Ensaio

A POLÍTICA DELIBERATIVA

AFINAL, O QUE É?

Por João de Almeida Santos

S:TítuloDelib

“S/Título”. Jas. 05.2022

QUANDO SE CONSULTA a bibliografia sobre a política deliberativa e a democracia deliberativa quase sempre se constata que o que circula é uma visão muito restritiva, ficando-se quase sempre por experiências de democracia participativa ou pela experiência dos Deliberative Polls, de James Fishkin (veja-se List, Luskin, Fishkin, McLean, 2012). Experiências de cidadãos escolhidos para, em duas fases, se pronunciarem sobre um mesmo tema, um antes de informação e de debate e outro depois de informação e de debate. As posições tendem a ser alteradas depois de adquirida mais informação e mais diálogo sobre o tema. Só que a questão da política deliberativa é muito mais ampla e inscreve-se na própria história da política e da democracia, dos gregos a hoje, mas sobretudo desde a instauração do sistema representativo e, depois, do sufrágio universal. Acresce que, hoje, com a rede, a situação ainda se aprofundou mais. Na verdade, a rede veio produzir uma tal transformação nos processos sociais, designadamente no crescimento do chamado espaço público deliberativo̧o público deliberativo, um espaço de tipo intermédio onde acontece a relação entre cidadão e poder, sem intermediações de carácter orgânico, que é possível afirmar que, finalmente, superada a fase da exclusividade ou monopólio da intermediação, a democracia representativa pode vir a ser aproximada daquela que era a sua matriz representativa original, ou seja, a da centralidade do indivíduo/cidadão a que corresponde um sistema de poder (político ou comunicacional) mais transparente e mais participado e com menor índice de intermediação̧a. Esta será uma democracia deliberativa porque resulta da superação da cisão originária, da separação, do “sulco” entre cidadania e poder, através do crescimento do espaço intermédio como espaço público deliberativo̧o público deliberativo. O vazio inicial entre as instâncias do poder e a cidadania, esse espaço intermédio, foi sendo ocupado progressivamente pelos meios e canais de comunicação até se tornar um território de conquista da cidadania, subtraindo-o ao monopólio dos media e à exclusividade da mediação partidária. Não se trata, como é evidente, de uma experiência de democracia directa, como o referendo, por exemplo, porque se inscreve plenamente na matriz do sistema representativo, acrescentando, todavia, novas e mais profundas exigências ao processo decisional, ancoradas numa alteração profunda da identidade da cidadania.

A DELIBERAÇÃO NA HISTÓRIA

VALE, POIS, A PENA começar por me deter um pouco no conceito de democracia deliberativa (1). Que não é, de facto, coisa nova.

1. Na “Política” de Aristóteles (Aristóteles, 1998), no capítulo sobre “As magistraturas deliberativas”, o conceito está claramente formulado:

“Todos os regimes (políticos) constam de três partes (…). Uma dessas três partes relaciona-se com a deliberação (tò bouleuómenon) sobre assuntos que dizem respeito à comunidade. (…) Compete à função deliberativa decidir de modo supremo sobre a declaração de guerra e de paz, as alianças e a quebra dos pactos; sobre as leis; sobre a condenação à morte, o exílio e a expropriação de bens; sobre a escolha para os cargos de magistratura e a fiscalização das contas públicas. Todas estas decisões estão necessariamente sob a alçada, ou de todos os cidadãos, ou só de um certo número deles (neste caso, as decisões podem ser da competência ou de uma magistratura só ou de várias; ou, então, umas serão da competência de certas magistraturas e outras da competência de outras); ou ainda, uma sob a alçada de todos os cidadãos, enquanto outras apenas sob a alçada de alguns. É próprio do espírito democrático o procedimento segundo o qual todos decidem acerca de todas as questões que se referem à comunidade. É, de facto, o povo quem mais procura essa espécie de igualdade (…) Quando a participação na função deliberativa não está ao alcance de todos, mas só dos que foram eleitos, e se estes governam de acordo com a lei da mesma forma que na situação precedente, então estamos perante um procedimento oligárquico (…). Ainda assim, a decisão seria melhor se todos deliberassem em comunidade: o povo (dêmos) com os notáveis, e estes com a multidão (plêthous)” (itálico meu) (2).

O substantivo proboúleuma (-tos), deliberação, deriva de boulê, a mesma palavra usada para designar o Conselho dos Quinhentos, a Boulê (3), criada por Clístenes, que preparava as Assembleias, competindo-lhe a função deliberativa̧ão deliberativ, ou seja, emitir parecer (proboúleuma) (4), obrigatório (5), que era submetido à Assembleia.

Do que se lê no texto de Aristóteles sobre a matéria pode evidenciar-se o seguinte:

  1. Uma das três partes do regime democrático ateniense refere-se à deliberação (tò bouleuómenon) sobre assuntos que dizem respeito à comunidade: decidir de modo supremo sobre a declaração de guerra e de paz, as alianças e a quebra dos pactos; sobre as leis; sobre a condenação à morte, o exílio e a expropriação de bens; sobre a escolha para os cargos de magistratura e a fiscalização das contas públicas – nisto consiste a função deliberativa, ou seja, a deliberação sobre assuntos essenciais;
  2. a melhor decisão, segundo Aristóteles, é a que resulta da deliberação em comunidade: o povo (dêmos) com os notáveis e, estes, com a multidão (plêthous);
  3. a melhor decisão é, pois, a que é preparada pela Boulê e deliberada pelo povo (os cidadãos, polítai, sob forma de Assembleia).

Podemos, pois, dizer que a democracia deliberativa já existia em Atenas (e nas colónias) e que se consubstanciava num processo de amadurecimento democrático da decisão, através de um processo deliberativo. A própria figura da deliberação (proboúleuma) conhece em Atenas um ancoramento institucional num órgão que tem o mesmo nome, Boulê, e cujo verbo, bouleúo, significa precisamente deliberar, aconselhar, reflectir, pensar. A política associada a um procedimento racional e argumentativo.

Esta preparação da decisão acontecia num regime de democracia directa para posterior decisão da assembleia, constituída pelos polítai, e excluídos os escravos, os estrangeiros e as mulheres. No sistema representativo, acontecerá uma inversão de papéis, sendo a cidadania a intervir para melhorar não só a qualidade da decisão dos representantes, mas também a sua transparência. Este duplo processo (deliberativo e decisional) manter-se-á ao longo dos tempos, como veremos, ainda que com a evolução da comunicação o processo tenha ganho maior acuidade e importância, dando origem àquilo que conhecemos como política deliberativa e democracia deliberativa.

2. Se consultarmos a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (1751-1772) encontraremos a ideia de deliberação em múltiplos sentidos, inclusivamente, neste caso, de délibératif: “en termes de suffrages”: “signifie le droit qu’une personne a de dire son avis dans une assemblée, & d’y voter” (Diderot & D’Alembert, 1751) (6). O processo deliberativo é aplicável às várias formas de associação, funciona segundo regras prévias, de tempo, para assuntos relevantes e visa melhorar as decisões sobre a vida da comunidade.

3. Em 1774, Edmund Burke pronunciou um discurso, “Speech to the electors of Bristol” (03.11.1774), onde definia o Parlamento britânico como uma “assembleia deliberativa”:

But government and legislation are matters of reason and judgment, and not of inclination; and what sort of reason is that, in which the determination precedes the discussion; in which one set of men deliberate, and another decide; and where those who form the conclusion are perhaps three hundred miles distant from those who hear the arguments?” (…) “Parliament is not a congress of ambassadors from different and hostile interests; which interests each must maintain, as an agent and advocate, against other agents and advocates; but parliament is a deliberative assembly of one nation, with one interest, that of the whole; where, not local purposes, not local prejudices, ought to guide, but the general good, resulting from the general reason of the whole” (7).

Governo e legislação são assuntos de razão e juízo; a decisão não pode estar separada da deliberação, da discussão, da argumentação; o parlamento é uma assembleia deliberativa e visa o bem geral, que resulta da razão geral do todo. A decisão também aqui implica um processo deliberativo prévio em instâncias deliberativas (e não executivas), como é o caso do Parlamento.

4. Se, depois, consultarmos um bom dicionário de política do século XIX, por exemplo, o que foi organizado por Maurice Block e publicado em 1864, Dicionário Geral de Política (Block, 1864), veremos que “dans les affaires publiques, toute décision importante doit être le résultat d’une délibération, c’est à dire d’une réflexion en commun, contradictoire, d’une discussion”. O processo deliberativo – diferente do processo consultivo – é essencial para se obter uma boa decisão política para a comunidade.

5. Já no século XX, Walter Lippmann, na obra Public Opinion (Lippmann, 1922), define as bases necessárias para evoluir para uma democracia de tipo deliberativo, fundada não sobre as origens do poder – como era habitual –, mas sobre a legitimidade de exercício ou, como eu prefiro, sobre a legitimidade flutuante, ou seja, sobre a necessidade de ancorar o exercício do poder num processo de tipo deliberativo, onde as decisões mereçam um consenso activo por parte da cidadania, não só como controlo, mas também como construção de um espaço público deliberativo onde deliberar acerca das matérias decisivas para a comunidade, em fase de decisão (Santos, 2017), repondo, de algum modo, aquela que era a inspiração ateniense e aristotélica originária.

6. Um grande impulso à ideia de uma democracia deliberativa foi dado por Jürgen Habermas, em 1992, na obra “Faktizität und Geltung. Beiträge zur Discurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats”, tendo-lhe dedicado explicitamente o capítulo “A política deliberativa como conceito procedimental da democracia” e um outro sobre “Sociedade civil e esfera pública política”, em torno da mesma problemática (Habermas, 1996).

Segundo Habermas, uma política deliberativa deve conter elementos da concepção liberal e da concepção republicana, valorizando simultaneamente a sociedade civil e a dimensão política de Estado. Se a primeira centrava na sociedade civil o bem comum, e não na esfera política (veja-se Constant, 1819), e considerava inultrapassável e ineliminável o “sulco entre aparelho estatal e sociedade”, e a segunda considerava a sociedade como “comunidade ética politicamente institucionalizada” (Habermas, 1996, pp. 352 e 350), para a terceira, ou seja, para a política deliberativa, apoiada numa teoria do discurso, “a razão prática já não reside nos direitos universais do homem ou na substância ética de uma comunidade particular, mas sim naquelas regras de discurso e formas argumentativas que derivam o seu conteúdo normativo da base de validade do agir orientado ao consenso, portanto – em última instância – da estrutura da comunicação linguística e do ordenamento insubstituível de uma socialização comunicativa” (1996, p. 351; itálico meu). Assim sendo, “o sucesso da política deliberativa não depende do agir unânime da cidadania, mas da institucionalização de correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos e da interacção das consultas institucionalizadas com as opiniões públicas informais”. A teoria do discurso, que subjaz à política deliberativa, visa “a intersubjectividade de grau superior, que caracteriza os processos de consenso que se concretizam nos procedimentos democráticos ou na rede comunicativa das esferas públicas políticas” (1996, p. 353). Habermas, nesta sua incursão pela política deliberativa, conclui que a “formação democrática da opinião e da vontade” não deve limitar-se “a controlar a posteriori o exercício do poder político, mas conseguir também (com maior ou menor sucesso) programá-lo” (1996, p. 355; itálico meu). Deste modo, as estruturas comunicativas da esfera pública não comandam, mas controlam e influenciam a orientação do poder administrativo.  

O que aqui se verifica, na linha da política deliberativa, embora de forma pouco mais que acenada ou mesmo fragmentária, é o reconhecimento de um “sulco” entre sociedade e Estado que urge preencher a partir da sociedade civil, designadamente através do accionamento das estruturas comunicativas da esfera pública, de modo a influenciar a decisão política, ou seja, a ir mais além do mero controlo do exercício do poder, intervindo sobre a “programação”, logo, directamente sobre o processo decisional. Neste sentido, o agir comunicativo desempenha aqui uma função essencial, todavia, ainda num sentido algo limitado, mas claro, relativamente às exigências de tipo deliberativo.

O ESPAÇO INTERMÉDIO, OS MEDIA, 
A REDE E A DELIBERAÇÃO

NA VERDADE, e é isto que é preciso sublinhar, o que se verificou entre o século XVIII e o século XXI foi uma evolução do espaço intermédio (veja-se Tagliagambe, 2009), no início, aquele “sulco” ineliminável de que fala Habermas e cuja superação implicava o “breach of privilege”, tendo como consequência a prisão de quem o superasse, pois era proibido relatar o que acontecia nas instâncias do poder. Pelo menos até pouco depois de meados do século XVIII, era crime relatar o que se passava no Parlamento inglês, o que viria dar origem à literatura Lilliput (8). Entre o palácio e a rua não havia comunicação. Uma vez eleitos os representantes – aliás, por uma parte ínfima da população, vista a vigência do regime censitário –, a comunicação interrompia-se e ficava sujeita à alçada da lei.

Foi o crescimento da imprensa política e a sua autonomização relativamente ao poder que deu origem à lenta, mas progressiva ocupação deste espaço intermédio, até porque com a progressiva adopção do sufrágio universal se tornou necessário manter informados os inúmeros eleitores. Temos assim uma evolução que vai da imprensa à rádio e à televisão, com a crescente ocupação do espaço intermédio e a entrada em cena de milhões e milhões de pessoas que se informavam e votavam. Ou seja, este “sulco” originário foi sendo progressivamente transposto pela cidadania mediante informação acerca do exercício do poder proveniente dos mass media. Numa primeira fase, nos fins do século XIX e na primeira metade do século XX, na verdade, a informação política para fins eleitorais quase se identificava com exercício de propaganda política, sendo a participação dominada pela ideia de pertença ideológica̧a ideológica, mais do que por informação acerca do exercício concreto do poder (veja-se Manin, 1995, pp. 247-308). A imposição de ditaduras na Europa entre guerras viria reforçar esta ideia. Por isso, esta situação ou, melhor, esta exclusividade da participação política fundada no sentimento de pertença só começaria a ser ultrapassada na segunda metade do século XX, com a expansão das fontes de informação, sobretudo da televisão, que haveria de se tornar o “príncipe dos media”, a ponto de capturar o essencial da comunicação política e de, sobretudo a partir dos anos 50, com o nascimento do marketing político, impor as próprias regras de comunicação aos agentes activos da política. Esta evolução haveria de influenciar de tal modo a democracia representativa que esta acabaria por assumir, espelhando a realidade, a designação de “democracia do público” ou “democracia de opinião” (Manin, 1995; Minc, 1995). De qualquer modo, esta evolução viria a produzir mudanças de fundo nas relações entre a cidadania e a política. Em primeiro lugar, verificou-se uma crescente perda de influência da participação por “sentimento de pertença”, não só porque a informação começou a chegar de forma mais alargada à cidadania, mas também porque se verificou uma crescente perda de influência das ideologias políticas, em parte devido à desnatação ideológica dos grandes partidos de alternância ao transformarem-se em catch-all-parties. A expansão da informação e a quebra na tensão ideológica da política iriam, pois, provocar uma alteração substantiva na relação entre a cidadania e o poder, passando a participação política por “sentimento de pertença” a ser partilhada com uma participação centrada na informação e agora vocacionada para o controlo do exercício do poder (sobretudo através dos media), a que se seguiria, depois, uma participação já não só de controlo, mas também de intervenção política propositiva, cumprindo-se assim uma evolução estrutural que haveria de levar à formulação da chamada democracia deliberativa. Completa-se, assim, a superação desse “sulco” entre a sociedade e o Estado, desse espaço intermédio, através do seu “enchimento”, ou seja, a sua conversão em espaço público deliberativo.

Na verdade, do que se trata é de uma progressiva superação desse “sulco” vazio, desse espaço intermédio inacessível por um espaço público deliberativo que foi ganhando qualidades emergentes à medida que o subsistema comunicacional o ia ocupando com novas funções de controlo e de “programação”, a que já fiz referência. Emerge deste modo uma nova realidade no quadro do sistema representativo que não estava inscrita na sua matriz originária, concebida que fora no quadro do regime censitário, com o poder a ser exercido pelas elites e com o próprio voto a ser sujeito a critérios económico-financeiros9. Só o sufrágio universal e a introdução da chamada “democracia de partidos” viriam introduzir a exigência de uma progressiva ocupação do espaço intermédio. Ocupação que dera os seus primeiros e condicionados passos já no século XVIII.

E, todavia, até à chegada da rede, toda esta evolução estava sujeita a um processo de intermediação política e comunicacional, onde a cidadania delegava duas vezes a sua soberania. Em primeiro lugar, no sistema de partidos e, em segundo lugar, no Parlamento. Esta delegação acontecia também no plano da comunicação uma vez que os mass media passaram a ter a função – protegida constitucional, legal e corporativamente – de intermediar a representação social, em nome da cidadania, como função orgânica da sociedade e espaço público reconhecido e gerido pelos chamados gatekeepers, autênticos filtros da opinião pública. Por isso, foram designados como quarto poder, apesar de, na verdade, ocuparem uma posição cimeira na hierarquia dos poderes. Veja-se, por exemplo, e já no século XIX, o que diz Alexis de Tocqueville, em “Da democracia na América”: “Nos Estados Unidos, cada jornal tem, por si só, pouco poder; mas a imprensa periódica é ainda, depois do povo, o primeiro dos poderes” (2001, p. 231). Mas, por isso mesmo, também são protegidos pelas constituições, pelas declarações de direitos e pela lei.

É claro que este processo de intermediação constituiu um gigantesco passo em frente na promoção da literacia política, da participação e do funcionamento do sistema político representativo, durante o século XX e, em especial, na sua segunda metade. Mas o sistema, no seu processo evolutivo, haveria de conhecer tendências negativas que o afastariam da cidadania, gerando endogamia partidária, indiferença política (Santos, 1998, p. 111-137), perda de contacto com a sociedade e fragmentação dos sistemas de partidos, com emergência de novos partidos que procuravam responder às expectativas frustradas pelo establishment partidário. Ou seja, o que se verificou foi uma clara inversão no processo de representação: os partidos, que surgiram para organizar politicamente a sociedade civil, deixaram de estar ancorados nela para passarem a estar ancorados no Estado, retroagindo, depois, instrumentalmente, sobre ela para efeitos meramente eleitorais e para garantirem sustentabilidade financeira, ocupação da máquina do Estado e hegemonia política.

A rede veio, depois, introduzir uma mudança radical neste processo uma vez que iniciou um poderoso processo de desintermediação da política e da comunicação, devolvendo soberania à cidadania, dotando-a de instrumentos capazes de promover auto-organização e automobilização política e comunicacional, reforçando fortemente o espaço público deliberativo e substituindo a velha mass communication por uma mass self-communication que vê emergir o indivíduo singular com maior protagonismo e capacidade de autónoma intervenção no espaço público deliberativo. Tudo isto tem consequências que a política deve reconhecer e, mais do que isso, metabolizar.

RISCOS, AMEAÇAS E OPORTUNIDADES

É CLARO que neste processo de desintermediação da política e da comunicação há riscos, mas as oportunidades de regeneração do sistema representativo, no sentido que indiquei e como resposta ao fechamento do sistema, são maiores do que as ameaças.

1. Num longo ensaio, É tempo de desmantelar o Facebook, publicado originariamente no New York Times, Chris Hughes (Hughes, 2019), cofundador do Facebook, sobre esta rede social, o Whatsapp e o Instagram, propõe, de facto, o desmantelamento desta plataforma, numa posição que talvez possa ser considerada demasiado radical para uma plataforma que veio dar voz a quem a não tinha e que, afinal, não encontra correspondência noutros grandes grupos multinacionais com orçamentos superiores aos de muitos Estados nacionais. Francisco Louçã concorda com o desmantelamento, em artigo publicado no Expresso (Louçã, 2019), devido ao excesso de poder concentrado nesta plataforma, seguindo, nisso, Ted Cruz e Elizabeth Warren, referindo o historial de desmantelamentos americanos de outros monopólios (e a Lei Sherman) e concluindo que, depois de Zuckerberg ter manifestado querer criar a sua própria moeda Facebook e, ainda, visto o escândalo da Cambridge Analytica (veja-se Cadwalladr, C., & Graham-Harrison, E., 2018), chegou o tempo de parar o patrão do Facebook. Mas, digo eu, talvez não tenha chegado este tempo, não só porque estes desmantelamentos não tiveram, como se sabe, o efeito que fora invocado para os accionar, mas sobretudo porque não é tempo de acabar com plataformas digitais que vieram dar espaço de liberdade aos cidadãos como nunca acontecera, podendo também tornar-se instrumentos de libertação da cidadania relativamente a outros oligopólios como as televisões e os outros grandes meios de comunicação, bem menos democráticos que a rede e bem mais amigos do poder instalado, constituindo mesmo a outra face do mesmo poder (veja-se Blasio e Sorice, 2020). De resto, as críticas às redes sociais têm sido, como é sabido, promovidas precisamente pelos poderes (individuais e organizacionais) instalados, ao verem ameaçado o seu monopólio de acesso e de gestão do espaço público deliberativo. Mas concordo, isso sim, na necessidade de regular as redes sociais, impedindo que um poder excessivo, político e comunicacional fique concentrado numa só pessoa, que Hughes, neste caso, identifica como o de Mark Zuckerberg.

Entretanto, e neste sentido, na União Europeia, a Comissão assinou e activou um código de conduta com as grandes plataformas por ocasião das eleições europeias de Maio de 2019, o que foi um passo importante para regular a circulação da informação na rede, designadamente nas redes sociais, libertando as suas potencialidades para alimentar uma democracia deliberativa que possa relançar o sistema representativo, devolver poder ao cidadão, evitar a tendência endogâmica dos partidos, melhorar a qualidade e a transparência da decisão e promover uma cidadania activa e mais interventiva, mais e melhor informada e mais culta. Tudo no quadro da democracia representativa.

2. Na verdade, a emergência da rede veio alterar significativamente o quadro em que se passou a processar a comunicação e a própria política, o quadro com que operavam as chamadas teorias dos efeitos, e designadamente a teoria do agenda-setting, todas elas pensadas sobretudo para o modelo mediático de comunicação, para o broadcasting, o eixo emissor-receptor, o modelo vertical e hierarquizado de comunicação, a mass communication. E veio alterar porque o eixo da comunicação mudou, dando lugar a um novo eixo de tipo horizontal, não hierárquico e relacional, onde a comunicação ocorre entre variáveis independentes num gigantesco espaço intermédio e onde a mass communication deu lugar à mass self-communication, a uma comunicação individual de massas, centrada num sujeito de múltiplas pertenças e dotado de eficazes instrumentos e canais de duplo acesso (como receptor e como emissor) ao espaço público deliberativo, de que antes não dispunha (veja-se Castells, 2007; 2011; 2012) . Ou seja, no quadro do novo modelo comunicacional já não há o receptor puro, mas sim um receptor que é simultaneamente emissor, dando lugar àquele que hoje já começa a ser designado por cidadão prosumer, cidadão produtor e consumidor de comunicação e de política. Em tese, um cidadão mais interveniente, menos passivo e, logo, menos sujeito ao diktat do emissor, ao gatekeeping, ao spinning e à comunicação instrumental, até porque a sua actividade se inscreve cada vez mais numa lógica de conectividade, bottom-up (veja-se a entrevista, em linha com o que aqui defendo, de Daniel Innerarity, ao “Público, de 17.05.2022, pp. 18-19). É claro que já existia, pelo menos, uma linha teórica, no âmbito das teorias dos efeitos, que atribuía uma função mais activa ao receptor, embora ainda no quadro da comunicação broadcasting – a teoria dos “usos e gratificações” (10). Sem dúvida. Mas, com a rede, o activismo do receptor passa a ser de outra natureza, visto que assume a forma de prosumer, simultaneamente receptor e emissor, em condições, pois, de devolver as mensagens ao emissor. Ou seja, o poder de agendamento está hoje ao alcance de um cidadão que antes não dispunha dos meios para o fazer e, por isso mesmo, a capacidade de polarização da atenção social e o poder sobre o acesso ao espaço público deliberativo deixaram de ser monopólio do establishment mediático (poder de gatekeeping) para passarem a ser partilhados com o poder diluído emergente no sistema-rede (Álvarez, 2005). Estas profundas levam necessariamente a uma evolução que corresponde exactamente ao que se entende por política deliberativa.

3. Do que se trata, pois, neste novo paradigma, que se adequa plenamente à proposta da política deliberativa e da democracia deliberativa, é de uma nova localização do cidadão no sistema, neste processo de desintermediação da comunicação e da política, havendo, pois, que redefinir o quadro de referência para a determinação da natureza do subsistema comunicacional e dos seus efeitos nos processos políticos e, consequentemente, que proceder também a uma revisão do quadro conceptual das próprias teorias dos efeitos, à semelhança do que já está a acontecer com o marketing digital ou marketing 4.0 (Kotler, 2017), e, consequentemente, da própria política. O que, na verdade, se verificou foi uma novidade radical: a emergência de um espaço intermédio como livre espaço público deliberativo, não sujeito ao monopólio do gatekeeping, e de uma nova ontologia da relação vieram alterar o sistema em aspectos absolutamente decisivos, gerando qualidades emergentes que a política e as próprias teorias dos efeitos (assentes no modelo vertical emissor-receptor) terão que metabolizar conceptualmente se quiserem compreender as novas mecânicas dos processos políticos e o ambiente em que eles se processam. E é, naturalmente, neste quadro que se inscreve a própria ideia de democracia deliberativa.

 CONCLUSÃO

DE QUALQUER MODO, já existem experiências políticas concretas onde o digital e as mudanças estruturais por ele induzidas ocupam um lugar de destaque, devendo, por isso, ser avaliadas do ponto de vista da relação entre a cidadania e o sistema, quer no plano da comunicação quer no plano da política.

Falo de experiências negativas, como as que viram a Cambridge Analytica envolvida na manipulação de dezenas de milhões de dados de users, nos casos americano e inglês, mas falo também do uso inteligente e legítimo que foi feito nas duas campanhas de Barack Obama (Castells, 2011; e Cadwalladr, C., & Graham-Harrison, E., 2018). E falo sobretudo da experiência italiana do MoVimento5Stelle, apesar de se encontrar agora em graves dificuldades políticas, depois das eleições europeias de 2019 (11). Experiência importante de uma formação política de matriz digital e de tipo neopopulista que soube capitalizar o consenso para chegar ao poder como primeira força política (32,7%, em 2018), mas que, depois, não soube concretizar as suas propostas, vendo-se, primeiro, ultrapassada pela Lega (por exemplo, nas eleições europeias), numa autêntica inversão de resultados no arco de um ano, e, depois, pelo Partito Democratico e por Fratelli d’Italia, mantendo-se hoje, nas sondagens, como o quarto partido italiano. Exemplo: o modo como lidou com a sua própria proposta sobre a cidadania digital, uma âncora estatutária e ideal do M5S.

Poderia aqui falar também das grandes plataformas digitais que mobilizam milhões de cidadãos numa lógica bottom-up, centradas na conectividade, e que já disputam influência aos grandes partidos tradicionais, mas sobre esta ideia já tive oportunidade de discorrer no capítulo VI do livro Política e Democracia na Era Digital: “Conectividade – Uma chave para a política do futuro” (Santos, 2020a). Na verdade, estamos perante uma profunda mudança nos processos políticos que é necessário metabolizar porque, entre ameaças e oportunidades, a possibilidade de melhorar a democracia representativa é real. Mas, para isso, é preciso reconhecer o caminho percorrido de modo a detectar a real evolução das sociedades nas suas formas de autogoverno, o que funcionou bem e os desvios, as mudanças estruturais e os seus efeitos sobre a política e a comunicação. Este reconhecimento é fundamental para dar resposta às novas exigências e, no meu entendimento, a democracia deliberativa é a melhor resposta aos desafios que se estão a pôr à democracia representativa, não só porque esse é, como vimos, o sentido para que aponta a evolução da política desde que foi criado o sistema representativo, mas também porque a evolução da tecnologia para aí converge também, enquanto facilita o empoderamento comunicacional e político da cidadania e lhe permite um autogoverno mais esclarecido e informado. É este o quadro em que se processa a política democrática e à qual a designação que melhor lhe corresponde é a de “política deliberativa” porque ela qualifica o sistema sem desvirtuar a sua estrutura representativa.

REFERÊNCIAS

* Para uma análise mais aprofundada veja-se Santos, J. A. (2020), A política, o digital e a democracia deliberativa. In (2020) Camponez, C, Ferreira, G. e Rodriguez, R.. Estudos do Agendamento. Covilhã: Labcom/UBI, pp. 137-167.

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Santos, J. A. (2020) (Org.). Política e democracia na Era Digital. Lisboa: Parsifal.

Santos, J. A. (2020b). Conectividade – Uma Chave para a Política do Futuro. In Santos, 2020, 133-153. Lisboa: Parsifal.

Santos, J. A. (2018). O Nacional-Populismo já tem um Ideólogo: Steve Bannon. [Web log post] Disponível em https://joaodealmeidasantos. com/artigos/.

Santos, J. A. (2017b). Mudança de Paradigma: a Emergência do Digital em Política. Os casos italiano e chinês”. ResPublica, 17/2017, 51-78.

Santos, J. A. (2012). Media e poder. O poder mediático e a erosão da democracia representativa. Lisboa: Vega.

Santos, J. A. (1998). Paradoxos da democracia. Lisboa: Fenda.

Sorice, M. (2014). I media e la democrazia. Roma: Carocci.

Tagliagambe, S. (2009). El espacio intermedio. Red, individuo e comunidade.

Madrid: Fragua/ThinkCom-IPE.
Tocqueville, A. (2011). Da democracia na América. S. João do Estoril: Principia.

NOTAS

1. Para uma síntese das várias posições sobre a democracia deliberativa, veja-se o excelente ensaio de Michele Sorice I media e la democrazia (Sorice, 2014, p. 45-71).

2. Aristóteles (1998): pp. 324-330: 1297b – 41; 1298a – 4 e 14; 1298a – 40; 1298b – 4; 1298b – 20 e 22; 1298b – 30 e 33 – no texto grego; itálico meu. A palavra proboúleuma não é usada neste capítulo (apesar de encontrarmos a forma verbal probouleúsôsin, aoristo do conjuntivo, 3.ª pessoa do plural, do verbo probouleúo, deliberar, relativo às deliberações da Boulê prévias à Assembleia, ou Ekklêsía), mas sim o verbo bouleúo. O prefixo pro significa precedente. Algumas formas derivadas do verbo bouleúo (deliberar, aconselhar, reflectir, pensar) ou do substantivo boulê que aparecem no texto grego, aqui citado nas páginas acima referidas: bouleuómenon, bouleúontai, bouleúesthai, bouleúsontai, bouleuómenoi, bouleuoménous, probouleúsôsin, symboulês.

3. A estrutura institucional da democracia grega era composta pela Ekklêsía (Assembleia, com 30.000 polítai com direito a voto, sendo o quorum 6.000), pela Boulê (Conselho dos Quinhentos, que correspondia em Roma ao Senado) e pelos Tribunais.

4. “Este proboúleuma era, de acordo com as várias questões, mais ou menos longo e formulado com maior ou menor precisão: podia ser uma simples proposta, quase um esboço oferecido à discussão da assembleia ou, então, um decreto acabado em todos os seus aspectos. Na idade mais antiga, cada proboúleuma devia vir do Senado, já que um decreto ao qual faltasse o proboúleuma senatório não era considerado legal”. Da Enciclopédia Treccani online: http://www.treccani.it/enciclopedia/probuleuma_ (Enciclopedia-Italiana)/ (Acesso em 01.05.2020; itálico meu).

5. Esta pertença exclusiva do proboúleuma (que só existiu em Atenas e nas klêrouchíai, colónias) às competências da Boulê terminou no início do século IV a.C.

6. https://books.google.pt/books?id=KFYrD5RoR5UC&pg=PA782&lpg=PA782&dqe (Acesso: 01.05.2020).

7. In: http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/v1ch13s7.html (Acesso: 09.06.2019).

8. Veja-se, sobre o assunto, o meu “Media e Poder” (Santos, 2012, p. 61, notas 50 e 51)

9. Veja-se a constituição francesa de 1791, no seu Capítulo I, Secção II, Art. 7.

10. Sobre as Teorias dos efeitos, veja-se o meu Media e Poder (Santos, 2012, p. 229-256).

11. A este propósito veja-se o meu ensaio “Mudança de Paradigma: A emergência da Rede na Política. Os casos italiano e chinês” (Santos, 2017b). E ainda: “O Nacional-Populismo já tem um ideólogo: Steve Bannon” (Santos, 2018). #Jas@05-2022.

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