A DOR E O SUBLIME
Ensaios sobre a Arte
João de Almeida Santos

Pintura da Capa: “Perfil de Mulher”. 94×114, em papel de algodão Hahnemuehle. JAS, 2022. Colecção Particular.
EM BREVE SERÁ PUBLICADO este livro de Ensaios sobre a Arte, de minha autoria. Esta obra sairá, primeiro, em versão digital, de acesso livre, aqui e no site da Associação Cultural Azarujinha-ACA, e, depois, on paper, em edição limitada, mediante encomenda prévia. Por estar para muito breve a sua publicação digital, antecipo aqui não só a capa do livro, mas também a Introdução.
João de Almeida Santos A DOR E O SUBLIME Ensaios sobre a Arte S. João do Estoril, ACA Edições, 2023
INTRODUÇÃO
ESTE LIVRO reúne Ensaios sobre a Arte, escritos sobretudo com o objectivo de confrontar a minha própria experiência estética, enquanto produtor de arte (romance, poesia, pintura), com o que grandes poetas produziram, mas também, ou sobretudo, com o que escreveram sobre a poesia. Verificar se neles se encontram as clivagens essenciais com que me confronto na minha experiência poética. Dominam, por isso, as reflexões sobre a poesia, que, afinal, constituem o núcleo essencial deste livro. Escolhi, pois, os meus interlocutores pela sua dupla condição de poetas e pensadores ou críticos (como Eliot, Poe ou Baudelaire, por exemplo), levando muito a sério essa afirmação do Edgar Allan Poe, em “Carta a B”, que sugere que as melhores críticas de poesia são as que são feitas precisamente por poetas:
“Tem-se dito que uma boa crítica a um poema pode ser escrita por alguém que não seja ele próprio poeta. Sinto que isto é falso, de acordo com a sua e a minha ideia de poesia – quanto menos poético for o crítico, menos justa será a crítica e vice-versa (Poe, 2016: 5; Poe, 1903)”.
Estas palavras valem o que valem, que não é pouco, ditas por quem as diz, mas são sugestivas e correspondem, no essencial, ao que eu próprio sinto e penso. Ou seja, tratando-se de uma arte muito especial, normalmente activada por intensas exigências interiores, talvez mesmo por imperativos existenciais, em virtude de um forte sentimento de dor, por melancolia, por perda ou por intensa nostalgia, ela solicita, na tentativa de compreensão e interpretação, algo que se assemelha a empatia, ao que os alemães designam por Einfühlung ou, então, no significado grego original de pathein ou pathos, palavras gregas que significam sentir/sentimento, doer/dor, comover/comoção. Só quem experimentou o estado de comoção (poética) está em condições de compreender em profundidade a poesia, ou seja, os poetas, por mais que eles procurem traduzir em linguagem universal o que, de certo modo, é inefável, a sua própria experiência interior. Eles convertem, como diz Bernardo Soares, os seus “sentimentos num sentimento humano típico” (Pessoa, 2015: 230) para que possam ser compreendidos, suscitando estética partilha. O inefável pode ser poeticamente convertido através desta operação, mas, mesmo assim, são os poetas aqueles que melhor podem aceder, nem que seja por processo analógico, ao que o poeta sente na sua experiência interior. Eles experimentam a Einfühlung em profundidade e por isso podem aceder a essa experiência originária, seminal. Uma experiência de delicado e incompleto acesso, portanto. Não basta, todavia, aos que procuram aceder ao discurso poético que experimentem eles próprios comoção ou dor, é preciso estar em condições de as metabolizar poeticamente e como imperativo, como exigência. É esta a condição do ser-poeta. Porque “dizer-se é sobreviver”, como dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego (2015: 55). Mas esta é também, em parte, a condição dos amantes de poesia. Sim, dos amantes, para retomar a célebre frase de García Lorca: “la poesía no quiere adeptos, quiere amantes”. Ser “adepto” não garante, pois, autêntico acesso à experiência poética. É preciso amá-la e sofrê-la. Senti-la por dentro, transportando-se para o interior das estrofes, experimentar o sentido e sentir a vibração da toada que se desenrola verso após verso. Esta é a sua diferença, talvez mesmo uma diferença ontológica, a que a coloca num patamar muito especial entre as artes e a distingue da mera experiência do sentir. Há um “quid” na experiência poética que não se compadece com uma aproximação meramente ornamental e exclusivamente física. A poesia não tem exterior, evolui de dentro para dentro sem concessões ao artifício ou à pura fisicidade. Para o poeta, mas também para o amante de poesia.
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SÓ NO CASO DE HEMANN HESSE me ative exclusivamente à sua poesia, embora tivesse sempre presente no meu espírito a famosa viagem existencial de Siddharta. Na verdade, a exigência radical do discurso poético levou-me a revisitar poetas de topo mundial, sim, mas aqueles que foram também, ao mesmo tempo, críticos literários de igual e relevantíssima dimensão. Basta pensar em Eliot ou em Baudelaire para se compreender o que pretendo significar. De certo modo, a minha própria experiência serviu-me de suporte e de guia no diálogo interessado, ou mesmo interesseiro, com os grandes poetas. Esta atitude não é, pois, uma atitude de natureza metodológica ou simplesmente teórica. Ela também corresponde àquilo que eu próprio, na minha prática, encontro como génese da arte – um imperativo, uma exigência existencial que leva o artista a criar. Não um “amusement”, um sofisticado jogo de palavras ou um exercício académico, mas uma necessidade incontornável, como a de respirar. Porque “dizer-se é sobreviver”, repito, com o Bernardo Soares. Por isso, talvez surja mesmo como uma solução para a própria vida, um acto sublime de sobrevivência. E, se for assim, no despertar poético é como descobrir que se foi tocado pela graça, sem predestinação, mas como dom recebido na sequência de um acontecimento que devastou a alma do poeta e o pôs em levitação, através da palavra e da sua melodia. Privação sofrida, levitação desejada, disse o Italo Calvino nas suas Lezioni Americane. Tristeza, melancolia, perda ou privação, algo que o toca muito profundamente e o leva a criar, para se salvar, para se redimir. Uma dádiva de sofrimento concedida pelos deuses. Com uma prova de fogo: não se deixar abater nem dominar pela dor, mas assumi-la, transfigurá-la e metabolizá-la poeticamente para se elevar ao sublime. A felicidade mundana parece não constar dos anais da poesia, poderia mesmo dizer com um pouco de necessária radicalidade. Uma salvação que é mais transfiguração do que fuga, ou seja, uma sofisticada metabolização que incorpora sentimentos já transfigurados – uma feliz melancolia, por exemplo.
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A MAIOR PARTE DOS CAPÍTULOS é dedicada à poesia, estando a pintura, a música ou a dança em segundo plano. Também aqui não foi uma escolha puramente intelectual, mas um imperativo que decorreu da minha própria experiência de oito anos consecutivos de intensa produção poética. E não só, mas também pela importância que reconheço nela, na poesia, relativamente ao conjunto das artes. No livro dou conta desta posição e explico as razões da centralidade que lhe atribuo, em particular na sua relação com a música. Essa posição intermédia entre a dimensão conceptual e o sentimento, equivalente à que o sentimento ocupa na relação entre a dimensão fisiológica e corpórea do ser humano e a sua consciência, muito bem esclarecida por António Damásio no livro Sentir & Saber. A Caminho da Consciência (Damásio, 2020). O poder performativo da poesia e, por isso redentor, substitutivo, salvífico, resulta desta sua posição como ponto de contacto, como ponte entre o sentimento e a consciência, construída por uma materialidade sonora que acentua e reforça a sua dimensão sensível, sensorial. Uma arte que, todavia, não se eleva em fuga para o território irreal da pureza conceptual, para a pura esfera ideal ou para a crença, a fé incondicionada, mas que permanece no terreno do sentimento, da emoção, da melancolia, da nostalgia, da perda, da ausência sofrida, do amor, do desespero, submetidos a um processo de transfiguração e de metabolização para os elevar ao território do sublime. “Cristallisation”, dizia Stendhal a propósito do amor, no mesmo sentido. Sublimação. A poesia permanece no terreno do sensível, do sensorial, ajudada pela sonoridade rimática, pelo poder envolvente da música que a integra como sua componente interna. É a sonoridade poética que atinge de forma imediata a sensibilidade do próprio poeta ou de quem frui um poema. A poesia funciona como se se tratasse de uma ponte de ligação entre as palavras, com a sua carga semântica e a sua sonoridade melódica, a sensibilidade e o real. O primeiro visado pelo poema é sempre o próprio poeta. Se assim não fosse a redenção poética nunca aconteceria.
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ENCONTRARÁ AQUI inúmeras páginas sobre grandes vultos da literatura mundial, como T.S. Eliot, Emil Cioran, Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Hermann Hesse, Fernando Pessoa, Pierre Jean Jouve, Italo Calvino. Mas encontrará também reflexões mais amplas sobre a arte ou sobre a cultura, por exemplo, sobre Friedrich Nietzsche (sobretudo sobre “A Origem da Tragédia” ou “Ecce Homo”) ou sobre Theodor Adorno e o seu escrito sobre as indústrias culturais, incluído na Dialéctica do Iluminismo, mas também sobre Pina Bausch e o Tanztheater, com um enquadramento global e histórico sobre a dança, desde os seus primórdios.
Trata-se de um livro sobre a arte guiado por uma posição de fundo que encontrará confirmada nos diálogos com os autores-referência escolhidos. E essa posição de fundo assume a arte como dimensão ontológica, não como mero exercício profissional, como técnica de “amusement”, como virtuosismo cultural ou como especialidade académica. É nesta posição que julgo encontrar a diferença fundamental entre a grande arte, a grande literatura, a grande poesia e as produções que mais não visam do que o consumo imediato em posição de “distracção”, como diria o Adorno, referindo-se às indústrias culturais. Não, do que aqui se trata é de arte entendida como imperativo existencial, como procura do humano lá nas profundezas da alma com os sofisticados instrumentos de que ela dispõe e, no essencial, com as categorias que o Italo Calvino propõe para o milénio que já começou. A poesia marca uma espécie de diferença ontológica relativamente à experiência do sentir, ao sentimento.
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ESTE LIVRO, também desenvolve e prolonga a reflexão que propus na Introdução ao meu livro de poesia (“Sobre a Obra de Arte”), bem como as respostas aos meus leitores digitais (”Reflexões em torno dos Poemas”), ambas nele incluídas (Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, pp. 13-39 e 351-420). A Dor e o Sublime é como que a outra face, em prosa, das minhas concretas propostas de poesia, de pintura e de romance (em Via dei Portoghesi, Lisboa, Parsifal, 2019). Um livro que poderá, pois, ser melhor compreendido por quem visitar o que há anos venho propondo publicamente, em joaodealmeidasantos.com, seja poesia ou pintura, ou mesmo no referido romance, como resultado da minha própria, sofrida e levitada, relação estética com a vida.
NOTA
QUERO aqui deixar um agradecimento à ACA Edições pela honra que me deu em ser eu a iniciar a sua actividade editorial com este livro. Outros se seguirão, em breve.
REFERÊNCIAS
CALVINO, I. (1988). Lezioni Americane. Milano: Garzanti.
DAMÁSIO, A. (2018). Sentir & Saber. Lisboa: Círculo de Leitores.
PESSOA, F. (2015). Livro do Desassossego. Porto: Assírio&Alvim.
POE, E. A. (2016). Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
SANTOS, J. A. (2021). Poesia. Lisboa: Buy The Book.