FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA (II)
Por João de Almeida Santos

“A Neve e a Primavera”. JAS. 2022 (Impressão Giclée em papel de algodão – 100%; 310gr – e verniz Hahnemuehle, 68×93, Artglass AR70 em mold. de madeira)
1.
PALAVRAS BORDADAS… Alguém se referiu a um poema meu com estas palavras. Sim, a poesia é tarefa meticulosa parecida com os bordados. Os fios são palavras. O poeta, o bordador. E um bordado é sempre uma dádiva executada com carinho. Não é somente virtuosismo técnico. Não, é mais. É como a poesia, também ela uma dádiva, a nós próprios e aos outros. Uma acção verbal perante outrem. Como exigência interior. E como partilha. Palavras bordadas, cantadas para que os outros sentidos possam ouvi-las e quase tacteá-las nas vibrações… Sim, e para isso há “diseurs” e cantores que as fazem chegar aos nossos outros sentidos. Música, comunicação sensorial delicada e intensa. A Natália Correia dizia que a poesia também se oferecia ao paladar (e, por isso, também ao olfacto): a poesia é para comer. Um dia, alguém me disse que só gostava de poesia se outros a dissessem para si. Que precisava sempre de um “diseur” ou de uma “diseuse”. Som, sonoridade, mas sobretudo oferta, alguém que interpela através da poesia, que fala poesia em modo musical. Oferta, sim. Gostei do que ouvi. Arte total se, depois, for acompanhada pela pintura e pelo movimento. Dançar poesia talvez seja possível (ela tem música dentro, tem melodia e ritmo) e valha a pena. Dançar com a alma em palavras. “Ballon”, visto o processo de levitação que anima a poesia. Tal como a dança ela retira peso ao real. E até se poderia criar uma notação especial para a dança poética – definir com rigor determinados passos e movimentos para cada verso e cada estrofe, como acontece na dança clássica ou na moderna. Tal como se pode “ilustrar” (projectar ou pôr em diálogo) com pintura um poema (é o que faço todos os Domingos), também se pode dançar um poema, mesmo sem música ou, melhor, somente com um poema dito por quem sabe dizer poesia, dando forma musical à que ele já tem dentro de si. Ou dançá-lo com a alma, que é o que frequentemente acontece a quem sintoniza com um poema. Levitar. “Ballon”. Mas eu digo: dançá-lo mesmo, com passos de dança. Num pas de deux, por exemplo. Com a musa. Ah, como gostaria de ver um poema meu musicado, cantado e… dançado. Nem exigiria que fosse com a musa. O palco poderia ser o Jardim Encantado e a época aquela em que Perséfone regressa. Renascer com um poema. Talvez um dia isso venha a acontecer.
2.
Gosto, como o poeta, de Março. Anuncia beleza, cor, aromas, sol, vida que desponta e renasce, o regresso de Kore, sim. Março é uma fronteira aberta entre a neve e a primavera. Acontecem coisas em Março. Acontece aquela magnólia com farrapos brancos que parece testemunhar em diferido a neve que já se foi. O poeta fala delas e canta-as. Ouçamos a extraordinária Milva que, interpretando o poeta napolitano Salvatore di Giacomo (“Marzo”), canta aquele passarinho friorento que aguarda que o sol desponte e as violetas suspirem. Março é Catarina e todos os nomes que neste nome estão inscritos. Nomes de musas. Que, afinal, são mais do que nove, embora Erato esteja sempre à espreita. E é rico em contrastes, mas sobretudo na ternura do poeta-passarinho que os canta, dando-lhes um nome de mulher. Um nome por todos os nomes. A mulher e a natureza, tão parecidas em Março. Março é vida que regressa nesse eterno retorno da natureza e nos interpela, convidando-nos a renascer com ele, com ela. Proserpina, Perséfone ou Kore lá estão a insuflar de vida a natureza, incluída a humana, logo, a vida e a alma do poeta. Não há Hades que resista. Esse há-de voltar… lá para o Outono.
3.
Com Março também chega a cor que se acrescenta à palavra. Um diálogo, interpretado pelo poeta-pintor, entre a poesia e a pintura. O que ele pensa de ambas como expressões vividas do que lhe vai na alma, já em modo de levitação. Um poeta-pintor que se realiza mais na poesia (vai mais a fundo no “páthos”) do que na pintura e que vê a (sua) pintura como visualização, intensificação e extensão da (sua) poesia. Mesmo quando parte da pintura, ele vai à procura do poema que lhe ferve na alma. A matriz está na poesia, apesar da autonomia das linguagens. Ou, pelo menos, o seu é um processo de associação íntima e intensa de ambas. É claro que a cor que está inscrita num poema tem de ser visualizada com a mente e não com os olhos, estando as tonalidades associadas ao sentido profundo e global do poema. O pintor ajuda, ao propor uma tradução plástica do poema. Num poema melancólico a melancolia invade e coloniza as tonalidades. Numa pintura, o poeta-pintor procura dar vida à cor que o poema pede, como súplica, procurando libertá-la das amarras dessa súplica e levá-la ao azul do céu até à linha do horizonte, a perder de vista. Procura estilhaçar a dor através de um poderoso caleidoscópio. Um cromatismo que se desprende do poema e se autonomiza, a caminho, sim, das duas primaveras: a que esteja a chegar, em Março, e a que chegará quando, pela arte, ficar livre da prisão que o amarra à rugosidade e aspereza da vida quotidiana. À dor primordial, física, sofrida corporalmente. Estas duas artes completam-se e ajudam a transformar a dor em festa, com girândolas de cor.
4.
Na poesia e na pintura acontece uma dialéctica entre as duas faces expressivas da sensibilidade: uma, interior, a dos olhos da alma; a outra, exterior, solar, sensorial, luminosa. Uma, que sai de uma intensa pulsão interior e que se exprime através de um código linguístico estético-expressivo; outra, como ilustração luminosa e animada desse desejo irreprimível de cor revelado pelo poeta… num poema. Sim, o fundo é um desejo profundo de primavera e de luz. O poeta e a musa – como poderia ser de outro modo? O poeta fala sempre a alguém, interpela, dando, assim, sentido à sua voz. Mas, depois, é o exercício poético que universaliza esse discurso dirigido. E esse exercício ganha asas e liberta-se do referente, sem nunca o abandonar, o esquecer, o recalcar. Leva-o consigo no voo e espiritualiza-o, retirando-lhe peso: privação sofrida, levitação desejada. Uma inspiração remota que o poema renova, faz renascer, como se se tratasse de um ritual existencialmente imperativo, obrigatório. O poeta tem vida própria e também tem de se alimentar para que a poesia se renove. Os poetas são como os pássaros. Têm asas e o seu ambiente é o da leveza. E como é bom vê-los voar no céu luminoso e azul, vibrante… pintado pelo pintor nas suas fugas para o infinito através do olhar. Palavras coloridas.
5.
Concerto. Gosto da palavra porque alude a uma melodia interpretada por dois solistas: um poeta e um pintor, em consonância musical, semântica e cromática. Arrogo-me o direito de ser eu o compositor e o director de orquestra. Espero sempre que os acordes sejam conseguidos, em harmonia. Sim, são como fúchsias do meu jardim, brincos oferecidos à princesa, que é também musa dos cânticos poéticos. Oferecidos pelo pintor que nasceu do poeta “à la recherche de la couleur perdue”… encontrando-a assim, tão exuberante, luminosa e animada no regresso de Proserpina. Uma oferta generosa ao poeta que a suplicava, receoso que as primaveras não chegassem em toda a sua plenitude. Mas uma chegou e ele ficou, feliz, à espera das outras. Sim, do renascer luminoso da natureza e também de outras cores mais auspiciosas do que as cores tão cinzentas da rotina. Concerto: quando os dois solistas, poeta e pintor, se afinam sob a batuta do director de orquestra soa a liberdade e a azul infinito do céu. Pas de deux, no palco da vida. Com arte. Não há tristeza que resista.
6.
Precisamos de primaveras e de cor. Precisamos sempre. Cor por fora, mas sobretudo cor por dentro. E é verdade que o amor ilumina, tem uma força de tracção inacreditável. Mas não só. Também inspira e ajuda à descoberta de dimensões que julgamos não ter. É magia e encanto. E está para além do ser amado, transcendendo-o. O poder por ele desencadeado deixa de pertencer ao ser amado e, de certo modo, ao amante. Como uma força que nos possui e nos engravida, dando origem a novos seres. É por isso que eu acho que o amor é um privilégio, sobretudo para quem ama. Como na doutrina da predestinação: tocados pela graça. Mas muitos nascem e morrem sem saber o que é isso. Ficam em pecado, porque pecado é não amar. Outros mal se apercebem do que isso é – pelos livros é apenas uma compreensão mutilada do pathos. Logo, de certo modo inconsequente. “Primum vivere deinde philosophari”. Pronto, acho que é isto. Mas também acho que só a poesia o pode dizer em plenitude. E por um poeta atingido irremediavelmente por esta irresistível pulsão. A excepção virtuosa. Uma linguagem altamente performativa.
7.
A arte ajuda a superar as fases tristonhas e delicadas da vida. Para quem a faz e para quem dela usufrui. Não a sinto como missão, porque me liberta e me dá prazer, mas sei que, partilhando-a, de algum modo também partilho alguma (in)felicidade interior, em forma de beleza construída. A arte também é comunicação, partilha e encontro. E, por isso, sim, faz ricochete, tanto maior quanto mais profunda for a sua autenticidade. É como partilhar a “aura” de uma obra de arte. E há também conversão da dor, a tal que segundo o poeta, enobrece. Mas essa é dor de poeta. Uma dor especial. Entre a pulsão e o fingimento. Do “espírito dionisíaco” ao “espírito apolíneo”. Do conteúdo à forma. Também se pode chamar impossibilidade, algo que se tem à mão, mas que na realidade fica tão longe que nunca lá se há-de chegar e que, por isso, gera melancolia e saudades de um futuro que nunca chegará. Está ali, mas não lhe podes tocar. E, se chegar até ti, será somente sob forma poética. Por isso, o poeta se lança na sua aventura impossível e vai por aí adiante sem nunca parar, sabendo que é no caminhar (poético) que vai tocando ao de leve o que nunca atingirá completamente… Eu acho que amar também é dizer (que se ama). Os poemas são beijos. Que podem não chegar ao destino, porque dependem do vento e dos fantasmas. Mas, de certa forma, eles chegam sempre. Nem que seja como eco, como ressonância ou como reflexo de luz. Quando digo que a poesia é altamente performativa é isto mesmo que quero dizer.
8.
Fantasia. Que bom é sentir a chuva, fria, na fantasia. Fria, mas que aquece a alma. Nunca me resguardo, desde que, um dia, “ouvi” o Dante Alighieri dizer, no Purgatório, “poi piovve dentro a l’alta fantasia”. Só me “resguardo” com o chapéu poético. Mas isso não é resguardar-se. É expor-se ainda mais à chuva. Numa pintura que fiz para um poema, desenhei uma cascata a jorrar cor sobre um poema, entre a dor e a (vã) utopia. Chove abundantemente no poema, até ficar encharcado. Chove na alta fantasia. Dar vida e forma à voz de Dante inspirado nos versos sanguíneos do poeta nordestino Manuel Bandeira é desafio estimulante – a dor que cai gota a gota do coração (“Desencanto”):
“Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca, Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. Eu faço versos como quem morre."
“Como quem morre”, sim, mas para renascer através da transmigração poética. É a fantasia que torna sublime a dor, quando chovem lá dentro lágrimas em forma de palavras. Gota a gota, vindas do coração. Volúpia ardente. Sim, na cascata que pintei também há palavras que jorram sob a forma de gotas compactas como rios de cor sob um fundo vermelho, a cor da paixão. E do sangue. Por isso, “dói-me nas veias”.
Sim, há sempre marcas existenciais, recentes ou remotas, na poesia ou na pintura. “Dói-me”, sempre, “nas veias”. A conversão estética dessas marcas profundas dissimula-as, umas vezes mais, outras menos. Mas a dor permanece, como se vê no poeta Bandeira. É próprio da poesia, o tal fingimento, mas também procuro que esteja na minha pintura numa medida equivalente à da poesia: finge que é dor “a dor que deveras sentes”. Só que a cor absorve quase integralmente a dor. Pelo menos, parece. Esta, aqui, é como que uma dor residual. Não é como a do poeta, que sofre mais, muito mais. Mas a verdade é que em ambas as artes há levitação. E, por isso, libertação. Liberdade. Tenho navegado muito pelos rostos, que é arte muito difícil, porque durante muito tempo me habituei a escrever sobre eles, olhando para eles. É no rosto que se lê a alma. E, se houver dor (e há sempre), ela estará lá espelhada, como sinal. Mas nele, no rosto, há também mistério, além da dor (se houver). E este, o rosto, é uma poderosa fonte de amor. Porque é ele que atrai. O mistério. O rosto talvez seja a chave que abre as portas do amor. E da poesia. “E nestes versos de angústia rouca, /Assim dos lábios a vida corre, /Deixando um acre sabor na boca. /Eu faço versos como quem morre.”
9.
“Le malheur et la mélancolie sont des interprètes les plus éloquents de l’amour”. Esta frase do Balzac, se não erro, cito-a no meu romance “Via dei Portoghesi”. É do livro “La Femme de Trente Ans” (1842; Paris, Ed. Nilsson, 1930, pág. 44). E até poderia complementá-la com uma referência constante do “Sottisier” do Gustave Flaubert, atribuída aqui a Stendhal, nas suas “Promenades dans Rome”: “Para as artes são precisas pessoas um pouco melancólicas e infelizes”. Tudo bate certo. As categorias do amor plasmadas também na arte. A melancolia e a infelicidade (“le malheur intérieur”) como molas propulsoras de arte, de superação pelo belo, de cristalização, expiação, resgate… Por exemplo, infelicidade por amor falhado, como no caso do Stendhal com a Matilde Viscontini. Não pintei um rosto melancólico por acaso num quadro que se chama “Melancolia”. “Infelicidade interior”. Os sentimentos presentes na personagem feminina daquele meu romance: Paola Valenzi. A dialéctica entre encanto e desencanto. Também ao personagem masculino do romance, Gianni della Rovere, lhe doía nas veias. Amargo e quente – era assim que se sentia. Mas é este também o destino do poeta: vive entre o amargo da dor e o quente das palavras que o fazem levitar.
10.
A exaltação nasce do impossível. Como um contraponto. A poesia como partitura onde a palavra é a outra face do silêncio e da ausência. Do impossível. Num diálogo implícito e teatral. Com autor e encenador. Onde os personagens sobem ao palco por exclusiva vontade do encenador. À procura de autor e de enredo. De um novo enredo. Mais belo. E onde a plateia é universal. É uma peça com evocação e invocação do ausente silencioso. Chamamento. A arte alimenta-se disso. Interpela. Torna-se ela mesma superação do impossível. Torna acessível e universal a impossibilidade. Torna verosímil, plausível e possível o impossível, na medida em que faz dele o tema central da narrativa. Melhor: não há impossíveis quando visitamos ou vivemos o real com a arte. Porque na arte há vida e também há partilha. A arte é intensamente inclusiva. E, sim, a “sorte” acontece quando somos escolhidos como inspiração para o voo da fantasia. E é possível escolher o impossível como matéria da arte. É tarefa hercúlea subir essa montanha abissal da impossibilidade e, no fim, sentir-se como se a tivéssemos atingido em cheio. Há sempre uma razão. Um contacto, ainda que tangencial, mas interiormente sentido, que dá vida à fantasia. A estimula. Ou a arte como contraponto do impossível numa sinfonia de palavras. A poesia é como uma rua onde há encontros e desencontros, sol e sombra, luz e escuridão, frio e calor, onde corro ou simplesmente passeio, onde compro coisas ou simplesmente olho para as montras…
11.
“O tempo corre sempre contra nós (…)” – disse alguém. A vida é uma luta contra o tempo, que é implacável, inexorável. Num certo poema, a alusão do poeta era à eternidade desejada num encontro de afectos e também aí o poeta respondia ao tempo que escasseava construindo futuro… num poema. Procurava subtrair-se à tenaz do tempo. Agarrava com palavras o tempo que lhe fugia por entre os dedos das mãos. Mas é verdade, em geral, o que alguém dizia: responde-se ao tempo que escasseia e foge, construindo futuros intemporais. Era também o que dizia o filósofo: “impotente e encerrado na melancolia sento-me ao estirador e desenho futuro e utopias. Faço a revolução quando me sinto impotente perante um real que se mostra indisponível e indiferente à minha vontade e ao meu desejo”. Há quem procure o tempo perdido revolvendo o passado (e não o encontrará, esse tempo esvaído) e há quem acrescente futuro ao tempo passado que construiu com as suas mãos. Constrói-se passado no presente a olhar para o futuro e, assim, no futuro pode-se recomeçar a partir do passado que já é património. Sem isto não haverá capacidade de construir futuros porque o futuro não se constrói sobre o vazio, tal como as utopias… a não ser como ponte entre as margens do vazio. Não há excesso de tempo, diz o poeta. E é verdade. O tempo é mais rápido do que nós e, às vezes, até nos atropela. Às vezes? Eu acho que nos atropela sempre. É a velocidade do tempo que o torna escasso. Mas a poesia consegue agarrá-lo, fixá-lo e projectá-lo para um plano liberto dos riscos da velocidade e da cegueira que ele produz. De facto, o tempo da poesia é outro. É o tempo da fantasia como exercício da vontade animada de desejo, de beleza e de eternidade. E de partilha universal. É a festa das palavras quando o poeta sente o “desencanto”… então, desprende-se, levita e dá asas ao desejo – chove-lhe na fantasia. JAS@09-2023
