A INFORMAÇÃO TELEVISIVA
Se o mundo já está pouco recomendável ela ainda o torna pior
Por João de Almeida Santos
UM JOVEM QUE NÃO PRECISAVA DE PUBLICIDADE
O ASSUNTO do alegado terrorista de 18 anos, natural de uma aldeia de Alcobaça, desapareceu de cena. Milagrosamente, depois de festivais informativos de arromba. Ainda bem, porque a prioridade deverá ser ajudar o jovem e não condená-lo e chicoteá-lo de imediato no pelourinho electrónico. Pelo menos, que seja garantida a velha presunção de inocência e o segredo de justiça, tão maltratados que têm sido (e, pasme-se, pelos próprios agentes da justiça). Bem sei que subiu ao palco um grave conflito global a propósito da ameaça russa de ocupação da Ucrânia. E que entre uma faca e o arsenal militar da Rússia vai bem um suspiro informativo das nossas televisões. Vai, sim. E até a COVID19 continua a dar que falar e a suscitar preocupações, apesar de o inefável bruxo de Fafe a ter dado como terminada. Mas o facto é que o jovem João desapareceu quase misteriosamente do circuito noticioso. Porque o bom senso imperou ou porque outros valores informativos mais altos se impuseram? Mas suspeito que, em qualquer caso, não tenha sido por cuidado em preservar o jovem e a sua família. Se tivesse sido não teriam feito o arraial que fizeram. Se uma tragédia não acontece – e não aconteceu – não deve ser noticiada como se tivesse acontecido. Ou não?
THE SHOW MUST GO ON
O QUE SE PASSOU merece uma reflexão. E começo por dizer que achei muito curiosa, no meio daquele festival informativo, toda aquela preocupação do pivot José Alberto Carvalho sobre saber se a televisão deveria ou não ter noticiado o caso do falhado atentado do jovem de 18 anos. Fiquei quase enternecido com tanta responsabilidade e inquietação moral e noticiosa do jornalista, apesar de me saber a desculpa de mau pagador, a consciência pesada ou mesmo a hipocrisia.
Mas, e sem ponderar os danos que o jovem já sofreu e virá a sofrer depois de todo este espalhafato, o problema é real porque desde os tempos de Gabriel Tarde, o sociólogo francês tão esquecido pela Academia, que se sabe que o fenómeno da imitação é um importantíssimo factor de acção social, de comportamento social. E, todavia, a ilustre magistrada Maria José Morgado, especialista em efeitos dissuasores do tabloidismo em matéria penal, não tem dúvidas sobre o assunto, porque o medo guarda a vinha, diz. Tudo bate certo, portanto, e quanto mais as televisões falarem do assunto mais a vinha fica guardada, garantindo boas colheitas e bom vinho. Oh, se fica bem guardada, a vinha… Prendem-te de imediato (e há sempre, pelo menos, um juiz que, por via das dúvidas, adora prender) e expõem-te publicamente no pelourinho electrónico, marcando-te para toda a vida. E assim salvam a vinha. A verdade é que perante a auctoritas (no sentido romano de virtus) da ilustre figura moral do nosso Estado de Direito o jornalista ficou sereno e quase comovido pela justeza do critério informativo assumido e… fogo à peça. The show must go on.
O ADN DO TELEJORNAL
MAS A VERDADE é que esta questão acaba por ser pura e simplesmente ociosa se posta por um pivot, um anchorman ou uma anchorwoman de um telejornal português. Porquê? Porque a natureza da nossa informação televisiva é, ela própria, já na matriz, no ADN, desbragadamente tablóide. É como se o jornalista se perguntasse se o tabloidismo é moralmente aceitável e informativamente relevante, objectivo e imparcial em qualquer caso. Praticam-no à grande, mas sempre com uma réstia de pudor e até mesmo de candura. O que tem de ser tem muita força, já se vê. O mercado das audiências é implacável e há que sobreviver nesta guerra da informação. Ainda por cima com a libertinagem das redes sociais à solta e em feroz competição com a virtude informativa. Às vezes custa-nos, parte-se-nos o coração… mas tem de ser.
A INFORMAÇÂO, O NEGATIVO E A FAMA
Não restam dúvidas de que o negativo é a marca de água da informação televisiva et pour cause mais uma vez fogo à peça… Querem lá saber do que possa acontecer ao jovem. Lá estarão depois os psicólogos de serviço – também eles amigos dos telejornais – para repararem o mal feito e levá-lo pelo caminho da salvação. Se até a PJ achou que sim, por que razão nós, que temos audiências a conquistar, haveríamos de não o fazer?
As televisões portuguesas têm, sim, o negativo colado à “pele”. É coisa mais do que comprovada. É o estigma do “Correio da Manhã” a fazer escola em versões envergonhadas do seu tabloidismo desbragado, instrumentos de delírio emocional a custo zero e ao serviço das audiências.
Mas é verdade, esta questão da informação televisiva sobre o atentado merece uma reflexão séria à luz do efeito mimético da informação, que mais não seja porque ela abre janelas de oportunidade para que espíritos mais influenciáveis, mas (ou por isso) sedentos de notoriedade, possam seguir ou simular o exemplo do jovem. Como alguém dizia, basta que a uma psicopatologia latente se associem determinados factores exógenos de pressão (radicalismo ideológico ou religioso, vítimas de bullying ou mesmo reiterado insucesso escolar, entre tantos outros factores) para que possa acontecer uma reacção explosiva. E, visto o tremendo sucesso televisivo do caso em apreço, aí vou também eu à procura dos meus cinco minutos de fama, nem que seja antecipando e simulando, nas redes sociais, um acto violento. Lá estará o FBI para alertar a nossa PJ, desencadeando o processo de denúncia da ameaça e de exposição pública no pelourinho electrónico. Quem sabe se, depois, quando for famoso, se abrem outras oportunidades num daqueles programas televisivos que exibem famosos que ficaram famosos por entrarem em programas para famosos. Da informação tablóide ao Big Brother. Toda uma ideologia. Ou o sucesso ao teu alcance.
A IMITAÇÃO O QUE DIZIA GABRIEL TARDE NO SÉCULO XIX?
O QUE DIZIA, em Les Lois de l’Imitation, de 1890, Gabriel Tarde (e note-se que as suas teses foram assumidas cerca de cinquenta anos depois por Elihu Katz e Paul Lazarsfeld, com a teoria do “Two-step flow of communication”, como reconhece o próprio E.K.)? Que a imitação é o princípio constitutivo das comunidades humanas, o “acto social elementar”, a “alma elementar da vida social”. E o que dizem as teorias dos efeitos dos media, que ele antecipou em várias décadas (“Two-step flow of communication”, de Lazarsfeld e Katz, a “Espiral do Silêncio”, de Noelle-Neumann, ou o “Agenda-Setting”, de McCombs), em particular da televisão? Pelo menos uma coisa: que os efeitos dos media são fortes e influenciam o comportamento humano. Disso parece não haver dúvidas.
QUEREM LÁ ELES SABER...
POIS BEM, as nossas televisões e os nossos jornalistas, incluído o seráfico José Alberto Carvalho, estão-se borrifando para tudo isto pois o que interessa são as audiências e a publicidade que daí decorre. Há sempre nos nossos telejornais um momento (cada vez mais longo) que eu classifico como “Relatório de Polícia”, uma aproximação, com aura, à filosofia espontânea do “Correio da Manhã”. Sim, estes pivots mais parecem os intelectuais (in)orgânicos do negativo, os seráficos apóstolos da desgraça, que exibem a todo o momento, mas com ar contristado e com gravitas. Ocasiões não faltam e a ocasião faz o… tablóide. E a informação maciça sobre a desgraça. Se o mundo já está pouco recomendável eles ainda o tornam pior. COVID19, Terrorismo, Guerra, tudo isto é filet mignon para estes artífices do maior telejornal do mundo.
ENFIM
O QUE HÁ A DIZER? Uma coisa muito simples: já que o poder político não quer ser acusado de limitar a sagrada “liberdade de imprensa” (esta, a imprensa, tem sido a outra face daquele), já que a pobre ERC continua a vegetar (com alimentos pagos por nós) como zombie sem alma (passe a dupla redundância), já que os directores de informação e os seráficos pivots não têm vergonha na cara e não mudam os critérios informativos, então que se organize um movimento com uma plataforma (há muitas e importantes plataformas cívicas digitais, por exemplo a poderosa MoveOn.Org, nos USA) para dar combate a esta vergonha da informação televisiva em Portugal. Se a rede e as redes sociais servem para alguma coisa pois que sirvam também para isto. E, já agora, que no combate estejam também incluídos os acólitos da missa televisiva. Tenho dito (muitas vezes).
NOTA SOBRE A CRISE INTERNACIONAL
NÃO SENDO EU ESPECIALISTA em política internacional, parece-me que, com tudo isto, o que Putin queria, depois de outras experiênciad de sucesso (na Geórgia e na Crimeiai), era consolidar a independência das duas Repúblicas, Donetsk e Lugansk (através do reconhecimento e do “apoio” militar). Esperemos que fique por aí. Agora começa a guerra económica com a Alemanha a romper com o Nord Stream II, o Reino Unido a aprovar sanções a 5 bancos russos, a EU a fechar o mercado financeiro da União à Rússia e os USA a bloquearem o Banco de Desenvolvimento Russo e o Banco Militar e a programarem o corte ao financiamento da dívida soberana russa. Esta guerra vai sobrar para todos nós. Apetece-me citar Lev Tolstoy, na “Guerra e Paz” (Lisboa, Inquérito, 1957, II, 407): “E, contudo, que vale a guerra que não exige completo êxito para o que a empreende?” (Palavras de André Bolkonski e a referência é a guerra de Napoleão com a Rússia, que na narrativa estava a decorrer). A questão agora consiste precisamente em saber o que, neste caso, é um “completo êxito” para Putin… #JAS@02-2022.