Artigo

“A CULPA É DO SISTEMA”

Por João de Almeida Santos

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“O Sistema”. JAS. 05-2023

ESTA FRASE, “A culpa é do sistema”, era normalmente atribuída à esquerda radical, onde por “sistema” se entendia o capitalismo ou o imperialismo. Mas ela também é aplicável ao populismo, onde por “sistema” se pode entender um sistema político centrado na ideia de representação e governado pelas elites. Mas, em geral, ela também serve para atribuir à governação as culpas de todos os males da sociedade, a começar pela pobreza. A culpa, nestes casos, surge como resultado da acção da comunidade politicamente organizada e nunca referida ao indivíduo singular. Este surge sempre como vítima, nunca partilhando a responsabilidade pelo que acontece, numa autêntica inversão da famosa frase atribuída a John Kennedy: não perguntes sobre o que a América pode fazer por ti, mas sobre o que tu podes fazer pela América. Emerge sempre naquela frase o domínio total da comunidade sobre o cidadão singular, constituindo-se esta, por isso, como titular da culpa.

1.

O assunto merece uma reflexão profunda porque a tendência a elevar a fórmula a centro dos discursos políticos é também própria dos partidos de oposição (supostamente ao lado das vítimas), que atribuem a culpa de tudo o que de mau acontece nas sociedades a quem está no poder, gerando, com isso, uma correspondente predisposição nos que sofrem (no desemprego, na habitação, na saúde, na educação, etc., etc.): nunca atribuírem uma parte da culpa a si próprios. É o triunfo da tríade “liberdades, direitos e garantias” (da parte do sistema) e o obscurecimento da díade “responsabilidade e deveres” (da parte dos indivíduos singulares).

2.

A primeira posição tende a ser promovida, directa ou indirectamente, por aqueles que encontram no Estado a solução para todos os problemas; a segunda tende a ser promovida pelos que se filiam no pensamento liberal mais radical, em particular os que reconhecem que o Estado apenas deve garantir aquilo que comummente se designa por funções de soberania, excluindo outras funções, hoje sobretudo concentradas no chamado Estado Social.  Uns defendem a justiça distributiva, outros defendem a justiça comutativa, ou seja, a igualdade de condições no fim ou a igualdade de condições apenas no princípio. Neste último caso, aplicar-se-ia o prosaico princípio de que “quem tem unhas toca viola”, valorizando, assim, o esforço pessoal, a inteligência e o saber no próprio percurso de vida, complemento indispensável das condições igualitárias que lhe foram oferecidas no início do seu ciclo de vida.

3.

Estas diferenças devem estar sempre presentes no espírito de quem faz política a sério porque elas marcam substantivamente opções de política muito diferentes. São ambas respeitáveis, mas são diferentes e têm consequências diferentes. E hoje, em Portugal, elas ainda fazem mais sentido se tivermos em conta a situação de crise económica e social que vivemos, favorecendo naturalmente a crítica radical ao sistema e à correspondente culpa, imputável ao governo do momento ou ao próprio sistema político. E o governo do momento, se tiver como matriz uma visão mais comunitária do que societária da vida social, tenderá a responder neste mesmo registo e a reforçar o Estado Social até níveis que aqui já apelidei de Estado-Caritas (hoje muito bem representado pelo actual Chefe de Estado). Mas a crítica será promovida não só pelos populistas, imputando a culpa às elites que nos governam e ao sistema que as alimenta, mas também pelos liberais, que consideram que há Estado a mais e que uma parte substancial da responsabilidade deve recair sobre os indivíduos singulares. Outros há (e não são assim tão poucos, dirá seguramente Luís Montenegro) que, sem se definirem muito bem, sublinham a crise na esperança de que o poder lhes caia rapidamente nas mãos, sem exigência de grandes definições. Quando à esquerda radical, também essa continuará a dizer que a culpa é mesmo do sistema.

4.

No meio de tudo isto, e por todas estas razões, o discurso absolutamente dominante em Portugal tem sido o que atribui a culpa ao sistema, tendendo a ilibar o indivíduo singular da culpa e silenciando o discurso da responsabilidade e do dever. É hoje absolutamente dominante no discurso político português a tríade das liberdades, direitos e garantias e o princípio da “caridade” institucional, que se inscreve numa visão estatizante da vida colectiva. Um discurso que, naturalmente, se acentua nos períodos de crise.

5.

Lamentavelmente, eu creio que esta é mesmo a situação que estamos a viver, com o cidadão a manter-se confortavelmente na própria comodidade ou na indiferença, só se levantando para exigir ao “sistema” a resolução dos seus problemas, mesmo quando eles são imputáveis exclusivamente a si próprio. É por isso que se tem vindo a manter uma grande estabilidade nas grandes opções políticas da cidadania, abrindo-se somente brechas lá onde o Estado se revela incapaz de dar solução aos problemas que o próprio establishment político e mediático (com o seu enorme poder de agendamento público) chama ao topo da agenda. O que quero dizer é que estamos perante uma enorme falta de clareza nas opções de fundo dos partidos, sobretudo naqueles que têm vindo a governar alternadamente o país. Clareza nas alternativas relativamente às questões de fundo. Ou seja, falta clarificação sobre a própria identidade politica, sobretudo ao nível dos partidos da alternância, para não dizer que a tendência de fundo tem sido a de assumirem, ambos, espontaneamente, a vocação totalizante do Estado, diluindo as próprias diferenças. Por exemplo, li hoje um artigo de opinião num jornal onde a articulista instava veementemente o PSD a assumir-se como social-democrata e de esquerda, seguindo a orientação referida por Francisco Pinto Balsemão e atribuída a Francisco Sá Carneiro. Tenho as maiores dúvidas de que o PSD seja social-democrata ou que deva sê-lo, uma vez que social-democrata é o PS. Verificar-se-ia assim uma autêntica sobreposição política e ideológica. O PSD de Sá Carneiro era PPD, partido popular democrático, interclassista, e isso diferenciava-o do PS, ideologicamente mais alinhado com as classes subalternas. Na verdade, no meu entendimento, e em termos doutrinários, o PSD sempre foi um partido de tendência liberal-democrática. Mas o próprio PS nunca clarificou muito bem uma questão de extrema importância: sendo um partido socialista ou social-democrata um dia terá de esclarecer a sua relação com o pensamento liberal e com o iluminismo, a filosofia que lhe corresponde. Porque é nesta clarificação que a questão com que iniciei este artigo pode ser clarificada: o papel do indivíduo singular na sociedade, para que não continue refém dessa visão dominantemente comunitária, e de inspiração marxista. O SPD fê-lo em 1959, em Bad Godesberg. O Labour fê-lo ao longo de cerca de dez anos (entre 1985, com Neil Kinnock, John Smith e Tony Blair, e 1995/96). Só esta clarificação poderá também clarificar a sua ideia de Estado, das suas funções e o âmbito que elas abrangem. Por exemplo, para referir um caso muito actual – proposta de lei do governo -, deve o Estado legislar ao pormenor sobre a venda e o consumo de tabaco na via pública, promovendo uma lógica de progressiva higienização da vida colectiva? Ou a injunção sobre o direito de propriedade em matéria de habitação em nome de um mais que vago direito à habitação, onde mais parece que “se não tenho casa própria, a culpa”, lá está, “é do sistema”. O direito de habitação limita-se a ser direito a comprar casa ou a arrendá-la. A função do Estado, neste caso, deve ser a de promover, sem ferir os direitos individuais (como, por exemplo, o direito de propriedade), o mercado de arrendamento (por exemplo, através de uma drástica redução fiscal e burocrática) e não ser ele próprio o arrendatário ou até, em última instância, o garante da posse de habitação. A habitação é um bem essencial disponível no mercado como tantos outros, incluídos os bens alimentares.

6.

É claro que o sistema tem muitas culpas, embora tenha possibilitado avanços civilizacionais e materiais enormes. Sim, é verdade. Mas o que não se pode dizer sempre é que a culpa é do sistema e o sistema, assumindo a culpa, começar a fazer injunções na sociedade civil que não lhe competem. Ou, mais ainda, indo aos bolsos dos contribuintes (3 milhões em 5,4 milhões de agregados) que alimentam o sistema para se redimir da culpa de, por dever inscrito na sua matriz, dar tudo à chamada vítima do sistema. Sabemos bem a que é que esta filosofia levou.

7.

E se isto me incomoda na área política em que me revejo (mas talvez pertença à sua ala direita), também me incomoda ouvir dizer ao actual líder do PSD que este partido não tem problemas existenciais, apesar de ter um bem grande mesmo ali ao lado, provocado por um antigo militante do seu próprio partido. Na verdade, o grande problema existencial do PSD é precisamente a sua permanente indefinição de identidade. Melhor, a manutenção de uma equívoca identidade: pretender representar a direita, mas, ao mesmo tempo, declarar-se de esquerda ou social-democrata.

Não, a culpa não é só do sistema. Também é dos  cidadãos, mas sobretudo dos que, abrigados no sistema, se sentem demasiado acarinhados por ele para mudar, nem que seja apenas numa lógica simplesmente transformista. O que seria muito pouco, mas, pelo menos, melhor do que a importação de uma lógica de higienização integral da vida colectiva, desde a linguagem até à saúde. JAS@05-2023

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“O Sistema”. Detalhe.

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