O REGRESSO DE GIUSEPPE CONTE
Por João de Almeida Santos

“O Contrato Digital”. Jas. 03-2021.
“Se vuoi andare veloce, vai da solo. Se vuoi andare lontano, vai insieme” (Ditado africano, posto por Beppe Grillo como leitmotiv de um seu recente artigo)
JULGO SER DE GRANDE INTERESSE, não só político, mas também teórico, seguir em detalhe o caso do italiano Movimento5Stelle (M5S), partido digital, ainda a maior força política presente no Parlamento saído das eleições de Março de 2018, com 32,7% dos votos e com os dois maiores grupos parlamentares, no Senado e na Câmara dos Deputados, 76 em 315 (ou 321, com os 6 Senadores “a vita”, entre os quais, actualmente: Claudio Abbado, Maestro, Renzo Piano, Arquitecto, e Carlo Rubbia, Nobel da Física) e 168 em 630, respectivamente. Uma força que está no governo desde 2018, mas que tem vindo a perder consensos, ao ponto de as últimas sondagens (8, em Janeiro e Fevereiro) lhe darem em média 14,7% como score eleitoral. Mas é um partido que diz que não é, que se reconhece como movimento ou, melhor ainda, como “livre associação de cidadãos”, como se lê logo na abertura do site do M5S. Tive ocasião de reflectir longamente sobre este Movimento num ensaio (Mudança de Paradigma: a emergência da rede na política. Os casos italiano e chinês) publicado pela Revista ResPublica (17/2017, pp. 51-78: http://cipes.ulusofona.pt/wp-content/uploads/sites/137/2018/07/RES-17v11.pdf), procurando evidenciar as características de um movimento político de novo tipo, ancorado, por um lado, num ambiente digital que funciona como o seu território, a sua cidade, e, por outro, na ideia de cidadania digital e de democracia directa digital, uma democracia pós-representativa, ancorada num cidadão user ou, melhor, prosumer, produtor e consumidor de política e comunicação. Um novo tipo de cidadão, portanto. Mas um movimento que, além disso, assumia uma liderança unipessoal, a de Beppe Grillo, como “garante” da sua própria coesão e, por isso mesmo, designado como “Il Garante”. É um movimento que tem, neste momento, 187.219 inscritos certificados, tendo direito de voto 118.918 inscritos. Além de “Il Garante”, tem um “Capo Politico” executivo, actualmente Vito Crimi, tendo, entretanto, sido aprovada na Plataforma Rousseau, também designada por Eco-sistema Rousseau, uma alteração estatutária que atribui a direcção executiva do M5S a um Comité Directivo composto por cinco pessoas, a escolher em eleições que decorrerão na Plataforma. As deliberações do M5S são tomadas por votação dos inscritos nesta plataforma e vinculam os grupos parlamentares e os inscritos. Não é, de resto, por acaso que a plataforma se chama Rousseau, pois este filósofo contratualista, no “Contrato Social (1762), recusa precisamente a representação política, substituindo-a pela ideia de comissariado: “La souveraineté ne peut être représentée, par la même raison quʼelle ne peut être aliénée; elle consiste essentiellement dans la volonté générale, & la volonté ne se représente point: elle est la même, ou elle est autre; il nʼy a point de milieu. Les députés du peuple ne sont donc ni ne peuvent être ses représentants, ils ne sont que ses commissaires; ils ne peuvent rien conclure définitivement” (Du Contrat Social: Liv. III, Cap. XV; itálico meu).
Digamos que a instituição representativa surge aqui como continuação da democracia directa exercida pelos inscritos (os “cidadãos activos”, de kantiana memória) no Eco-sistema Rousseau, instância política a que ficam subordinados os (seus) representantes-comissários no Parlamento. Ou seja, não existe neste Movimento a distinção entre génese (poder de propositura das candidaturas) e validade (titularidade do poder soberano), ficando os representantes dependentes da vontade de um poder privado, neste caso o M5S, o que contraria a própria constituição italiana, ao determinar que os representantes não têm vínculo de mandato, reproduzindo, de resto, os termos constantes do famoso art. 7., Secção III, Cap. I, Título III, da Constituição francesa de 1791: “Les représentants nommés dans les départements, ne seront pas représentants d’un département particulier, mais de la Nation entière, et il ne pourra leur être donné aucun mandat” (itálico meu). Claro como a água: serão representantes de toda a Nação e “não lhes poderá ser dado vínculo de mandato”.
Por outro lado, a visão programática estratégica do M5S, além das profundas mudanças no plano estritamente político e do combate contra o clássico establishment político e mediático (até à sua substituição por um seu governo, como aconteceu em 2018), centra-se no pilar fundamental da ecologia (ambiente, água, energia), que pode ser traduzido por transição ecológica e digital e que já se encontra materializada em dois ministérios do governo Draghi, precisamente o da Transição Ecológica, proposto e negociado por Grillo, e o da Inovação Tecnológica e Transição Digital.
Estas as características essenciais de um Movimento que ainda é a maior formação política italiana e que integra o actual governo de Mario Draghi, com quatro dos 23 ministros que compõem o executivo.
O M5S EM MOVIMENTO
O que, entretanto, está a acontecer, agudizado pela votação da moção de confiança ao governo Draghi e que viria a dar origem a uma grave divisão no seio do Movimento, já com 36 ou 39 expulsões de deputados e senadores, levou Beppe Grillo e a cúpula dirigente do M5S a dar início a um processo de refundação do Movimento, estando já concordado que Giuseppe Conte, o ex-Presidente do Conselho de Ministros desde 2018, assumirá a sua liderança, mantendo-se, naturalmente, Beppe Grillo como “Il Garante”, o patrono. Decisão que não será alheia aos resultados de sondagens que dariam o M5S a subir significativamente com Conte na liderança. Com efeito, ontem foi divulgada uma sondagem da Swg para “La 7”, onde, se fosse liderado por Giuseppe Conte, o M5S subiria mais de 6 pontos alcançando a Lega (22% contra 22,3%) e penalizando sobretudo o Partido Democrático, que se ficaria pelos 14,2%, abaixo, em cerca de dois pontos, de Fratelli d’Italia. Um significativo resultado do índice de agrado que Conte conserva na opinião pública. Uma catástrofe para o Partido Democrático. E o sinal de que Itália está a conhecer profundas mudanças no panorama político.
Mas qual é a nova filosofia para o renascimento de um movimento que está reduzido eleitoralmente a menos de metade, que não vê a sua representação política traduzir-se em lugares no governo, que está à beira de se partir (quase) ao meio e que foi incapaz de, mesmo estando no governo, operacionalizar no terreno uma das suas bandeiras mais significativas, a cidadania digital? A aposta é clara se tomarmos na devida consideração o artigo de Domingo, 28.02, de Beppe Grillo, “Andiamo Lontano”: o renascimento do movimento, em proposta confiada a Giuseppe Conte, e o desafio da transição ecológica e digital. Sendo certo que a questão do ambiente sempre foi um dos temas programáticos originários e fundamentais do M5S, neste momento esta parece ser a área decisiva a partir da qual o M5S se virá a repropor aos eleitores italianos. Esta é uma aposta que Grillo vê como maior do que a própria aposta na economia e na política, visto que se trata de um desafio civilizacional, social, cultural e moral que, mais do que uma concretização programática, implica uma mudança global na forma como todos, e cada um, deverão encarar a vida, na mentalidade, nos hábitos, nos costumes e nos objectivos. Uma revolução difícil, portanto, porquanto atinge o comportamento quotidiano da cidadania, uma revolução nos seus hábitos. Diria que, vista a importância que o M5S atribui à transição digital, a um avanço na sociedade digital e em rede deverá corresponder um regresso a uma Lebenswelt mais próxima da natureza, mais respeitadora das suas leis, mais contida e sábia na exploração dos recursos naturais. Não se tratará, claro, de um back to the basics, um regresso à vida campestre, mas corresponderá a uma forte inversão no percurso devastador da economia capitalista e no “excessivo desenvolvimento económico potencialmente destruidor do ponto de vista ambiental”, como diz Grillo. Uma revolução que terá, portanto, um enorme impacto sobre a economia, sobre a redução das desigualdades e, naturalmente, sobre a sustentabilidade do próprio planeta.
É claro que tudo isto terá de ser submetido a voto na Plataforma Rousseau, havendo já quem critique o afunilamento decisional que se está a verificar por parte da elite dirigente, num movimento que, afinal, reivindica para si a necessidade de devolver “à totalidade dos cidadãos o papel de governo e de orientação normalmente atribuídos a poucos”. E a questão começa logo no papel do Comité Directivo que foi recentemente aprovado e que agora deve ser adaptado a uma nova liderança interpretada por Giuseppe Conte.
O M5S E A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
Há na filosofia do M5S um problema de fundo que não bate certo com a natureza da democracia representativa e com a dimensão universal das suas instituições políticas. Ou seja, segundo os estatutos, o mandato dos representantes eleitos nas listas do M5S é um mandato imperativo, vinculado às decisões do povo digital do M5S que se exprime concretamente na Plataforma Rousseau, o que contraria a própria constituição italiana: “Ogni membro del Parlamento rappresenta la Nazione ed esercita le sue funzioni senza vincolo di mandato”, art. 67. Ou seja, nenhuma plataforma, partido ou poder pode condicionar a vontade de um membro do parlamento, pois o que ele, eleito, representa é a Nação, estando, pois, acima de qualquer interesse particular, individual, territorial ou sectorial. Mas não é assim, como se comprova pela imediata expulsão de deputados e senadores que, no Parlamento, votaram contra a moção de confiança ao governo de Draghi.
Depois, vem o problema da cidadania digital, entendida de forma substantiva. Que significa esta cidadania? Que a cada cidadão é concedida a possibilidade material de se exprimir e de agir de no eco-sistema digital sem condicionamentos? Tem acesso livre e (pelo menos tendencialmente) gratuito não só aos meios adequados para exercer a cidadania digital, mas também às infraestruturas onde ocorre este exercício? Como intervém o Estado na materialização destas condições? Claro que a questão é muito vasta e vai desde a atribuição de uma identidade digital desde o nascimento e, depois, a partir da maioridade até ao desenvolvimento de um e-government com a integral disponibilidade digital da Administração Pública perante a cidadania. Sim, mas a questão do acesso é decisiva, indo desde a infraestruturação digital de todo o país em banda larga até à disponibilização dos instrumentos para o acesso digital, seja de plataformas seja de rede. Esta matéria tornou-se mais visível, um pouco por todo o lado, durante a pandemia em relação ao e-learning, uma vez que todas as famílias deveriam dispor de computadores e de rede para aceder ao e-learning, sob pena de se verificar um atropelo ao direito ao acesso gratuito à educação, provocando novas desigualdades. Desigualdades digitais materiais, para não falar da própria iliteracia digital. É certo que, no início, aquando da sua entrada no governo, o M5S parece ter tentado resolver este problema concedendo tempo diário limitado de acesso gratuito à rede, o que não parece ser uma brilhante solução nem uma formulação correcta da questão da cidadania digital, neste aspecto. É que, nesta perspectiva, e tratando-se de um bem público, a sua resolução não poderia deixar de tomar em consideração o acesso público gratuito e permanente a todas as condições necessárias para um exercício pleno da cidadania digital, e não um exercício intermitente da cidadania. Digamos, rede em canal aberto permanente e meios de acesso. Seria isto possível ou o problema ficaria limitado à disponibilização de cobertura universal em banda larga, ficando a operacionalização individual totalmente cargo do cidadão digital? Como se sabe, esta é uma questão que, precisamente a propósito do e-learning motivado pela COVID19, tem vindo a merecer a atenção da agenda pública. Uma questão, pois, de grande melindre, mas muito actual e premente, que deve merecer a devida atenção política, lá como cá.
CONCLUSÃO
Estas são questões de fundo com as quais o M5S tem se confrontar porque algumas delas entram em contradição directa com a natureza do regime de democracia representativa, até porque a pertença a instituições como o Parlamento as torna mais intensas, pondo mesmo directamente em causa as determinações estatutárias. Viu-se, como disse, na votação da moção de confiança ao governo Draghi e na desastrosa consequência estatutária da expulsão do Movimento de um número significativo de deputados e senadores que, por estatuto da República, não estão nem devem estar sujeitos a qualquer vínculo de mandato, enquanto forem intérpretes de uma democracia representativa. Mas, fosse qual fosse a crise já latente no M5S, com esta nova situação ela aprofundou-se e acabou por dar origem a uma espécie de refundação do Movimento, libertando-o das suas características mais radicais. Foi por isso que Di Maio, a propósito do governo Draghi, afirrmou:
«Questo governo rappresenta il punto di arrivo di un’evoluzione in cui i Cinque Stelle mantengono i propri valori, ma scelgono di essere finalmente e completamente una forza moderata, liberale, attenta alle imprese, ai diritti, e che incentra la sua missione sull’ecologia. Tutta la trattativa con il premier Draghi è stata fatta sul ministero per la Transizione. Questo per noi è un nuovo inizio».
Não são de somenos estas palavras usadas pelo antigo “Capo Politico”: força moderada e liberal. Se a posição de Di Maio vingar, a palavra liberal terá um peso político em toda a mecânica do Movimento, a começar pela relativização das funções de deliberação, decisão e legitimação do Eco-sistema Rousseau e, naturalmente, da reinvindicada democracia directa digital, pondo também o acento, no que concerne à cidadania digital, mais no e-government e no acesso à administração pública do que nos direitos digitais de cidadania activa do cidadão, ou seja, no assistencialismo digital. Aguardemos, pois, o documento de Giuseppe Conte para podermos compreender em que direcção o M5S se vai realmente mover.

“O Contrato Digital”. Detalhe.