Artigo

CAUSA PÚBLICA

Desafios à Esquerda

Por João de Almeida Santos

Euro3

“S/Título”. JAS. 10-2023. Frase de Cícero no “De Re Publica”

FOI CRIADA UMA ASSOCIAÇÃO de reflexão política, de esquerda, designada como “Causa Pública”, presidida por Paulo Pedroso e que integra muitos protagonistas da política nacional, designadamente deputados, ex-deputados e ex-governantes. Há uns meses fora aprovado o seu Manifesto, onde se identificava: “A Causa Pública é uma associação de cidadãs e cidadãos empenhados na construção de novos caminhos para Portugal”, sendo os seus valores fundamentais “a defesa do bem-comum, a democracia, a igualdade e a sustentabilidade”. Noto, de imediato, um significativo esquecimento: o do valor liberdade. Mas, em duas páginas, também noto que não se esqueceram de se referir diferenciadamente, seis vezes, aos dois géneros. Por exemplo, assim: “As e os associados da Causa Pública”. Matéria de reflexão, logo para começar. Mas, na verdade, considero interessante e útil que se constitua uma associação de pensamento político estratégico e de esquerda, visto que o pensamento político anda, por aqui, muito a reboque (quase exclusivamente) do politicamente correcto e seus derivados. O que se espera, pois, é que esta associação não seja mais do mesmo. Disso já temos que chegue, até demais. Entretanto, estão lá alguns deputados do PS, como Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira, e até seus ex-governantes, como Alexandra Leitão, o próprio Paulo Pedroso e o meu amigo José Reis, ou mesmo ex-deputados como Miguel Vale de Almeida ou Ana Drago, ex-deputada do BE. O Manifesto pouco ou nada diz, mas também não seria possível dizer muito em duas páginas. De qualquer modo, gostaria de fazer alguns comentários ao pouco que é dito, ou melhor, sobretudo acerca do que não é dito, até porque, lido criticamente nessa óptica, é possível avaliar de forma mais certeira esta iniciativa. 

1.

Antes de mais, parece-me que entre os seus valores fundamentais deveria constar a liberdade. Mas não consta. Será lapso? Esquerda sem liberdade é o quê? Esquerda com liberdade é liberal? A verdade é que a liberdade e a igualdade são os dois valores essenciais da esquerda e o equilíbrio e harmonia entre eles sempre foi o que diferenciou a esquerda democrática do neoliberalismo e da ortodoxia marxista, do igualitarismo e da liberdade selvagem. Esta falha parece-me, pois, grave. Por isso, espero que seja simplesmente um lapso (mas não um lapsus calami, no sentido psicanalítico). Depois, essa insistência em contrariar a vetusta e sexista gramática, diferenciando repetidamente, ou mesmo obsessivamente, os dois géneros, parece-me ser um sinal pouco animador. No mínimo, parece-me ridícula a frase já referida: “As e os associados da Causa Pública” (“os associados” já inclui o masculino e o feminino, porque está lá por todos). E todos é todos, todos, todos, como se diz agora, depois da visita do Papa. Seis vezes, sim… mas falta lá o neutro.

2.

Depois, a ideia de que “o foco excessivo dos partidos nas suas dinâmicas internas” limita a produção de pensamento não me parece muito certeira, pela seguinte razão: tendo os partidos o monopólio da representação política nacional e, por consequência, sendo eles que fornecem os principais quadros para a gestão política do país, o foco sobre a sua vida interna deveria ser, não reduzido, mas  intensificado, sobretudo em relação aos seus processos internos de selecção da classe dirigente, que são absolutamente decisivos para a boa gestão política de um país, precisamente da Causa (e da Coisa) Pública. Não é difícil perceber isto. O que não compreendo é que Paulo Pedroso venha, entretanto, anunciar que a associação não quer “interferir no xadrez político”. Mas, então, para que serve a associação se o que determina a Causa (e a Coisa) Pública é precisamente o “xadrez político”?   

3.

Também constato que não há uma palavra sobre o mundo digital, que hoje se tornou decisivo em todas as frentes da vida na sociedade actual. E certamente que os subscritores do Manifesto leram o livro da Shoshana Zuboff sobre o chamado “Capitalismo da Vigilância”… Este tema deveria, pois, merecer uma atenção muito especial devido aos efeitos que o digital e a rede vieram produzir sobre a identidade do cidadão na “digital and network society” ou na “algorithmic society”, por exemplo, na sua relação com os processos eleitorais, atendendo às capacidades tecnológicas de determinação preditiva do comportamento eleitoral e ao novo Marketing 4.0, do senhor Philip Kotler. A relevância desta questão é enorme, pois trata-se do processo de acesso democrático ao poder e da sua própria legitimidade. Basta pensar no Brexit e na eleição do Senhor Trump. E no eficaz uso das TIC pela extrema-direita.

4.

E parece-me até um pouco perturbadora essa vontade “de ir além dos caminhos já conhecidos”. Não será necessário tanto, digo eu, pois a humanidade há séculos ou milénios que procura as melhores formas de autogoverno. Bastaria, mais prosaicamente, centrar-se num bem conhecido caminho, o da democracia representativa, e melhorá-lo, dando resposta à famosa crise da representação no quadro da democracia. Na verdade, e ao contrário do que vulgarmente se diz, a democracia representativa ainda é muito jovem, por duas razões: a) só depois da segunda guerra mundial ela ficou garantida na sua plenitude (com a expansão do sufrágio universal, embora ainda com a limitação do bipolarismo ideológico, político e económico que se instalou com a formação dos dois blocos; por exemplo, o bloqueamento da democracia italiana durante mais de quarenta anos a isso se deve – a famosa conventio ad excludendum); b) a democracia representativa é um sistema muito exigente e difícil de alcançar porque pressupõe a plena consciência dos indivíduos em todos os planos da vida social como condição para a assunção de uma plena responsabilidade logo no acto do voto (sobre isto veja o artigo de ontem de Pedro Norton, “Asfixia Democrática?”, no “Público”, p. 7). O princípio equivale ao do imperativo categórico kantiano: “age como se a máxima da tua vontade pudesse valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. Neste aspecto, não é preciso inventar, mas somente desenvolver o princípio no sentido de uma autêntica democracia deliberativa, investindo na qualificação e na intervenção de uma cidadania activa no processo político.

5.

Também não vi no manifesto uma menção relativa a uma questão absolutamente decisiva, mas hoje muito esquecida pela esquerda: quais as fronteiras da acção do Estado perante uma cidadania de múltiplas pertenças e com poderosos e quase ilimitados instrumentos de informação e de intervenção no espaço público? Um exemplo: é inaceitável a ideia, que se tem vindo a impor sobretudo em períodos de crise, de um Estado-Caritas substitutivo do Estado Social. A eficácia do Estado Social é hoje um problema a resolver politicamente, mas não através da prática esmoler. Depois, ligada precisamente à definição das fronteiras do Estado, está a política fiscal: quanto maiores forem as competências e a responsabilidade do Estado maior será a carga fiscal. A clarificação desta questão tem, pois, implicações directas na política fiscal, como se compreende. E ainda: quem deverá pagar impostos? Todos (ainda que alguns só simbolicamente) ou somente uma parte (em Portugal em 5 milhões e 400 mil agregados só 3 milhões pagam IRS)? Trata-se de questões centrais da política nacional que merecem uma reflexão analítica muito clara, em vez dos habituais fumos ideológicos e da retórica caritativa.

6.

Mas, e a propósito, também se torna necessário acabar com os discursos nebulosos da esquerda acerca da função do mercado e da regulação? E a ser feita, esta clarificação, ela deve ter consequências. Não se reduzir a um faz-de-conta, para boa consciência do progressismo regulador, como se vê em Portugal. Por exemplo, com o preço dos combustíveis, com os juros ou com os preços das telecomunicações, onde se verifica um descarado cartel. O problema do mercado cruza-se directamente com a determinação das fronteiras do Estado, sendo certo que o comando administrativo da sociedade ou o Estado mínimo sempre foram combatidos pela esquerda democrática. Pois bem, compete-lhe então esclarecer onde ficam as fronteiras da intervenção do Estado e as da intervenção do mercado, acabando de vez com a política-catavento. Em palavras simples, cumpre definir com rigor onde começa a responsabilidade individual e onde termina a responsabilidade da comunidade. E eu, a este propósito, pergunto sobre o que pensam os associados da “Causa Pública” da frase de John Kennedy, no “Inaugural Address”, em 20.01.1961: “Ask not what your country can do for you – ask what you can do for your country”.

7.

Na mesma linha está a questão da gestão da dívida pública. É aceitável que o Estado se ponha alegremente nas mãos dos credores internacionais (e dos bancos), a que se junta o domínio total das três famosas agências de rating (que detêm a quase totalidade do mercado de rating, e que são controladas pelos especuladores), “borrifando-se” literalmente para os recursos financeiros derivados da poupança nacional, como aconteceu recentemente com os Certificados de Aforro, ainda por cima por um governo do Partido Socialista? Percebe-se bem o problema pensando, por exemplo, nas imposições da Troika. E nas consequências da avaliação das agências. Mas percebe-se ainda melhor se pensarmos que 28% dos juros da poupança nacional revertem sempre a favor do Estado (imposto sobre capitais) e que eles são reintroduzidos na economia nacional, ao contrário do que acontece no caso dos credores internacionais (nem uma coisa nem a outra, designadamente porque estão isentos de imposto). E este é, a meu ver, um ponto muito elucidativo sobre a orientação política global de um governo e de um partido. Ser amigo do contribuinte que é, ao mesmo tempo, aforrador.

8.

Outra, ainda, é a da eficácia da máquina do Estado (que não seja só para cobrar impostos e taxas) sobre a qual os governos se têm mostrado completamente ausentes, desde que não seja para punir o cidadão. É só perguntar ao MAI quanto recebe por mês do seu Banco “privado”, a ANSR (no mês de Setembro do corrente ano, esta encaixou cerca de 7 milhões de euros de multas… para garantir a segurança rodoviária, sim, mas sobretudo a dos cofres do Estado). A eficiência do Estado é um pilar essencial da democracia representativa e dos direitos e responsabilidades da cidadania. Não pode é ser uma espécie de Estado sniper financeiro.

9.

Depois, a questão da mobilização da cidadania para além do quadro partidário, à semelhança do que acontece com as grandes plataformas digitais, como a MoveOn.Org ou a Meetup, por exemplo. Nos Estados Unidos, aquela primeira plataforma foi muito importante para a eleição de Barack Obama, para a defesa do Obamacare ou para os resultados apreciáveis de Bernie Sanders nas primárias democratas. Em Itália a plataforma Meetup deu origem ao MoVimento5Stelle. As insuficiências da democracia representativa e do sistemas de partido não só se resolvem “por dentro” como também se resolvem “por fora”, ou seja, promovendo canais de intervenção da cidadania fora do quadro tradicional da intermediação política e comunicacional. Esta associação bem poderia ter tido a pretensão de se constituir como uma plataforma de pensamento e acção política complementar ao sistema de partidos. Mas para isso não deveria inibir-se de “interferir no xadrez político”, tornando-se politicamente inconsequente. Pelo contrário, uma intervenção competente poderia ajudar os partidos a ultrapassar essas formas morbosas de endogamia e de fractura em relação à sociedade civil.

10.

E, já agora, também não teria sido descabido deixar uma palavra sobre a União Europeia e o seu futuro – por exemplo, acerca da manutenção da linha intergovernamental ou a sua constitucionalização -, hoje componente decisiva das próprias políticas nacionais dos Estado-Membros e tão importante como desejável reguladora da política internacional, cada vez mais influenciada por potências autoritárias e belicosas. 

11.

Poderia continuar, mas não é o caso, para me ater a uma dimensão equivalente à do Manifesto. Na verdade, o Manifesto pouco ou nada acrescenta, a não ser a confirmação de genéricos e estereotípicos temas e da habitual linguagem politicamente correcta. Na verdade, vejo ali sinais de uma orientação que parece estar subordinada excessivamente a esse ambiente tóxico do politicamente correcto e seus derivados. A presença de certos personagens não dá lugar a dúvidas. Com todo o respeito, claro. Mas o que diz o PS? Já não digo António Costa, mas, por exemplo, Pedro Nuno Santos? Manter um prudente silêncio será a melhor política para fazer política? Não será tarefa inútil, e nem sequer difícil, ver com muita atenção o perfil dos personagens que subscrevem o Manifesto e que integram a associação “Causa Pública”. Essa verificação já a fiz, mas não quero pronunciar-me sobre eles. Fico-me pelas ideias e pelo não dito do Manifesto. Mas, adiante, que se faz tarde: venham daí boas propostas, que até pode ser que aqui se inicie o processo de um autêntico despertar da esquerda… JAS@10-2023

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