“TRIAL&ERROR”
O MÉTODO DA POLÍTICA BRITÂNICA

“S/Título”. JAS. 10-2022
AS ELEIÇÕES OCORRERAM no final de 2019, com um extraordinário resultado para os tories de Boris Johnson, mas, como se sabe, este, atropelado pelas inúmeras trapalhadas ocorridas durante a pandemia, foi forçado a deixar a liderança e, consequentemente o cargo de primeiro-ministro (é esta a norma no sistema britânico), tendo sido substituído por Liz Truss, após uma renhida disputa com Rishi Sunak. Agora, pouco tempo depois de assumir a liderança, também Liz Truss acabou por ter de sair e o Partido Conservador escolheu rapidamente, mais uma vez, um novo líder e um novo primeiro-ministro. Três líderes e três primeiros-ministros em três anos (e cinco em seis anos, desde 2016). Pior: três primeiros-ministros num só ano. Pior ainda: entre Julho e Outubro. É obra, temos de reconhecer. E as eleições só serão em Dezembro/2024 ou em Janeiro/2025. Haverá ainda tempo para um quarto líder e um quarto primeiro-ministro? Não se sabe, mas, à prova dos factos, já verificados, tudo pode acontecer. O método parece ser o conhecido “Trial&Error”. Os conservadores vão tentando, até reduzindo procedimentos, até acertar. É a política compatível com este método?
I.
O PARTIDO CONSERVADOR tem uma maioria muito confortável no parlamento (357 mandatos, contra 196 dos trabalhistas, sendo necessários para a maioria absoluta 326). O sistema institucional numa democracia parlamentar como a britânica confia a formação do governo ao partido que tiver maioria. Apesar do poder (basicamente cerimonial) de nomear e exonerar o primeiro-ministro e de dissolver o parlamento, a margem de escolha do Rei não existe, pois este, de acordo com a tradição, deve aceitar as escolhas políticas que o primeiro-ministro e o parlamento fizerem, não dispondo do poder de livremente decidir sobre a nomeação do primeiro-ministro ou sobre a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições. O rei reina, mas não governa e tem o estrito dever de manter neutralidade política.
“the Crown is an integral part of the institution of Parliament. The King plays a constitutional rol in opening and dissolving Parliament and approving Bills before they become law” (...) “Time has reduced the power of the monarchy, and today it is broadly cerimonial” (…). “The day after a general election the King invites the leader of the party that won the most seats in the House of Commons to become Prime Minister and to form a government” (…) “The Crown also dissolves Parliament before a general election” (do Site do UK Parliament).
Numa palavra: os poderes do rei são de carácter meramente formal. A neutralidade real é garantida pela (obrigatória) assunção formal das decisões políticas tomadas pelo Parlamento e pelo PM. O partido maioritário detém, assim, todo o poder e, note-se, está também acima de qualquer liderança, relativizando de certo modo aquela que tem sido a crescente personalização da política (maior nos sistemas presidencialistas e nos sistemas eleitorais proporcionais). Mas também acontece que o poder do partido e o da liderança não anulam o poder de cada militante (decisivo para a eleição do líder) e, sobretudo, de cada deputado no seu interior, enquanto eleito em sistema maioritário uninominal e portador de legitimidade originária própria. Note-se que, desta vez, por decisão do Comité 1922, Rishi Sunak foi eleito somente pelos deputados do partido, sem recurso ao voto dos militantes (o que não acontecera com Liz Truss). Neste sentido, o partido conserva uma forte dialéctica interna diferente daquela onde a liderança partidária domina absolutamente a vida interna dos partidos, sendo a militância sobretudo “braço armado” da liderança de turno, “massa de manobra” para o combate eleitoral, não tendo os deputados o mesmo poder. Isto sobretudo nos partidos mainstream, nos partidos que tradicionalmente disputam a alternância governativa e que, por isso, dispõem de um vasto poder de ocupação da administração do Estado. Neste caso, o sistema eleitoral que melhor se adapta é o sistema proporcional com listas fechadas, onde não só as lideranças podem impor os seus candidatos, mas onde também estes não têm de disputar directamente os círculos eleitorais onde se candidatam – na verdade, a disputa centra-se sobretudo no partido (na sigla) e numa liderança altamente personalizada. E por isso verifica-se uma diferença substancial entre estes dois sistemas: em ambos o partido é decisivo, mas no sistema maioritário uninominal não só os deputados têm uma maior autonomia política, correspondente à responsabilidade pessoal de ganhar o respectivo círculo eleitoral (constituency), como também o partido na sua proposta tem de reconhecer e respeitar as dinâmicas da sociedade civil, sendo obrigado a fazer criteriosas escolhas dos seus candidatos se quiser ter sucesso eleitoral. Nestes sistemas muitas vezes a maioria eleitoral no país nem sequer corresponde à maioria vencedora. Esta pode perder no país, mas ganhar em mandatos. Este sistema eleitoral (maioritário uninominal) tem naturalmente uma influência directa sobre o próprio partido. Não é a panaceia que tudo resolve, mas é melhor do que um sistema que acabe sempre por afunilar o processo político na liderança do momento. Tal como as primárias abertas não o são, embora também estas sejam melhores do que o sistema que não as adopta. A questão é mais funda, mas também aqui está muito em jogo o bom e o eficaz funcionamento de um partido político.
II.
O SISTEMA INGLÊS tem esta vantagem e não raramente se assiste a crises de líderes (e de primeiros-ministros) centradas nos respectivos grupos parlamentares. Foi o que aconteceu com Johnson e com Liz Truss. Parece ser negativo, mas, na realidade, é mais positivo do que negativo. O sistema ganha maior vitalidade e liberdade interna.
Mas, neste caso, depois da saída de Liz Truss, será compreensível que se assista a uma terceira tentativa sem que, razoavelmente, a palavra seja devolvida ao povo (mas nem sequer foi dada aos militantes), verificada que está a longa desorientação do próprio partido conservador? Provavelmente, se fosse uma república parlamentar, como a nossa, o Reino Unido estaria agora em eleições antecipadas. Em Portugal seria assim, com toda a certeza. Já aconteceu por menos (recentemente, mas também com a dissolução do Parlamento por Jorge Sampaio). Só que na monarquia constitucional britânica, com um Rei desprovido tradicionalmente de iniciativa política, não há mecanismo institucional que possa decidir eleições antecipadas, estando esse poder no Parlamento (existe, para a dissolução, um Fixed-term Parliaments Act 2011: “An Act to make provision about dissolution of Parliament and the determination of polling days for paliamentary general elections”) e no primeiro-ministro.
E, todavia, parece evidente, vistas as circunstâncias, que o Reino Unido ganharia em ir para novas eleições legislativas como vem pedindo o Labour de Keir Starmer, dado, pelas sondagens, como claríssimo vencedor se isso viesse a acontecer, o que indicia uma evidente perda de legitimidade dos conservadores. Mas os tories, estando no poder desde 2010 (desde o tempo de David Cameron, o verdadeiro responsável moral pelo BREXIT) e estando, numa sondagem de YouGov, 33 pontos abaixo dos trabalhistas (21% contra 54% do Labour) e 21 pontos noutra, da Survation, não parece estarem muito interessados em ir para eleições, esperando melhores condições em 2024/2025. O que não será coisa fácil. O novo líder foi, de facto, declarado na Segunda-Feira e nomeado pelo Rei ontem. E é Rishi Sunak. O sistema procede, pois, por um cada vez mais expedito método “trial and error” no interior do partido maioritário e, consequentemente, no próprio executivo britânico. Vamos ver se é de vez agora e iremos também ver se os cidadãos e o grupo parlamentar farão uma avaliação positiva da sua acção até às próximas eleições. Rishi Sunak tem, portanto, pouco mais de dois anos para mostrar o que vale. Como se dizia na segunda-feira, 24.10, no New York Times (Eshe Nelson), ele vai precisar de muita habilidade para navegar entre um partido “unruly and fractious” e o rigor nas finanças públicas exigido pelos mercados financeiros. Para já, reconduziu grande parte do governo anterior.
III.
NA VERDADE, esta situação não parece dignificar muito a própria política, ao reduzi-la simplesmente a uma questão de poder e, neste caso, ao único objectivo de manter o poder a todo o custo. As virtudes do sistema britânico têm, neste caso, consequências que são claramente negativas. Na verdade, não havendo eleições, como decidido pela ex-primeira-ministra e pelo Comité 1922, isso significará uma ulterior degradação da política ou mesmo uma autêntica autêntica palhaçada democrática, como afirmam os autores de uma petição em curso (promovida pela Avaaz.Org – The World in Action) para a realização imediata de eleições: “it makes a mockery of democracy”. Pelo menos, parece ser a redução da política a um mero exercício de poder, a um seu uso instrumental, a uma menorização do próprio princípio da legitimidade substancial e da legitimidade de exercício. E um uso excessivo (em política), e cada vez mais expedito, do método assente em “trial and error”, pouco adequado ao processo político democrático, mesmo tendo em consideração a natureza (livre) do mandato não imperativo. De resto, como vimos, as sondagens são claríssimas sobre o estado da opinião pública e a legitimidade do partido conservador para governar. Talvez Keir Starmer tenha mesmo razão: “the Tories have shown they no longer have a mandate to govern. (…) It’s time to a general election” (de um e-mail de Starmer). Parece-me mesmo que sim. Em nome da decência política. Mas isso não irá acontecer se Sunak conseguir estabilizar a liderança do partido conservador, a sua principal tarefa, já que a resolução da crise se mostrará muito mais difícil.