A INVESTIGAÇÃO AO PSD II
Por João de Almeida Santos

“Avenida Parlamento”. JAS. 07-2023
PUBLIQUEI na passada Sexta-Feira, aqui, um longo artigo sobre o assunto e tenho seguido a discussão a propósito desta investigação, que mobilizou um exército de operacionais, sobre assessores ou técnicos do grupo parlamentar (GP) do PSD para averiguar se também desempenhavam (2018-2021) funções neste partido, o que, de resto, acontecia (e acontece) com todos os partidos, e desde sempre. A questão não surgiu publicamente com esta formulação, mas, sim, como se tivesse havido desvio de fundos. Erradamente, pois, na verdade, não houve – nem desvio, nem aumento de fundos públicos para este fim, porque os fundos são atribuídos ao partido e aos grupos parlamentares unicamente em função do número de votos obtidos e do número de deputados conseguidos em eleições. Mas também se constata que já são generalizadas as dúvidas sobre a agora chamada zona cinzenta, sobretudo depois de referida pelo PR (enquanto doutorado sobre o assunto e talvez enquanto ex-presidente deste partido), que subsistiria entre partidos e grupos parlamentares. Dúvida em parte legítima, apesar de, no meu entendimento, não haver, de facto, zona cinzenta alguma. Por uma razão muito clara: formalmente, há uma separação estrutural entre o Parlamento e os partidos com representação parlamentar na exacta medida em que são realidades que pertencem a esferas diferentes – uma é pública, a outra é privada. Uma é expressão de uma parte da sociedade, a outra exprime institucionalmente toda a sociedade. Contraprova: os partidos não mantêm qualquer poder sobre os deputados que propuseram, o que decorre do seu próprio estatuto. Eles são titulares de mandato não imperativo e de soberania, não podendo os partidos que os propuseram revogar-lhes o mandato. Por duas razões: por um lado, porque quem confere o mandato são os eleitores, não os partidos; e, por outro, a soberania está num patamar superior ao da sociedade civil, ao da esfera privada, a que pertencem os partidos. Uma vez eleitos, usando a linguagem do parto, é como se o cordão umbilical fosse cortado. É por isso que não há qualquer zona cinzenta entre estes dois patamares. E, todavia, tal como os filhos, mesmo quando são maiores (juridicamente autónomos), não deixam de manter uma relação privilegiada, permanente e desejável com os pais, com a família (traduzível, por exemplo, no direito linear à herança), também os deputados mantêm uma relação privilegiada com os partidos de onde provêm (traduzível, por exemplo, no facto de, pela sua acção, serem os partidos a responder perante os eleitores). Tudo isto é claríssimo e não é matéria susceptível de ser contestada.
1.
Mas por que razão existe esta relação privilegiada? Em primeiro lugar, porque, por determinação constitucional, são os partidos que estão na génese do mandato que lhes é conferido (monopólio de propositura); em segundo lugar, devido a uma qualidade emergente dos partidos derivada do funcionamento global do sistema político democrático. Vejamos melhor. Sendo a democracia representativa, como a nossa, e todas as outras de inspiração liberal, ou seja, não orgânicas, uma “democracia de partidos”, onde estes detêm o monopólio de propositura de candidaturas ao Parlamento, este facto introduz uma importante variável que deriva do funcionamento global do sistema e que acaba por sobredeterminar as relações entre aquelas duas esferas (parlamentar e partidária), como se se tratasse de dois subsistemas (diferentes) no interior de um sistema mais vasto. E é verdade que, uma vez eleito, o deputado não depende de quem o propôs (do partido), mas também é verdade que não depende de quem o elegeu (os eleitores e o círculo eleitoral), porque não tem “vínculo de mandato”. Lembro o que está escrito numa das constituições fundadoras do sistema representativo, a constituição francesa de 1791: “Les représentants nommés dans les départements, ne seront pas représentants d’un département particulier, mais de la Nation entière, et il ne pourra leur être donné aucun mandat” (art. 7, Secção, III, Título III; itálico meu). Não há vínculo de mandato, logo há mandato não imperativo. Os deputados são formalmente livres. Nem os partidos nem os eleitores lhes podem revogar os mandatos. Eles não representam o partido nem o círculo eleitoral por onde são eleitos, mas sim a Nação. Sim, mas há também uma sobredeterminação das relações entre o Parlamento e os eleitores derivada do funcionamento global do sistema: a função política de mediação entre o deputado e a sociedade civil é desempenhada, em termos constitucionais, pelo partido político. E porquê? Porque são os partidos políticos que: 1) vão regularmente a sufrágio, apresentando-se a votos perante a sociedade civil (na forma de eleitorado); 2) prestam-lhe contas pelo trabalho desenvolvido pelos deputados eleitos nas suas listas, durante a legislatura; 3) são por ela julgados, através do voto, pelas prestações dos representantes que emanam deles; 4) e, como consequência, vêem, ou não, assim, renovados, reduzidos ou reforçados, os seus mandatos. Ou seja, no actual modelo os partidos desempenham esta função central, decisiva e insubstituível de recondução da acção do parlamento à apreciação dos eleitores, recaindo sobre eles, partidos, essa responsabilidade. O Parlamento desempenha as suas superiores funções institucionais autónoma e livremente, mas, depois, quem presta contas perante os eleitores são os partidos políticos e quem vai a votos é, na pessoa do candidato a deputado, a sua proposta política, os seus programas e a própria liderança. É esta centralidade funcional que ocupa no sistema que exige que haja pontos de contacto permanentes e interacções obrigatórias com o Parlamento. A separação entre o poder legislativo e a sociedade civil é assim resolvida por uma função do sistema desempenhada pelos partidos políticos, ainda que eles próprios pertençam à sociedade civil. Ou seja, na verdade, não havia zona cinzenta, antes, nem há, depois. Tudo claro. Neste contexto, como é possível considerar ilegal e ilegítimo que assessores parlamentares partilhem e desempenhem funções técnicas especializadas com e nos partidos de referência por livre decisão dos GP, determinada por lei?
2.
Os partidos não participam na tradução política dos seus próprios programas pelos deputados que são por eles propostos? Então, quando os partidos vão a votos exibem o quê? Programas, deliberações, decisões, leis em que não participaram? São avaliados por acções ou omissões de que não seriam co-responsáveis? Teoricamente até se pode dar o caso de que quem vai a votos já não ser quem exerceu essas funções. Quem será então responsabilizado? O partido. A quem será confiado o novo mandato? Será sempre ao partido, que é a organização que permanece em face das naturais mudanças de candidatos. Dir-se-á: paga pelas más escolhas que fez nas candidaturas. Ora acontece que o mandato, como é natural, exprime, de várias formas, uma determinada visão da sociedade que é, naturalmente, a do partido que propõe, sendo também claro que a avaliação da sua acção recairá integral e exclusivamente sobre esse mesmo partido. Não é, pois, natural que a sua acção seja regular e coerentemente articulada, trabalhada e consensualizada com o partido de referência? É óbvio que sim. Anormal seria isto não se verificar. Trata-se de um trabalho no qual intervêm os assessores e os técnicos do GP (é para isso que são contratados nas áreas da governação: economia, finanças, ambiente, justiça, comunicação, etc., etc.), em número condicionado pela dimensão do GP, que é o único critério que determina a entidade do financiamento e das subvenções. Aquilo que o senhor procurador ou a senhora procuradora titular do processo acham é que os GP não podem pôr os seus técnicos e assessores a desenvolver trabalho com os partidos de referência, devendo, pois, estes, duplicar recursos, que, de resto, provêm, ambos, de fundos públicos? Bem pelo contrário. Do que se trata é de partilha de funções, não da partilha de fundos, que não se alteram, por essa razão. E note-se que nada disto fere a autonomia do Parlamento, porque é sempre ele o responsável pela decisão final, conservando-se, assim, a natureza do mandato como não imperativo, ainda que no processo de formação e construção das deliberações o partido de referência tenha, por direito próprio, e até por dever, intervindo. Na verdade, tecnicamente, esta relação necessária entre partido e Grupo Parlamentar resulta dessa sobredeterminação pelo sistema, atendendo ao papel central que os partidos desempenham no funcionamento de todo o sistema político, onde têm como missão fundamental reconduzir a acção do parlamento à vontade e ao julgamento do povo soberano (e não dos magistrados), em eleições.
3.
Não refiro os muitos diplomas legais, designadamente sobre financiamento e subvenções, que regulam e respondem ao reconhecimento do papel essencial dos partidos no funcionamento do sistema democrático e não refiro também o papel que lhes é reconhecido pela Constituição da República – porque já o fiz no artigo anterior. O que aqui quero sublinhar é que o poder judicial deve, também ele, respeitar a separação de poderes que exige para si, e ainda mais perante um poder que lhe é hierarquicamente superior, não podendo interferir numa esfera que a própria lei deixa à livre decisão dos Grupos Parlamentares, financiando-os, permitindo-lhes livre escolha de colaboradores e de decisão sobre o tempo, o modo e o lugar de exercício da colaboração, mas também, como disse, determinando, em termos constitucionais, que pelo resultado final da acção política dos GP quem responderá e pagará o respectivo preço serão precisamente os partidos. De resto, nem do ponto de vista formal se entrevê qualquer ilícito porque todos os colaboradores estão nomeados pelo GP e são remunerados pelo Parlamento, não se verificando, portanto, desvio de fundos. Andar a investigar, e com a “ferocidade” com que isso foi feito, como e onde estes colaboradores desempenham ou desempenharam a função de partilha de competências parece-me, isso sim, ilegítimo e até ilegal, sendo também uma grosseira violação do princípio da separação de poderes, além de configurar excesso de zelo e até devassa ilegítima da vida partidária, se não quisermos ir mais longe e acrescentarmos que se trata de inaceitável protagonismo dos magistrados ou até, como já disse no anterior artigo, de lawfare. De qualquer modo, este caso não pode deixar de ter consequências, tendo os mais altos responsáveis políticos e judiciais o dever de agir, não só pedindo explicações aos titulares do processo, mas também mudando os procedimentos que permitiram a devassa e o conjunto de abusos, e foram muitos, que se verificaram neste caso. Ora aqui está uma matéria que bem justificaria uma aprofundada reflexão por parte do próximo Conselho de Estado, o órgão que com maior autoridade institucional se pode pronunciar sobre esta matéria.
4.
Estamos a falar de trabalho político de dois organismos fundamentais do sistema político democrático, os grupos parlamentares e os partidos. Estamos a falar da única entidade que se submete regularmente à livre avaliação e escolha da cidadania. Por isso, uma injunção com estas características é muito grave e prejudica o próprio funcionamento da vida democrática, por um lado, coarctando a liberdade que o exercício de uma alta função, como a de deputado, exige, e, por outro, menorizando e aviltando, perante a opinião pública, a função que os partidos políticos desempenham no sistema democrático. É também absolutamente necessário acabar de vez com os festivais das prisões preventivas para investigar, com a reiterada violação do segredo de justiça e o espectáculo do pelourinho electrónico alimentado por estas práticas. São já muitos e conhecidos os episódios de lawfare. Esperemos que este não seja um caso desses. JAS@07-2023
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