O DESAFIO WOKE
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 10-2023
NÃO É A PRIMEIRA VEZ que escrevo sobre esta ideologia, o wokismo, que ameaça tornar-se hegemónica, enquanto tal ou nalguns dos seus derivados, nos países ditos desenvolvidos. E já não é só nas Universidades dos Estados Unidos ou em França. É uma ideologia com muitas variantes que vão da teoria crítica da raça à ideologia de género, à teoria da interseccionalidade, às teorias identitárias, ao revisionismo histórico, ao politicamente correcto, à cultura do cancelamento e que se opõem, todas elas, radicalmente ao liberalismo, ao iluminismo, ao racionalismo, ao universalismo, à neutralidade e à objectividade da ciência. No livro que lançarei neste mês de Outubro, por ocasião do primeiro aniversário da minha actual Editora (ACA Edições), em formato e-book, dedico abundantes páginas a esta ideologia e aos seus derivados. Entretanto, tive oportunidade de ler um livro de Jean-François Braunstein, professor de filosofia na Sorbonne, sobre “A Religião Woke” (Lisboa, Guerra e Paz, 2023, 181 pág.s) que não só confirma o que escrevi, mas ainda descreve o fenómeno com mais radicalidade, mais dados e preocupação. Mas não é caso para menos, vista a influência que este movimento e seus derivados estão a ter para além dos muros da Universidade, nos Estados Unidos e em França, tendo já chegado às escolas primárias com a tentativa de influenciar e atrair os jovens para esta combativa e absurda ideologia. Não tão absurda que não tenha antecedentes na história da filosofia, como veremos, mas sobretudo pelo radicalismo e pelo primarismo das suas teses. Os casos relatados por Braunstein são imensos e dão conta dos castigos (despedimentos e vexame público) a que são submetidos os que ousam afirmar, por exemplo, que existem homens e mulheres e que isso é um facto biológico, que “o sexo biológico existe” (2023: 53).
1.
Há duas ideias centrais da ideologia woke que são sublinhadas neste livro: a ideia de racismo sistémico; e a ideia de que género e sexo são duas coisas não só diferentes, mas mesmo desligadas.
A esta última ideia aplicam, recorrendo ao John L. Austin de “How to Do Things with Words”, a noção de performatividade da linguagem e dizem que basta dizer-se masculino, feminino, neutro ou algo mais para o ser com todas as suas consequências, designadamente em matéria de comportamento social, ou seja, de imposição social das próprias opções. No nascimento, o género é atribuído, não resultado de um processo natural. “Basta declarar ‘sou trans’ e, portanto, é-se trans. E, então ascendemos na lista progressista e ganhamos credibilidade nesta visão do mundo interseccional” (Heather Heying; Braunstein, 2023: 84 e 77). “Fluidez de género”- é a teoria, a libertação radical da escravidão do corpo, cada vez mais promovida pelo movimento transgénero (Braunstein, 2023: 78-82). Mas como o recém-nascido ainda não dispõe de linguagem deve-se manter um género neutro ou, como sugere Anne Fausto-Sterling, atribuir-lhe um sexo provisório, prescindindo do sexo com que nasceu, mas educando-o no sentido de uma posterior livre escolha da identidade de género ou sexual. “Tu é que decides o teu género”. A caminho daquilo que Braunstein identifica como “trans train” (2023: 71-72). Se dúvidas houvesse, bastaria ver o que diz Fausto-Sterling, em “Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality” (2000): existem pelo menos “cinco sexos”: os homens, as mulheres, os herms (hermafroditas « verdadeiros »), os merms (« pseudo-hermafroditas masculinos »), as ferms (« pseudo-hermafroditas femininas »). “A sexualidade é um facto somático criado por um efeito cultural”. Não é binário, o sexo, mas um continuum (veja a recensão ao livro, na tradução francesa, daquela autora por Anne-Claire Rebreyend: https://doi.org/10.4000/clio.11110; e Braunstein, 2023: 76). Esta separação radical entre género e sexo ou corpo tem consequências: a desqualificação do mundo sensível e o regresso da velha teoria berkeleyana “esse est percipi”, ser é ser percebido. Faz-me também lembrar este curto e certeiro poema do beco, do grande Manuel Bandeira (1936):
“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? / / - O que eu vejo é o beco.”
O que conta é o que vejo com o desejo e o que, por consequência, declaro: o meu beco. Não há mundo, há becos por onde circulo, o meu mundo, que é o do meu desejo. Beco com sentido único. Raízes filosóficas da ideologia woke no solipsismo, portanto. Onde a natureza pôs um sexo, os wokes podem ver nele outro, dependendo da vontade e da linguagem performativa com que o enunciam. O problema não reside no desejo, mas na sua imposição social, na sua imperatividade social.
2.
O autor, referindo-se a John Money, encontra no behaviourismo de Watson uma das suas raízes de inspiração, o predomínio do adquirido sobre o inato: “dêem-me uma dúzia de crianças saudáveis”, diz Watson, “com boa constituição física e o tipo de mundo de que preciso para as educar, e eu empenhar-me-ei, escolhendo-as ao acaso, de as formar de modo a fazer delas especialistas, à minha escolha, médico, comerciante, jurista, e mesmo pedinte ou ladrão, independentemente dos seus talentos propensões, aptidões, bem como a profissão e a raça dos seus antepassados” (2023: 74). John Money foi o intérprete qualificado, radical e reconhecido desta releitura woke de Watson. O New York Times, traduzindo, explica: “Se dissermos a um rapaz que é uma rapariga e se o educarmos como uma mulher, ele irá comportar-se como uma mulher”; ou, mais especificamente, sobre a influência de Money nesta matéria: Money é para a história da sexualidade o que Hegel é para a história da filosofia e Einstein para o conceito de espaço-tempo (Beatriz Preciado; Braunstein, 2023: 74). O wokismo radicaliza esta orientação e vai até à anulação da biologia como ciência: seria urgente, porque “a biologia enviesa-nos”, lançar as bases de uma “ ‘anti-biologia’ ginocêntrica, matriarcal ou homossexista”, diria o militante do género Thierry Hoquet, na obra Des sexes innombrables. Le genre à l’épreuve de la biologie” (Paris, Seuil, 2016; Braunstein, 2023: 140). O famoso biólogo de Stalin, Lyssenko, não diria melhor, ao lançar as bases biológicas do homem novo (a alteração estável da constituição hereditária dos organismos pela alteração das condições ambientais), desejado pelo ditador soviético. Ou mesmo para a relativização das ciências em geral e das suas categorias (por exemplo, a da objectividade e a da universalidade). Vejamos a posição sobre a matemática: “o objectivo seria ‘desmantelar o racismo no ensino da Matemática’ e promover mais geralmente ‘uma viragem sociopolítica em todos os aspectos da educação, incluindo a matemática” (Braunstein, 2023: 126). Ou a branquitude matricial da matemática e o seu racismo sistémico. É isso que eles defendem. Nada menos.
3.
Esta mundividência (se assim se pode dizer, visto o localismo que eles defendem) também usa uma linguagem não só performativa, mas também neutra, para que ela não fique dependente da visão binária do sexo ou do género e da correspondente linguagem. Por isso, intimam a que se use uma linguagem neutra em linha com a nova liberdade da “fluidez de género” ou de sexo: “pessoas grávidas”, em vez de “mulheres grávidas”, “leite humano” ou “parental”, em vez de “leite materno”, “pessoas com vagina” ou “pessoas com útero”, em vez de mulheres, “pessoas que dão à luz”, em vez de mães. Um esforço enorme para “suprimir da linguagem tudo o que evoque a diferença dos sexos” (Braunstein, 2023: 93). A linguagem neutra, no fundo, reconhece a importância da linguagem tal como já acontecera com a invocação do seu poder performativo, condição da sua própria liberdade e do seu solipsismo. Reconhece-se com toda a evidência aqui também o incrível manual de boas práticas linguísticas da Universidade de Manchester.
4.
Há, todavia, um problema que a orientação transgénero e a teoria da “fluidez de género” ou de “sexo” levantam: as feministas não podem aceitar que o seu corpo seja assim relativizado e sejam obrigadas a “encarar como mulheres homens trans agora mulheres que, fisiologicamente, se mantêm homens” (Braunstein, 2023: 97). Ou, melhor ainda, mulheres lésbicas sujeitas a relacionar-se sexualmente com uma ladydick, aceitando que “um pénis pode ser um órgão sexual feminino” (Helen Joyce; Braunstein, 2023: 96). Há, pois, aqui um problema de assunção da identidade sexual e de eventual “profanação” do próprio território do desejo.
5.
A primeira ideia, ou seja, a do “racismo sistémico”, ou “racismo de atmosfera”, ou mesmo “racismo ambiental”, talvez seja ainda mais radical, mas algo contraditória com a segunda: o nascimento que determina a cor da pele marca o destino: nasceste branco serás eternamente racista porque ser branco é “por defeito” ser racista (Braunstein, 2023: 11-14). Não podes anular esta tua condição. Quando muito atenuá-la através do mecanismo do reconhecimento; ou, então, como diz I. X. Kendi: tudo o que o branco pode fazer é “lutar para ser menos branco”, pois, “ser menos branco é ser menos racialmente opressivo”. Ou até “matar o homem branco” (que há em nós), como já se viu ser dito entre nós, à boleia do grande Frantz Fanon de “Les Damnés de la Terre” (Paris, Maspero, 1961). Como a doutrina da predestinação: ao nascer branco ficaste arredado do dom da graça e condenado a arrastar contigo pela vida o pecado original da branquitude. E, segundo alguns, a branquitude até tem uma doutrina letal: o “imaginário letal do humanismo iluminista europeu”. O que define muito bem, e de modo radical, a posição anti-iluminista e anti-liberal do wokismo.
6.
Mas estas duas orientações são contraditórias. Podes escolher livremente o teu género (e seres transgénero), libertares-te do determinismo físico que te impôs um certo sexo, mas não podes libertar-te da raça a que ficaste condenado por nascimento. A liberdade, no plano do género, que anula a determinação sexual biológica, a conviver com o determinismo racial, que anula a possibilidade de te autodeterminares relativamente à tua condição biológica racial. Não há aqui doutrina da interseccionalidade (a doutrina da convergência das múltiplas opressões) que as salve desta contradição lógica, ainda que formulada por uma brilhante aluna de Derrick Bell em Harvard e posteriormente professora na Columbia Law School e na UCLA, Kimberlé Crenshaw (2023: 128-139).
7.
Mas ambas as orientações convivem com uma orientação identitária, seja por livre adopção seja por determinação racial. A filiação identitária (na raça ou no sexo desejado) é norma e é nela que o indivíduo se deve reconhecer. O wokismo não reconhece a universalidade porque tudo remete para identidades, subsistindo, pois, um problema de reconhecimento societário e respectivas instituições, a começar logo pelo contrato social e pelo Estado. O wokismo inscreve-se, assim, na tradição romântica anti-iluminista e anti-liberal (na lógica da rejeição), mas também na própria tradição marxista (na crítica do sistema representativo e do universalismo que lhe está associado, por exemplo, na crítica de Marx a Hegel, na Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito Público, e na Questão Hebraica) que recusa e refuta esta tradição. O autor cita, a título de exemplo, à direita, Joseph de Maistre e Bonald. Mas o que acontece é que o wokismo não atinge a sofisticação destas teorias, revelando-se absolutamente primário nas suas formulações. Até na crítica da ciência, a sua redução sociológica, e na proliferação da suas epistemologias (p. 146-163) esquecem a robusta tradição teórica da sociologia do conhecimento, em particular a sofisticada obra teórica do seu mais importante teórico, Karl Mannheim (sobre o assunto, veja-se o meu ensaio sobre a obra de Mannheim, publicado pela Revista Jurídica, “Mannheim e la sociologia della conoscenza”, Abril de 2001, n. 24, pp. 473-493). Ou seja, nesta ideologia wokista encontramos filões que já existiram no pensamento ocidental, mas de forma teoricamente muito mais robusta e aceitável do que esta nebulosa filosófica com aspecto religioso e em busca de hegemonia num mundo à deriva. E não só pelos dramáticos conflitos a que estamos a assistir, mas também pela grave crise de pensamento sobre as profundas mudanças que estão a ocorrer em todas as dimensões da vida social, a começar logo na política. Só assim se explica a cavalgada mundial que o wokismo está a fazer nas suas várias frentes de afirmação e a sua penetração já profunda nos partidos políticos de centro-esquerda e até de centro-direita e nas próprias instituições. E não só nos Estados Unidos, mas também na União Europeia, em particular na França (e em Espanha e Portugal). Quem tomou bem consciência do perigo de hegemonia desta ideologia foi a extrema-direita, tendo compreendido que no combate frontal a esta tendência poderá colher bons frutos eleitorais por compreender que a generalidade da cidadania não aceita esta mundividência pelo que ela tem de absurdo e de contra-tendência relativamente ao que foi a sua própria história, mas também pelos perigos que ela encerra na sua relação com os jovens de hoje e responsáveis políticos, culturais e empresariais de amanhã.
8.
Voltei ao assunto para aprofundar o que já escrevi e pus em livro, a lançar nos próximos dias em formato e-book. Ajudou-me a este regresso, agora, o livro do Professor Braunstein, em boa hora traduzido para português pela Guerra e Paz. Mas voltei também porque considero que é necessário dar atenção e sobretudo dar luta aos avanços do wokismo nos países ditos desenvolvidos, não só pelos perigos que encerra, mas também pela farsa de pensamento que representa. Em particular, os partidos sociais-democratas, hoje abundantemente infiltrados pelas várias frentes do wokismo, deveriam tomar consciência de que um dos seus fundamentos filosóficos e políticos (que os diferenciou do socialismo ortodoxo) está a ser, uma vez mais, minado por dentro, correndo-se o risco de um dia já ser tarde para preservar o que de melhor a modernidade nos legou. Termino com uma citação de Braunstein que deixa claro o que está realmente em causa: “Consideram que os racizados sabem, e só eles sabem, que os homens não são homens abstractos no sentido da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, declarada aliás culpada de não ter abolido a escravatura”. “O universalismo é portanto um inimigo a combater, como dizem, com grande unanimismo, DiAngelo, Kendi e todos os outros militantes racialistas ou interseccionais. Estes subscreveriam de bom grado a fórmula do contra-revolucionário Joseph de Maistre: “Não há homem nenhum neste mundo. Vi, ao longo da minha vida, franceses italianos, russos, etc.; sei aliás, graças a Montesquieu, que podemos ser persas; mas quanto ao homem, declaro nunca o ter encontrado na vida; se existe, ignoro-o” (Braunstein, 2023: 164-165).
Sim, a Declaração de 1789 não acabou logo, na realidade, com a escravatura, é verdade. Mas acabou com o Antigo Regime e lançou as bases para o fim da escravatura. Nos seus princípios não há lugar para a escravatura ou para a opressão. Aliás, ela é o documento que define com um admirável rigor e uma extraordinária visão as bases da nossa própria civilização moderna. Em cerca de duas páginas e 17 princípios. No ano da Revolução Francesa. JAS@10-2023
