A MONTANHA
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração (“O balão e a montanha”) de minha autoria. Maio de 2018.Proponho também uma bela canção de MILVA: "Il Canto di un'Eneide diversa" - Milva
“I live not in myself, but I become Portion of that around me; and to me, High mountains are a feeling....” Lord Byron Childe Harold’s Pilgrimage (1812-18). Canto III, 72 (1816).
POEMA
ESTOU A PERDER-TE, Meu Amor! O estro Com que te canto Esmorece, Vai perdendo Lentamente O seu fulgor! O poema Empalidece E eu, Em poética anemia, Sinto Um doce, suave E sonolento Torpor... SUBI A MONTANHA Contigo! E, feliz de lá chegar, Com palavras Que me deste Eu aprendi a cantar! CANTEI A TUA PARTIDA Quando desceste O vale. E, triste, Eu caminhei Por veredas Sem destino... .......... Já nem sei! PERDIDO De ti, Vagueei À procura De eco Do meu canto Derramado, Som puro E cristalino E por ti Iluminado. MAS O ECO Era silêncio Profundo, Sideral, Inscrito No azul, Quase irreal, Da abóbada Celeste Da montanha Seminal. NEM SEQUER O CLARÃO De um cometa Fugaz Me visitava, Pinhal abaixo, Rumo ao horizonte Do meu inquieto Olhar... O AR RAREFEITO Da montanha Tomou conta De mim E desfaleceu A emoção De te rever, Reinventar E te cantar Em surdina Com esse Silêncio Cortante Que me negava, Impenitente, O eco da Minha canção! DESCI, ENTÃO, Também eu, O vale Da tua vida E regressei À triste monotonia, Sem ti, Em corpo Sequer imaginado, Nem semente De poesia. ESTOU A PERDER-TE Meu amor! É poética Anemia. Ar rarefeito Que sufoca A melodia. O cântico É murmúrio Inaudível, Sem comoção De alma ferida Que já nem A dor pressente, De tão esgotada Na vida Por excesso De paixão! O VALE ESPERA-ME. Respiro ofegante, Porque sei Que não te vejo, Que já não Sobram sinais Da rua do Desencontro, Não há fugas Irreais Para o teu Infinito Nem janelas Donde te veja Passar Ou sequer imaginar Na esquina Esquecida Do nosso Contentamento! ESTOU A PERDER-TE, MEU AMOR. Não há janela, Nem há cor Ou infinito, Não há tempo Nem lugar, Não há poema Nem mar Que suspenda O vazio De não te poder Encontrar! JÁ TE PERDI, Meu amor?
Poema triste (II), melancólico. Dir-se-ia uma elegia…
Poema que estabelece uma linha clara de continuidade com o anterior, no qual, o sujeito poético anunciara o fim de um sonho, um sonho de amor, e reconhecera «Que foi tudo ilusão.»; «Só ficou
A ilusão!».
E se no poema anterior a perda da mulher amada apontava para repercussões ao nível da destruição da dimensão estética do poeta («SONHEI/ Que (…)/ Que já não havia/ Poemas/ E que não era/ Pintor.»), neste, não só reitera a perda do objeto amado («ESTOU A PERDER-TE,/ Meu Amor!», três vezes repetido ao longo do poema, em lugar estratégico da estrofe), como reconhece o drama do enfraquecimento, a falta de ânimo para prosseguir com o ato de criação poética.
Tudo se joga, pois, ao nível da primeira estrofe, onde o poeta imprime, desde logo, o tom dialógico a que já nos habituou em composições poéticas anteriores (cf. a apóstrofe «Meu Amor!», mas também o recurso aos pronomes pessoais e possessivos de segunda pessoa, disseminados ao longo do poema: «te», «contigo», «tua», «ti», «teu» e «nosso» ) e recorre a um léxico expressivo que traduz, justamente, esse abatimento criativo que o invade: «esmorece», «empalidece», «anemia», «torpor».Trata-se de um processo gradual, patente na construção verbal perifrástica, expressando continuidade, «Vai perdendo», intensificado pelo advérbio de modo «Lentamente».
E que dizer do jogo sinestésico presente em «Um doce, suave/ E sonolento/ Torpor… », marca característica do estilo de JAS.
Interessante, a dicotomia «montanha» / «vale» associada a momentos distintos da vida emocional e criativa do poeta, a vivências emocionais e artísticas distintas do eu lírico,
Curiosamente, o «ar rarefeito» da montanha parece acompanhar o «eu» poético no «vale» (marcado pela «triste monotonia»), acelerando esse processo de «morte» da criação poética, traduzido no surpreendente oxímoro «Ar rarefeito/ Que sufoca/ A melodia.».
A expressão do pessimismo, do desespero e do sofrimento amoroso pela perda da mulher amada atinge o paroxismo na penúltima estrofe, numa sucessão de construções frásicas negativas e hiperbólicas – «Não há…» -, numa tentativa desesperada de «suspenda[er]/ O vazio/ De não te poder/ Encontrar!».
Notar ainda alguns dos leitmotif da poética de JAS, designadamente, o da «janela» e o da «cor», num interessante jogo de remissões.
O sujeito poético parece estar «em negação», como soe dizer-se, porquanto no último dístico, interpela o objeto da sua paixão, na tentativa vã de obter uma resposta negativa à sua pergunta (nada retórica): «JÁ TE PERDI,/ Meu amor?»
Obrigado, OLGA. Mais um riquíssimo comentário que volto a incorporar no meu processo criativo. Aprendo sempre consigo e esta conceptualização do meu exercício poético ajuda-me (e de que modo!!!) a trazer à consciência os estados de alma que jorram pela poesia fora, às vezes quase sem limitações de forma. Felizmente que a poesia permite (e até agradece) oxímoros, onomatopeias e outros recursos estilísticos que ajudam a dizer o quase indizível. Sim, é verdade, há constantes recorrências na minha poesia, uma espécie de eterno retorno. Mas a vida também é isso, estamos, de algum modo, sempre a regressar a nós… e aos outros. Mas “L’Enfer c’est les autres”… como compreendo agora o Sartre! Felizmente que o nosso luar é a poesia… e sonhamos e dizemos o que sonhamos, pacificando-nos. Eu acho mesmo que sem este (quase eterno) retorno nem haveria poesia. É um lugar seminal aquele a que sempre regressamos, originário, não fosse o amor inseparável da eternidade da espécie. Só que também a eterniza quando se eleva à beleza plástica que se exprime na arte. É o outro lado brilhante da lua. Alimentado pela paixão, eleva-se com essa força propulsora e dá-se como beleza intemporal e universal. É este o desafio. Não nos ficamos na sua dimensão terapêutica, no seu poder terapêutico. É por isso que eu uso frequentemente a expressão “tristeza feliz”! Só neste registo é compreensível. Um abraço.
Brilhante.
Bem haja.
Um abraço.
Que lindo Poema, Professor…
E particularmente bonito se apreciado em harmonia com as cores da Ilustração.
Nela consigo distinguir duas flores, num jogo de cores fortes elegantemente combinadas.
Uma combinação de cores que, por sinal, é uma das minhas favoritas!
Um Grande Bem-Haja, Professor!
1 beijinho com admiração e estima pessoal, Fernanda
Obrigado, Fernanda.
Procuro a simbiose. Duas artes. Não é fácil, mas, no fim, recompensa. Entretanto, introduzi um outro elemento: uma belíssima canção da MILVA, com sabor a Grécia. A toada bate bem com este melancólico canto poético. Ela tem uma voz soberba e é uma grande intérprete. Um beijinho do JAS
Transcrevo do meu Facebook uma quadra de Ana de Sousa sobre este poema e a ilustração que o acompanha e a minha resposta.
Ana de Sousa:
“Perde a cor na poesia
Ganha cor na tela sua
O pintor é um sol dourado
O poeta só vê lua…”
A minha resposta:
“Sim, tento compensar a noite sofrida no canto com o brilho solar da cor intensa. Aqui está uma interessante questão: se a força propulsora da poesia parece ser a dor, de onde nasce a energia criativa da pintura? Sim, também na pintura há muita lua para exibir, mas ocupa a dor um lugar central nela? Não sei. Que há mundos estranhos na pintura, há. Bosch, Paula Rego, Francis Bacon. Só para citar alguns. Sempre gostei de cores intensas e já que tenho de pintar desforro-me da poética e dolorosa noite sempre que infelizmente não há luar. Quando há luar… não preciso tanto de cor! Aqui, às vezes, há convergência, sinestesia, simbiose; outras vezes há dialéctica, luta de opostos, mas comigo no intervalo, como poeta ou como (deus me perdoe)… pintor! Mas é verdade. A lua sem luar tem-me visitado demais. E talvez seja por isso que tento agarrar-me aos riscos e às cores para voar do sítio onde me encontro… desta vez fui de balão! E subi mais alto, para além da Estrela, para melhor contemplar o vale das nossas vidas. Não me viste a espreitar por uma janela do balão, lá em cima, no sopé de uma flor?”
Transcrevo o comentário da Prof.ra Maria Neves, no meu Facebook, ao poema de Domingo “A Montanha”, com o meu agradecimento:
“Maria Neves Leal Gonçalves. Belo poema este, cuja interioridade discursiva nos permite descodificar os territórios subjectivos bem como as genealogias da poética de João de Almeida Santos: o silêncio, o vazio, a procura incessante do objecto amado que, metoniamente, se entrelaça com a inspiração poética. Estamos perante um poema obliquamente autobiográfico e algo enigmático. Seja pelo título Montanha que tem correspondência semântica no corpo do texto em três fragmentos textuais: ”SUBI A MONTANHA/Contigo!”; ”Da abóbada/Celeste/Da montanha/Seminal”;“O AR RAREFEITO/Da montanha/Tomou conta/De mim”. Seja pela abertura do poema “Estou a perder-te/Meu Amor”, cujo presente progressivo conduz a uma circularidade poética-narrativa traduzida numa frase enfática e interrogativa: “JÁ TE PERDI,/Meu amor?”. É precisamente esta interrogação que faz perdurar a notação enigmática do poema suspendendo o vazio do desencontro amoroso e alimentando a criação poética…”
A minha resposta:
João De Almeida Santos. Obrigado, Prof.ra Maria Neves. “Genealogias da poética”, “obliquamente autobiográfico”. Sim, esses são elementos seminais com referente(s) vago(s). Precisamente porque o poeta se coloca numa relação oblíqua (que também é de “intervalo”) em relação à sua própria autobiografia. Somos sempre autobiográficos. A diferença reside na posição que assumimos nesta relação. É ela que determina o enigma (ou a literalidade). Sim, de certo modo, a poesia é oblíqua. Boa definição. Gostei. Cá está, completa-se, assim, o poético estar-em-intervalo. Que, de certo modo, é oblíquo.
É por isto que os seus comentários/análises me enriquecem: tornam tudo mais claro para mim. O enigma final talvez derive do carácter retórico da pergunta e da posição oblíqua do poeta. Mas isso só perguntando ao sujeito poético que a enuncia e ao poeta… mas acho eu que eles nunca responderão… a não ser em poesia!