Artigo

UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

Verdade e Pós-verdade

Por João de Almeida Santos

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“A Pós-Verdade”. Jas. 06-2021.

A QUESTÃO que continua em debate é, pois, a do artigo 6.º da Lei 27/2021. Sobre ela, reflecti aqui na passada Quarta-Feira: “A agorá digital e a democracia”. O que causa perplexidade é a questão da desinformação e o modo como a lei a trata. E, pelos vistos, ainda mais o modo como o PS a pretende regulamentar com um projecto de lei. Mais concretamente, como quer regulamentar esse artigo n.º 6. Em palavras simples, o que parece é que o país vai assistir à criação de comités de combate à desinformaçãoque grassa nesse lamaçal digital que é a rede, e em particular as redes sociais. Comités de fact checking(que bem que fica esta expressão num projecto de lei português), de “verificação de factos”, apoiados pelo Estado, estarão aí, à esquina de cada rede social, como autênticos caça-fantasmas (ghostbusters, já agora, para rimar com fact checking), à espera de fake news, da pós-verdade (e que bonito também chamar assim a mentira), para a denunciar e a fustigar. Assistiremos a uma verdadeira competição entre agências especializadas de combate à desinformação para ver quem caça mais fake news, mais boatos digitais. Serão criados rankings de caça-fantasmas por especialidade e, no fim, até haverá condecorações atribuídas por um eventual Ministério da Verdade, o que terá a tutela da nova realidade, com os seus sacerdotes encartados, os “novos cães de guarda” do espaço público, como lhes chama Serge Halimi, num livrinho que glosa o famoso livro de Paul Nizan, “Les chiens de garde”, neste caso, os intelectuais iluministas. Os media, esses grandes defensores da verdade, da objectividade, da imparcialidade, da neutralidade e da relevância (princípios fundamentais dos códigos éticos), em particular as televisões generalistas, e ainda mais em particular, os telejornais de prime time, serão os Grandes Verificadores, os Arqui-Inimigos da pós-verdade, os caçadores de fake news, os ghostbusters, os Sacerdores do Templo de Alêtheia, e disso serão recompensados pela sociedade e pelo poder em exercício, como, mais prosaicamente, previsto no artigo 2.º do Projecto de Lei.

“INFODEMIA”

Eu não entendo bem o que se está a passar. Mas parece-me ver que há uma santa aliança entre o poder político e os media, duas faces da mesma moeda, a do poder. Agora, o inimigo público número um é o digital, as redes sociais, esse caótico mundo livre onde prolifera a pós-verdade, o boato digital, a gritaria e onde parece estar a germinar uma nova rebelião das massas que é preciso travar. Insurgência digital – o novo inimigo externo que nos deve unir no combate. E se o antídoto se faz da mesma matéria do veneno, então que sejam os media a combater, com a arma da verdade, a desinformação, entidade fetiche que espreita em cada esquina digital.  Mas a verdade – e passe a redundância – é que tudo isto mais parece branqueamento protector dos media, das suas responsabilidades (o tabloidismo desbragado, o justicialismo electrónico, a permanente transgressão dos códigos éticos e, já agora, a crise profunda por que estão a passar), cumplicidade interesseira e disfarçada, “piscar de olho”,  com o poder político a incitá-los a controlar o inimigo público através de polígrafos a fundo perdido, passando de praticantes da liberdade a vigilantes por conta do poder e também por nossa conta e à nossa conta. Com a chancela do poder político, Portugal vai mobilizar-se contra a pós-verdade, contra a “infodemia” digital como se mobilizou contra a COVID19, onde médicos e enfermeiros serão substituídos por jornalistas, free lancers, associações e outros que tais que se associarão nessa grande cruzada contra o inimigo “infodémico”, o invasor, o trapaceiro cognitivo.

Nesta mobilização não deixarão de estar presentes os apóstolos das boas práticas, das políticas identitárias e da linguagem neutra e inclusiva. Serão aprovados institucionalmente manuais anti-infodémicos e anti-pós-verdade e serão produzidos aos milhões kits de emergência para combater o inimigo. Haverá mesmo catedrais digitais onde será celebrada missa de corpo ausente por alma dos caídos da “infodemia”.

O POLÍGRAFO E SEUS AMIGOS

E eu a julgar que só se tratava de questões de fronteira que poderiam ser tratadas politicamente entre os Estados nacionais ou as instituições europeias e as grandes plataformas através de protocolos consensualizados para travar riscos e ameaças estruturais. Bastaria, para tal, aprofundar e melhorar a experiência já existente ao nível da União. Além disso, até já existe legislação que permite às autoridades judiciárias intervirem neste campo quando se trate de matéria de natureza penal. Mas não, Portugal quer assumir-se como pioneiro no combate à “infodemia” digital, mobilizando o país contra o inimigo público numero um: a pós-verdade. Quase se poderia dizer que o país se vai mobilizar para uma guerra filosófica. Uma denodada luta pela conquista da verdade entregue aos “novos filósofos”, aos guardiões do Templo de Alêtheia. A ser assim, até já nem sei se o que estou aqui a escrever criticamente sobre esta estratégia do poder público, sobre esta política pública e sobre o bem público ”verdade” não poderá ser considerado pós-verdade a ser desmascarada, desde já, pelo polígrafo da SIC e pelo seu timoneiro, o isento jornalista Bernardo Ferrão. Fico tranquilo, porque o Polígrafo, afinal, tem temas mais elevados para tratar em defesa da cidadania. Por exemplo: “José Castelo Branco é o mandatário da Cultura do PS para a Câmara do Barreiro nas autárquicas?” (Polígrafo SIC, 31.05.2021). Ou então: “Os centros de saúde oferecem estendais a enfermeiros?” (Idem, 31.05.2021). No vasto mundo da rede, material para investigar não faltará. Mas, se faltar, criam-se factos virtuais para investigar e, depois, denunciar. Haverá sempre um Castelo Branco à esquina de cada rede social. A pergunta que surge espontânea é a seguinte: quem os verifica a eles, aos media, aos “novos filósofos”, aos apóstolos da verdade, aos inimigos jurados da pós-verdade, se é verdade (passe a cacofonia, porque é mesmo verdade) que a ERC, essa fantasmagórica entidade reguladora, não verifica nada de nada?

UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

Teremos, pois, um exército de “polígrafos” a combater a pós-verdade, os boatos digitais, as fake news para tranquilidade da cidadania, que não precisará de exercer o seu espírito crítico e selectivo na procura de informação porque tudo lhe será oferecido pelos exércitos da info-salvação nacional. Viveremos, assim, no melhor dos mundos, o mundo da verdade com selo de garantia atribuído pelo Ministério da Verdade.

Uma pergunta, para finalizar: este cidadão, que não tem de exercer a crítica, que não tem de escolher entre a verdade e a mentira (alguém o faz por ele com ajuda do Estado), que não tem de selecionar notícias credíveis, recusando e refutando as que não têm fundamento, não correrá o risco de ficar pouco atento, intelectualmente preguiçoso, para não dizer totalmente acéfalo por falta de ginástica mental e de exercício crítico? Já lhe davam manuais para saber como comportar-se no uso da linguagem e agora até já lhe oferecem verdade certificada. Um admirável mundo novo, transparente, verdadeiro e linguisticamente certificado, de onde a mentira digital será erradicada (a outra não, porque mentir, tal como errar, é próprio do homem, perdão, do ser humano). A nova democracia que nos é oferecida. Obrigado, eu dispenso a oferta.

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“A Pós-Verdade”. Detalhe.

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