O DESTINO DA DEMOCRACIA
Segundo o Arquitecto Saraiva
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 08-2023
LI, na passada Sexta-Feira, o artigo de José António Saraiva (JAS), “As Democracias têm os dias contados?” (Sol, 28.07.2023, pág. 4), que, ao contrário do que é habitual, desta vez me mereceu uma atenta reflexão. E também reconheço que há crise. Disso parece ninguém ter dúvidas. Mas que seja o fim, isso não me parece. De “Fim da História” foi o Fukuyama que falou, para dizer que as democracias representativas são os regimes mais perfeitos (comparados com os outros), onde o princípio é o do reconhecimento, não o da submissão. E que venha aí outra coisa equivalente, mas diferente, não me parece, até porque as democracias são muito jovens. Na prática, quase poderíamos dizer que elas só se consolidaram depois da segunda guerra mundial, há menos de oitenta anos, portanto. O que historicamente é muito pouco. Tempo de infância, diria. É verdade, a democracia só se verifica quando há sufrágio universal, o que não acontecia quando foi inventado o sistema representativo, porque os regimes eram censitários, pouquíssimos cidadãos podendo votar (os chamados “cidadãos activos”) e ainda menos chegar ao poder. E o sufrágio universal só se foi implantando lentamente ao longo do século XX, verificando-se na Europa da primeira metade do séc. XX uma situação histórica excepcional, com duas guerras mundiais e com cerca de vinte anos de ditaduras por essa Europa fora. E se a democracia é jovem ela também é difícil, delicada e animada pela utopia do cidadão plenamente autodeterminado, o que deve agir de acordo com o imperativo categórico kantiano: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre, e ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal” (Crítica da Razão Prática, Cap. I, §7). Os princípios do conhecimento, da liberdade e da responsabilidade a comandarem a decisão política. Um longo caminho que a democracia representativa ainda tem pela frente, mesmo que por entre os inevitáveis “corsi e ricorsi” da história, de que falava Giambattista Vico. Sim, a democracia representativa é um regime frágil e difícil, sim, mas melhor do que todos os outros.
1.
Qual é a tese de JAS? Esta: as democracias foram inventadas (com a revolução liberal) num período histórico para condições que hoje já não se verificam, de todo. E enumera-as exaustivamente. E é verdade, essas condições já não se verificam (pelo menos em parte). Mas nesta descrição tão exaustiva ele esquece a condição fundamental que motivou o aparecimento, não da democracia, como ele diz, mas do sistema representativo (o que é diferente): a enorme dimensão dos Estados-Nação, que tornava impossível as democracias de assembleia, mesmo com uma cidadania reduzida, devido às condições legais para usufruir dela (veja por exemplo o art. 7, secção II, Cap. I do Título III, da Constituição francesa de 1791). Se virmos a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert verificamos que, aí, o conceito de democracia ainda é, de facto, algo confuso, entre a democracia directa e a representativa. Foi, portanto, necessário avançar para a representação política, para o sistema representativo como o conhecemos hoje. E esta condição mantém-se. Em dificuldades, é certo, pois há muito que se fala de crise da representação.
A hipótese de JAS centra-se nesta mudança radical em relação às condições que estiveram associadas ao nascimento do sistema representativo – as que hoje lhe estão associadas ainda não existiam naquele tempo. E isso faz toda a diferença. Claro que faz. Por isso, o sistema representativo evoluiu, com o sufrágio universal, para a democracia representativa e esta também tem de evoluir. Para uma democracia pós-representativa? Para uma pós-democracia? Para uma “democracia iliberal”? Ou, como eu defendo, para uma democracia deliberativa, que mantém integralmente a matriz da democracia representativa, mas expandindo-a, legitimando-a e qualificando-a.
2.
Qual é, então, o seu diagnóstico e a cura que propõe? Feito o diagnóstico, tratar-se-á, então, de promover uma correcção no rumo (uma reinvenção da democracia, diz) que as democracias têm levado, através de : 1) acréscimo da autoridade do Estado; 2) diminuição da conflitualidade no seio do poder; 3) maior capacidade de decisão; 4) menos conflito interpartidário e menor instabilidade política (mas é preciso não esquecer que a democracia é o regime onde o conflito, não violento, claro, é necessário). Em síntese, sistemas mais “musculados”, executivo mais forte, legislativo mais fraco e reintrodução do bipolarismo partidário por blocos em alternância (o rotativismo, aquele que alguém caracterizou com a famosa fórmula: “ora agora comes tu – ora agora como eu – comes tu mais eu”), precisamente aquele mesmo que as transformações actuais estão a esboroar.
Ou seja: o que ele propõe como solução para se adequar a essa mudança radical que se verificou nas condições que estiveram na origem do sistema representativo (mas a que ele chama democracia) é remédio que se arrisca a fragilizá-la ainda mais. Entre o diagnóstico e a proposta de solução verifica-se, pois, um grande desfasamento. E diz mais: se o remédio não for tomado virão aí modelos autocráticos, de que já são sinal os vários populismos de direita que grassam por essa Europa fora.
Sim, o que JAS está a propor como solução é precisamente aquilo que já se está a verificar, mas de modo mais radical, nas chamadas “democracia iliberais”, de que os senhores Viktor Orbán e Jaroslaw Kaczynski são grandes paladinos e executores.
3.
Ora acontece que o que mudou, e que ele refere minuciosamente, ou seja, as novas condições agora associadas às democracias de hoje (jornais, telefone, telégrafo, TV, internet, redes sociais, migrações, comboios, automóveis, aviões, economia global, como ele diz) parece exigir exactamente o contrário do que ele oferece como solução: não decisionismo e enfraquecimento da representação (“os debates parlamentares são coisa do passado)“, mas expansão e enriquecimento da esfera da deliberação (no espaço público deliberativo) para voltar a aproximar a cidadania dos representantes e dos sistemas de partidos e para aumentar a transparência e a própria qualidade da decisão (precisamente através do reforço da sua componente deliberativa). Porque a verdade é que a questão da autoridade do Estado deve identificar-se não com autoritarismo decisionista e com redução do papel da representação política (a que é suposto dar voz ao povo soberano), mas com “auctoritas”, com legitimidade renovada, virtuosa e reconhecida, com transparência e qualidade das decisões, ou seja, boas decisões e socialmente justas. Sem esquecer a famosa definição de democracia de Lincoln no famoso discurso de Gettysburg, em 1863: “government of the people, by the people, for the people”.
4.
Vendo bem, a solução de JAS tem mais de “democracia iliberal” do que de democracia deliberativa, a única que poderá restaurar a representação, a legitimidade e a qualidade e transparência da decisão. O que parece é que o que JAS tem para oferecer como cura da democracia é o seu próprio definhamento programado (sobretudo se for executado pela direita radical). O que ele propõe até já tem nomes que circulam nos ambientes da teoria política: maioritarismo extremo ou autoritarismo maioritário (Thierry Chopin, Nadia Urbinati). Ou então aquele outro nome que ao tempo foi usado para designar o sistema de poder de Bettino Craxi, o decisionismo, que bem sabemos como acabou. Mas se o destino for esse não serão precisos os remédios de JAS porque já há quem os esteja a tomar sistematicamente e de forma intensiva: os dois principais activistas do Grupo de Visegrad, Viktor e Jaroslaw. Na verdade, como se sabe, os populistas de direita souberam adaptar-se ao sistema representativo, mudando-lhe os seus equilíbrios internos (o sistema de checks and balances), precisamente no sentido proposto por JAS e ainda reforçando-o. Por exemplo, acrescentando-lhe também o controlo do poder judicial pelo executivo. Muito obrigado, Senhor Arquitecto, mas, a ver pelas amostras, não creio que os seus remédios augurem alguma coisa de bom. JdAS@08-2023
