Artigo

OS HERDEIROS DE MUSSOLINI

A Terceira Geração

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 07-2023

HÁ DUAS RAZÕES pelas quais fui ler o livro de Salvatore Vassallo e Rinaldo Vignati, Fratelli di Giorgia. Il Partito della Destra Nazional-Conservatrice (Bologna, Il Mulino, 2023, pp. 292), uma investigação recentíssima sobre a extrema-direita, ou direita radical, italiana que se filia na tradição que remete para a Repubblica Sociale Italiana (RSI), a famosa Repubblica di Salò, e para o MSI-Movimento Sociale Italiano, de Giorgio Almirante, que lhe deu continuidade sob a forma de partido. Agora temos o partido da terceira geração, Fratelli d’Italia (FdI): da geração de Giorgio Almirante (do pós-guerra a 1988) à de Gianfranco Fini (1988-2009), à de Giorgia Meloni (2012-2023). O próprio Almirante foi um “repubblichino”, membro da RSI.

A primeira razão: dar seguimento ao anterior artigo sobre Mussolini que aqui propus na semana passada. A segunda: compreender melhor em que águas se movimenta o partido Fratelli d’Italia, de Giorgia Meloni, em vez de pura e simplesmente apontar o dedo, chamar-lhes fascistas e dar o assunto por encerrado. Dá-se o caso de este partido governar hoje um importante país europeu e de ser o maior partido italiano com cerca de 29% do eleitorado (a crer nas mais recentes sondagens), a cerca de 9 pontos percentuais do segundo maior partido, o Partido Democrático (PD).

1.

Os autores, referindo-se a Giorgia Meloni, dizem algo que talvez explique, em parte, o súbito sucesso de um partido que nas eleições legislativas de 2018 tivera pouco mais de 4% e que, quatro anos depois, nas legislativas de 2022, chegaria aos 26%, ganhando as eleições e formando governo com a líder como Presidente do Conselho de Ministros. Dizem eles:

“FdL é um partido old style com uma líder pop, uma das características que estiveram na base do seu sucesso”. E acrescentam: “Giorgia Meloni e o seu staff demonstraram uma notável capacidade de criar e interpretar registos comunicativos diferentes – do comício gritado à mais clássica retórica parlamentar, da entrevista televisiva solene ao talk show agressivo, da conferência internacional ao Tik Tok – conseguindo afirmar-se no actual sistema de media híbrido, no qual convivem as lógicas dos mass media tradicionais com as lógicas dos media digitais, dos broadcast e dos social” (2023: 191).

Giorgia pop star. Na verdade, o título do seu livro, Io sono Giorgia (Milano, Rizzoli, 2021, 336 pág.s), remete para um famoso e eficaz slogan, gritado num comício na Praça de S. Giovanni, em Roma, em Outubro de 2019,  “Io sono Giorgia, sono una donna, sono una madre, sono italiana, sono cristiana”, que viria a integrar um vídeo publicado no Youtube, tendo, em pouco tempo, tido mais de 6 milhões de visualizações. É uma líder incontestada e concentra em si todos os poderes num partido que no essencial não cumpre os estatutos sequer em processos de escolha e selecção dos dirigentes, que são inexistentes. O método dominante é a aclamação, vindo as propostas do vértice do partido. Em contraste com o que está estipulado nos estatutos, “os órgãos nacionais foram constituídos por aclamação ou nomeados pela Presidente, os congressos territoriais, com pouquíssimas excepções, nunca foram realizados; as primárias nunca foram convocadas” (Vassallo e Vignati, 2023: 131-132). A classe dirigente, no essencial, vem de longe, do tempo em que Meloni era dirigente da juventude partidária. Na verdade, trata-se de um “partido do líder”, um pouco diferente do “partido pessoal”, como era o caso de Forza Italia (Berlusconi) ou do próprio MoVimento5Stelle (Beppe Grillo) (Vassallo e Vignati, 2023: 263). O que não é estranho tendo em consideração a tradição político-ideal em que se inscreve FdI: uma tradição que sempre defendeu, e continua a defender, o presidencialismo e a personalização extrema da política na figura do líder. Na verdade, no discurso político de FdI a dimensão pública está profundamente ligada à dimensão íntima da líder (2023: 214), chegando mesmo a sobrepor-se: “Como em muitos outros aspectos da vida interna de FdI, a sobreposição entre a imagem do partido e da líder é quase total”, dizem Vassallo e Vignati (2023: 191). Ou seja, Meloni assumiu sem reservas a personalização intensa da política, a identificação emotiva do público com a sua pessoa, enquanto portadora de um projecto e de uma visão do mundo, mas onde a dimensão pessoal (física, de condição e de história pessoal) materializa, dá corpo ao próprio discurso político. A subida eleitoral vertiginosa que se verificou entre 2019 e 2022 encontra, sem qualquer dúvida, nestes aspectos uma sua relevante explicação, para além das temáticas, próprias dos partidos populistas, que já tinham contribuído, designadamente a temática da imigração, para o sucesso de Salvini nas europeias de 2019.

2.

O partido é muito recente, foi criado em 2012, e retoma, em novas formas, a tradição da Alleanza Nazionale e do Movimento Sociale Italiano. Ele é o legítimo herdeiro da tradição neofascista que remete para a famosa Repubblica di Salò, de que o próprio Giorgio Almirante fez parte. Foi nesta República (no Centro-Norte de Itália) que Benito Mussolini se manteve no poder, em território ocupado pelos alemães, entre 1943 e 1945, altura em que é condenado à morte pelos partigiani  e exibido, morto, ao lado da sua amante, Clara Petacci, numa praça de Milano (Piazzale Loreto, em Abril de 1945).

3.

O livro conta detalhadamente a história das três gerações (a de Giorgio Almirante, a de que Gianfranco Fini e a de Giorgia Meloni) que levaram por diante a tradição originariamente neofascista, desde a fundação do Movimento Sociale Italiano, em 1946 (com Marsanich, Michelini, Almirante, entre outros), e as suas tendências internas, altamente conflituais e sempre marcadas pela presença sensível de um período dramático da história italiana, conhecido como “il Ventennio” (fascista). O distanciamento relativo a este património negativo só viria a acontecer com a viragem de “Fiuggi”, em 1995, e a criação formal da “Alleanza Nazionale”, a sucessora do MSI de Almirante. E fora já em pleno processo de constituição deste novo partido, pelo menos desde Janeiro de 1994, e já guiado por Gianfranco Fini, que, em aliança com o partido de Silvio Berlusconi, Forza Italia, no Mezzogiorno, com o chamado Polo del Buon Governo, viria a integrar o bloco vencedor das eleições legislativas de Março de 1994, vindo a entrar no primeiro governo Berlusconi e saindo definitivamente da tradicional colocação externa ao sistema. Segue-se um período de normalização até à sua integração, em 2009, num novo partido proposto por Berlusconi, o Popolo della Libertà, que integraria Forza Italia e Alleanza Nazionale. Experiência que não correu bem e que viria a ditar o fim político de Gianfranco Fini e o nascimento do partido Fratelli d’Italia, em 2012.  Nas eleições legislativas de 2013, o FdI obteve fracos resultados, mas conseguiu eleger alguns deputados, não tendo, todavia, em 2014, nas europeias, eleito um eurodeputado; depois, nas legislativas de 2018 conseguiria um pouco mais de 4% e, nas europeias de 2019, em que Matteo Salvini obteve uma estrondosa vitória, com cerca de 34%, o FdI conseguiria obter um pouco mais de 6%. Até que, finalmente, em 2022 vence as eleições legislativas, com cerca de 26%, vindo a formar governo com a sua líder como Presidente do Conselho de Ministros.

4.

Uma ascensão meteórica, pois em dez anos conseguiria chegar a primeiro partido italiano, derrotando os competidores internos, a LEGA e Forza Italia, e o seu directo adversário, o Partido Democrático.

A fase de Fini foi decisiva para esta evolução pois foi ele que integrou no sistema democrático um partido que, pela sua marca genética, sempre fora considerado como externo ao chamado arco governativo. As polémicas internas eram sempre dramáticas e radicais quando o seu património político-ideal era objecto de debate e, por vezes, até as posições dos seus militantes eram contraditórias entre si, inclusivamente as de Gianfranco Fini acerca do fascismo, apesar de a sua posição de ruptura com o património genético se ter tornado dominante com a consolidação da Alleanza Nazionale.

Mais cautelosa Giorgia Meloni, que sempre garantiu uma visão pacífica e serena do património originário: “Giorgia Meloni sempre pôs grande ênfase na continuidade da experiência histórica da direita italiana”, afirmando, em 2021: “acolhi o testemunho de uma longa história de setenta anos” (Vassallo e Vignati, 2023: 16). Feitas as contas, a referência aplica-se exclusivamente à experiência partidária neofascista que se seguiu à experiência política italiana, entre 1922 e 1945 (incluindo os cerca de dois anos da Repubblica di Salò). Ela garantiu uma liderança sólida, não só pelo seu realismo e pela lealdade serena à sua própria tradição e identidade originária, mas já bem distante da chamada “política da nostalgia”, até por motivos geracionais, mas também porque soube fixar-se essencialmente nos temas que hoje são objecto de atenção generalizada de toda a direita radical ou populista: 1) a defesa intransigente do soberanismo; 2) o combate activo e extensivo à imigração (ilegal); 3) a defesa da ideia de pátria, lida, neste caso, a partir de uma sua identificação com a maternidade (“madre patria”: “perché la patria è la prima delle madri”, Meloni, em Milano, Abril de 2022 – Vassallo e Vignati, 2023: 213); 4) a recusa de todos os temas propostos pela ideologia woke, o politicamente correcto e a ideologia gender; 5) a crítica ao grande capital associada às teorias conspiracionistas, designadamente a da “grande substituição” étnica (2023: 207); 6) uma clara posição militante antiglobalista; 7) a proximidade aos países do Grupo de Visegrad e aos republicanos americanos, incluindo proximidade a Trump; 8) o presidencialismo, dando continuidade a uma posição que o neofascismo italiano sempre assumiu;  9) a defesa cautelosa de uma Europa dos povos e das nações e do respectivo património nacional, com forte crítica aos burocratas de Bruxelas, mas sem pôr em causa a pertença da Itália à União.

5.

Tudo com conta, peso e medida e também com um fortíssimo discurso onde dava centralidade à sua própria figura, enquanto mulher e mãe, à sua história pessoal, à sua proveniência sociológica (Vassallo e Vignati, 2023: 210-215), ao seu próprio empenho na defesa e promoção da identidade nacional e na sua identificação simbólica com as classes populares, ao evidenciar no seu discurso as suas origens e a sua vida.

O partido Fratelli d’Italia conclui um processo que tinha sido iniciado por Gianfranco Fini, num registo diferente e com maior equilíbrio e coerência na distanciação relativamente a chamada “política da nostalgia”. Os autores deste livro fizeram escassas incursões no território ideológico e doutrinário, limitando-se a fazer referências passageiras a Julius Evola, Giuseppe Prezzolini, Domenico Fisichella, Marcello Veneziani, Roger Scruton, Yoram Hazony (“The Virtue of Nationalism”) e, pasme-se, até a Pier Paolo Pasolini ou a Antonio Gramsci, sendo certo que esta última referência não é nova pois a pista já fora aberta por Luciano Pellicani, no livro “Gramsci e la questione Comunista (Firenze, Valecchi, 1976), publicado nos Estados Unidos pela Hoover Institution, em 1981. Estas referências têm a ver com uma leitura em chave tradicionalista e conservadora da crítica ao capitalismo e ao neocapitalismo, aos seus valores e mundividências (Vassallo e Vignati, 2023: 149). Mas, na verdade, os autores chamam a atenção para o facto de a classe dirigente de FdI ser mais política do que ideológica, política de profissão, interessando-lhe mais os grandes temas de combate próprios da mundividência populista do que uma coerente doutrina política (2023: 264). Estes temas já os referi, mas, em particular, o tema da imigração tem-se revelado de uma enorme eficácia política e eleitoral, como se viu no caso de Salvini ou no caso do BREXIT, tendo levado Meloni a, também ela, aproximar-se das posições do seu concorrente interno, a LEGA.

6.

Em breve completará um ano o governo de Giorgia Meloni (tomou posse em Outubro), com resultados eleitorais que as sondagens mostram serem promissores junto dos italianos, a crermos nas sondagens disponíveis já no mês em curso. Com efeito, em quatro sondagens de Julho, a diferença entre o  FdI e o PD era superior a 9 pontos (29,3% de FdI contra 20,02 do PD). Uma estável subida de cerca de 3 pontos em relação às eleições de há um ano.  Mesmo já com uma mulher como líder, Elly Schlein, o sei directo opositor, o PD, não tem conseguido superar o limiar dos 20%.

7.

A questão que se pode pôr é a de saber se isto corresponde, de facto, à expressão de uma tendência mais geral, representada pelos partidos populistas, na Europa e fora dela, ou se estamos perante um caso tipicamente italiano, de laboratório, tratando-se de uma rápida e quase inexplicável mudança nos protagonistas da política italiana. Lembremo-nos que o M5S, em 2018, conseguiu quase 33% do eleitorado; que, em 2019, a LEGA de Matteo Salvini obteve cerca de 34%; que a esquerda dominou desde 2013; e que Berlusconi, com Forza Italia e os seus aliados, foi governando Itália desde 1994 (1994-1995; 2001-2005; 2005-2006; 2008-2011), alternando com o centro esquerda. Nunca a direita radical tivera uma posição dominante. Pelo contrário, até 1994, desde o imediato pós-guerra, fora sempre considerada uma força política exterior ao sistema.

Estamos claramente perante uma nova e inesperada fase, com os dois partidos aliados em posição subalterna (com cerca de 8% ambos) e com a esquerda em graves dificuldades e alguma crispação interna. O que temos é realmente a direita radical a chefiar o governo e com uma base de consenso assinalável, a pouco menos de um ano da posse (em Outubro de 2022).

8.

O livro aqui em referência, apesar de ter quase trezentas páginas, não dá grandes explicações sobre as razões do inesperado triunfo de FdI, pelo menos explicações sistemáticas, a não ser a da promoção de uma política centrada na líder e nas suas qualidades pessoais, na fabulação da sua história pessoal, na força da personalização da política, na capacidade de conjugar a comunicação em todos os suportes hoje disponíveis (broadcasting e rede) e na centralidade da mulher, em todas as suas dimensões, com particular enfoque na maternidade, nas sociedades actuais. Mas eu creio que a atmosfera global tem vindo a favorecer o discurso dos populistas em geral (nos temas que acima referi), que o centro-esquerda e o centro-direita conhecem graves dificuldades de afirmação pela assunção sistemática da ideia de política como mera tecnogestão dos processos sociais e puro marketing e que a direita radical tem surfado com grande competência sobretudo a rede, sabiamente gerida pelos novos spin doctors 4.0, os “engenheiros do caos”, como lhes chama Giuliano da Empoli na obra com o mesmo nome (veja aqui o artigo meu artigo sobre “Os Novos Spins Doctors e o Populismo Digital”, em  https://joaodealmeidasantos.com/2023/06/27/artigo-108/). E não tenho quaisquer dúvidas de que o tema da imigração tem movimentado um fortíssimo eleitorado à direita, tal como o combate sem tréguas que a direita radical tem vindo a dar à ideologia woke, à ideologia gender, ao politicamente correcto e ao revisionismo histórico. Objecto de particular atenção, no seu combate, as organizações LGBT e a caminhada impositiva da sua identidade e dos seus símbolos um pouco por todo o lado, incluindo as instituições públicas.

9.

Por tudo isto, eu creio que mais do que apontar o dedo e liquidar com uma palavra estes movimentos da direita radical, seguindo em frente na luta denodada por supostas causas identitárias e esgotando toda a estratégia nela, mesmo deixando cada vez mais na zona de sombra as clivagens mais profundas, transversais e universais, mais do que isso, é necessário compreender como se move o adversário, compreender as suas razões e sobretudo a razão dos seus sucessos eleitorais em países onde o voto é livre e democrático. Mas não, o snobismo intelectual é mais forte e a redução da política à mera tecnogestão dos processos sociais tem sido o alimento político preferido do centro-esquerda e do centro-direita, enquanto vão degustando com redobrado prazer ideológico os avanços desta nova tendência, supostamente de esquerda, para boa paz da sua consciência e do seu progressismo civilizacional. Já temos em Portugal uma lição suficientemente significativa (já vale cerca de 13%) que bastaria ter em consideração para mudar de rumo.

Finalmente, julgo não ser arriscado dizer que se a governação de Giorgia Meloni revelar uma boa performance (mas não falo aqui dos conteúdos), uma eficaz capacidade executiva, perdurando no mandato, isso representará um fortíssimo argumento que o populismo europeu exibirá perante os eleitores com vista à obtenção de condições para governar. Ou seja, a tarefa de Giorgia Meloni ganha, por esta razão, uma dimensão que ultrapassa de longe o plano nacional italiano. A ver vamos. JAS@07-2023

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