O MUNDO COMO GALERIA DE ARTE
Por João de Almeida Santos

“Desassossego”. Jas. 06-2021
ESTA FIGURA parece ser, pelo menos por fora, a de um conhecido desassossegado. Estes óculos exprimem toda uma filosofia, toda uma visão do mundo. Óculos a mais para rosto a menos. Eles, apesar de tudo, reflectem um certo verdor com que o mundo se exprime. Mas um verdor mais verde do que o verde deste mundo. Ah, sim, o verdor espiritual, o que é pintado com palavras. Bem poderia ser, pois, o indivíduo que leva sempre a renúncia a peito e que se identifica com um tal Bernardo Soares. Sim, esse, o do desassossego. Um tipo muito cerebral. Talvez até demais. Personagem estranho e pouco dado às cedências da vida vivida, que não à vida pintada com palavras, seja de que forma for. O tal que, estranhamente, não se ajeita com a poesia. O que é, de facto, estranho, porque filho de peixe deveria saber nadar. Ou que nem sequer se ajeita com a vida, o que já seria mais natural. Há por aí tantos que não se ajeitam com ela (mas não sabem)! Um indivíduo, este, que tem o espírito e a alma franzidos pela aspereza e pela contingência do existir. E que o levam a reiterar teimosamente a sua militante dissidência. A sua dissidência estética da vida. À sua maneira, um insurgente existencial que tem como única arma de combate a palavra. Ele move-se a partir da superfície plana da existência (é assim que a assume) para dentro, fala de si para si e o seu olhar é como que devolvido pelos óculos, que se lhe colam ao rosto como sua pele. Óculos como espelho da alma mais do que espelho do mundo, trabalhados a cinzel como se quer a um filósofo que goste de poesia, embora não se ajeite com ela. Como se o meio fosse a mensagem – uma mensagem “ocular”, com uma estranha cor, a dos óculos, que lhe devolve um real já pré-representado por si. Os óculos como terminal de um cérebro autocentrado. Digamos a verdade: não há existência tão verde como o verde que se reflecte nos seus óculos. Talvez nem sequer haja existências verdes, mas somente existências com algum verdor. E talvez nem sequer a sua alma reflicta tanto verdor. Eles, os óculos, na verdade, são mais um espelho do espírito do que da alma. Nem espelho do mundo nem da alma, mas do espírito. É este, o espírito, que pinta o verdor com palavras. Afinal, alma e espírito não são a mesma coisa, pois este é culto e aquela, a alma, pode não ser. Falo no plano transcendental, claro, embora um espírito que não seja culto é mais alma do que espírito. A alma não tem de ser culta. Ela sente e o espírito pensa. Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz… e doloroso. O amor é mais da ordem da alma do que da do espírito. É por isso que se diz “dor de alma” e não “dor de espírito”. O espírito é realmente perigoso para o amor. E ele, o Bernardo, afinal, vê sempre o amor com o filtro espiritual dos seus óculos. E desenha-o com palavras, isto é, neutraliza-o ou, pelo menos, relativiza-o. Ou seja, anula-o, porque o amor tem de ser incondicionado, não pode ficar engavetado em palavras.
HOMEM COLORIDO, MAS CINZENTO NA ALMA
Pois, com estas cores que o tornam aparentemente mais irreal e, por isso, mais perdurável, é mesmo ele, o homem da renúncia, o que nunca se deixa ir para não se perder, ao sair de si, o que quer perdurar… à força de sentimentos desvitalizados e transfigurados. O que olha – o olhar deveria ser tudo – para a vida como para uma galeria de arte. Aquele que olha para um rosto como se fosse uma fotografia ou um retrato pendurado numa parede. E que não toca nele sequer com a ponta dos dedos. Tudo parece ser, para ele, um pretexto para redesenhar o mundo no seu estirador mental. Como fazem os melancólicos profundos quando se sentem impotentes para o mudar. Desenham-no com as cores da utopia. Sim, sim, apesar de eu ter dúvidas de que o Bernardo alguma vez tenha querido mudá-lo na sua mundana escala. Ele não se mistura com essa irrelevância da vida vivida. Porque ela é banal, andam por lá todos…
Na verdade, este homem colorido tem o corpo confundido mais com o espírito do que com a alma. Só se lhe vê a parte de cima, o sítio onde está o espírito, de propósito, o que não aconteceria se tivesse jeito para a poesia e andasse por aí aos trambolhões, dorido de alma. Neste caso, haveria de se lhe ver o peito. Mas não, porque também tem a alma confundida com o espírito, numa progressiva redução de planos, ou camadas. Ele, afinal, é um desdobramento do seu artífice, esse espírito voraz, capaz de (in)digerir o mundo. Uma bela operação, diga-se. As palavras viram-se para dentro dele, dobradas sobre si, e o bigode (que está lá, mas não se vê) é a porta fechada da sua fala. Uma fala espiritual. Resistente e fechada, à força, não vá a tentação abri-la e deixar escapar um reles sentimento carnal ou uma comprometida e ridícula declaração de amor. Não. Para renunciar é preciso força de vontade e alguma crispação. Lábios apertados até se anularem na superfície lisa do rosto. A boca, tal como os olhos com os óculos, está protegida pelo bigode e pelos lábios apertados. O bigode é o arame farpado que lhe protege a alma tal como os óculos são o muro que o protege das vulgares insídias do real, do canto das sereias. Que mais se poderia imaginar senão isto, quando olhamos para os seus óculos e para esse chapéu amarelo de tanto sol apanhar? A verdade é que o espírito, mais do que a alma, precisa de sol, mas que não seja em demasia, para não o encandear ou mesmo incendiar.
INDIFERENÇA SENTIMENTAL
“INDIFERENÇA SENTIMENTAL” – dizes. Essa eu até a reconverto em palavras ao rubro com a alma aos pulos, livremente, à minha vontade e até contra mim e tudo o que eu próprio planeei para ser eventualmente feliz. Ah, como é bela a indiferença, se for minha e a puder converter em autêntica diferença. Ser indiferente de forma original é cultivar a diferença e afirmá-la perante iguais. Até a gravata me torna mais encrespado com o exterior de mim. Agarra-me pelo colarinho e não me deixa ir. Sou livre à força… quase à forca. Morrendo para fora à medida que vivo para dentro… de mim. E, depois destes óculos me terem protegido quando “uma rajada baça de sol turvo (quase) queimou nos meus olhos a sensação física de olhar”, passei a olhar quase só para dentro, olhando de través para fora, sem tirar os óculos. Hum… só o suficiente. Minimalismo visual, diria. Cedendo apenas um pouco à exigência desse objecto que tenho no meu rosto acastanhado e a que chamam “óculos”. Nome tão estranho como o de “olho”… esse nome que tem a sonoridade seca que tristemente exibe. Prótese quase supérflua porque não me serve para ver o essencial. Que está dentro de mim. Tudo o resto é puro pretexto e, portanto, só serve para ser visto de través. Os meus óculos são mais um muro do que uma prótese para ver o mundo. Quando falo para o mundo as palavras fazem sempre eco no muro e saem fazendo ricochete nele.
METAMORFOSE
“QUE OS TEUS ACTOS sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação” – é isso que sentes, ó rosto acastanhado, quando falas da vida? É isso, renúncia, indiferença e negação? Tudo pela negativa? A vida é só metamorfose espiritual? É metempsicose? Com a fixidez desse teu olhar escondido atrás dos óculos metabolizas e suspendes a vida, para a viveres interiormente de forma mais intensa? Está atento, que a vida ainda pode atropelar-te.
QUESTÃO DE LUZ
“UM AMARELO DE CALOR estagnou no verde preto das árvores”, dizes tu, com esse ar sisudo, de caso. Mas foi por baixo que estagnou. Sim, no teu rosto, quase te queimando para a vida. Estagnou em ti porque estavas sob esta copa pouco frondosa, mas suficiente, que é esse teu chapéu amarelo. Mas, mesmo assim, o teu rosto pintou-se de castanho, marca da passagem tangencial do sol por ele. Sim, sim, o castanho está perto de ti porque não é humanamente real e faz de ti um ser livre e solar. Foi o sol que te queimou a alma e te pôs castanho por fora. Questão de luz, meu caro. Sobrou-te o espírito, eu sei, e só com ele te debruças sobre o mundo. Sem alma ou com ela queimada, de tanto sol cair sobre ti. Queima-se a alma, liberta-se o espírito. Parece-te sensato? Não, não parece, mas não posso esquecer que tu és um insurgente existencial.
EM SUMA
ACHO, POIS, que te chamas mesmo Bernardo Soares e que gostarias de ter jeito para a poesia. Até porque o que tu vês é o mesmo mundo que vêem os poetas. Foi por isso que o teu pai te arranjou tantos irmãos poetas, sabendo muito bem que a poesia não é para todos. Sobretudo para os que fecham as portas ao real e ao embate da paixão. Às fraquezas da alma. Claro, a poesia está perto demais do sentimento, da emoção, da vida e correrias o risco de te deixares ir na onda da sua perigosa e lamentável fugacidade. Seres como os outros na sua triste corporeidade, sujeita à prisão do banal e corruptível sentimento. Oh, isso é que não. E o castanho ajuda à renúncia, pois ajuda. Logo, ajuda a procurar a beleza intemporal, a que não é corruptível, biodegradável. Castanho não é azul nem vermelho. Um é etéreo demais e o outro é demasiado emocional. Por isso, é melhor conservares-te assim e não saíres de ti a não ser o estritamente necessário, só para espreitares, de esguelha, a realidade. De qualquer modo, esse pouco de vida de que precisas estará sempre lá, não desaparece. E assim ainda serás maior (por dentro) do que o tamanho do que vês (por fora), se é que vês mesmo. Porque vês com os teus sentidos interiores, apesar do sinal enganador desses teus óculos aparentemente tão comprometedores e instrumentos de uma certa observação do exterior. Olha, se te deixasses ir um pouco até à vida achas que te tornarias banal? Ao menos toca-a com a ponta dos dedos e, se for o caso, depois desinfecta-a com palavras um pouco mais fortes ou até mesmo mais ácidas. Ah, bem sei. Não tens jeito para a poesia e achas que só ela é que te poderia salvar em caso de perigo, em caso de contágio. Mas tenta, meu caro, tenta, não sabes quanta metafísica pode haver na ponta dos dedos quando eles folheiam o real, sobretudo num poema, e o poder que têm de te resgatar dos fracassos da vida. Tens tanta poesia lá em casa! E da boa! Bom, mas não te quero convencer porque, como dizia o outro, o acto de convencer alguém é pura violência, é tentativa ilegítima de lhe colonizar a alma, de impor superioridade espiritual. E eu, que sou poeta, prezo muito a liberdade, a minha e a dos outros. E, portanto, também a tua.