Artigo

LAWFARE, EXCESSO DE ZELO OU PURO ARBÍTRIO?

A Investigação ao PSD

João de Almeida Santos

RR4

“S/Título”. JAS. 07-2023

FUI VERDADEIRAMENTE SURPREENDIDO, “ma non troppo”, pela incursão dos magistrados judiciais nas sedes do PSD e nas casas dos seus dirigentes à procura de um estranho ilícito. Baseio-me no que li na imprensa, porque não conheço os autos. Mas, na verdade, o que me interessa é o essencial. A legitimidade desta acção judicial, na qual o que parece estar em causa é a alegada remuneração de funcionários do PSD pela Assembleia da República. Logo à primeira vista, isto parece ser improvável: nunca a Assembleia da República remuneraria alguém que não integrasse o quadro de pessoal da própria Assembleia. As pessoas remuneradas, e aqui em causa, para o serem teriam de ter o estatuto formal de colaboradores do Grupo Parlamentar (GP), técnico ou de assessoria. Só assim a AR poderia processar os vencimentos. E julgo que foi isto mesmo que se passou, sendo a questão levantada pelo facto de alguns destes colaboradores alegadamente prestarem serviço junto do partido. É isto ilegal?

O QUE DIZ A LEI

Vejamos. Em primeiro lugar, os GP escolhem e nomeiam livremente os seus colaboradores de acordo com a Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da AR e têm o poder de decidir quando, onde e como estes exercem as suas funções, incluindo a possibilidade de o fazerem à distância (Art. 46). Assim sendo, nada impede que os GP decidam que um ou mais assessores exerçam as suas funções na própria sede do partido de referência, adoptando uma figura parecida com a dos “oficiais de ligação”, mediadores entre o GP e o partido de referência. E isto em várias frentes da actividade parlamentar. Ficam, pois, ao serviço da articulação entre o GP e o partido de referência. Que estranheza há nisto?

Há que lembrar, embora tendo sempre em conta a separação entre o público e o privado (mesmo no caso dos partidos políticos), o que diz art. 114 da Constituição da República Portuguesa: “Os partidos políticos participam nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo, de acordo com a sua representatividade eleitoral” (n.º 1) e “gozam, designadamente, do direito de serem informados regular e diretamente pelo Governo sobre o andamento dos principais assuntos de interesse público” (n.º 3). A Constituição diz “os partidos”, certamente através da sua representação parlamentar, que adoptará as formas mais expeditas, directas e regulares de o fazerem.  Mas note-se que diz “os partidos”, não representação parlamentar. A própria lei (alterada, creio que é a Lei 55/2010, de 24.12), relativa a subvenções públicas aos grupos parlamentares, aos deputados únicos, não inscritos ou independentes, fala de “actividade política e partidária em que participem” (nº8 do art. 5). Há aqui um claro ponto de contacto entre GP e partidos expresso em lei. A ela se referiu ontem o próprio PR. Ou seja, os partidos políticos, sendo associações privadas, perseguem fins públicos, têm a exclusividade de propositura das candidaturas ao Parlamento e, como se viu, estão reconhecidos formal e constitucionalmente como sujeitos políticos dotados de importantes (e muitas) prerrogativas institucionais, incluindo subvenções, para efeitos de actividade partidária,  dos seus grupos parlamentares. Os assessores dos GP são enquadráveis nesta lógica inscrita na própria lei e na CRP. Dentre as funções políticas relevantes dos partidos políticos está a de relacionamento privilegiado com os seus Grupos Parlamentares e com o próprio governo. Curiosamente, no extracto de carta de denúncia que o “Público” publica (ontem, 13.07.2023, p. 13) pode ler-se que “vários funcionários da sede nacional do PSD (…) estão nomeados simultaneamente para funções permanentes no partido e no grupo parlamentar. Tal significa que não podem estar nos dois locais simultaneamente”. Precisamente, dupla função, “oficiais de ligação”, sendo que a presença física, ou não, depende da livre decisão do Grupo Parlamentar. No meu entendimento trata-se de uma situação perfeitamente regular. O denunciante provavelmente nem conhecia a lei.

O ARTIGO 16 DO REGIMENTO DA AR

O que impede, pois, um Grupo Parlamentar de accionar os seus próprios meios humanos para promover e aperfeiçoar a sua ligação ao partido de referência se a própria CRP atribui aos partidos uma relevância institucional directa que não se verifica com nenhuma outra associação privada e a lei prevê o financiamento da actividade partidária desenvolvida pelos seus grupos parlamentares? Nada, é a minha convicção profunda. Bem pelo contrário, a criação de um fosso, de uma rígida separação entre o GP e o seu partido de referência só produziria danos ao próprio funcionamento do sistema político democrático.

Mais. Como se sabe, a Assembleia da República não tem, nem nunca teve, estruturas nem recursos humanos disponíveis que possam dar apoio local, como previsto pelo n.º 2 do art. 16 do seu Regimento (1/2020, de 31.08), ao trabalho dos deputados nos respectivos círculos eleitorais. Na verdade, nunca esta, que é uma competência do PAR, foi exercida, ou seja: “promover o desenvolvimento de ferramentas que visem o contacto direto ou indireto dos Deputados com os seus eleitores, nomeadamente a criação de formas de atendimento aos eleitores, a funcionar nos respetivos círculos eleitorais”. Nada. Quem apoia, então, os deputados no seu trabalho político junto dos seus eleitores? Está claro de ver que são os partidos políticos, através das suas estruturas locais ou regionais, suprindo deste modo uma grave falha do Parlamento. Só esta razão, mas também a escassez de espaço na AR é invocada, basta para justificar que os GP destaquem alguns seus colaboradores (dos que a lei prevê) junto dos partidos com este objectivo, embora, como disse, essas funções sejam exercidas também num mais vasto espectro. De resto, parece-me muito sensata e razoável a explicação do Bloco de Esquerda sobre o assunto (veja a transcrição no DN de 13.07, pág. 4), embora não tanto a de Rui Rio, ao afirmar que essa é prática de todos os partidos, porque a prática não encontra legitimidade no número dos que a adoptam ou no tempo durante o qual acontece, mas na sua inscrição nos fundamentos que acima referi e nos que também o BE invoca.

ANTI-POLÍTICA?

Por isso, parece-me estranha e injustificada esta gigantesca operação, com 100 operacionais no terreno, junto do PSD (que não é, nem nunca foi, o meu partido de referência), com ampla cobertura mediática, maltratando mais uma vez o segredo de justiça e exibindo já o temível pelourinho electrónico, pronto para a execução pública do castigo.

O que eu vejo nisto é uma verdadeira operação contra a política, de desqualificação dos partidos e dos seus dirigentes e, finalmente, um ataque à própria democracia. E veria nisto autêntico lawfare se a operação não acabasse por envolver todo o sistema político. Mas a ser lawfare, e acho mesmo que é, então será para a promoção da anti-política, resultando a operação naquilo que todos já conhecemos bem demais: a promoção do populismo radical através da promoção, a qualquer custo, do descrédito de todo o sistema político e da própria democracia. O que eu espero é que desta vez não venha a ser exibido o já tão enjoativo slogan “à  política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. É que, desta vez, ou mais uma vez, é a justiça que está a entrar despudoramente numa zona muito sensível e perigosa da política, num terreno que envolve todas as forças políticas e, por conseguinte, a própria democracia. Mas nada disto é novo.

LAWFARE

Afinal, o que é o lawfare? A palavra é hoje usada para designar o uso extrajudicial do direito para fins de combate ao inimigo, seja em que frente de batalha for. O neologismo deriva da contracção de “law”, direito, com “warfare”, guerra, como se lê no livro Lawfare, da autoria dos advogados do Presidente Lula, Cristiano Zanin Martins, Valeska Zanin Martins e Rafael Valim (Coimbra, Almedina, 2020, p. 29).  O Lawfare é usado pelos Estados, pelos aparelhos do Estado ou sabe-se lá por quem para anular os inimigos ou vergar os alvos escolhidos. Antes de conhecer este conceito, bem consciente da prática que se generalizava, muitas vezes designei o uso do direito para fins exteriores à justiça como arma branca da política, na convicção de que, hoje, o uso das forças armadas e das forças de segurança é, com vantagem, substituível pelo uso “bélico” do direito para derrubar governos, instalar regimes, liquidar inimigos políticos. Esta possibilidade foi tornada possível pelo crescimento do poder judicial no interior dos sistemas democráticos e na geometria dos poderes. Para este crescimento ou mesmo para a conquista da centralidade do poder judicial no sistema social já, há muito, Alain Minc tinha chamado a atenção em dois livros: L’Ivresse Démocratique (Paris, Gallimard, 1995) e, sobretudo, Au Nom de la Loi (Paris, Gallimard, 1998; e Mem Martins, Inquérito, 2000). Uma curta citação, a propósito. Falando do populismo e da sua execração à representação nacional ou a todas as formas de mediação política, Minc conclui: “todos corrompidos” é “o seu grito de união; e para se desfazerem da ‘ralé parlamentar’, um método: a delação; um instrumento: a pressão mediática; um recurso: o juiz”. Deste modo, “astros dos meios de comunicação (…), os juízes podem tornar-se, sem o quererem ou sem o pensarem, o braço secular do populismo” (Minc, 2000: 47-48). Mais claro do que isto é impossível.

AS ORIGENS

Este poder da justiça foi acompanhado pelo crescimento do establishment mediático, em particular a partir dos anos ’90, tendo-se estabelecido entre ambos uma aliança estratégica que viria a reforçar o seu poder. A leitura destes dois livros dar-nos-á um quadro bastante completo e analítico deste poder emergente que resulta da referida “santa aliança”. São conhecidos os casos mais radicais, mas o que mais marcou a cena internacional e a própria tessitura da narrativa, pelo seu pioneirismo e pelos efeitos que teve sobre todo o sistema político italiano, foi o caso de Tangentopoli, com Antonio di Pietro como protagonista, que ficaria famoso não só por desmantelar o sistema de poder existente em Itália até ao início dos anos ’90 (a Primeira República), mas também por ter exposto ao vexame televisivo os inúmeros protagonistas da política italiana sujeitos a processo. Cito, a este propósito, de novo, Minc: “A Itália ofereceu-se, assim, há menos de cinco anos uma revolução certeira. Com a sua ‘guilhotina seca’ que baniu as antigas elites. Com o seu herói revolucionário, o juiz Di Pietro. Com o Palácio de Justiça de Milão transformado numa espécie de Convenção. Com as cadeias de televisão como se fossem clubes de sans culotes” (Minc, 2000: 47). Cenas de humilhação indecorosas que nada tinham a ver com o direito a processos justos. Sabemos como acabou: da Italia dei Valori, de Di Pietro, o partido regenerador que fundou, à saída de sendeiro deste justiceiro, mais tarde dedicado à agricultura. Sabemos também o que se lhe seguiu: cerca de duas décadas de protagonismo político de Berlusconi e a queda de Itália no ranking dos países desenvolvidos em competitividadetransparência liberdade de imprensa (veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, p. 220, nota 120). Depois, foi o caso de Baltazar Garzón, erradicado compulsivamente do sistema judicial por sentença do Supremo Tribunal. Também nos USA ficou famosa a perseguição do magistrado republicano Kenneth Starr ao Presidente Bill Clinton com vista à sua destituição por impeachment no famoso caso Lewinsky. O Presidente teria mentido ao Congresso acerca de relações sexuais com a senhora Lewinsky e por isso deveria ser destituído. E o caso de Eva Joly, que viria a abraçar a carreira política sobretudo com Europa Ecologia (com Cohn-Bendit), tornando-se eurodeputada e apresentando-se, mais tarde, como candidata à Presidência da República francesa, em 2012, obtendo 2,31% de votos. O direito ao serviço da política para a resgatar da má vida. Ou o Estado, através das suas instituições, que se serve do direito para atingir determinados fins. O caso do justiceiro Moro, protagonista central da Vaza Jato (a referência à Lava Jato, pelo Intercept Brasil, que denunciou publicamente as manobras de bastidor do juiz), é ainda mais radical – de juiz a poderoso Ministro de Bolsonaro, em pouco tempo demissionário destas funções, e agora senador.

LAWFARE NO BRASIL E NOS USA

O tema do lawfare é actualíssimo, num tempo em que Donald Trump foi, inutilmente, tentando, através do direito, ganhar o que afinal perdeu nas urnas, numa tentativa frustrada de usurpação política da justiça; ou no Brasil, onde o sistema judicial brasileiro promoveu um longo processo de desmantelamento do poder do PT, através do processo Lava Jato, da inacreditável destituição da Presidente Dilma Rousseff, mediante impeachment, e do impedimento da candidatura de Lula nas presidenciais de 2018, através de não demonstrada acusação e de inúmeros atropelos à justiça, logo a começar pela violação da Lei Constitucional e das normas da ONU ou pela divulgação ilegal de conversas da Presidente Dilma com Lula. Poderia continuar, por exemplo, em Portugal, mas fico-me por aqui.

A obra que acima citei, enriquecida com um bom prefácio de Francisco Louçã, visa no essencial explicar o que é o lawfare, como funciona e para que serve, propondo, no final, três casos que ilustram com evidência esta prática pela Administração americana, na área económica (o caso da Siemens) e na área política (o caso do Senador republicano do Alaska, Theodore R. Stevens), e pelo poder judicial brasileiro (o caso do actual Presidente brasileiro Lula da Silva).

Verdadeiramente, o que é que está em causa no lawfare? Simplesmente o uso extrajudicial e puramente instrumental da justiça. Ou seja, a justiça como arma usada para aniquilar o inimigo, em aliança com o poder mediático (as chamadas externalidades) e usando instrumentalmente meios jurídicos específicos para obter vantagem: a geografia processual, certas normas favoráveis à sua aplicação, como a delação premiada ou a plea barganing, e a temática penal da corrupção, tão insinuante e atraente para a opinião pública. Na verdade, do que se trata é de introduzir na luta política (ou comercial) a lógica da guerra, enquanto ela visa o aniquilamento do inimigo ou a sua submissão total aos desígnios do executante do lawfare. Aqui, o direito é usado como arma, mas tacticamente modulado, visando anular a resistência do alvo e vergá-lo ao seu desejo para obter o resultado previamente fixado. A justiça deixa de ser a tentativa de resolução pacífica de conflitos para passar a ser uma arma de destruição, uma arma de guerra, “softwar”. Tudo isto é claramente ilustrável contando o processo que levou Bolsonaro ao poder e o juiz Moro a seu poderoso ministro. Mas os autores também explicam como o Estado americano vergou a Siemens, levando-a a cortar com qualquer tipo de relacionamento com o Irão, dando assim cumprimento à política externa dos Estados Unidos, ou como a relação de forças no Senado americano mudou com a condenação do Senador Stevens (2020: 121-122).

CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS

Três, no essencial, são, pois, as variáveis: 1) a geografia processual (a área jurisdicional mais favorável a um ataque eficaz; no caso brasileiro, Curitiba; no caso americano do Senador Stevens, Washington e não o Alasca); 2) o uso de normas favoráveis à pressão do aparelho judiciário (por exemplo, a delação premiada, permitindo simplificar a acusação); e 3) as chamadas externalidades (ou a pressão mediática junto da opinião pública para legitimar a acção). É assim que funciona o lawfare, que se tornou um perigoso processo disruptivo do sistema democrático através de um dos seus três pilares fundamentais: o pilar judicial.

UMA AMEAÇA À DEMOCRACIA

Na verdade, estamos perante uma enorme ameaça à democracia representativa e ao que ela representa para as sociedades contemporâneas, não só porque distorce a luta política, convertendo-a na lógica amigo-inimigo (de schmittiana memória), na lógica da guerra, mas também porque envenena o próprio poder judicial, minando drasticamente a sua própria legitimidade e a sua função. Nisto, o establishment mediático fica de rastos porque também ele fere irremediavelmente aqueles que são os princípios básicos da sua própria ética deontológica e a sua condição de esteio fundamental da vida democrática, contribuindo para a erosão da própria democracia. A aliança estratégica entre o establishment mediático e a justiça em vez de favorecer, como parece, a transparência da vida democrática e dos seus procedimentos introduz, pelo contrário, uma lógica que é estranha a ambos, anulando um longo, secular e delicado processo de composição jurídica entre a defesa dos direitos individuais e o interesse geral representado pelo Estado. Numa palavra, o lawfare corresponde a uma prática que é inimiga da convivência democrática e que se torna promotora de soluções políticas não democráticas e populistas, como já fora bem assinalado por Alain Minc nas duas obras citadas.

Esta incursão pelo lawfare procurou dar enquadramento a uma operação judicial que eu, pelo que pude saber através dos meios de comunicação, considero no essencial errada, despropositada, perigosa e amiga de todos aqueles que querem desacreditar a política democrática e a democracia representativa, com vista à instauração de regimes autoritários pouco compatíveis com a matriz liberal do consagrado regime de democracia representativa ou de democracia deliberativa, bem preferíveis aos regimes de “democracia iliberal” ou de “democracia orgânica”. JAS@07-2023

RRCorte

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