Artigo

ALGOCRACIA

Por João de Almeida Santos

Redes2022_06

“S/Título”. Jas. 06.2022

MÃO AMIGA FEZ-ME CHEGAR, por via digital, um interessante livro de Giovanni Gregorio, investigador na Universidade de Oxford, precisamente sobre o anunciado no título deste artigo: Digital Constitutionalism in Europe. Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society (Cambridge, Cambridge University Press, 2022). O assunto é sério, urgente e interessante. E responde, em parte às questões que têm sido levantadas, designadamente por Shoshana Zuboff, no seu A Era do Capitalismo da Vigilância (Lisboa, Relógio d’Água, 2020), de resto citado no livro (pág. 2). Vejamos.

NOVOS CONCEITOS

O AUTOR usa interessantes conceitos para analisar a  sociedade digital e em rede. Vale a pena referir alguns: “algorithmic society”,  “algocracy”, “automated decision-making processes”, “digital environment”,  “extraction of value from information”, “online platforms vertically order”, “digital capitalism”, “digital liberalism” “modulated democracy”, “constitutionalisation of online spaces”, “functional sovereignity” (que substitui a “territorial sovereignity”). Nos conceitos usados adivinha-se toda uma doutrina avançada sobre esta nova realidade, que muitos teimam em não reconhecer e assumir como algo a considerar muito seriamente, sobretudo nos domínios da política, da comunicação e do direito. “Sociedade algorítmica” – parece ser o conceito que vem substituir o de “sociedade digital e em rede” para indicar uma evolução das TICS e uma maior intervenção social da Inteligência Artificial (IA), o crescimento dos “automated decision-making processes” subtraídos aos normais processos de “accountability”, a montante e a jusante . Tanto que pode dar origem a uma Algocracy, a um sedutor regime do algoritmo, sucedâneo da Democracy. Bastaria para tal dar forma política à “sociedade algorítmica” e à correspondente automatização generalizada dos processos sociais. Uma utopia que parece ao nosso alcance a breve prazo. Outro conceito a registar poderá ser o de “soberania funcional”, uma soberania pós-territorial, global, a das grandes plataformas digitais. Uma soberania diferente, que não reside na nação nem no povo, mas nas grandes plataformas digitais privadas. Ou ainda a extracção da mais-valia, agora não já do trabalho, como em Marx, pelo prolongamento não remunerado da jornada de trabalho (a famosa mais-valia absoluta), mas pela informação acerca perfis dos seus utilizadores/consumidores para futura venda de preditivos comportamentais aos seus novos clientes. Poderia continuar, mas creio que já ficou claro o caminho traçado.

SOBERANIA FUNCIONAL

ESTAMOS, pois, a pisar terreno inovador, muito complexo, polémico e vital. O centro do problema reside na relação entre as grandes plataformas digitais, a cidadania e a autoridade pública, estando cada vez mais as grandes plataformas digitais privadas e globais a interpor-se entre a autoridade pública e a cidadania, gerando o que julgo ser já um problema de “constituency”, de uma nova “constituency”, vista a natureza e o alcance destes poderes privados globais. O conceito de soberania funcional é isso mesmo que indicia.  Sim, um problema de “constituency” exactamente como acontece no caso das grandes plataformas financeiras. Diferente, mas equivalente. Se estas actuam perante os Estados endividados como credores protegidos por contratos que intervêm no processo de gestão financeira dos Estados e até nos seus programas de governo (veja-se, como exemplo, o documento assinado – um autêntico programa de governo – entre o governo português e a troika que nos financiou), reivindicando o direito a verem satisfeitos os termos dos contratos de financiamento público, estas plataformas intervêm directamente sobre a cidadania consumidora de produtos digitais, gerindo um vastíssimo espaço social não regulado ou, então, ainda pouco e mal regulado, podendo mesmo, vista a matéria sobre a qual trabalha, condicionar a génese e a constituição do próprio poder político e, por essa via, a condicionar decisivamente os processos de “decision-making” e os programas, a um nível que nunca o velho poder mediático atingiu. A passagem do conceito de mass communication (media) a mass self-communication (rede) dá-nos bem ideia da mudança. Esse terreno foi, por exemplo, e como se sabe, explorado e usado para condicionar a eleição de Donald Trump e para favorecer o BREXIT. Ou seja, foi usado politicamente para instalar no poder determinadas soluções políticas.

As grandes plataformas movem-se num espaço global, interpelam biliões de consumidores, estabelecem códigos não contratualizados com eles e substituem-se aos Estados nacionais numa parte relevante da vida social, assumindo até funções que antes estavam exclusivamente confiadas aos poderes públicos, e têm orçamentos maiores do que muitos Estados nacionais. E, muito importante, intervêm directamente sobre os comportamentos, analisando-os e explorando-os comercial e politicamente. Há como que uma dualidade na relação dos poderes públicos e privados com a cidadania, podendo classificar-se como verdadeira partilha. Só que se uns respondem perante a cidadania, outros exercem directamente uma soberania funcional sem necessidade de prestarem contas, não estando o seu poder dependente de processos electivos. A rede é uma camada que está cada vez mais a sobrepor-se à realidade social e é governada segundo regras que não constam de uma constituição, não estando sujeitas a “accountability”, dispondo de informações sobre os cidadãos considerados individualmente numa dimensão tão profunda que nem os Estados nacionais se lhes podem comparar. Na verdade, esta transferência de funções e poderes para as plataformas digitais não conhece, pois, nenhum tipo de “accountability”, nenhum tipo de controlo, precisamente porque não estão sob a alçada de um constitucionalismo digital e funcional. O constitucionalismo digital constituir-se-ia, assim, como uma reacção aos novos poderes digitais. Reacção que nem é muito difícil de compreender e de aceitar – veja-se, por exemplo, o poder dos vários oligopólios instalados na sociedade portuguesa (operadoras de telecomunicações, redes de distribuição, marcas de  combustíveis) e a impotência do cidadão singular perante os ditames destes oligopólios. No caso das plataformas digitais esta dimensão agiganta-se e não só em extensão, mas também em intensidade e em qualidade.

DA SOCIEDADE DIGITAL E EM REDE
À SOCIEDADE ALGORÍTMICA

NA VERDADE, se, no início, as grandes plataformas representavam um incomensurável alargamento de direitos, de liberdade de comunicação e de participação nos processos de decision-making da cidadania, centrando-se a relação entre as plataformas e a cidadania exclusivamente neste plano, disputando poder ao establishment mediático para o devolver à cidadania (na figura dos users), depois haveria de se verificar um desvio de função, passando as plataformas a considerar como clientes, não os users, mas as empresas interessadas na determinação da previsão comportamental, tendo aqueles sido transformados em matéria-prima a ser trabalhada para extracção de mais-valia processada a partir da informação acumulada nos servidores e gerida pelas plataformas digitais junto dos seus novos clientes, que tanto podem ser empresas como forças políticas interessadas em sucesso eleitoral.

Como diz o autor: “Este é um livro sobre direitos e poderes na era digital. É uma tentativa de reformular o papel das democracias constitucionais na sociedade da informação ou em rede, que, nos últimos vinte anos, se transmutou em sociedade algorítmica como atual base societal que apresenta grandes plataformas sociais multinacionais ‘situadas entre os Estados-Nação tradicionais e os indivíduos comuns e o uso de algoritmos e de agentes de inteligência artificial para governar populações’” (Gregorio, 2022: 1). Portanto, forças intermédias dotadas de potentes e sofisticados meios de IA para gestão de processos sociais, económicos e comportamentais.

Da “sociedade digital e em rede” à “sociedade algorítmica”, à sociedade governada pelo algoritmo, pela inteligência artificial, através de “automated decision-making processes” que viriam a afectar “os valores constitucionais que sustentam o contrato social”, que superaram a lógica de Vestefália, substituindo a soberania territorial  por uma nova soberania funcional desterritorializada e global. É assim que funcionam as grandes plataformas digitais. Como diz, no prefácio Oreste Polliccino, “Giovanni explora a transformação de plataformas online de simples atores económicos em poderes privados capazes de competir com autoridades públicas” (Gregorio, 2022: xiii). A geometria do poder já não se resume a uma relação vertical, mas acontece cada vez mais na relação horizontal que “conecta indivíduos com poderes digitais privados que competem com, e muitas vezes prevalecem sobre, poderes públicos na sociedade algorítmica” (Gregorio, 2022: xiv). Assim sendo, “atores não estatais, corporações privadas e instituições supranacionais de governança contribuem para definir as suas regras e códigos de conduta cujo alcance global se sobrepõe à expressão tradicional do poder soberano nacional” (Gregorio, 2022: 311) – “Google, Facebook, Amazon or Apple are paradigmatic examples of digital forces competing with public authorities in the exercise of powers online. Within this framework, constitutional democracies are increasingly marginalised in the algorithmic society”.  Glosando o Michel Foucault de Surveiller et Punir; o autor afirma que “the paradigmatic idea of a public panopticon can be considered one of the primary concerns in the algorithmic society” (2022: 8; 15). É assim que:

“Digital firms are no longer market participants, since they ‘aspire to displace more government roles over time, replacing the logic of territorial sovereignty with functional sovereignty”. “These actors have been already named ‘gatekeepers’ to underline their high degree of control in online spaces. As Mark Zuckerberg stressed, ‘[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company’” (2022: 17).

Substancialmente, o que acontece é um verdadeiro processo de livre constitucionalização dos espaços online, mas feito por instrumentos de ordenamento privado que moldam o alcance dos direitos e liberdades fundamentais de biliões de pessoas, adotando uma rígida abordagem top-down, sem exigências de accountability. E a pergunta poderia ser a mesma que faz Daniel Innerarity em recente artigo no “El País” (13.05.2022): não dispondo nós ainda de um dispositivo conceptual que nos instrua sobre a natureza do novo espaço digital e o seu significado democrático, teremos de começar por perguntar quem, neste novo universo digital, “é o soberano: o algoritmo, o consumidor ou o Estado?”.

DO PODER ECONÓMICO AO PODER POLÍTICO

JÁ TEMOS QUE CHEGUE. Está, de facto, a emergir uma terceira constituency, depois da dos contribuintes e da dos credores internacionais, que financiam a dívida pública (W. Streeck, em Gekaufte Zeit, Berlin, Suhrkamp, 2013): a das grandes plataformas digitais que paulatinamente vão criando o seu universo societário de acordo com as suas próprias normas, superando o nível económico e atingindo já a dimensão da própria soberania (territorial), a soberania funcional. Basta pensar, como disse, na sua intervenção na eleição de Trump ou no Brexit. Se antes se podiam considerar verdadeiramente tecnologias da libertação relativamente aos poderes públicos instalados e aos poderes que os acompanhavam e reflectiam (o establishment mediático), agora, com a determinação preditiva de comportamentos em larga escala, elas dão lugar a uma intervenção que já supera a mera dimensão económica: “[i]n a lot of ways Facebook is more like a government than a traditional company”. Se antes o poder do establishment mediático já era enorme, colocando-se mesmo em directa competição com o poder político (veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 259-264), agora, as plataformas digitais online representam um enorme upgrade, um poder muito mais forte que deve ser constitucionalmente regulado para que “dentro deste modelo, os indivíduos” não se encontrem eles próprios “in a situation which resembles that of a new digital status subjectionis”. Um novo estado de sujeição, súbditos, em vez de cidadãos. Bem pelo contrário, diz, segundo Vestager, podendo ter as plataformas um enorme impacto no modo como vemos o mundo à nossa volta e tornando-se, por isso, um sério desafio à nossa democracia “so we can’t just leave decisions which affect the future of our democracy to be made in the secrecy of a few corporate boardrooms” (2022: 287). Existindo uma regulação constitucional feita pelos poderes públicos através de correctos procedimentos políticos e institucionais seria possível recuperar o primeiro impulso destas tecnologias, valorizando-as como tecnologias de libertação, sem as impedir de desenvolverem o seu processo de acumulação, mas respeitando os direitos e as garantias individuais, sendo certo que elas fornecem à cidadania, aos utilizadores, fantásticos instrumentos de comunicação, de automobilização, de participação e de conhecimento a custo zero e numa escala de liberdade que nunca os media conseguiram atingir. O que naturalmente tem um custo. Que tem, todavia, de corresponder a um “preço justo”. O autor sublinha bem este aspecto positivo das grandes plataformas, mas considera que se torna necessário reconduzir todo o processo à “constituency” originária, aquela que verdadeiramente é a legítima e com dimensão ontológica porque o segundo fôlego das plataformas as levou por um caminho que pode atingir o coração da democracia e daquilo que ela tem de mais sagrado: a ideia de soberania popular (ou da nação) centrada na autodeterminação individual. O que não é possível é os poderes públicos continuarem a proceder como se esta realidade não existisse, emitindo deliberações que são totalmente desprovidas de valor perante estas novas realidades. Por exemplo, se a ERC para reconhecer uma publicação “on line” lhe aplicar os critérios que, no essencial, são aplicáveis às publicações “on paper”, então, a entidade reguladora revelará (mais uma vez) a sua perfeita inutilidade. Mas este é um simples e minúsculo exemplo. De resto, nem me parece que a ERC esteja muito preocupada em compreender este gigantesco universo com o qual nos estamos já a confrontar em larga escala.

CONCLUSÃO

É CLARO que estamos a assistir a um fortíssimo ataque à rede, em especial às redes sociais, por parte daqueles que antes tinham o monopólio do acesso ao espaço público e o monopólio da opinião socializada. Por outro lado, de repente, os radicais descobriram um novo imperialismo, a que chamaram capitalismo da vigilância, evidenciando somente o  enorme poder das plataformas on line e imputando-hes o roubo de direitos e de titularidades aos cidadãos. Precisamente aquilo que aqui está em causa e que merece um novo e necessário constitucionalismo digital que possa regular as relações destes poderes quer com os Estados nacionais ou a União Europeia (sobretudo com esta) quer com a cidadania, não se limitando a simples códigos de conduta, como o que já foi (e bem) assinado, nem a disposições legais de aplicação meramente comercial. Como diz o  nosso autor, só assim será possível usufruir do melhor que as grandes plataformas digitais podem dar, evitando que deslizem para a produção de lucro puro e duro sem regras nem fronteiras. Mas o que não se deve é ver nelas apenas poder, totalitarismo, capitalismo globalitário e imperialismo digital. História com barbas – o radicalismo reinventa-se sempre para sobreviver, mantendo acesa a velha chama. Como se para ele nada significasse esta enorme possibilidade que o cidadão passou a ter de acesso ao espaço público deliberativo, de se informar sem limites a partir de casa, de se automobilizar sem intermediações, de retirar o monopólio do acesso ao espaço público ao establishment mediático e às respectivas elites (o poder de gatekeeping), de se protagonizar singularmente e de se organizar autonomamente através de plataformas livres que possibilitam uma eficaz conectividade democrática bottom-up em condições de promover uma autêntica democracia deliberativa. Sim, tudo isto. Mas, sim, também à necessidade de se construir um novo constitucionalismo digital à escala europeia (a que melhor pode dialogar com as poderosas plataformas digitais) que, interpelando com seriedade estas plataformas para promover uma resposta integrada às ameaças e aos riscos, dê maior protagonismo digital aos Estados nacionais e à União, inovando politicamente para melhor consolidar e aprofundar a ainda jovem democracia representativa, hoje seriamente ameaçada por forças que, à esquerda e à direita, vêem na sua matriz liberal originária o inimigo a abater. “The rise of European digital constitutionalism”, diz Gregorio, “can also be read as a reaction against the power of online platforms to set their values on a global scale on a discretionary basis” (2022: 287). Mas reacção como uma “terceira via” entre humanismo digital e capitalismo digital (2022: 284) – uma Europa consciente do papel que a IA pode representar para o progresso e o próprio empoderamento da cidadania, mas também dos riscos de concentração de poder sem controlo, não só do ponto de vista da caça ao lucro desmesurado e desumano, mas também de um poder capaz de condicionar decisivamente o curso da democracia e até mesmo de a destruir. A famosa transição digital tem de contemplar não só os progressos da IA, assumindo um protagonismo que lhe tem faltado e promovendo um fortíssimo investimento nesta área, designadamente na infraestruturação das redes digitais, na construção de próprios motores de busca e na literacia digital, mas terá também de integrar esta revolução num novo paradigma constitucional que a reconduza aos parâmetros e às exigências da democracia representativa ou deliberativa. A ideia de um constitucionalismo digital europeu é fundamental sobretudo porque estamos a falar de poderes muito fortes e muito sensíveis e num terreno onde tem faltado não só regulação, mas também sensibilidade constitucional para a desenvolver. #Jas@06-2022.Redes2022_06Rec

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