O ESTADO-CARITAS
Por João de Almeida Santos

“SELO”. JAS. 03-2023
ESTÁ A TORNAR-SE DIFÍCIL manter serenidade reflexiva neste país, com tantas e tantas estranhezas que nos assaltam cada dia que passa. E não é só a política informativa desses guerrilheiros desbragados do tablóide electrónico à conquista do pior que os espectadores possam desejar, à conquista das pulsões negativas, em todos os coloridos géneros televisivos, que os colem ao monitor, se for preciso, durante um “breve intervalo” de 16 minutos e de exposição a 53 anúncios publicitários, para, depois, ouvirem, durante 28 minutos, umas piadas num exaltante monólogo humorístico. A oferta do negativo domina esmagadoramente, ainda que isso possa contribuir para aumentar a não já pequena depressão colectiva alimentada pela crise e pela especulação. Todos os dias, entre as 20:00 e as 22:00, nos canais generalistas, com aquelas caras estafadas dos “pivots” a ritualizarem, por entre carradas de publicidade, as imagens polimórficas da desgraça. Leia jornais (bons), não veja os telejornais, é o que apetece dizer.
I.
MAS TAMBÉM A POLÍTICA não pára de surpreender. Mesmos os que se ocupam dela há muito. De repente, damo-nos conta de que já não temos em Portugal um Estado Social, mas sim um Estado-Caritas, um Estado que distribui constantemente esmolas aos pobrezinhos, alimentado financeiramente, como se sabe, por pouco mais de metade dos agregados (cujo total é de cerca de 5.4 milhões), a que paga impostos. Por exemplo, cerca de 45% destes agregados não pagaram impostos, em 2020. O triunfo da compaixão e do esbulho fiscal ao serviço de um arremedo de política pública. Com os mesmos sempre a pagar. O verso e o reverso: o Estado fiscal a financiar o Estado-Caritas, que se substituiu definitivamente à responsabilidade individual pelas opções que cada um deve tomar na sua vida. Uma espiral de virtude colectiva. Um excelente exemplo para os jovens: “não se preocupem, está cá um Estado-Papá rico para, com o dinheiro dos vizinhos e pobres contribuintes, esse maná inesgotável, vos ajudar sempre que precisem”. Podem continuar a ir aos concertos, todo o ano e em todo o lado, que não há problema. Haverá sempre um excedente orçamental para vos aquecer a alma e o corpo ao ritmo excitante dos impostos directos e indirectos.
II.
DEPOIS O ESTADO-REMAX, uma versão especializada do Estado-Caritas, para resolver o problema da habitação, tomando conta da propriedade privada, não a dos meios de produção, mas, mais prosaicamente, a das habitações, ainda que o n.º 2 do art. 62 da Constituição da República Portuguesa (CRP) seja muito claro ao referir-se exclusivamente a expropriação e a requisição, casos excepcionais que nunca poderiam alimentar uma regular política pública. Mas não importa, dá-se um jeito, em nome da pública compaixão e dos ideais de Abril. Mesmo que o outro artigo da CRP, o 65, só defina as linhas gerais de promoção da oferta de habitação, ou seja, diga que o direito à habitação equivale ao direito de aceder a um mercado habitacional que o Estado tem obrigação de promover com políticas públicas, competindo, depois, ao cidadão aceder ao que este mercado lhe oferece (propriedade ou arrendamento), com os seus próprios recursos. Mas não importa, abalança-te a comprar e a endividar-te para toda a vida que se, depois, não tiveres dinheiro para pagar a conta cá estaremos nós para te ajudar de forma consistente (e por cinco anos, se for preciso), em nome da pública compaixão. Compres ou arrendes, cá estaremos para te proteger. Não tens culpa de não haver mercado de arrendamento em Portugal e, por isso, ser preferível comprar do que arrendar a preços exorbitantes. Ao menos assim a casa fica tua, que é um modo de dizer. Por isso não te preocupes, o Estado é eterno e está sempre em dívida para contigo. Orgulhamo-nos-nos de sermos um país campeão da solidariedade. Só que há uma bela diferença entre meios de produção e propriedade individual para directo usufruto (e não como meio de produção), dirão os descrentes, os desapiedados. Há, sim, mas para o caso não interessa nada. Temos o dever da solidariedade e é isso que importa. É uma história com barbas? Pois é, e bem sabemos que ela já vem do Jean-Jacques Rousseau, do Discours sur l’origine les fondements de l’inegalité parmi les hommes, que passou por Proudhon (“la proprieté c’est le vol”) e vai direitinha a acabar na Constituição Soviética de 1936, com a apropriação pública dos meios de produção. E, ao que parece, ainda está bem viva por aí, e também por aqui. Há uns bons anos, o senhor Daniel Bensaid, filósofo e dirigente da LCR, não esteve com meias medidas e declarou para quem o quisesse ouvir: “La propriété c’est un vol très concret et quotidien”. (Libération, Maio de 1999). Proudhon revisitado. Não é, pois, coisa assim tão nova como parece. Os culpados dessa anormalidade do direito à propriedade privada, tão combatido logo no início da modernidade, foram os liberais, os burgueses, que tiveram o arrojo de pôr na carta fundacional da nossa modernidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC), de 1789, o direito à propriedade privada como direito natural e imprescritível. Querem ver? “Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté, et la résistance à l’oppression”. Direitos naturais e imprescritíveis do ser humano, anteriores ao Estado, reparem bem, tendo este, aliás, como fim a sua conservação, não a sua anulação. Não são uns exagerados estes liberais? Ainda por cima, não está lá o direito à habitação. Mas devia estar, para pôr na ordem o n.º 2 do artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 1948, perdão, Direitos Humanos: “Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”. Bem sabemos que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) diz, no n.º 1 do art. 17, que “todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil”. Sim, bem sabemos, mas também sabemos que, no fim, o artigo diz que “a utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral”. Aqui está a base europeia para obrigarmos por lei, através dos nossos autarcas, os privados a arrendarem as casas devolutas. Só é preciso regulamentar este comando, o que faremos sem hesitação em nome da pública compaixão. Mesmo que haja dúvidas sobre se não se trata, nesta frase, também da figura da expropriação e da respectiva regulamentação sobre o uso do objecto expropriado. Mas isso interessa pouco ou nada ao lado da solidariedade e da compaixão. Da pública compaixão.
III.
LIBERAIS, DIZEMOS NÓS! Pois que fiquem a saber esses liberais empedernidos e pouco solidários que o direito à habitação vale tanto como o direito à propriedade privada. Isto disse, e bem, a futura líder do Bloco de Esquerda e, depois, a frase foi acarinhada pelo Senhor Primeiro-Ministro. Disse ela: “O direito à propriedade não pode ser um direito que se coloca acima de outro, que é o direito à habitação. Obviamente que as pessoas têm a sua propriedade, mas têm o dever de colocar o imóvel no mercado“ (CNN, 01.02.2023). Pelo menos, salva-se o direito à propriedade privada, o que já não é de todo despiciendo. Sim, senhor, embora o direito à habitação não esteja formulado em nenhuma das três Cartas de Direitos Fundamentais (DDHC, DUDH e CDFUE), nem a Constituição o constitua como um direito linear, mas sim somente através de uma instrução constitucional ao poder político para criar condições de acessibilidade à habitação. O que é coisa bem diferente de um direito linear como o direito à propriedade privada. Aquele direito até coincide com este se for exercido através precisamente do exercício do direito à propriedade privada e nas mesmas condições – por aquisição com recursos próprios. Não por doação do Estado ou com choruda bonificação. E, dizem eles, os impiedosos, se na CDFUE é feita referência a uma “ajuda à habitação”, isso acontece somente por motivos de exclusão social e de pobreza (n.º 3 do art. 34). Sim, mas nós vamos fazer isso e não só para os pobrezinhos, porque todos merecem e, graças aos impostos em que nunca tocaremos, até temos folga para mais, até para superavit. Isto, sim, é justiça social. E só não é justiça total porque infelizmente o Estado ainda não conseguiu oferecer uma casa a todos, a propriedade de uma casa. Mas lá há-de chegar, se a justiça social não for palavra vã e se o direito à habitação não for letra morta constitucional. Rendimento de cidadania, casa, saúde, educação e férias. Este, sim, é um Estado Social em todas as variantes justas e desejáveis. E estamos a falar do Estado-Infraestrutura, porque ainda temos o Estado-Superestrutura que, cada vez mais, impõe normativamente padrões linguísticos e comportamentais detalhados para que a justiça social, a justiça histórica, a igualdade e a compaixão estejam também aí garantidas. É uma onda em crescendo, ou seja, uma progressiva normativização da sociedade que, embora interfira gravemente com o princípio da liberdade, fazendo mesmo lembrar as sociedades que cultivavam obstinadamente as públicas virtudes juntamente com os vícios privados, se revela necessária para que tudo seja justo, equitativo, não discriminatório e solidário. Entre o Estado de Direito e o Estado Social na sua forma inovadora de Estado-Caritas nós optamos por este.
IV.
POIS É, DIGO EU, já um pouco perplexo. Mas, mesmo assim, do que estamos a precisar é de quem escreva, como a seu tempo fez o Wilhelm von Humboldt, um livro sobre os limites da acção do Estado. Bem sei que esse era um empedernido liberal, talvez mesmo o mais empedernido dos liberais, a crer no que dele disse o Hayek. Mas que só durou até chegar o Bismarck, com o Estado Social, que depois continuou com a República de Weimar, com o Relatório de Beveridge e com o modelo social europeu e nunca mais parou, sobretudo aqui em Portugal, com a aceleração que o governo de António Costa lhe está a imprimir. Dizem para aí que aquilo que aconteceu em 2015 afinal era mais profundo do que parecia. O PS iniciou a metabolização profunda das pulsões da extrema-esquerda e foi por aí em diante numa cavalgada impressionante. Será mesmo verdade? O horror ao liberalismo nunca foi extirpado das fileiras do PS, mesmo depois de Bad Godesberg (1959) e da Terceira Via, isso é verdade, mas agora a marcha acelerou brutalmente, sobretudo depois da experiência da COVID 19.
V.
PARECE-ME, todavia, que o PS está mesmo a precisar de clarificar as ideias acerca dos limites da acção do Estado, para não dizer da própria natureza e funções do Estado, antes que comece por aí a pôr selos de “preço justo” em todos os produtos que circulem no mercado, a começar nas cebolas, nas batatas, nas maçãs e a acabar sabe-se lá onde. O anúncio já teve altas honras institucionais por parte da mesma personalidade que anunciou a grande oportunidade económica que iria resultar do surto de Covid 19 na China. Talvez também selos nos fatos, nos carros, nas casas. Selar tudo. Em nome da justiça mercantil. Criando um Ministério do Selo que garanta “preços justos” em tudo o que comercialmente mexa. Já não se falará de economia de mercado nem de economia social de mercado, mas de justiça social de preço e de mercado. Ao Estado já não interessa somente saber se o que acontece na sociedade está em conformidade com as leis, se é ou não legal. O Estado agora substitui as leis do mercado pela moral, inspirando-se certamente na teoria smithiana dos sentimentos morais, um regresso ao Smith filósofo contra o Smith economista, o da “Riqueza das Nações”. Também aqui estamos a precisar de facto de um novo Adam Smith e de um novo John Maynard Keynes que ponham os pontos nos is. Que expliquem a nova política do selo e da habitação. Entretanto, sem que a justiça social de mercado se aperceba, vão-se consolidando os oligopólios na energia, nas telecomunicações, na banca, na distribuição. Parece que as grandes superfícies até já estão a criar lojas de bairro de modo a que o mercado da distribuição fique todo nas suas mãos. Com selo ou sem selo, numa generosa atitude de proximidade ao cliente. Assim, a produção, a montante, escusa de se preocupar em calcular preços – serão os três ou quatro oligopólios a indicar os preços na produção. Eles só terão de se preocupar com a produção, não com os preços. Isto, sim, é verdadeira democracia económica. O que interessa é o consumidor final, nada do que está a montante… Que o digam as empresas fornecedoras das grandes superfícies.
VI.
MAS ISSO NÃO INTERESSA NADA se esta oligocracia económica vier beneficiar o cliente, apesar de, tanto a montante como a jusante, os preços serem determinados pelos oligocratas, na cara das leis do mercado, do próprio Estado, que os deixou adquirir essas posições de domínio absoluto, e até do próprio consumidor final. Mas, avante. O que interessa, isso sim, é a metafísica da indemnização à senhora Alexandra Reis. Esse folhetim, esse “culebrón” que nunca mais termina. Esse, sim, é assunto de Estado que vale a astronómica soma de 500 mil euros e uma CPI para animar o pagode. O resto, ou seja, o destino da TAP e dos 3,5 mil milhões investidos nela, a localização do Aeroporto de Lisboa, a ligação a Madrid e à Europa por TGV pouco importam. Importa, sim, é o foguetório do escândalo moral.
VII.
A MORAL parece que tomou conta das nossas vidas – no Estado, onde o Estado Ético já substituiu o Estado Democrático de Direito; na moral, que se sobrepôs à lei; na economia, onde a lei moral se sobrepõe à lei da oferta e da procura em regime de concorrência; nos preços e na língua, no preço justo e na palavra justa. Sim, na palavra justa e politicamente correcta. O comentário dita lei em Portugal e até já temos um comentador-mor institucional que tudo comenta e tudo classifica, o relevante e o irrelevante, o central e o periférico. Tudo. Até as iniciativas legislativas do governo: a da habitação é uma “Lei-Cartaz”, não é para aplicar, mas somente para mostrar; ou o próprio governo: “requentado”, diz ele. Só que já ninguém liga ao que diz, de tanto dizer, e, por isso, a inflação parece já ter chegado de forma galopante ao preço da (sua) palavra. Dizem que já ultrapassou os 100 por cento. Podem subir as taxas de juro que esta inflação não parará. Por isso, também a sua palavra, mais dia, menos dia, carecerá de um selo de “valor justo”, dada a espiral inflacionista que a tem vindo a atingir e a desvalorizar. “Valor justo”, de montante a jusante. De Belém a Vilar de Perdizes. Que se espera? No mundo onde a moral é o valor social supremo também a palavra, et pour cause, o é, mesmo que tenha de correr o risco de sofrer, como já acontece, o grave efeito de uma inflação galopante que nos põe a todos numa autêntica crise de nervos e de discurso. Basta abrir um canal televisivo para constatar isso mesmo: uma floresta de papagaios a debitar palavras de nenhum valor, sequer facial. Uma espiral inflacionista que já também atingiu a palavra. Também aqui, no “valor-palavra”, seria necessário um selo de “palavra justa”. Mas não importa. Com selo ou sem selo, somos magnânimos, fervorosos adeptos da compaixão e cultores de TIRs de lixo publicitário em nome de duas ou três gargalhadas. Amen. JAS@03-2023