Ensaio

O BELO COMO PROMESSA DE FELICIDADE

 Baudelaire e a Poesia

Por João de Almeida Santos

VoarFinal

“S/Título”. JAS. 03-2023

FALAR DE EDGAR ALLAN POE e de Thomas S. Eliot sem falar de Charles Baudelaire (1821-1867) seria certamente uma grave falha, dada a sua ligação a Poe, o reconhecimento de Eliot, a importância do poeta e a influência que ele exerceu sobre a melhor poesia francesa e europeia, sobretudo através dessa magnífica obra “Les Fleurs du Mal”. Por isso lhe dedico hoje este pequeno ensaio.

1.

EM “L’ART ROMANTIQUE” (Baudelaire, 1925) Baudelaire cita a frase de Stendhal que serve de título a este artigo: “Le Beau n’est que la promesse du bonheur” (1925: 53). Ideia que ele concretiza mais à frente, à sua maneira, do seguinte modo:

“Assim, o princípio da poesia é, estrita e simplesmente, a aspiração humana a uma Beleza superior, e a manifestação deste princípio reside num entusiasmo, num rapto (enlèvement) da alma” (1925: 162; itálico meu).

O belo como felicidade: elevação, levitação da alma nas regiões sobrenaturais da poesia. Sim, de novo a poesia como acolhimento e redenção. Rapto da alma para o mundo inspirado da criação.

Ou, melhor, ainda:

“É um dos privilégios prodigiosos da arte que o horrível, esteticamente expresso, se torne beleza, que a dor ritmada e cadenciada encha o espírito de uma alegria calma” (1925: 172).

Dor ritmada e cadenciada pela poesia: alegria calma, diz Baudelaire, quando a arte, accionando e dando forma à “sensibilidade da imaginação”, subtrai o ser humano ao horrível e à dor. Uma espécie de poder terapêutico da poesia, de poder salvífico, redentor. Não propriamente de salvação, por fuga do real, tão criticada por Cioran: “O erro de todas as doutrinas da salvação é suprimir a poesia, atmosfera do inacabado. O poeta trair-se-ia se aspirasse a salvar-se: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito” (2022: 40).  Não, do que se trata, na verdade, é de uma metabolização poética dos sentimentos que o ser humano experimenta, da Erlebnis. Transfiguração poética da Erlebnis. O poeta não foge do real, incorpora-o, transfigurando-o e metabolizando-o. Só assim pode “neutralizar” a dor, transformá-la em “alegria clama”. Voilà.

É este um dos princípios e também uma das consequências da arte, daquela que, não tendo um fim exterior a si (“la poésie… n’a pas d’autre but qu’elle même”; ou “tout art doit se suffire a lui-même”, 1925: 157 e 129), se propõe como a mais alta e sublime aspiração humana – a contemplação do belo como “promessa de felicidade”, como elevação, levitação. Uma felicidade tranquila, calma. Leveza anímica, prazer espiritual. Sim, essa mesma que incorpora e transfigura pulsões e sentimentos numa metabolização espiritual profunda com alto poder performativo e com poder redentor.  O contrário do que resulta do “humor demonstrativo”, da ciência, por exemplo, que procura a verdade, mas que afasta “os diamantes e as flores da Musa” (1925: 158) e que, por isso, é absolutamente o contrário do humor poético. A própria indústria e o progresso que lhe está associado também se revelam ser “inimigos despóticos de toda a poesia”. Ou seja, quando o conforto físico e a instalação material tendem a enfraquecer os sentidos e a desvalorizar a procura do conforto interior, através da contemplação. A trepidação ruidosa das massas urbanas (a Paris de Baudelaire) que engole o silêncio e a contemplação. O progresso industrial acelera o tempo e a velocidade e tende a “cegar” os sentidos. E, por isso, a quem diz que “nada do que é humano me é estranho” Baudelaire responde que “je me suis imposé de hauts devoirs, que quidquid humani a me alienum puto. Ma fonction est extra-humaine!”; ou, então, “é, pois, para evitar o espectáculo desolador da vossa demência e da vossa crueldade que o meu olhar permanece obstinadamente virado para a Musa imaculada” (1925: 179-180). A procura interior que eu persigo, diz, sintoniza com os “puros Desejos”, as “graciosas Melancolias” e os “nobres Desesperos” que habitam “as regiões sobrenaturais da Poesia” (1925: 160). Desejo, melancolia, desespero – os sentimentos que, ritmados e cadenciados, habitam o universo purificado da poesia baudelairiana.

2.

MAS VEJAMOS a afirmação de que o princípio da poesia reside no entusiasmo, num rapto da alma. Podendo parecer banal, a ideia de entusiasmo tem raízes profundas na história da poesia. Até pela sua etimologia: enthousiasmós, palavra grega que deriva de enthousiázdô, que significa estar inspirado e cuja raiz está na palavra grega éntheos,  que alude a inspiração divina (theos), a estro. O filósofo italiano Benedetto Croce, em Storia dell’estetica per saggi, no capítulo sobre Racine, refere os quatro elementos que o poeta francês encontra na composição poética: a versificação, a imitação, a ficção/fingimento e o entusiasmo. Sendo certo que, além da versificação e da ficção/fingimento, a ideia de imitação já vem da antiguidade como ideia central, ou seja, a poesia imita em palavras e sonoridade, numa autêntica “sorcellerie évocatoire”, os sentimentos humanos, o entusiasmo, que também afunda as suas raízes na história da poesia, é, todavia, dos quatro, aquele que Racine mais valoriza (Croce, 1967: 92-93). Vejamos o que o próprio diz sobre o entusiasmo:

“le caractère qui n’est propre que a elle et qui la distingue essentiellement de la prose”; (…) “aussi les vers qui sont le fruit de cet enthousiasme ont une beauté don’t celle de la prose n’approche jamais”; (…) “voilà ce que Platon et Ciceron ont appelé fureur e inspiration divine, et que nous appelons enthousiasme e verve” (Racine, 1808: 177-78; itálicos meus).

Estamos, pois, a falar, também em Baudelaire, de uma dimensão essencial da poesia, a do entusiasmo, que mobiliza a “sensibilidade da imaginação” e que permite distinguir o que é do foro poético e o que não lhe pertence. “Há na palavra, no verbo”, diz Baudelaire, referindo-se naturalmente à poesia, “algo de sagrado que nos proíbe de fazer um jogo de azar. Manejar habilmente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória” (1925: 165; itálico meu). Feitiçaria evocatória, a única que pode aceder ao mistério da vida. Sobretudo a da poesia. É do foro poético o que diz respeito ao “mistério da vida”. É o que ele reconhece na poesia de Victor Hugo: Baudelaire diz que ele vê o mistério em todo o lado e que daí deriva o sentimento de “effroi”, de medo, de pavor. Esse mistério que Baudelaire também reconhece na pintura do grande Delacroix, sobre o qual escreve textos admiráveis: “c’est l’invisible, c’est l’impalpable, c’est le rêve, c’est les nerfs, c’est l’âme” (1925: 5). Numa palavra, o mundo do sonho e da fantasia. O mundo da levitação pela arte. Dimensões fundamentais inscritas na ideia de belo, que, para Baudelaire, contém, sim, um elemento eterno, mas também um elemento relativo, que não se deve suprimir para não cair na beleza abstracta e indefinível. Numa palavra, uma composição equivalente à própria dualidade do ser humano (1925: 52-53; 66-67), corpo e alma. O próprio Paul Valéry, no célebre texto Situation de Baudelaire, reconhece que, nos melhores versos de Baudelaire, há “une combinaison de chaire et d’esprit, un mélange de solennité, de chaleur e d’amertume, d’éternité e d’intimité, une aliance rarissime de la volonté avec l’harmonie” (1924: 26). Sim, uma combinação feliz de elementos pulsionais e sentimentais com elementos espirituais, essa dualidade: carne e espírito; solenidade, calor e amargura; eternidade e intimidade; vontade e harmonia. É na composição destas características contingentes e universais que se revela a poesia, dando vida, segundo Valéry, a um ser mais puro, mais poderoso, mais profundo, mais intenso, mais elegante e mais feliz do que qualquer ser humano concreto. Tudo numa linha melódica admiravelmente pura e uma sonoridade sustentada que distinguem a voz poética de todas as vozes prosaicas (1924: 28).

3.

VALÉRY RECONHECE o que todos reconhecem como factores determinantes na poesia de Baudelaire: 1) a influência decisiva de Edgar Allan Poe, através da assunção consciente e interior daquele que é conhecido como o princípio poético de Poe, a sua teoria da composição, a fusão entre mística e exactidão matemática, que conduziu a uma poesia no seu estado puro. A obra Les Fleurs du Mal, para Paul Valéry,  terá sido construída em conformidade plena com os “ préceptes de Poe” – “tout y est charme, musique, sensualité puissante et abstraite” (1924: 24); Por exemplo, no poema “Le Balcon” (transcrevo somente os primeiros dez versos):

“Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses,
Ô toi, tous mes plaisirs ! ô toi, tous mes devoirs !
Tu te rappelleras la beauté des caresses,
La douceur du foyer et le charme des soirs,                                                                    Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses !”

Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon,
Et les soirs au balcon, voilés de vapeurs roses.
Que ton sein m’était doux ! que ton cœur m’était bon !                                                 Nous avons dit souvent d’impérissables choses
Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon”

(Baudelaire, 2003: XXXVI; pág. 57).

Poe foi reconhecidamente a maior influência que Baudelaire conheceu enquanto poeta e este retribuiu-lhe propondo o seu pensamento ao futuro (1924: 20); 2) a diferenciação estética relativamente aos poetas seus contemporâneos e já consagrados, Lamartine, Hugo, Musset, Vigny, a todos aqueles que partilharam entre si “les provinces les plus fleuries du domaine poétique” – “je ferai donc AUTRE CHOSE”, afirmou Baudelaire. “Sa raison d’état”, diria Valéry (1924: 9). Estavam, assim, lançadas as bases para uma nova poética que haveria de dar importantes frutos, enquanto tal, mas também no plano dos seus efeitos no mundo dos grandes artífices de poesia: Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé, Arthur Rimbaud, Gabriele d’Annunzio.

4.

É ESTE O TERRENO DA POESIA, não o da submissão ao conforto físico ou aos sentimentos demolidores da alma, os que a impedem de se manifestar como levitação espiritual, dominando-a e impedindo-se de se exprimir no território do sublime. Por exemplo, a violência da paixão, essa “bebedeira do coração”. Isso não, pois se é verdade que é no coração que reside a paixão, “só a imaginação contém a poesia” (1925: 160-161). É na imaginação que ela reside. Existe no belo uma parte relativa, contingente, certamente, tal como na própria estrutura do ser humano. Sim, existe, mas Baudelaire reconhece que a sensibilidade que resulta da turbulência do coração “não é absolutamente favorável ao trabalho poético, podendo mesmo prejudicá-lo”. Pelo contrário, “a sensibilidade da imaginação sabe escolher, julgar, comparar, fruir isto, procurar aquilo, rapidamente, espontaneamente. É desta sensibilidade, a que se chama geralmente Gosto, que nós retiramos o poder de evitar o mal e procurar o bem em matéria poética” (1925: 162-63).

Há aqui uma importante distinção que se torna necessário esclarecer, pois pode parecer que a poesia é estranha aos sentimentos. Estes cegá-la-iam, impedindo-a de se exprimir superiormente. Certamente, quando acontece uma turbulência passional ela pode inibir aquela distância, aquele intervalo a partir do qual a alma se eleva, levita nesse território “sobrenatural” onde vive a poesia. É como se se tratasse do domínio avassalador de uma pulsão que cega e esmaga a própria sensibilidade, tornando impossível a sua conversão em linguagem poética, que requer distância, não um turbilhão de ondas emocionais que tudo leva à frente e esmaga. A poesia alimenta-se, não desta turbulência incontrolável, mas do sentimento de perda, de ausência, de relação interrompida com o real, de fracasso, de impossibilidade ou, para o dizer com Baudelaire, de desejo, de melancolia, de desespero. Ou, ainda, de nostalgia. Como diz Eliot, referindo-se precisamente a Baudelaire, ele explorava a sua própria fraqueza com fins especulativos, coincidindo nisto com Nietzsche: os poetas são impudentes em relação às suas próprias experiências: eles exploram-nas. A um “éclair” segue-se “la nuit” e a essa o belo poema “A une passante”. O clarão que o ilumina, o estremece e o cativa transforma-se, passado o “choc” e a escuridão da perda, em canto sublime (como veremos mais à frente). Verifica-se, pois, primeiro, o estremecimento provocado pelo clarão, e, depois, a noite, a ausência, a melancolia, uma distância sofrida, sim, entre o poeta e a realidade com que se confronta (já) remotamente, possibilitando essa colocação em intervalo que lhe permite observar-se na sua relação vivida com o mundo, a Erlebnis, e, depois, o canto redentor. Regresso sempre a essa fórmula fantástica do Calvino: privação sofrida, levitação desejada. Certeira, também em Baudelaire. Portanto, é necessário que seja possível levitar e não ficar esmagado pelo peso insustentável de uma pulsão destruidora e inibidora de distância. Já aqui falei, a propósito de Pessoa e de Hermann Hesse da recusa. Recusa consciente como condição da levitação por desejo. Levitação para essas “régions surnaturelles de la poésie” (1925: 160), onde acontecem os puros Desejos, as graciosas Melancolias e os nobres Desesperos. É para aí que Baudelaire voa, com a imaginação poética.

5.

FALANDO DE VICTOR HUGO, Baudelaire, que o admirava, afirma que “a contemplação sugestiva do céu ocupa um lugar imenso e dominante nas últimas obras do poeta”. Contemplação do céu nessa caminhada sugestiva da poesia.

“La contemplation suggestive du ciel occupe une place immense et dominante dans les derniers ouvrages du poëte. Quel que soit le sujet traité, le ciel le domine et le sur- plombe comme une coupole immuable d’où plane le mystère avec la lumière, où le mystère scintille, où le mystère invite la rêverie curieuse, d’où le mystère repousse la pensée découragée” (1925: 3123).

Uma imensidão misteriosa e sedutora esse céu que Baudelaire refere, falando de Victor Hugo: o céu como cúpula imutável que domina e pende sobre o discurso poético e da qual emerge o mistério com luz, onde o mistério brilha, convida ao sonho e recusa o pensamento do desalento. E por isso é legítimo que o poeta “se abandone a todos os sonhos sugeridos pelo espectáculo infinito da vida sobre a terra e nos céus. Assim, ele traduz numa linguagem magnífica as conjecturas eternas da curiosidade humana” (1925: 314). É este o universo da poesia que ele, inspirado pelo poeta Victor Hugo, também assume, embora numa poética que, como reconhece Valéry (“Baudelaire a recherché ce que Hugo n’avait pas fait”, 1924: 12), se diferencia da poesia daquele e da dos seus outros contemporâneos. Valéry chega, timidamente, a sugerir a ideia de complemento, referindo-se à poesia de Baudelaire relativamente à de Victor Hugo. O universo do mistério, da luz e do sonho, ancorados na abóbada celeste da catedral poética, é, de qualquer modo, uma fascinante formulação que cabe bem em qualquer poética. E, naturalmente, na sua.

6.

MAS NEM SÓ de céu ou de puros desejos vive a poesia de Baudelaire (nem a sua complicada vida pessoal e familiar tornaria isso possível). Ele dialoga com Paris e alimenta a sua poesia também da grande cidade e da multidão ruidosa que a povoa. Vejamos, pois, o que, a este propósito, diz Walter Benjamin no seus escritos sobre Baudelaire:

“O engenho de Baudelaire, alimentado de melancolia, é um engenho alegórico. Pela primeira vez, em Baudelaire, Paris torna-se objecto de poesia lírica. Esta poesia não é arte local ou de género; o olhar do alegórico, que atinge a cidade, é o olhar de um estranho. É o olhar do flâneur, cujo modo de viver envolve ainda de uma aura conciliadora aquele futuro desconsolado do habitante da grande cidade. O flâneur está ainda nos limiares, seja da grande cidade seja da burguesia. Uma e a outra ainda não o esmagaram. Ele não se sente à vontade em nenhuma das duas; e procura um refúgio na multidão. (…) A multidão é o véu através do qual a cidade bem conhecida aparece ao flâneur como fantasmagoria” (Benjamin, 1962: 155).

Aqui, Baudelaire recolhe a influência de Edgar Allan Poe, do qual traduzira um conto intitulado O Homem da Multidão. Benjamin não concorda com o paralelismo que possa existir entre este homem londrino e o flâneur parisiense, bem diferentes, de tão diferentes serem as duas cidades, mas não deixa de demonstrar a centralidade invisível da multidão num famoso soneto de Les Fleurs du Mal, “A Une Passante” (1962: 103), e a influência que ela tem na sua poesia:

La rue assourdissante autour de moi hurlait.                                                             Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,                                                     Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair… puis la nuit ! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?

Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard ! jamais peut-être !                                                         Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !

(Baudelaire, 2003: XCIII, pág. 131)

A multidão ensurdecedora da cidade que logo parece engolir inapelavelmente tudo aquilo que emerge fugazmente da sua vasta e confusa superfície ondulante é a fantasmagoria que o alimenta e o leva ao estado melancólico, depois do desespero pelo desejo puro incumprido, o dessa mulher que só encontrará na eternidade, a do canto sublime, aqui, neste poema.

Num texto que há algum tempo aqui publiquei falava do “estremecimento” como energia-choque propulsora do voo poético. Aqui, Walter Benjamin fala de “choc” neste encontro do olhar envolvente, e até comprometido, do sujeito poético com a figura de uma mulher que passa na multidão ruidosa e subitamente desaparece, frustando um eventual amor (“Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais”). A multidão engolira essa mulher “agile et noble”, essa “fugitive beauté” que o fizera renascer talvez mesmo para o amor. O “choc”: “un éclair… puis la nuit”. “Um amor não tanto ao primeiro, quanto ao último olhar”, como diz certeiramente Benjamin. Último porque foi esse que ficou e deu lugar ao lamento poético. Uma “catástrofe”. Uma perda. Ausência inexplicável perante tal estremecimento. Um estremecimento convulsivo do seu corpo e da sua alma perante um “clarão” que quase o encandeia e, de repente, a “noite”, o fim, a ausência que viria dar lugar ao poema do desejo, da melancolia ou até mesmo do desespero. Quem nunca experimentou o fulgor cativante de um olhar tão fugaz e tão intenso como este? Sim, mas, porque o clarão aqui dará lugar ao canto, torna-se  libertador, redentor este voo para as “regiões sobrenaturais da poesia”, onde habitam esses sentimentos já depurados do duro embate com a rugosidade e a aspereza implacável do real. Talvez se trate mesmo de um processo de metabolização poética do fracassado encontro e, por isso, de uma superior forma de resolução dessa “experiência vivida” a partir de um intenso e comprometido olhar.

A força da poesia de Baudelaire vê-se bem na difusão que ela teve e nos ilustres discípulos que interiorizaram a sua poética, mas vê-se também na leveza e na musicalidade com que assume essas linhas essenciais de fractura que separam a grande poesia de toda a outra. Apetece-me terminar com uma inocente provocação, usando o que ele próprio disse, em “L’Art Romantique”: “Ceux qui ne sont pas poètes ne comprennent pas ces choses” (1925:304). Será mesmo assim?

REFERÊNCIAS

BAUDELAIRE, Ch. (1925). L’Art Romantique. Paris: Louis Conard, Libraire-Editeur.

BAUDELAIRE, CH. (2003). Les Fleurs du Mal. In   http://elg0001.free.fr/pub/pdf/baudelaire_les_fleurs_du_mal.pdf                          

BENJAMIN, W. (1962). Angelus Novus. Torino: Einaudi

CIORAN, E. (2022). Breviário de Decomposição. Lisboa: Edições 70

CROCE, B. (1967). Storia dell’estetica per saggi. Bari: Laterza.

ELIOT, T. S. (2019). Ensaios Escolhidos. Lisboa: Relógio d’Água.

RACINE, L. (1808). Oeuvres. Paris: Lenormant.

VALÉRY, P. (1924). Situation de Baudelaire. Monaco: Imprimerie de Monaco.

JAS@03-2023

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