ELOGIO DA RENÚNCIA
Hermann Hesse e a Poesia
Por João de Almeida Santos

“Timidez”. JAS. 2021
VISITO regularmente um pequeno e encantador livrinho de Hermann Hesse, na sua edição bilingue, alemão-italiano, “Poesie del Pellegrinaggio” (Milano, TEA, 1995), uma selecção feita a partir da edição alemã da sua obra poética: Gesammelte Dichtungen (Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, 1952).
1.
A RAZÃO desta regular revisitação é sempre a mesma: também Hermann Hesse joga toda a sua arte entre a incerteza do mundo e a solidez subjectiva do humano. Na relação assimétrica entre o mundo objectivo e o mundo interior. Diz Hesse no poema “Buecher” (aqui não incluído):
“Ali está tudo aquilo de que necessitas,/ Sol, estrelas e lua, Pois a luz que tu desejas Habita em ti próprio” (Dort ist alles, was du brauchst,/ Sonne Stern und Mond, Denn das Licht, wonach du frugst,/ In dir selber wohnt).
Aquilo por que perguntas, aquilo que desejas, reside em ti – sol, estrelas, lua, os elementos luminosos da sensibilidade e da fantasia. Ousaria dizer, usando linguagem filosófica, que a sua poesia se move no interior da assimetria que encontramos na relação entre a dimensão ôntica da vida e a sua dimensão ontológica, a que nos é confiada pela arte. Mas uma dimensão, esta, onde há uma certeza: a de que só caminhando incessantemente estaremos na via justa.
2.
Andou pelo oriente, Hesse, mas não identificou a espiritualidade oriental com os lugares físicos do oriente. A paisagem pode ser habitada pelo sublime, mas não é ela própria o sublime, porque ele está do lado do olhar. De resto, Hesse nunca valorizou a rigidez espacial perante essa inevitabilidade da viagem e da transitoriedade: “só quem está pronto para a viagem e para a partida pode subtrair-se à paralisia do hábito” (Stufen – Hesse, 1995: 92). Nomadismo existencial, portanto. Quem não viaja não vive, vegeta. Fica colocado numa impossibilidade. Mas a viagem no espaço é tão-só o prelúdio de uma viagem mais profunda, a da alma. Viajar é essencialmente isso. Viajar no espaço para melhor viajar no tempo com a alma, através da fantasia. Como se lê num verso que ficou famoso, do poema “Gegenueber von Afrika”, porque diz tudo em poucas palavras: “eu posso sempre ser somente forasteiro (Gast) e nunca cidadão (Buerger)” (1995: 42). Vejamos os quatro últimos versos do poema onde este está integrado:
“Para mim é melhor procurar e nunca encontrar / Em vez de estabelecer vizinhanças quentes e íntimas,/ Pois na terra e também na felicidade eu posso / Ser somente um forasteiro e nunca um cidadão.” (“Mir ist besser, zu suchen und nie zu finden,/ Statt mich eng und warm an das Nahe zu binden,/ Den nach im Gluecke kann ich auf erden / Doch nur ein Gast und niemals ein Buerger werden.”)
A tarefa deve ser a da busca constante sem ter a ambição de possuir o que se procura. Porque, como diria Pessoa,”possuir é perder” (2014: 238). É melhor não encontrar o que se procura, pois, assim, a busca é o processo, a vida é movimento constante. Forasteiro e nunca cidadão – é isso mesmo. Nunca dar por adquirido o que quer que seja para que nos possamos manter em movimento. Transeunte, passageiro existencial. Nunca adquirir autorização de residência na vida vivida, ficar instalado no mundo, com regras bem definidas e até com carta de condução para vaguear com segurança nas ruas estreitas e bem sinalizadas da vida. Não! Instalar-se equivale à paralisia própria do hábito.
3.
MAS HESSE é ainda mais claro no poema “Media in vita”:
“ (...) ueberall bist du nur Gast,/ Gast bei der Lust, beim Leid, Gast auch im Grab” (1995: 78).
“Em todo o lado és somente forasteiro, / Forasteiro no prazer, na dor, forasteiro também no túmulo“. Um estranho transeunte que nunca se fixa num prazer, numa dor. Forasteiro até na morada final. Trata-se, como é evidente de uma posição que reconhece grande fungibilidade à vida vivida. Um universo de contingência que só pode ser revisitado a partir de algo que é mais estável e denso: a vida interior, o eu interior. O ponto onde se apoia a alavanca de Arquimedes. A vida interior como a única certeza a partir da qual eu poderei revisitar o mundo. No poema “Lamento” (“Klage”) Hesse volta a reafirmar que “sempre somos forasteiros” (1995: 90), mas acrescenta algo que também encontramos no famoso verso de Antonio Machado: “Stets sind wir unterwegs”, estamos sempre a caminhar. Recordo o que disse Machado: “Caminante no hay camino, se hace camino al andar”. Não é estranha esta coincidência – eram contemporâneos e ambos grandes escritores. Ambos evidenciam o processo, a necessidade de se construir e consolidar em movimento. O movimento é tudo e a rigidez existencial mata e anula. Paralisa-te, como o hábito, sim. No caso de Hesse, ele dava um especial valor ao viajar, uma espécie de metafísica do existir, de revolução da percepção que temos da vida. Um movimento que, afinal, também é de fora para dentro, um movimento para si próprio (sich selbst). Verdadeiramente, a viagem espacial é transitória, porque o seu destino é sobretudo espiritual. O exterior acaba sempre por funcionar como estímulo para um movimento interior mais profundo. Um movimento que, a certo ponto, se torna inexorável e radical, como se pode ver no poema (aqui não incluído) “Im Nebel”:
“Estranho andar na neblina! Viver é estar só. Nenhum homem conhece o outro, Todos estamos sós.” (Seltsam, Im Nebel zu wandern! Leben ist Einsamsein. Kein Mensch kennt den andern, Jeder ist allein.)
A vida é como a neblina, é algo espectral que nos tolda a visão. O que resta, portanto, é o regresso a si, por falta de visão nítida do mundo exterior. Não o conhecemos, a neblina existencial é espessa, mas, vendo-o, ainda continuaremos a não passar de transeuntes, de passageiros no autocarro do tempo. Neblina e perpétuo movimento. Cegueira espectral – é disso que se trata. É aqui que temos de nos movimentar.
4.
MAS VEJAMOS o primeiro poema, “Glueck”:
"Enquanto perseguires a felicidade Não estás maduro para seres feliz,/ Mesmo que fosse teu tudo aquilo que mais amas, Enquanto chorares o que se perdeu / E tiveres objectivos e fores incansável,/ Não saberás ainda o que é a paz. Só quando renunciares a todas as ambições, / Já não tiveres objectivos nem desejos, / Nem deres nomes à felicidade, Só então o fluxo dos eventos deixará / de chegar ao coração, e a tua alma repousará" (1995: 39) *.
Vejo neste poema, a seguir à neblina e à transitoriedade do mundo e do viver, um apelo à renúncia, algo que encontramos também em Fernando Pessoa, esse “pregador” da “renúncia”, no “Livro do Desassossego”:
“A vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total”. “Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído”. “Sou a ponte entre o que não tenho e o que não quero” (Pessoa, 2014: 208-209; itálicos meus).
A ponte entre o que não tenho e o que não quero. A vida como negação, numa dialéctica entre opostos de onde resulta um tertium que incorpora e supera os seus termos ( a vida e o seu oposto lógico). A poesia corresponderia, assim, à Aufhebung (hegeliana). Só a renúncia – como oposto lógico da vida – é produtiva. Na renúncia coloco-me em posição de superar, através da poesia, a vida que se me oferece como contingência, elevando-me a um plano superior. No “Livro do Desassossego” Pessoa fala da colocação do artista precisamente numa posição de intervalo entre si próprio e o mundo. Só assim, nesta diferença, ele se poderá assumir como tertium, como superação, como artista. Renúncia: condição de paz interior, a única que nos pode levar ao belo. Para Hesse como para Pessoa. O reconhecimento da impossibilidade de nos instalarmos confortavelmente na vida, na sociedade, no real deveria levar-nos a renunciar, a dizer não, a não ceder ao transitório e ao contingente. Não procurar a felicidade, não chorar fisicamente o que se perdeu, não ter objectivos nem desejos – só assim se conhecerá a paz. Só neste estado de paz é possível recomeçar como artista, como poeta. Portanto, a renúncia é o gesto mais conforme à personalidade do poeta. Só assim se reconhecerá porque não se perderá à procura do que não deve e não pode obter. Porque uma imensa neblina cobre o real, a vida, tornando-a espectral. Vive sob o signo do que não teve, do que não quis ou, no máximo, do que sobrou do que teve ou não teve. “Eu canto o que se perdeu e temo o que se ganhou”, diria Yeats no poema “What was lost” (Yeats, 2012: 140). Na mouche, Yeats. Quando se ganha não há espaço para a redenção, porque a redenção é a própria vitória, embora esta se esgote em si, seja somente, e tão-só, um momento da dialéctica do confronto. E nada mais.
5.
A INSTABILIDADE no mundo exterior é permanente. Por isso, a condição da paz interior consiste em não estabelecer metas exteriores a nós próprios, à realidade que só nós controlamos. Na vida, no mundo somos meros transeuntes, a neblina é espessa, o mundo é espectral, somos meros passageiros, meros viajantes, meros forasteiros sem direitos consolidados ao que quer que seja.
Que resposta, então, para tanta relatividade na relação com a vida?
Talvez o poema “Media in Vita” (1995: 74-81; poema de 1921) dê a resposta: a arte, “die stille Zauberin”, a feiticeira tranquila, no seu círculo de feliz magia, quando o espírito tende para o jogo sublime. Mas este é processo que só pode acontecer interiormente. A arte como solução para a própria vida. Ela coloca-nos nessa zona íntima que escapa à transitoriedade e a partir da qual podemos dar expressão ao livre arbítrio da fantasia, à dialéctica entre a alma e a fantasia. Ela cobre com véus coloridos a morte e a dor, converte o tormento em prazer e o caos em harmonia, eleva-te ao nível das estrelas, faz de ti centro do mundo e põe o universo em coro à tua volta. O poema “Media in Vita” é um hino à arte e às proezas que ela consegue, lá onde “nenhuma fronteira separa sonho e acção” (1995: 74-81). Eu vejo aqui uma enorme proximidade entre o Fernando Pessoa do “Livro do Desassossego” e este Hermann Hesse, quando ambos, desvalorizando o contingente como terreno onde o humano se deva espraiar, valorizam, pelo contrário, esse universo interior onde a escrita reconstrói a vida, bela e livre. Diz Pessoa: “A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos (…) podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte (…); com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte” (2014: 207; itálicos meus). A arte persegue o sonho da liberdade, fazendo coincidir o exercício da vontade, não com a vida, mas com a fantasia. Só assim é possível superar a fronteira entre o sonho e a vida… e voar.
6.
TEMOS, pois, aqui algumas ideias que gostaria de resumir para centrar o que pretendo com esta viagem, a pretexto deste livrinho de Hermann Hesse. As ideias de: a) transitoriedade da vida – somos forasteiros na vida; b) renúncia, enquanto princípio fundacional para a longa viagem interior; c) vida como um permanente caminhar; d) neblina mundana e existencial que, ao mesmo tempo, qual espectro, nos induz a virarmo-nos para o nosso eu interior; e) a arte como solução para atingir a liberdade e a beleza. Nestas posições, como vimos, Hermann Hesse não está só. E a companhia não se limita a Antonio Machado ou a Fernando Pessoa, seus contemporâneos. Ele está acompanhado pela história da literatura, por esse movimento que tende a resolver o dissídio, desejado ou imposto, com a vida (Pessoa achava-se um dissidente da vida – 2014: 120), o fracasso no confronto com a aspereza e a irredutibilidade da vida, a dialéctica entre o registo sensível da alma e o culto apolíneo do espírito – a arte como feiticeira e fonte de magia que nos liberta das fronteiras entre o sonho e a vida. Liberdade e redenção. Tudo isto, onde a arte surge como resolução superior da dialéctica entre a alma e a vida. Não por acaso a Hermann Hesse foi atribuído, em 1946, o Prémio Nobel, pela qualidade da sua obra. Pois essa qualidade, independentemente da sofisticação técnica ou da beleza da escrita, centra-se, também nele, como em todos os grandes, em ter olhado o mundo de frente, em ter compreendido as tensões estruturais que atravessam o humano na sua relação com o mundo, consigo próprio e com os deuses e na possibilidade de uma sua resolução superior através da arte.
* NOTA
POEMA “GLUECK”
“Solang du nach dem Gluecke jagst Bist du nicht reif zum Glucklichsein, Und waere alles Liebstedein. Solang du um Verlornes klagst Und Ziele hast und rastlos bist, Weisst du noch nicht, was Friede ist. Erst wenn du jedem Wunsch entsagst, Nicht Ziel mehr noch Begehren kennst, Das Glueck nicht mehr mi Namen nennst, Dann reicht dir des Geschehens Flut / Nicht mehr ans Herz, und deine Seele ruht.” (1995: 38)
REFERÊNCIAS
HESSE, H. (1995). Poesie del pellegrinaggio. Milano: TEA.
MACHADO, A. (1989). Poesías Completas. Madrid: Espasa-Calpe/Fundación Antonio Machado.
PESSOA, F. (2014). Livro do Desassossego. Porto: Assírio e Alvim, 7.ª Edição.
YEATS, W. B. (2012). Os Pássaros Brancos e Outros Poemas. Lisboa: Relógio d’Água.
JAS@03-2023