Artigo

O BEIJO

Por João de Almeida Santos

Beijo09_2023

“O Beijo”. JAS. 09-2023

PENSEI E VOLTEI A PENSAR se deveria escrever sobre esta polémica mundial desencadeada por um beijo dado publicamente, perante as câmaras de televisão de todo o mundo, no final do campeonato mundial de futebol feminino, pelo Presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luís Rubiales, a uma importante jogadora da selecção espanhola, Jenni Hermoso. Na verdade, há uma gigantesca desproporção entre o acto, o beijo, e a importância que lhe está a ser atribuída, mas a polémica tornou-se planetária e, por isso, vale a pena fazer algumas observações sobre o assunto, sem embarcar na conversa do “politicamente correcto” ou sucumbir à “espiral do silêncio”. Até porque o assunto se inscreve na esfera da conhecida ideologia gender, no wokismo e na lógica do movimento #MeToo. Para não dizer nas lutas internas da selecção. Talvez seja mesmo um beijo contaminado por um ambiente externo um pouco tóxico. Só assim se compreende que a extraordinária vitória da selecção espanhola tenha ficado encoberta pela guerra do beijo. Quase um oxímoro.

I.

A primeira observação é esta: um beijo é, em si, por definição, um gesto de ternura ou carinho, se entendido independentemente das circunstâncias em que aconteça, ou seja, sem as tomar em consideração. Mas, claro, pode ser violência em dois sentidos: física, quando houver coacção física e acontecer contra a vontade e a resistência explícitas de quem, neste caso, o sofre (é esta a palavra); simbólica, se, não havendo coacção, acontecer sem implícito ou explícito consentimento de quem o recebe. Neste segundo caso, o beijo pode acontecer em ambiente de normal convivência, podendo até ser traduzido pela expressão “um beijo roubado”. Sem aviso, inesperado. Acontecendo, pode dar lugar a agrado ou desagrado, mas não ser considerado ofensa por não haver intenção sexual. Ser simplesmente manifestação (imprudente ou não) de terna ou carinhosa cumplicidade. Numa situação de pacífica e amistosa convivência. Mas sendo considerado ofensa, embora considerado sem intenção, isso pode levar a um pedido de desculpa, que será ou não aceite. E o caso pode ficar por ali com implicações, positivas ou negativas, entre as pessoas envolvidas. O beijo (roubado) também pode acontecer em ambiente festivo, emotivo, de expressão de júbilo colectivo, onde a emoção se sobreponha à fria racionalidade dos gestos formais, tendo como significado simplesmente a expressão de alegria, de reconhecimento, de partilha, de forma mais ou menos intensa, espontânea, sem manifesta expressão de desejo sexual e muito menos de violência de qualquer tipo. Tudo isto pode acontecer sem drama. Trata-se, afinal, de um beijo em circunstâncias especiais. Pode-se acrescentar aqui a questão do respeito, a manter em qualquer circunstância.

O que não se pode é olhar para a relação homem-mulher, nem sequer já como pecaminosa ou concupiscente, mas como portadora de tendencial imposição de poder masculino gerada automaticamente, “por defeito”, pelo sistema, como já vi escrito por uma deputada do PS, radical-feminista, ou por um articulista profissional: “libertou instintos masculinos vindos de séculos de poder sobre os corpos das mulheres” (Daniel Oliveira, no “Expresso”). No caso em apreciação, o homem, doravante, terá o seu destino marcado, o dedo eternamente apontado, e em riste, pelo radical-feminismo como o inominável “abusador” que, movido pela euforia da vitória feminina, deu livre curso aos seus mais básicos e historicamente arreigados instintos de abuso sexual sobre a vítima de sempre: a mulher. Com um sabor especial: tratava-se de uma mulher vitoriosa. Numa relação, pois, que, afinal, continua a estar historicamente contaminada, desde tempos imemoriais, por uma tendencial pulsão de abuso masculinio de poder. Hoje e aqui, nas actuais sociedades democráticas dos países desenvolvidos… e à vista de todos. Um despudorado, mas irreprimível abuso de natureza instintiva que urge combater com todas as armas que houver à mão, diz-se. Vigiar o beijo de todos os ângulos possíveis (até a intenção de o dar) para que não seja desfigurado e se transforme em símbolo máximo de violência, de abuso e de dominação. Haverá sempre o perigo de um olhar mais intenso anunciar a possibilidade de um beijo não consentido…

II.

No caso do beijo de Rubiales a Jenni Hermoso, parece-me que ele poderia muito bem ser considerado, sim, como um gesto intenso de júbilo numa situação de grande emotividade, de grande euforia pela vitória num campeonato mundial. E até poderia ser considerado como “beijo roubado”, sem a gravidade que lhe foi atribuída. Vendo a coisa de outro modo, é claríssimo que não houve violência física, mas provavelmente também não houve sequer violência simbólica, porque não é natural nem lógico que naquela especial situação tenha havido premeditação, intenção de abuso de poder ou sexual, tendo o acto decorrido numa série de manifestações públicas espontâneas entre os vencedores no palco celebrativo. A não ser que a pulsão de poder (sexual), historicamente contaminada, se tenha apoderado do homem e o tenha coagido a beijar (instintivamente), como parece sugerir o articulista. Admito que a euforia da vitória (mas não o instinto) tenha levado Rubiales a um excesso (roubar um beijo publicamente a Jenni) que deveria ter sido evitado, até porque a presença da Rainha no palco deveria ter levado a uma certa contenção. Mais formalidade e menos emotividade pulsional. Sim. Posso admitir que tenha acontecido algum excesso de intimidade publicamente manifestada, a resolver de imediato com um pedido público de desculpa, se o autor se tivesse apercebido de ter causado incómodo à jogadora Jenni. Mas, observando o que aconteceu, ainda por cima em ambiente público, de festa e de júbilo pela vitória, acho sinceramente desajustado que esse gesto tenha sido interpretado como violência de género (se se tratasse de uma presidente e o caso acontecesse nos mesmos termos seria assim interpretado?). Numa situação destas, a rapidez da ocorrência e a alta emotividade com que as manifestações (em público, sublinho) ocorreram nem sequer parece ser normal um pedido explícito de consentimento: “desculpa, Jenni, estou tão feliz que gostaria de te dar um beijo de júbilo e de reconhecimento pelo teu papel no campeonato…”. Para mim, o excesso reside, sim, nas interpretações feitas pelo feminismo radical e pelo puritanismo pretensamente progressista a um gesto que visivelmente não exprime violência ou ofensa, pelo menos intencionais, quando o que realmente exprime é júbilo, alegria, emoção e até reconhecimento pelo papel de Jenni Hermoso na vitória. E até digo mais: a ter razão o articulista, ou seja, a ter sido a força do instinto, historicamente determinado e condicionado, a explicar o acto, então ainda deveria haver mais compreensão pelo carácter não consciente do gesto.

III.

A verdade é que este beijo não foi dado às escondidas, na penumbra, numa rua escura, num quarto de hotel, num gabinete, mas resultou de um ambiente de festa pública, nada parecendo ter de ofensa sexual, de abuso intencional e, atrevo-me a dizer, sequer de falta de respeito. E, claro, também não me atrevo a considerar que tenha sido o histórico instinto masculino a apoderar-se de Rubiales para se materializar como exercício de poder e abuso. Deveria haver maior formalidade? Sim. Deveria. Mas daí a motivar uma guerra aberta e uma implacável cruzada puritana vai uma distância enorme. A questão, no meu entendimento, deve ser centrada no significado do acto e não no excesso, perfeitamente compreensível (mesmo que não aceite) depois de uma vitória mundial. No excesso vêem o mal, porque um beijo é uma manifestação de carinho, não podendo, numa circunstância destas, ser tomado por agressão. Foi o que eu vi. E vi todas as imagens que circularam. O Presidente da Federação agride uma jogadora depois desta ter ganho um campeonato mundial… Isto faz algum sentido? Rubiales tropeçou, de tão feliz estar pela vitória? Sim, tropeçou, até se pode admitir. Mas fazer uma guerra por isso parece ser totalmente desajustado. A não ser para desencadear um vasto processo de ajustes de contas no interior da Federação: a demissão do treinador Jorge Vilda, que venceu o mundial, é a confirmação de que é disso mesmo que se trata. E não só: também serviu de pasto aos apóstolos da ideologia de género, que encontraram no famoso beijo um belo pretexto para propagandear o seu radicalismo num sector de impacto mundial.

A verdade é que o beijo desencadeou uma guerra sem quartel e foi aproveitado pelos radicais do wokismo, pelos identitários e pelos puritanos de fachada progressista de vários matizes para imporem uma vez mais a sua doutrina e julgarem a história da masculinidade até às suas origens. O dogmatismo treslê.  Mas aos radicais que se dizem de esquerda aconselharia a lerem os “Manuscritos de 1844”, de Karl Marx, para verem o que ele diz acerca da relação homem-mulher, ou mulher-homem, se preferirem, remetendo a questão do poder para outra esfera bem mais profunda, ampla e transversal. Marx, sobre a relação homem-mulher, era muito mais clarividente do que estes progressistas de fachada do século XXI.

IV.

O que me preocupa em tudo isto é a situação a que chegámos, não como diz uma jornalista militante da causa, com um claro perfil de “Inquisidora-Geral”, a este “beijo roubado”, mas sim ao aproveitamento dos fanáticos da “luta de classes”, da luta pelo poder em que se inscreve, para eles, o processo de libertação das mulheres e de luta pela igualdade. Este radicalismo cobre as fracturas essenciais que continuam a verificar-se nas sociedades contemporâneas e que têm a ver com as promessas não cumpridas da democracia, com a relação do poder político e económico-financeiro com a cidadania em geral, com o poder voraz dos oligopólios sobre os consumidores (homens e mulheres), com as guerras injustas e devastadoras, com os dramáticos fenómenos migratórios dos que procuram sair da miséria, com a situação de miséria em que se encontram a viver povos inteiros. Estas, sim, são fracturas gravíssimas que acabam por ser ofuscadas pelos holofotes centrados nestas outras lutas que, sendo legítimas, afinal se inscrevem em sociedades onde os direitos estão amplamente consagrados, ainda que não integralmente cumpridos. Basta pensar no modo como as mulheres são tratadas, por exemplo, no Afeganistão dos talibãs. Aí, sim, a mulher inscreve-se, e de forma extremamente radical, na mais geral dominação absoluta de um povo pela subordinação violenta a uma moral retrógrada e a um dogmatismo religioso que tudo submete, servindo-se da ameaça e da violência física. Não, aquilo a que estamos a assistir é simplesmente deplorável pelo seu lado mais oportunista para desenvolver jogos de poder, para defender posições corporativas e de poder servindo-se de um caso que não deveria passar de mero reparo, seguindo em frente com os festejos pela excelente vitória da selecção feminina espanhola no mundial de futebol. O mais grave é que uma multidão de comentadores já embarcou no barco da guerra. E para ver na atitude de Rubiales a libertação do instinto masculino marcado pelo secular, ou  milenar, domínio sobre o corpo das mulheres é preciso não só muita imaginação hermenêutica, como também uma evidente cegueira idiossincrática perante o facto observado. Ver nele um inominável “abusador” que, carregando o peso de séculos de pecado e de usurpação de direitos, encontra o seu momento de apoteose perante as câmaras de televisão de todo o mundo e dá, por irreprimível instinto, o beijo fatal, símbolo do domínio e do demónio masculino sobre as mulheres até que chegue o arcanjo feminista e o trespasse (ao símbolo) com a sua lança protectora e salvífica – é pouco menos do que delírio ideológico.

V.

Este processo representa um excesso, um puritanismo escabroso e perigoso que se está a expandir em mancha de óleo e que um dia se converterá em policiamento não só do pensamento, mas até da sensibilidade e da livre expressão das emoções. Em totalitarismo. Já há por aí muitos exemplos disto. E está a banalizar-se. Este é só mais um deles, mas com uma inaudita amplitude vista a área em que aconteceu – a do desporto-rei. Chegados aqui, o wokismo, o radical-feminismo e o puritanismo de fachada progressista têm mais um palco universal ao seu dispor para continuar a sua intrépida luta até à conquista do poder, à inversão total do sistema que “por defeito” está programado para a imposição do poder masculino sobre as mulheres. Ou como um “beijo roubado” pode levar a uma revolução mundial. Que sensação de liberdade e de beleza é rever a foto do famoso “Baiser de l’Hôtel de Ville”!  Mesmo não se sabendo se foi roubado ou programado. Ou, então, a beleza contida na expressão “beijo roubado”, hoje já em grave perigo de ser banida do léxico politicamente correcto, a ser considerada como expressão de violência porque se trata de um beijo não previamente consentido… precisamente porque “roubado”. Mas, sinceramente, é a expressão que eu prefiro para qualificar o beijo entre o senhor Rubiales e a senhora Jenni Hermoso. Por uma simples razão: é mais bonito ler este beijo assim, sobretudo depois de ver o riso e a alegria expansiva de Jenni e das suas companheiras no autocarro. Que Aphrodite lhes perdoe. JAS@09-2023.

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