de fora para dentro, um movimento para si próprio (sich selbst). Verdadeiramente, a viagem espacial é transitória, porque o seu destino é sobretudo espiritual. O exterior acaba sempre por funcionar como estímulo para um movimento interior mais profundo. Um movimento que, a certo ponto, se torna inexorável e radical, como se pode ver no poema (aqui não incluído) “Im Nebel”:

“Estranho andar na neblina!
Viver é estar só.
Nenhum homem conhece o outro,
Todos estamos sós.”

(Seltsam, Im Nebel zu wandern!
Leben ist Einsamsein.
Kein Mensch kennt den andern,
Jeder ist allein.)

A vida é como a neblina, é algo espectral que nos tolda a visão. O que resta, portanto, é o regresso a si, por falta de visão nítida do mundo exterior. Não o conhecemos, a neblina existencial é espessa, mas, vendo-o, ainda continuaremos a não passar de transeuntes, de passageiros no autocarro do tempo. Neblina e perpétuo movimento. Cegueira espectral – é disso que se trata. É aqui que temos de nos movimentar.

4.

MAS VEJAMOS o primeiro poema, “Glueck”:

"Enquanto perseguires a felicidade
Não estás maduro para seres feliz,/
Mesmo que fosse teu 
tudo aquilo que mais amas,

Enquanto chorares o que se perdeu /
E tiveres objectivos 
e fores incansável,/
Não saberás ainda o que é a paz.

Só quando renunciares 
a todas as ambições, /
Já não tiveres objectivos 
nem desejos, /
Nem deres nomes à felicidade,

Só então o fluxo dos eventos deixará / 
de chegar ao coração, e a tua alma 
repousará" (1995: 39) *.

Vejo neste poema, a seguir à neblina e à transitoriedade do mundo e do viver, um apelo à renúncia, algo que encontramos também em Fernando Pessoa,  esse “pregador” da “renúncia”, no “Livro do Desassossego”:

“A vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total”. “Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído”. “Sou a ponte entre o que não tenho e o que não quero” (Pessoa, 2014: 208-209; itálicos meus).

A ponte entre o que não tenho e o que não quero. A vida como negação, numa dialéctica entre opostos de onde resulta um tertium que incorpora e supera os seus termos ( a vida e o seu oposto lógico). A poesia corresponderia, assim, à Aufhebung (hegeliana). Só a renúncia – como oposto lógico da vida – é produtiva. Na renúncia coloco-me em posição de superar, através da poesia, a vida que se me oferece como contingência, elevando-me a um plano superior. No “Livro do Desassossego” Pessoa fala da colocação do artista precisamente numa posição de intervalo entre si próprio e o mundo. Só assim, nesta diferença, ele se poderá assumir como tertium, como superação, como artista. Renúncia: condição de paz interior, a única que nos pode levar ao belo. Para Hesse como para Pessoa. O reconhecimento da impossibilidade de nos instalarmos confortavelmente na vida, na sociedade, no real deveria levar-nos a renunciar, a dizer não, a não ceder ao transitório e ao contingente. Não procurar a felicidade, não chorar fisicamente o que se perdeu, não ter objectivos nem desejos – só assim se conhecerá a paz. Só neste estado de paz é possível recomeçar como artista, como poeta. Portanto, a renúncia é o gesto mais conforme à personalidade do poeta. Só assim se reconhecerá porque não se perderá à procura do que não deve e não pode obter. Porque uma imensa neblina cobre o real, a vida, tornando-a espectral. Vive sob o signo do que não teve, do que não quis ou, no máximo, do que sobrou do que teve ou não teve. “Eu canto o que se perdeu e temo o que se ganhou”, diria Yeats no poema “What was lost” (Yeats, 2012: 140). Na mouche, Yeats. Quando se ganha não há espaço para a redenção, porque a redenção é a própria vitória, embora esta se esgote em si, seja somente, e tão-só, um momento da dialéctica do confronto. E nada mais.

5.

A INSTABILIDADE no mundo exterior é permanente. Por isso, a condição da paz interior consiste em não estabelecer metas exteriores a nós próprios, à realidade que só nós controlamos. Na vida, no mundo somos meros transeuntes, a neblina é espessa, o mundo é espectral, somos meros passageiros, meros viajantes, meros forasteiros sem direitos consolidados ao que quer que seja.

Que resposta, então, para tanta relatividade na relação com a vida?

Talvez o poema “Media in Vita” (1995: 74-81; poema de 1921)  dê a resposta: a arte, “die stille Zauberin”, a feiticeira tranquila, no seu círculo de feliz magia, quando o espírito tende para o jogo sublime. Mas este é processo que só pode acontecer interiormente. A arte como solução para a própria vida. Ela coloca-nos nessa zona íntima que escapa à transitoriedade e a partir da qual podemos dar expressão ao livre arbítrio da fantasia, à dialéctica entre a alma e a fantasia. Ela cobre com véus coloridos a morte e a dor, converte o tormento em prazer e o caos em harmonia, eleva-te ao nível das estrelas, faz de ti centro do mundo e põe o universo em coro à tua volta. O poema “Media in Vita” é um hino à arte e às proezas que ela consegue, lá onde “nenhuma fronteira separa sonho e acção” (1995: 74-81). Eu vejo aqui uma enorme proximidade entre o Fernando Pessoa do “Livro do Desassossego” e este Hermann Hesse, quando ambos, desvalorizando o contingente como terreno onde o humano se deva espraiar, valorizam, pelo contrário, esse universo interior onde a escrita reconstrói a vida, bela e livre. Diz Pessoa: “A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos (…) podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte (…); com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte” (2014: 207; itálicos meus). A arte persegue o sonho da liberdade, fazendo coincidir o exercício da vontade, não com a vida, mas com a fantasia. Só assim é possível superar a fronteira entre o sonho e a vida… e voar.

6.

TEMOS, pois, aqui algumas ideias que gostaria de resumir para centrar o que pretendo com esta viagem, a pretexto deste livrinho de Hermann Hesse. As ideias de: a) transitoriedade da vida – somos forasteiros na vida; b) renúncia, enquanto princípio fundacional para a longa viagem interior; c) vida como um permanente caminhar;  d) neblina mundana e existencial que, ao mesmo tempo, qual espectro, nos induz a virarmo-nos para o nosso eu interior; e) a arte como solução para atingir a liberdade e a beleza. Nestas posições, como vimos, Hermann Hesse não está só. E a companhia não se limita a Antonio Machado ou a Fernando Pessoa, seus contemporâneos. Ele está acompanhado pela história da literatura, por esse movimento que tende a resolver o dissídio, desejado ou imposto, com a vida (Pessoa achava-se um dissidente da vida – 2014: 120), o fracasso no confronto com a aspereza e a irredutibilidade da vida, a dialéctica entre o registo sensível da alma e o culto apolíneo do espírito – a arte como feiticeira e fonte de magia que nos liberta das fronteiras entre o sonho e a vida. Liberdade e redenção. Tudo isto, onde a arte surge como resolução superior da dialéctica entre a alma e a vida. Não por acaso a Hermann Hesse foi atribuído, em 1946, o Prémio Nobel, pela qualidade da sua obra. Pois essa qualidade, independentemente da sofisticação técnica ou da beleza da escrita, centra-se, também nele, como em todos os grandes, em ter olhado o mundo de frente, em ter compreendido as tensões estruturais que atravessam o humano na sua relação com o mundo, consigo próprio e com os deuses e na possibilidade de uma sua resolução superior através da arte.

* NOTA

POEMA “GLUECK”

“Solang du nach dem Gluecke jagst
Bist du nicht reif zum Glucklichsein,
Und waere alles Liebstedein.

Solang du um Verlornes klagst
Und Ziele hast und rastlos bist,
Weisst du noch nicht, was Friede ist.

Erst wenn du jedem Wunsch entsagst,
Nicht Ziel mehr noch Begehren kennst,
Das Glueck nicht mehr mi Namen nennst,

Dann reicht dir des Geschehens Flut /
Nicht mehr ans Herz, 
und deine Seele ruht.”
(1995: 38)
REFERÊNCIAS

HESSE, H. (1995). Poesie del pellegrinaggio. Milano: TEA.

MACHADO, A. (1989). Poesías Completas. Madrid: Espasa-Calpe/Fundación Antonio Machado.

PESSOA, F. (2014). Livro do Desassossego. Porto: Assírio e Alvim, 7.ª Edição.

YEATS, W. B. (2012). Os Pássaros Brancos e Outros Poemas. Lisboa: Relógio d’Água.

JAS@03-2023

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Poesia-Pintura

TEU CORPO NUMA CATEDRAL DE PALAVRAS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Luz”.
Inspirado em Man Ray: 
"Electricité: Salle de Bains", 
       1931. Original de minha 
autoria. Março de 2023.
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“Luz”. JAS. 03-2023

POEMA – “TEU CORPO NUMA CATEDRAL DE PALAVRAS”

VEJO-TE
Desenhada
A sépia,
Nua,
Numa catedral
De palavras
E ecoa
Sobre mim,
Entre altas
Colunas
Argênteas,
O silêncio
De uma poética
Do pleno
E do vazio
Que me interpela
Como metáfora.

TEU ROSTO
Esculpido
Por sons
Inaudíveis
É a imagem
Perfeita
Para o oráculo
De Athena,
A deusa
Que, em ti,
Inspira
A melancolia
De meus poéticos
Murmúrios.

UMA DESCARGA
Intensa
De riscos
E de luz
Caiu sobre ti
(Lembras-te
do Man Ray?),
Estampando-te
Numa folha
Nua,
Onde expôs
Esse teu corpo
Aos ecos
Do silêncio
Para que o ouça
Com a alma.

SÃO RAIOS DE LUZ,
São palavras
Ou serão
Os fantasmas
De Kafka
Que acariciam
Com sofreguidão
Esse corpo
Que já saiu
De ti
E se perde,
Levado
Por eles,
Levitando
Sobre um caminho
Que trilha,
Sem saber,
Ao sabor
Do vento
E de incerto
Destino.

E EU A VÊ-LO
Levitar
Para lugar
Nenhum
E a segui-lo
(Não sei porquê)
Com este rasto
De palavras,
Ponte
Sobre um imenso
Vazio
Que une
O desejo
E o impossível.

NÃO OUVES
A minha
Voz
Interior
Que responde
Aos ecos
Do teu silêncio
E te chama?
Não vês
Que te procuro
Sempre,
Derramando
Riscos
E palavras
Sobre um destino
A que nunca
Chegaremos?

NÃO! BEM SEI
Que não vês,
Bem sei
Que não ouves,
Talvez porque
Os fantasmas
Bebem
Os meus murmúrios
Escritos
Ao longo
Do trajecto.
Se visses
E ouvisses
Eu não estaria
Aqui
À procura
Da sublime
Redenção.
Sem pecado.

Corpo2023_03.03 copiarRec