Artigo

AI, BRASIL

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS, 10-2022

ENCERRADA A PRIMEIRA VOLTA das eleições presidenciais no Brasil (a segunda será no dia 30.10), ficamos a saber que as sondagens falharam no cálculo da distância prevista entre a vitória de Lula da Silva e a derrota de Jair Messias Bolsonaro. A distância entre os dois foi muito menor do que as sondagens previam e Bolsonaro contrariou o anunciado desastre eleitoral. Uma primeira conclusão há que tirar daqui: Bolsonaro representa um vasto bloco de poder radicado na sociedade, que é muito maior do que a sua figura política e presidencial. Bloco que começa logo na organização política da sua própria família, ou seja, na distribuição de funções pelos seus três filhos: no Senado (política), nas relações internacionais (diplomacia) e na comunicação digital (propaganda). Um bloco que, depois, nesta primeira volta, já exibe melhores resultados do que a esquerda nas eleições para a Câmara dos Deputados, para o Senado e para os Governadores dos estados federados (que são 27, tendo já sido eleitos 15). E um sistema onde até essa figura desqualificada de Sérgio Moro, depois de várias peripécias pouco edificantes, consegue ser eleito, no Paraná, para o Senado. Ou mesmo um tal Deltan Dallagnol, também implicado nas trapaças do processo Lava Jato, já eleito para a Câmara dos Deputados, também no Paraná.  Portanto, um sistema institucional que está a absorver personagens duvidosos no seu interior, contribuindo, assim, para piorar o próprio sistema institucional, que, afinal, se tem revelado pouco credível. Exemplos? É ver como se processou o impeachment de Dilma Rousseff e todas as histórias que envolveram o ex-Presidente Michel Temer e o ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, já para não falar do processo que levou à prisão de Lula da Silva e que o próprio sistema judicial acabou por anular (mas veja os meus Artigos sobre o assunto: “Quanto conta o voto popular?” (aqui transcrito e também em link) – https://www.jornaltornado.pt/quanto-conta-voto-popular/; e “Lawfare” – https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/24/artigo-23/).

I.

O BLOCO DE PODER DA DIREITA, na sua maioria, inscreve-se na nova direita nacional-populista, que tem em Trump a referência idolatrada de Jair Bolsonaro, mas que também avança fortemente na Itália de Giorgia Meloni (veja o meu Artigo sobre o assunto, aqui: https://joaodealmeidasantos.com/2022/09/27/artigo-82/), na França de Marine Le Pen, na Espanha de Santiago Abascal, na Hungria de Viktor Orbán ou na Polónia do Senhor Kaczynski, entre outros, incluído o português CHEGA. Em três destes países governa.  Uma realidade que é necessário ter na devida consideração porque ela já representa um poder político nacional e internacional considerável. E um forte poder na União Europeia, se tomarmos em consideração as regras de funcionamento do sistema decisional da União.  E não fossem os erros clamorosos de Trump, designadamente o louco ataque ao Capitólio ou a apropriação indevida de documentos do Estado, e a força deste bloco ainda seria maior, visto o papel de referência que os USA desempenham na cena internacional. Os sucessivos episódios de Trump vieram descredibilizar esta direita americana, que perdeu alguma capacidade propulsiva na cena internacional.

II.

MAS A VERDADE é que, no Brasil, Lula da Silva conseguiu um resultado que ficou a menos de dois pontos da maioria absoluta que o consagraria de imediato como Presidente. A expectativa era grande, o resultado é muito significativo, mas foi diminuído pela resiliência de Bolsonaro e do bloco de poder que ele representa. Pouco significativos foram, entretanto, os resultados de Simone Tibet, com cerca de 4%, e de Ciro Gomes, com uns miseráveis 3% (relativamente ao que noutras eleições tivera, uma média de quase 12% nas outras três tentativas). Nestas eleições a polarização foi, de facto, muito intensa, numas eleições onde votou 79% dos 156 milhões de eleitores.

III.

O QUADRO POLÍTICO saído destas eleições não é muito animador para a esquerda, embora a vitória presidencial esteja ao alcance de Lula da Silva. Pelo contrário, a direita surge com mais força do que aquela que se registava nas sondagens e na própria opinião pública. A nível presidencial, mas sobretudo a nível do Congresso e do governo dos estados federados. A onda de esquerda que se tem vindo a verificar na América Latina (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Honduras, México, Panamá, Peru) conhecer sérias dificuldades naquele que é o seu maior país e a sua maior democracia.

Uma das fraquezas da candidatura de Lula da Silva, mas que também pode ser considerada como um ponto forte, é ela, por um lado, ser vista como um regresso ao passado, um dejá-vu mais centrado no passado do que no futuro, mas, por outro, ser vista também como um resgate da injustiça clamorosa que foi cometida quer contra o PT quer contra Lula da Silva e Dilma Rousseff; esta candidatura ser, pois, vista como um ajuste de contas com um bloco de forças que usou todos os meios não só para tirar do poder o Partido dos Trabalhadores, mas também para pôr no poder um seu agente pouco qualificado, um seu fiel serventuário, ideologicamente marcado como de extrema-direita ou nacional-populista, intérprete das novas tendências da direita que têm vindo a afirmar-se um pouco por todo o lado. Uma escolha, pois, supostamente alinhada com os ventos da (sua) história.  Os resultados deste primeiro turno são para eles animadores. A dimensão da votação, mais de 51 milhões de votos, é para levar a sério.

IV.

NA VERDADE, ESTES RESULTADOS são preocupantes. E não só em matéria de política nacional. Eles são um ulterior e preocupante sinal do avanço político da extrema-direita um pouco por todo o lado, um péssimo sinal para o conflito que o ocidente trava com a Rússia de Putin e um sinal preocupante para o combate à ameaça ambiental, em particular para a salvaguarda do pulmão do Mundo, a Amazónia. Mas um sinal preocupante também para a democracia e para todos os que confiam numa intervenção eficaz do Estado quando se verifiquem sérios riscos e ameaças à colectividade. O que aconteceu durante a pandemia deveria pôr em alerta todos os que hoje são chamados a escolher o Presidente. Mas, pelos vistos, a evidência não foi assim tão evidente. O Brasil está, de facto, fortemente dividido e bipolarizado.

V.

MAIS DE SEIS MILHÕES DE VOTOS separam os dois candidatos que disputarão o segundo turno. Uma situação que favorece, à partida, Lula da Silva. Seis milhões de votos não é pouco. Mas é preciso não esquecer que por detrás de Bolsonaro há todo um bloco de poder fortemente enraizado na sociedade civil brasileira e com uma fortíssima presença nas instituições do Estado, a começar no próprio Congresso e no governo dos estados federados e a terminar nas Forças Armadas. Este bloco de poder mobilizará todas as suas forças para influenciar o eleitorado, animado pelos resultados desta primeira volta e convencido de que ainda poderá dar a volta ao resultado. Interessante será também a posição de Simone Tebet e de Ciro Gomes na sua indicação de voto… ou no seu silêncio, que seria sempre interpretado como de tácita tolerância para com Bolsonaro e o bloco de poder que ele representa (mas Ciro Gomes já disse que acompanha a decisão do seu partido, PDT, no apoio a Lula da Silva, embora sem mencionar Lula no vídeo em que anuncia a sua posição, e Simone Tebet também já terá decidido o apoio a Lula da Silva). Somados, representam mais de sete por cento do eleitorado e cerca de 8,5 milhões de votos. A sua mobilização poderá, pois, ser determinante para o desfecho destas eleições.

VI.

DE QUALQUER MODO, para além das considerações de ordem mais política e programática, o que aqui está também em causa é a relação entre a política e a ética, uma moralidade de senso comum que é transversal a qualquer actividade humana e uma correspondente concepção de democracia que respeite os seus valores fundamentais e onde os adversários não sejam considerados pura e simplesmente como inimigos. O resultado do dia 30 de Outubro dir-nos-á muito não só sobre o estado da política no Brasil, mas também sobre a evolução da política no plano mundial. Uma evolução que, de resto, não está a conhecer bons dias.

VII. Reprodução de Artigo (suplementar) 
sobre o “Impeachment” de Dilma Rousseff.
Quanto conta o voto popular?”
Por João de Almeida Santos
(Art. publicado em 01.09.2016)

“TRÊS JURISTAS, Miguel Real Jr., Janaina Paschoal e Hélio Bicudo, solicitaram o Impeachment, em 2015. A pedido de quem? Não se sabe, mas…

1. EDUARDO CUNHA, Presidente da Câmara dos Deputados, que arriscava um processo na Câmara, acusado de ter 5 milhões de dólares na Suíça por subornos (Petrobras/Lava-Jato), pede a Dilma e ao PT que impeça, com o voto, a investigação. Dilma e o PT recusam. Cunha admite o pedido de “impeachment” e despacha-o em grande velocidade. Final: Dilma perde o mandato presidencial. Michel Temer, o seu vice e ex-aliado, também ele suspeito de corrupção, torna-se Presidente efectivo até às eleições de 2018.

2. A ACUSAÇÃO (por “crime de responsabilidade”) baseia-se em três decretos presidenciais que envolveram cerca de 717 milhões de dólares em créditos de bancos públicos para financiar as áreas da educação, do trabalho, da cultura e da justiça. Segundo os acusadores foram feridos o n.º 2 do Art. 11 e o n.º 4 do Art. 10 da “Lei do Impeachment”, que implicam “crime de responsabilidade” (Cap. VI – crimes contra a “Lei Orçamentária”). A defesa (e Dilma) argumentou que eram despesas já autorizadas pelo Senado, tendo-se verificado somente alternativas à alocação de recursos, não afectando a meta fiscal. Mas Dilma também foi acusada de ter atrasado o reembolso, ao Banco do Brasil, de cerca de mil milhões de dólares (relativos ao Plano SAFRA), considerando que este atraso era de facto uma operação de crédito (!), proibido por lei, incorrendo, por isso, noutro “crime de responsabilidade” (art.s 10 e 11). Na verdade, nem o próprio Ministério Público Federal o considerou crédito. Pedaladas fiscais! Mas, neste caso, a Presidente nem sequer praticou qualquer acto (a responsabilidade é do Ministério da Fazenda). Maquilhagem de contas, disseram os acusadores.

3. FUI LER A LEI. No caso do Presidente, para oito “crimes de responsabilidade” estão previstos 65 casos em que estes podem ocorrer. Cabe lá tudo. Até um que diz “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo”! Ou, então, “infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais” ou, ainda, “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. Este último também foi invocado na acusação. E outros que são claramente instrumentalizáveis para efeitos de destituição arbitrária do Presidente. Basta interesse, um pouco de imaginação e bonecos de serviço.

4. TRATA-SE DE JUSTIÇA POLÍTICA e não já propriamente de responsabilidade penal. Muito bem. Mas com esta lei qualquer Presidente – e o regime brasileiro é presidencialista – está altamente fragilizado porque permanentemente sujeito a fáceis “conjuras” jurídico-políticas, como esta. E muito em particular pelos poderes fortes que circulam nos corredores do poder brasileiro… e fora dele. Por exemplo, pelos famigerados mercados (que até estimularam o processo)!

5. O “IMPEACHMENT” é um instrumento antigo. Vem de Inglaterra, do século XIV. Era um modo de submeter os Ministros (nomeados livremente pelo rei) ao crivo do Parlamento em caso de crimes graves (responsabilidade penal). A Constituição dos USA (1787) prevê-o explicitamente (art. 1, secção 3; art. II, secção 4). Mais tarde ganharia, de facto, uma dimensão também ético-política (veja-se o caso Clinton).

6. ESTE INSTRUMENTO tem-se revelado bastante problemático e irregular. O Presidente é eleito por sufrágio universal directo (neste caso, foi por cerca de 54,5 milhões de eleitores, em 110 milhões). Também o seu é um mandato não imperativo e, portanto, só em caso de grave responsabilidade penal, e em extrema “ratio”, deveria ser aplicado (Constituição USA, 1787, art. II, secção 4: “traição, corrupção/extorsão ou outros crimes graves”). Mas, no caso brasileiro, com o que a lei prevê, há para todos os gostos. No fim de contas, do que se trata é de um instrumento para revogar mandatos presidenciais e confiscar a soberania popular (sobretudo num regime deste tipo).

7. DISSE O EX-MINISTRO DA ECONOMIA, Nelson Barboza: “vocês decidiram que há um crime e, portanto, procuraram o delito”. Nem mais. O cardápio é extenso e para todos os gostos. Até para a nossa Paula Bobone, como vimos!

8.OS VOLUNTÁRIOS FORAM TRÊS mais um: os juristas e Eduardo Cunha que, afastado da Presidência da Câmara, ainda continua deputado (à espera do processo). A condenada, que nem sequer era suspeita, já perdeu o mandato presidencial. Bonita “justiça política”, esta!

A SITUAÇÃO ECONÓMICA ajudou à festa, com o PIB a cair e o desemprego e a inflação a subirem. Mas, por isso mesmo, a democracia brasileira não precisava disto. Na verdade, as conjuras quase já não precisam de armas. Nem sequer das armas brancas do tempo de Maquiavel. Basta esgrimir, de forma conjugada e com alguma maestria, o direito e os media. Intelectuais orgânicos da conjura é o que não falta. E por isso não entendo esses democratas dos quatro costados que viram no afastamento de Dilma uma fulgurante vitória da sua formidável razão política.“Beati loro!”, costumam dizer os italianos.”

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